o que escrevi de melhor fundamenta-se nessa aptidão para poder morrer contente
Franz Kafka
Em artigo de Alfredo Bosi datado de 2002, o crítico brasileiro se ressente de uma hipermímese própria à literatura da atualidade, narrativa que se esgueira, encosta-se às paredes, para expor o que é entrevisto, aquilo que é efetivamente “real”, aquele duplo de uma pretensa autenticidade, geralmente confiada ao texto de forma extrínseca:
O brutalismo corrente na mídia entra na ficção contemporânea mediante uma concepção e uma prática hipermiméticas do texto. E, na medida em que diversos espaços sociais que a produzem e a consomem são descontínuos e heterogêneos, foram-se criando subconjuntos literário diferentes na temática, mas que tendem a ser homogêneo enquanto retomam a concepção hipermimética de escrita. (BOSI, 2002, p. 250)
Na visão de Bosi, tal autenticidade externa se confirma no mais das vezes pelo conteúdo politicamente correto, ligado a cada um dos subgrupos implicados na produção/consumo dessa literatura. Embora Bosi não trate do lugar do autor propriamente, a “autenticidade” política pode vir a ser ainda mais reforçada pelo nome e pela biografia do escritor. Narrativas nomeadas de fora pelas testemunhas de algo, pelas vivências de um ladrão, uma prostituta, um político, naquele estilo confessional que frequenta as prateleiras de “mais vendidos”. Tão coladas àquilo que é, poder-se-ia dizer, que valem pelo mapa de Borges, cuja extensão minuciosa permite recobrir-se, com esse dúplice do mesmo, toda a terra, enfim redesenhada à sua imagem e semelhança. Uma espécie de narrador jornalista, cuja experiência real compensaria a leitura, em detrimento de qualquer construção formal, por seu discurso, sua tese. Se há alguma verdade formal, ela estaria atestada pelo seu enunciador, no grau mínimo de reconstrução, ali onde a forma se faz mundo. Mas não se escamoteia ai uma “forma” descuidada de si para fazer-se passar por transparente? Uma, entre outras, convenção formal, travestida nessa espécie de não-forma confessional, jornalística, ou coisa que o valha? Se antes a literatura que apostava em um conteúdo era entendida como má literatura, exatamente por esse pacto externo com seu ponto de vista, a assim chamada “literatura de tese”, atualmente podemos pensar que se dá o contrário; temos reiteradamente de justificar uma literatura sem teses explicitas, uma literatura como forma, em sua verdade imanente, que confere de si para si, como construção, uma completude mimética tensa. Nessa hipermímese extraliterária que cobra do texto a sua função de ser em uma tese pactuada de antemão, a literatura atual, pelo anverso, repõe os debates dos anos 1940-1950, quando críticos e escritores tentavam pensar qual a verdade da literatura em tempos sombrios, qual sua práxis, num mundo tomado por outras formas de narrar, não raro cooptadas por interesses vários.
No extremo reverso, seguindo ainda a sugestão de Bosi, um excessivo formalismo esgarça o texto literário condenando-o a um mero jogo objetivado. Já distante das estantes dos “mais vendidos”, mais próximo de salões literários e acadêmicos, a literatura, ou mesmo a arte em geral, apresenta-se como autorreferencialidade, tessitura complexa, que extrai, por sua vez, sua autenticidade dos lances interpretativos que provoca nos circuitos fechados. Teríamos então essa artisticidade atestada pelas especialidades da técnica como justificativa da obra. O que Bosi entende, no polo oposto ao imediato da hipermímese, como hipermediação pela forma objetiva. Ou, para citar o próprio crítico: “a escrita seria, portanto, um produto de aglutinação de subdiscursos que caberia à Retórica ou à História das mentalidades classificar” (BOSI, 2002, p. 253).
