Edição Atual
Revista Sísifo – Feira de Santana – (2014-) nº 18, Vol. único, 2024 Filosofia – Periódicos ISSN: 2359-3121 |
Apresentação do Dossiê:
A produção Intelectual Feminina: Antiguidade, Idade Média e Renascimento
Nos últimos anos é crescente, dentro da comunidade filosófica brasileira, o interesse pelo estudo do pensamento intelectual construído por mulheres. É sabido que, por muitos anos, as mulheres filósofas estiveram ausentes nas grades curriculares de nossos cursos de filosofia e não foram tema recorrente de pesquisa, com exceção de algumas autoras modernas. Tal fato não se configura como um problema local e isolado da filosofia, na realidade, a própria história do saber em geral negligencia suas mulheres na medida em que sendo essa história, em sua maior parte, narrada por homens também são eles os indivíduos que detém o lugar público e político não só da produção de conteúdo, mas também da atribuição de valor para aquilo que passa a ser ou não entendido como conhecimento.
É essencial reconhecer a importância do termo "Mulheres" para destacar não apenas a atividade filosófica em si, mas também a notável participação dessas figuras na filosofia, na história e na literatura, ou seja, as mulheres intelectuais. Dessa forma, a utilização do feminino se torna essencial, bem como a investigação sobre o feminino é também um tema essencial para todas as áreas. Assim, é importante que recuperemos a produção intelectual de mulheres que não só deixaram um legado, mas também continuam a influenciar de maneira significativa a escrita da História da Filosofia do tempo presente. Recuperar a produção intelectual das mulheres ao longo da história do saber permite-nos difundir seus ensinamentos, pontos de vista e pensamentos para um público mais amplo, o que representa uma estratégia efetiva para superar a visão tradicional do cânone sobre as mulheres e seu apagamento existencial da Filosofia, da História e da Literatura. Nesse contexto, a revista Sísifo apresenta o dossiê: “A produção Intelectual Feminina: Antiguidade, Idade Média e Renascimento”. Organizado pela professora Camila Ezídio (CNPq/UFBA - UNEB) e pela doutoranda Brenda Oliveira (UFBA), esta proposta teve como fim construir um número interdisciplinar, cujos textos trouxessem personagens femininas e temas sobre o feminino que estejam situados ou transitem entre as áreas da filosofia, da história e/ou da literatura, mas que prezam pelo enfoque teórico e metodológico na primeira dessas áreas. Desse modo, apresentamos abaixo não só um resumo dos textos que compõem este número, mas um convite à leitura de sete artigos, um ensaio e uma entrevista que recuperam cada um, ao seu modo, uma ou mais personagens femininas da história da filosofia.
No texto que abre o dossiê temos Glória Maria com um artigo que, simultaneamente, questiona e apresenta a existência de mulheres filósofas na antiguidade, com destaque para as filósofas pitagóricas cuja reflexão se debruça sobre o ambiente em que estavam inseridas, a saber, o oikos. Com isso, vislumbramos uma filosofia doméstica, uma filosofia da casa, preocupada com as virtudes femininas e com a educação das crianças. Uma filosofia sobre o ambiente privado que sustenta e compõe o ambiente público da pólis, na medida em que dá a ele seus indivíduos.
As professoras Terezinha Oliveira, Ana Paula dos Santos e Juliana Calabresi escrevem um artigo em muitas mãos, o qual nos apresenta justamente a concepção de um manual. Entretanto, um manual que tem certa peculiaridade, pois se trata de uma obra redigida por uma mãe. Ela é Dhuoda que escreve ao seu filho, Guilherme. Essa obra do século IX é considerada pelas autoras como um documento que vai além das preocupações do meio privado com respeito à educação dos filhos. O chamado Liber Manualis pode ser interpretado como uma obra pedagógico-moral, nos moldes de uma ética aristotélica, mas neste caso atravessado por um contexto cristão, que traz concepções tais como a virtude para o aperfeiçoamento do caráter humano.
Camila Ezídio nos traz um artigo sobre o discurso epistolar de Hildegarda de Bingen, uma mulher conhecida, principalmente, pela narrativa de suas experiências visionárias. Entretanto, Hildegarda é uma mulher medieval de muitas faces, devido à multiplicidade de suas obras que se desdobram em escritos musicais, literários, éticos e médicos. No artigo que compõe este dossiê, Camila apresenta o que chama de estratégia retórica da humildade, a qual é utilizada pela filósofa medieval para construir e legitimar sua figura de autoridade na Alemanha do século XII, sem com isso confrontar explicitamente o paradigma ontológico/político da inferioridade feminina.
Brenda Oliveira lança uma nova luz sobre as correspondências entre Heloísa e Abelardo, explorando a noção de um 'corpo feminino racional' no contexto filosófico medieval. Por meio de uma análise detalhada do uso do termo specialiter nas cartas, a autora revela a profundidade do conhecimento filosófico de Heloísa, conectando suas reflexões à 'querela dos universais' e oferecendo uma perspectiva inovadora sobre a relação entre corpo, linguagem e sujeito. Este artigo reafirma o compromisso da revista em divulgar estudos que desafiam leituras tradicionais e enriquecem o campo das investigações filosóficas e históricas.