A subjetividade estrita, mercadológica, a objetividade fechada, acadêmica – de alguma forma, em seus extremos, as pontas se tocam, tornando o texto literário supérfluo, distanciado, desimportante de um ponto prático, do ponto de vista da experiência. Ora forma, ora conteúdo, ora subjetividade especular, ora objetividade positivada, nos extremos, experiência frustrada pela cisão na qual não se reencontram leitor e texto. Claro que aqui já extrapolamos e muito o que podemos creditar a Bosi, o crítico apenas mapeia essa crise dos extremos, e não tira necessariamente as conclusões que tiramos. Claro que ambos os pontos são exagerados, há zonas intermediárias, mas essa tensão pendular também recoloca termos e problemas dos anos 40-50 em pauta. Texto clássico desses debates, acirradamente contestado por alguns, O que é a literatura?, publicado por Sartre em 1947, vem responder exatamente à dialética interna que põe a necessidade específica da forma literária e de seu compromisso com o mundo, seja este o “conteúdo” ou a situação própria ao escritor, o seu lugar. Como leitor afinado ao projeto de Sartre, o crítico francês Maurice Blanchot expõe em seus textos os mesmos questionamentos.
Nesse confronto entre dois autores que se tocam conceitualmente em alguns pontos e se encontram num texto no qual Blanchot comenta os romances de Sartre, há um cerne ao qual ambos nos remetem, de maneiras distintas: a literatura como experiência fenomenológica, experiência existencial radical, em que pode haver um vislumbre da transcendência do homem, sem se abandonar a relação tensa das consciências no mundo. Podemos dizer que há no horizonte um leitor que se perde na objetividade da obra para dela retornar outro, na dialética tensa entre subjetividade e forma, entre sujeito e mundo. Ou seja, esse vislumbre da transcendência, para além do indivíduo fechado, se dá a partir de algo que é interno à própria forma literária (ou artística), que lhe é imanente como característica objetiva.
Assim, inicio essa discussão tentando precisar o lugar da literatura em Sartre até chegar à sua tematização mais específica em O que é a literatura?. Em seguida, busco mostrar como Blanchot compreende a literatura de Sartre frente a sua filosofia e como, nessa compreensão, delineiam-se as diferenças sutis entre duas formas de se pensar a experiência literária. Vale lembrar que, para além das diferenças, em ambos os autores essa experiência do literário – que em Sartre acaba por ser radicalmente circunscrita, distanciando-se do que chamamos genericamente Arte –, não é mais apenas uma entre outras experiências estéticas, mas o lugar mesmo em que se encenam e se tensionam as consciências; ou, para retomar uma frase que não é nem de Blanchot nem de Sartre, e também não se direciona somente à literatura, podemos dizer com Mário Pedrosa que, neste caso, a literatura é “o exercício experimental da liberdade”.
A LITERATURA EM SARTRE
Durante a escritura de seu primeiro romance, A Náusea, publicado em 1938, Sartre está escrevendo também um texto filosófico, um pequeno ensaio sobre A Imaginação (1936). A partir de Husserl, o jovem Sartre passa em revista a tradição filosófica, para a qual a imaginação sempre produzira imagens de coisas – mesmo que estas coisas fossem associações mentais – que se relacionam com percepções como se fossem suas sombras remotas e coisificadas. Esses autores não perceberam uma distinção básica, que apenas uma metafísica muito ingênua nos permitiria confundir: imaginação e percepção não são da mesma natureza, não se relacionam, que a imaginação é uma forma de visada da consciência, um ato da consciência, que, para pôr algo em imagem, precisa negá-lo como existência. Percepção e imaginação são, assim, operações da consciência, operações sintéticas, visadas do sujeito originariamente distintas.
No romance de 1938, não são poucas as vezes que a personagem Roquentin se vê frente a frente com imagens, tais como as do museu de Bouville, ou mesmo aquelas mais simples, as histórias das cartas do marquês sobre o qual escreve, as fotos de seu passado, também ele transformado em nada, em imagem[1]. Essas figuras despertam a consciência perturbadora da "existência" do narrador: elas "não existem", ou sequer "existiram" na forma de percepções enfraquecidas. Não são fantasmas de ocorrências que se deram no mesmo "passado" contingente de que Roquentin fez parte, como homem real. Homens e lugares são colocados em imagem, cuja natureza não se deve a qualquer simulacro de percepção, mesmo que atenuada, do homem ou do lugar “real". Como a folha de papel que, após ser realmente percebida, ao sair do campo de visão, pode ser visada pela consciência em imagem, essa identidade "em essência" e não "em existência", transforma as pessoas e as coisas imageadas em estranhos ao mundo e, num segundo momento, em astutos rivais a afrontar a contingência factual sem sentido do homem. Assim, ao encarar os retratos do museu de Bouville, Roquentin sente-se humilhado pela determinação pétrea daquelas vidas, ali completas e totalmente explicadas, fixadas nas suas imagens.
O embate entre a descoberta da existência sem sentido e a síntese determinada das imagens ou das ficções pode ser visto com um dos motores do romance. Vale lembrar rapidamente a forma e o enredo do livro: escrito na torrente de um diário, o romance tem por personagem narrador Antoine Roquentin, homem já não tão jovem, pois carrega consigo suas fotos de viagem, suas amarras com algum passado, que se muda temporariamente para uma pequena cidade a fim de escrever um livro sobre um marquês, cujas cartas em sua posse sugerem lances históricos romanescos dignos de serem relatados. Um enredo simples, vazio de expectativas, que põe a nu a complexidade da escrita, pois se escreve um livro dentro de um livro. Nessa experiência de se escrever, sobre si e sobre outros, Roquentin costura a vivencia radical do nada, a grande náusea.
Em uma crítica datada provavelmente de 1949[2], Maurice Blanchot entende A Náusea como um romance de “revelação”, um romance no limite do não dizível, pois no limite entre o que é “existência” rude, crua, e a o que já é uma captura desta pela rede de palavras, “imagem”. O romance, em atrito com o texto de A Imaginação, deixa entrever essa tensão em toda sua fatura, na forma do diário que se escreve; a tensão entre o que é sem nenhuma necessidade e o que é em palavras, portanto, produto de síntese em imagens, disposta de uma determinada forma que, por mais aleatória, ainda assim é transpassada por uma construção, uma necessidade, a necessidade de tudo o que é imaginário, essencial, frente ao aleatório existente. Mesmo sem tematizar essa coabitação entre a escrita filosófica e a experiência do romance, Blanchot percebe a tensão e escreve:
A náusea é uma experiência narrativa de uma experiência. Antoine Roquentin está diante de um movimento que lhe escapa e a partir do qual, ele o sente, tudo vai escorregar. A aproximação desse movimento é tão importante quanto a revelação pela qual ele compreende o seu sentido, ou melhor, ele faz parte dessa revelação é essa revelação [...] Quando Ronquentin está face a face com a existência, quando a vê, compreende e descreve, na realidade ele não possui nada mais e nada muda, a revelação não o ilumina, pois não cessou de lhe ser dada, e ela não põe fim a nada, porque está em seus dedos que o apalpam, e em seus olhos, que veem, isto é, continuamente absorvida em seu ser, que a vive. (BLANCHOT, 1997, p. 191-192)
No final de A Náusea, Ronquetin se propõe a, ele mesmo, fixar um cristal imaginário, um algo necessário no qual sua vida se explicaria, pelo qual aquele seu corpo, ao fim, restaria “lavado do pecado de existir”. Algo para sustentar por trás a sua efígie, como naqueles homens da velha Bouville que lhe olhavam das paredes do museu. Ouvindo um velho disco, Ronquetin toca a essência em imagem da cantora, do músico “penso naquele sujeito lá longe que compôs essa melodia, num dia de julho, no calor negro do quarto. Tento pensar nele através da melodia” (SARTRE, s/d, p. 256). O narrador atinge aquele outro lado do espelho onde a determinação da obra suga para si a viscosidade da vida. Mas Blanchot para antes desse desenlace final, cessa a análise do romance de Ronquentin quando este se revela a si mesmo como revelação, mas revelação que é apenas o desvelar daquilo que sempre esteve dado, da vida que é vivida através desta revelação, na forma do diário escrito. E sua análise de tal empreitada experiencial do ponto de vista literário é a de que Sartre escapa de uma possível armadilha, a da tese filosófica que enformaria o texto a priori, pois:
a tese que se mostra não pode permanecer a distância do personagem que vê e na medida que passa por ele, invade-o, e, como Sartre gosta de dizer, gruda em sua consciência como tende a grudar na do leitor. (BLANCHOT, 1997, p. 191)
Leitor e personagem mergulham na água viscosa que é a própria “tese” do livro, para a qual a última palavra, que completaria a imagem, sempre falta, na densidade espessa da experiência literária aberta, vivencial. Para entender a complexidade da escusa de Blanchot quanto ao final do livro, talvez pudéssemos recorrer a outra interpretação do mesmo romance. Por exemplo, Thana Mara de Souza, atenta ao desfecho final que parece desinteressar a Blanchot, vê nele uma explicação retrospectiva do próprio livro que lemos. Um fechamento. Como se A Náusea fosse o romance em que Roquentin engajaria sua vida. Diz Thana Mara, em Sartre e a literatura engajada,
e é nessa perspectiva de alcançar o necessário através da escrita de um romance que o livro termina (as últimas páginas de A Náusea mostram a decisão de Roquentin de escrever um romance no qual adivinhasse, por trás das palavras impressas, algo que não existisse, que estaria acima da existência, ou seja, que fosse essência e não existência) ou talvez, começa (o livro todo não seria o romance escrito pelo próprio Roquentin, não seria a realização dessa tentativa?). (SOUZA, 2008, p. 24)
Talvez, para o Sartre dos anos 30, esse círculo que leva da revelação à salvação pela Arte fizesse algum sentido, e a aposta de Thana Mara de Souza possua uma perspicácia especial. Mas, em relação a um outro texto seu aqui citado, O que é a literatura?, seria paradoxal entender que uma “revelação” pudesse advir de uma tendência à abstração, percebida na ideia de salvação daquela "vida" sem sentido que Roquentin vislumbra. Uma salvação na literatura ou na música, ou em qualquer forma necessária de Arte, com “a” maiúsculo, só poderia ser uma fuga da grande revelação. Talvez esse Roquentin seja como aquele crítico literário ironizado por Sartre:
os mortos lá estão: nada mais fizeram senão escrever, há muito estão lavados do pecado de viver, e, de resto, só conhecemos suas vidas através de outros livros que outros mortos escreveram a seu respeito. (SARTE, 1989, p. 24)
Note-se que Sartre retoma, com as mesmas palavras, o que sussurra de si para si Roquentin ao ouvir a música que dá forma aos sofrimentos-modelo de um compositor judeu e uma cantora negra: “eis dois que se salvaram: o judeu e a negra. Salvos [...] Eles são um pouco como heróis de romance; purificaram-se do pecado de existir” (SARTRE, s/d, p. 257). Mortos, eles são entretanto “salvos” para todo o sempre do vórtice assombroso da náusea: sua morte se fez determinação.
Purificado do pecado de existir, o narrador pode enfim se reconciliar com as imagens, dos homens do museu, da cantora e do músico de blues, de seu passado. Assim, se o diário escrito é aquele que dá peso, cristaliza, a própria experiência existencial sem sentido, paradoxalmente é a literatura que retira dessa experiência sua radicalidade anterior, devolvendo-a à fixidez essencial das coisas. A literatura seria então esse duplo mimético, tal qual o mapa borgiano, que, ao se sobrepor à vivência, lhe dá latitudes e longitudes fixas. E, se o mundo contingente é suspenso para que em seu lugar a consciência possa "pôr" a ficção como uma alternativa à liberdade absurda, podemos também simplesmente fechar esse livro e exclamar "com a alma tranquila: 'Tudo isso não passa de literatura'" (SARTRE, 1989, p. 29). Blanchot, ao pôr em questão a incompletude, a palavra que falta para fechar qualquer círculo, para completar uma obra, parece perceber essa aparente contradição em que se suspende a experiência de Roquentin (e de Sartre).