A professora Roberta Miquelanti explora, em seu artigo, uma obra ainda pouco conhecida de Heloísa de Argenteuil, os Problemata Heloissae, composta por quarenta e dois problemas sobre as Sagradas Escrituras propostos por Heloísa a Abelardo, acompanhados de uma carta introdutória e das respostas de Abelardo. Por meio de uma descrição detalhada e uma breve análise dessas questões, Roberta investiga as motivações de Heloísa ao formular tais problemas, além de identificar continuidades entre essa obra e o pensamento expresso nas célebres Cartas da autora. O estudo destaca a profundidade intelectual de Heloísa e sua relevância na tradição filosófica e teológica medieval, contribuindo para ampliar o conhecimento sobre sua obra e seu papel no diálogo intelectual da época.
O professor Matheus Pazos, de forma original e aprofundada, nos apresenta a obra de Marguerite Porete, destacando a complexa relação entre razão, conhecimento humano e divino. A investigação apresentada no texto, centrada na distinção entre os verbos 'conhecer' e 'saber', oferece uma contribuição significativa aos estudos medievais, especialmente no campo da filosofia e da teologia mística.
Adentrando o renascimento, a doutora em filosofia, Natália Tavares, nos traz a reflexão de Laura Cereta, uma humanista italiana do século XV que, em suas cartas, defende temas caros à sua própria vida como, por exemplo, a educação das mulheres. Desde cedo, Laura se deu conta que o tempo dedicado aos estudos era atravessado pelo gênero, tornando-se escasso para aquelas que tinham que se dedicar ao lar. Ela é uma mulher que tem a vida marcada pela viuvez e, posteriormente, pela perda do pai, fatos que a colocam em uma situação socialmente vulnerável. Entretanto, isso não a impede de ter o objetivo de alcançar notoriedade na Itália através de seus escritos, algo comum entre os escritores homens da época, mas incomum para uma mulher da qual, ao contrário, se espera virtudes como a humildade.
Camila Kulkamp investiga a construção da metáfora do corpo político por Christine de Pizan comparando três de suas principais obras: Le Livre de la Cité des Dames (1405), Le Livre des Trois Vertus (1405) e Le Livre du Corps de Policie (1404/1407). Na primeira parte de seu artigo são apresentadas reflexões introdutórias sobre a metáfora do corpo político e sua relação com a autoridade política no contexto medieval. Em seguida, Camila analisa detalhadamente como Christine desenvolve essa metáfora em Le Livre du Corps de Policie, destacando suas implicações. Por fim, discute-se como Le Livre de la Cité des Dames e Le Livre des Trois Vertus dialogam com essa metáfora, evidenciando continuidades e diferenças em relação às ideias apresentadas. A análise propõe uma leitura integrada das obras de Christine de Pizan, revelando sua contribuição única ao pensamento político medieval/renascentista e à construção da autoridade feminina no campo da filosofia.
Por fim, a professora Ana Rieger, em sua entrevista, além de contar um pouco de seu percurso na filosofia, desmistifica alguns preconceitos quanto a Idade Média e nos traz apontamentos importantes sobre Christine de Pizan. Apesar de não ter escrito um tratado de filosofia, Pizan escreveu diversas obras permeadas por conceitos e temas essencialmente filosóficos. Ademais, é Pizan a mulher que faz publicamente uma defesa da natureza feminina em sentido ontológico e político, inaugurando o conhecido debate da Querelle des Femmes e se configurando assim como uma autora protofeminista no século XV.
As organizadoras,
Camila Ezídio (CNPq/UFBA-UNEB), editora
Brenda Oliveira (UFBA), convidada
Dossiê "A produção Intelectual Feminina: Antiguidade, Idade Média e Renascimento"
Artigos
Inserir e reescrever: a produção das mulheres filósofas da Grécia Antiga no cânone da filosofia
Gloria Maria da Silva Bizerra
visualizar | PDF 1-19
A figura feminina na formação humana: reflexões sobre o Manual La educación cristiana de mi hijo de Dhuoda
Ana Paula dos Santos Viana, Terezinha Oliveira e Juliana Calabresi Voss Duarte
visualizar | PDF 20-40
O discurso epistolar de Hildegarda de Bingen: a construção de uma autoridade feminina
Camila Ezídio
visualizar | PDF 41-51
O Corpo Feminino nas Cartas de Heloísa de Argenteuil
Brenda Oliveira do Espírito Santo
visualizar | PDF 52-71
O que revelam as questões de Heloísa? Uma breve análise dos Problemata Heloissae
Roberta Magalhães Miquelanti
visualizar | PDF 72-87
“escolliere de la Divinité / discipula diuinitatis”: A noção de conhecimento em Marguerite Porete
Matheus Pazos
visualizar | PDF 88-104
Laura Cereta: uma mulher na República das Letras no Renascimento Italiano
Natália Braga Tavares
visualizar | PDF 105-119
Christine de Pizan e a Metáfora do Corpo Político
Camila Kulkamp
visualizar | PDF 120-145
Entrevista
Uma Filosofia Medieval também das Mulheres
Ana Rieger Schmidt
visualizar | PDF 146-150