Falamos em Arte com “a” maiúsculo para retornar ao cerne de O que é a literatura?. Logo de início, em uma visada bastante polêmica quanto à querela sobre forma e engajamento, Sartre distingue as experiências empenhadas na percepção (e na criação) de cada uma das formas da arte. Pintura e literatura, por exemplo, são de naturezas distintas, pois são atos distintos da consciência; a pintura não aponta para nada fora dela, um céu de Tintoretto não é céu amarelo de angústia, não é céu angustiado, é amarelo e é angústia. Já em A Náusea, Roquentin admirava essa essência pétrea, essas coisas determinadas em si que eram os doges de Tintoretto, mas nos romances, eles ainda eram parentes das personagens da literatura como Fabrice del Dongo e Julien Sorel. Em O que é a literatura?, imagens literárias e pictóricas se distanciam radicalmente; cada forma de expressão circunscreve-se a seus meios, tanto que nem mesmo prosa e poesia são aparentadas. Arte, com seu “a” maiúsculo, uma simples abstração, um formalismo próprio a salões acadêmicos, mas absolutamente estranho à vida do texto, da poesia ou da pintura. Se o pintor lida com materialidades, o poeta lida com a língua por dentro, dir-se-ia que em um lugar privilegiado, o lugar de deus. As palavras, para o poeta, não são signos, elas são, visamo-las como em si. Já para o prosador, não. A prosa remete para fora dela mesma, as palavras são ali transparentes, não são a elas que visamos, mas aos momentos que descrevem, às personagens que criam, às sínteses imaginárias que convocam na consciência. Assim, na prosa – no romance principalmente – as palavras são instrumentos e, evidentemente, recriam mundos a partir de perspectivas muito bem situadas: a prosa é, necessariamente, engajada no mundo. Ou seja, novamente Blanchot parece compreender o empreendimento literário sartreano, quando escreve:
Uma obra literária deveria obrigatoriamente significar alguma coisa? Por que seria preciso que ela só a significasse por acaso ou por sorte? E já que nós, leitores, seremos fatalmente associados a certa visão de mundo, o honesto não seria nos apresentá-la claramente, e não à traição, ou seja, jogar o jogo franco conosco o que é próprio ou defeito das obras de tese? (BLANCHOT, 1997, p. 187)
BLANCHOT E A LITERATURA
Até agora tratamos do artigo de Blanchot, “Os romances de Sartre”, no que ele tem de evidentemente laudatório, análise fina de fina sintonia com o projeto literário sartreano. Mas o texto de Blanchot se inicia distante de Sartre, fazendo uma longa digressão introdutória pelo romance de tese, aquele em que a ideia
só se parece com ela mesma, tem apenas seu próprio sentido; e o mundo fictício a esconde muito mal, ela está mais visível que em sua nudez de origem, tão visível que não tem mais segredos a nos oferecer. (BLANCHOT, 1997, p. 186)
Seria de se perguntar por que iniciar o texto com uma quase crítica, revertida – é verdade – pela série de perguntas retóricas já citadas, mas ainda assim bastante direta? Por que esta estratégia? Pois a essa confissão de que a arte deve jogar um jogo franco conosco, Blanchot soma a ideia de que a literatura é da ordem do falso, do que mente, a obra literária: “trapaceia e só existe trapaceando. Ela tem parte, com todo leitor, com a mentira, com o equívoco, um movimento eterno de engodo e de esconde-esconde”. (BLANCHOT, 1997, p. 187).
Apesar dessa quase crítica, ao oscilar entre a sinceridade de uma literatura que se assume como de tese e uma literatura como engodo, Blanchot é, pelo menos na superfície de sua resenha, profundamente elogioso à triologia em processo de Sartre, Os caminhos da liberdade. Na época, tratava-se apenas dos dois primeiros volumes A Idade da razão e Sursis, já que o último, Com a morte na alma, foi publicado no mesmo ano da crítica, 1949. Tal como o primeiro romance conviveu com as reflexões de A Imaginação, esta triologia carreia para si algo do livro de 47, O que é literatura? O elogio de Blanchot culmina numa aproximação, que parece até pender para Sartre, entre a personagem principal de A Idade da Razão, o professor Mathieu, e as figuras da Kafka:
Mathieu se atola, patina numa substancia diluída. Mesmo seu olhar se emplasta, seus pensamentos são pastosos. Por toda a parte lama, humores turvos: uma unidade universal, uma mistura infecta de matéria e de consciência, um inferno onde não se veem, como em Dante, homens transformados em árvores, ou, como em A metamorfose, um caixeiro-viajante transformado em barata, mas o pensamento tornado espesso, viscosidade, afundamento. (BLANCHOT, 1997, p.197)
Citei esta comparação, pois Kafka é uma figura central na constelação conceitual de Blanchot, uma de suas formas de dizer, sem o mesmo caráter fechado de Sartre, o que é “a literatura”. Em vários momentos, ao escrever sobre Kafka, Blanchot pensa a literatura como uma transfiguração do real em irreal e do irreal em real, em um trânsito entre a consciência errante e solitária e uma essência possível – em seu sentido fenomenológico, uma necessidade por negar o real e pôr o imaginário. Essa essência poderia, inclusive, transformar-se em uma espécie de pântano universal que escaparia, de alguma maneira, da consciência fechada em si mesma, do solipsismo de um cogito cartesiano. Cito um trecho do artigo de Blanchot “Kafka e a literatura”:
Kafka escreve “nunca pude compreender que seja possível a alguém que queira escrever objetivar uma dor”. A palavra objetivar chama a atenção, porque a literatura tende justamente a construir objetos. Ela objetiva a dor constituindo-a em objeto. Ela não a expressa, ela a faz existir de outro modo, dá-lhe uma materialidade que não é a do corpo, mas a materialidade das palavras pelas quais é significado o transtorno do mundo que a dor pretende ser. Tal objeto não é necessariamente uma imitação das transformações que a dor nos faz vivenciar: ele se constitui para apresentar a dor, não para representá-la. (BLANCHOT, 1997, p. 27)
Ou seja, estamos muito próximos daquele objeto essencial que se opõe, com sua necessidade interna objetiva, à contingência da existência, à dor real. A obra é um objeto imaginário que se expõe antes de tudo enquanto objeto, não em referência a algo externo ou a uma vivência subjetiva única. Antes de tudo, escreve Blanchot, é preciso que se faça a coisa, que se faça a arte, que este objeto exista, seja, pois é nele que o motor indeterminado da existência, inclusive a do autor, pode apresentar-se em relações determinadas. Nesta mesma critica a Kafka, Blanchot pensa que é apenas na transição do Ich ao Er que uma dor real pode objetivar-se em irreal, em literatura. Nessa transfiguração do subjetivo em objeto-arte, do eu em outro, faz-se a experiência intersubjetiva do fato literário. Kafka sentiu “a fecundidade da literatura desde o dia em que soube que a literatura era esta passagem do Ich ao Er”. E esta afirmação pode ser completada em outro texto sobre Kafka, este de O espaço literário. Numa seção intitulada “A morte contente”, Blachot escreve:
Kafka, numa nota de seu diário, faz um comentário sobre o qual se pode refletir: “Voltando pra casa, disse a Max que no meu leito de morte, na condição de que os sofrimentos não sejam insuportáveis, eu estaria muito contente. Esqueci-me de acrescentar, e mais tarde omito-o deliberadamente, que o que escrevi de melhor fundamenta-se nessa aptidão para poder morrer contente”. (BLANCHOT, 1987, p.86)
E Blanchot nota que há algo de ligeiro na frase, pois foi dita por um jovem em plena vitalidade, em 1914, muito antes de qualquer morte anunciada. Mas exatamente nessa ligeireza, algo de muito claro: escrever se assenta sobre um abismo, um desastre, no qual se opõe aquilo que objetiva uma dor sobre a possível dor mesma, algo que torna possível ao homem em si mesmo, ao Ich, morrer como Er, como todos. É neste todo no qual o sujeito antevê o seu fim como sujeito único – para falar como Bataille – nessa recomunhão oceânica com o todo, que a literatura se configuraria, como uma estrutura para além do sujeito, transcendente, quase a tangenciar o sagrado?
Pretendo agora voltar àquela prosa de Sartre que, diferentemente da poesia, sempre tem um pacto com o mundo. Às vezes Blanchot permite ao sujeito-escritor que se ponha neste lugar de deus, que pronuncie a tal dor sem sujeito, que não é minha, ou da qual o homem foi excluído, e uso um exemplo do próprio Sartre, quando cita o poema de Rimbaud para nele mostra como o homem, a consciência e seu fundamento, estão excluídos, pois o poeta está no mundo objetivo e puro da língua:
Ô saisons, Ô chateau!
Quelle âmê est sans défaut?
Ó estações, Ó castelos!
Que alma é sem defeito?
Nestes versos, diz Sartre “ninguém é interrogado, ninguém interroga: o poeta está ausente”. Fez-se, portanto, uma “interrogação absoluta”, que é coisa, um algo. Talvez, como aquele deus de Espinosa que é “todo algo”, essas coisas possuam alguma substância: os doges e o céu de Tintoretto, as estações e castelos, as interrogações pétreas da poesia são, assim, “objeto” essencial. São, como propõe Blanchot, uma passagem da consciência que nega o real para a essência desubjetivada, do eu ao ele? E sugiro que talvez Blanchot parasse ai, não fosse além na esteira de Sartre, ao propor uma separação entre a prosa e a poesia. Para Sartre, a prosa então seria a literatura que se volta ao mundo como uma espécie de janela aberta a uma necessidade forjada, à liberdade experimental, mas sempre localizada entre consciências. Consciências transcendentais, que se relacionam a partir de um objeto essencial em uma comunidade livre – a obra é produto da liberdade do autor, de um Eu, dada à liberdade de seus leitores, Eles.
Os meandros da resenha de Blanchot a Sartre deixam entrever essas diferenças? O excurso introdutório à literatura de tese talvez nos avise de que, se A Náusea e os dois primeiros volumes de Os Caminhos da liberdade se saem bem dessa experiência proposta, o problema não está de todo posto. A quase crítica esboçada quanto ao foco narrativo estilhaçado de Sursis (segunda parte da, na época incompleta, trilogia Os caminhos da liberdade) mostra que Blanchot percebia um jogo do sujeito em toda essa literatura, um jogo das consciências que já corria o risco de fechar-se em uma consciência única, não a consciência do “ele”, mas a de um eu forte, o narrador-autor. Perto da narrativa de A Idade da Razão, e mesmo de A Náusea, Sursis se mostra mais vanguardista no uso de um narrador viscoso, que se espraia pelas consciências, numa forma de discurso indireto livre móvel, tal como vemos nas experimentações de William Faulkner ou John dos Passos, ambos resenhados por Sartre. Seria de se pensar se, nessa extrema experimentação formal sartreana, não estaria a mais radical experimentação existencial. Mas Blanchot encontra exatamente nessa aparente qualidade, um discreto senão. Se Sursis, pela técnica, pela arte, escapa ao narrador morto que é o autor, e
ao contrário, essa narrativa fogo-fátuo esta iluminada a cada vez por uma luzinha verdadeira, a de uma consciência vacilante que, mesmo quando se projeta sobre maiores espaços, não vê senão ela própria. Todavia, temos a impressão de que a narrativa, durante o próprio tempo em que se organiza exclusivamente em volta deste ou daquele personagem, tem vagamente consciência de se organizar também em volta de um imenso conjunto. [...] Em suma, trata-se de uma espécie de metempsicose narrativa, de uma série de avatares em que a narrativa mergulha, morre e ressuscita numa transmigração sem fim, como uma consciência semidivina que só se sabe verdadeira e real na totalidade das suas encarnações e, no entanto, só se apresenta de forma ridiculamente fragmentária. (BLANCHOT, 1997, p. 201)
Talvez, exatamente quando se aposta na maior radicalidade formal, a tese venha a cobrar seu quinhão ao projeto de Sartre. Não há um engajamento explícito em Faulkner ou Dos Passos o que permite à forma vagar em busca de sínteses abertas, experienciando-se em sua própria fatura, sem um sujeito referencial, ou um projeto único, semidivino. Sartre propõe expor essa síntese de consciências, essa rede intersubjetiva de vozes, como se pudesse fixar o outro lado do espelho que Dos Passos põe em movimento.
Se voltarmos à análise de Bosi da qual me apropriei no início do texto, àquela cisão entre forma e conteúdo que esvazia em muitos casos o debate literário atual, não se trata obviamente de aquilatar o fracasso ou o sucesso dos livros de Sartre. Não se trata de avaliar quanto a tese ou a forma dos romances são profícuas, ou “atuais” no sentido politicamente correto ou esteticamente válido, pois cairíamos na polaridade excludente entre hipermímese e hipermediação. Trata-se de pôr em debate exatamente a tensão entre esses pólos constitutivos do literário, a experiência radical da escrita, sempre aberta e, portanto, sempre em risco de fracassar. Risco imanente à própria forma ao moldar seu mundo; risco no qual o campo literário se constitui como espaço de consciências que vivenciam seus percalços pessoais como alteridade, capaz de desdobrar-se em experiências mais completas, histórico-política. No limite do possível, por meio da liberdade real na imagem do irreal, o leitor vive a desindividuação intersubjetiva diante do abismo solitário do Eu absurdo e sem forma, em uma comunhão oceânica. Esse risco radical afasta o fato literário das trincheiras do politicamente correto, do entretenimento ou dos círculos especializados. O fracasso iminente faz da literatura o pequeno exercício – um experimento – de uma morte contente.
AUTORA
*Priscila Rossinetti Rufinoni é mestre em História da arte e doutora em Filosofia, ambos os títulos pela USP. Escreve sobre arte, política e filosofia. É editora da revista Pólemos – revista de estudantes de filosofia e editora associada da Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea. Foi professora de História da arte na UFG. Atualmente é professora de Filosofia na UnB.
REFERÊNCIAS:
BOSI, A. “Os estudos literários na era dos extremos”. In: Literatura e resistência, São Paulo: Companhia das letras, 2002.
SARTRE, J-P. A Náusea. 9ªed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d.
________.A Idade da Razão. 2ºed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1959.
________. Com a Morte na Alma. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1958.
________. Sursis. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1958.
________. A Imaginação. Porto Alegre: L&PM, 2010.
________. O Que é Literatura? São Paulo: Ática, 1989.
BLANCHOT, M. "Os romances de Sartre", in: A Parte do Fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, pp. 186-201.
___________. “Kafka e a literatura”, in: A Parte do Fogo. Rio de Janeiro, Rocco, 1997, pp. 19-33.
––––––––––. O Espaço Literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
SOUZA, Thana Mara. Sartre e a Literatura Engajada. São Paulo: Edusp, 2008.
[1] Para evitar me repetir, embora saiba que é quase impossível, encaminho o leitor ao artigo “Liberdade dramática: ética e literatura em Sartre’, publicado na Kriterion, vol 49, nº 117, Belo Horizonte, 2008.
[2] Trata-se pelo menos da data de publicação do livro, A parte do fogo, no qual está reproduzida a crítica. A data entretanto não poderia ser muito diversa, visto que a crítica se localiza entre a publicação de Sursis (1947) e Com a morte na alma (1949) .
FEIRA DE SANTANA-BA | nº 3 | vol. 1 | Ano 2016
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