O horror elevado ao conceito

 

O horror elevado ao conceito

 


PDF

 

 Gabriel Ferri Bichir


Doutorando em Filosofia pela Universidade de São Paulo, onde estuda a relação entre história e natureza na obra de Hegel. Professor de filosofia na rede privada de ensino. 


Resumo: O presente ensaio reúne textos que se relacionam a dois jogos – Pathologic 2 e Doki Doki Literature Club – que, apesar de apresentarem diferenças consideráveis tanto na forma como no conteúdo, são perpassados pela linha comum do terror. Nenhum dos dois é um jogo de terror, sem mais; ambos partem de formatos tradicionais (o RPG em primeira-pessoa e o dating sim) e os quebram por dentro para revelar um fundo de horror que põe em xeque a posição supostamente “neutra” do jogador. O resultado é uma experiência de angústia e de desorientação que rompe com as expectativas cristalizadas na forma, levando o jogador a experimentar afetos que rompem com o medo enlatado das grandes produções, tão dependente de clichês narrativos e dos famigerados jumpscares.

Palavras-chave: Crítica; Forma; Horror; Jogos.  


Abstract: This essay brings together texts related to two games - Pathologic 2 and Doki Doki Literature Club - which, despite having considerable differences in both form and content, are permeated by the common thread of horror. Neither of them is simply a horror game, however; both take traditional formats (the first-person RPG and the dating sim) and break them down from the inside to reveal a background of horror that calls into question the supposedly "neutral" position of the player. The result is an experience of anguish and disorientation that breaks with the expectations crystallized in the form, leading the player to experience affects that break with the stereotypical kind of fear present in Triple-A games, so dependent on narrative clichés and the infamous jumpscares.

Keywords: Critique; Form; Games; Horror.


Introdução


Nos ensaios reunidos no presente trabalho, tratamos de dois jogos que desafiam a compreensão comum do terror. O primeiro – Pathologic 2 – narra a história de um cirurgião russo que precisa sobreviver em meio a uma pandemia mortal. O modus operandi do jogo é teatral e invoca explicitamente o conceito artaudiano de crueldade no modo como insere o jogador em um mundo apocalíptico. O segundo – Doki Doki Literature Club –, por sua vez, aparenta ser um dating sim inofensivo em que o jogador assume a pele de um estudante do ensino médio que frequenta um clube de literatura e precisa decidir por qual integrante do clube irá se apaixonar. A despeito das aparências, o jogo fratura a forma-pronta e revela o fundo de horror por trás daquele mundo ingênuo e colorido, isto é, introduz um universo estereotipado e revela seu fundo falso, algo que tem consequências interessantes tanto na narrativa quanto na metanarrativa.


Pathologic 2: O Teatro como Peste


E se essas possibilidades e essas forças são sombrias, a culpa não é da peste ou do teatro, mas da vida 

            (Artaud)                                                                    


No nada da estepe russa, na passagem do século XIX para o século XX, uma peste desconhecida e mortífera ataca uma pequena cidade e a põe abaixo em menos de doze dias. Os infectados têm menos de um dia de vida. O governo envia uma inquisidora para avaliar a situação e, posteriormente, um destacamento do exército para resolver definitivamente o problema: os infectados são queimados vivos no meio das ruas; os corpos empilham-se incessantemente a cada esquina, e logo o número de mortos ultrapassa os milhares. Os trabalhadores são isolados no termiteiro onde trabalham, mas a peste consegue se infiltrar e provoca um massacre: choros, gemidos, suspiros, gritos desesperados e infindáveis acolhem aqueles que penetram no recinto. A cada dia distritos diferentes são infectados, provocando um caos generalizado: aqueles que saem nas ruas se infectam, pois o próprio ar é venenoso; os que permanecem em casa ou morrem de fome, pois a comida é tão cara que não há dinheiro no mundo que possa pagá-la, ou são mortos por criminosos desesperados por remédios, curativos e alimentos. Ao final de cada dia, uma peça é encenada no teatro localizado no centro da cidade, prevendo como tudo será pior no dia seguinte.

O que pode um videogame? Como vanguarda da Indústria Cultural contemporânea, parece um pleonasmo decretar sua vacuidade e sentenciar sua incapacidade de refletir criticamente o real. Afinal, uma indústria bilionária, especializada em entretenimento barato e voltada, sobretudo, para o público infanto-juvenil, seria por definição incapaz de produzir obras minimamente interessantes, capazes de desafiar os estereótipos e cacoetes dominantes no meio. Rendido ao fim de gerar entretenimento e de captar a atenção dos jovens por centenas de horas, o videogame estaria condenado à apologia do status quo, operando com a mesma lógica utilitarista do time is money que rege o mundo do trabalho. Sim e não.

Ao contrário da época de Adorno, em que ainda era possível contemplar um ponto fora da curva dominante, atualmente a Indústria Cultural abrange a totalidade do campo da cultura. Não há distinção entre ambos. Não há mais um “fora” a partir do qual a crítica pode se apoiar. No exit – eis uma expressão da moda que facilmente adquire conotações reacionárias. No entanto, o processo de totalização da indústria cultural não consegue se efetivar sem deixar marcas ao longo do caminho – restos, excrescências –, signos da mutilação do campo cultural e do seu fracasso, quiçá momentâneo, em alcançar uma padronização completa das obras e das condutas. Essas marcas, parcialmente visíveis para o olhar detetivesco, surgem nos mais diferentes campos: na música, na televisão, no cinema, no teatro e, até mesmo, em algo tão banal quanto um videogame. Um tal paradoxo não deve passar desapercebido: a indústria dos jogos está num processo tão avançado de reificação que inevitavelmente gera pontos-cegos que funcionam como lentes de aumento de seu próprio abcesso.

Em Pathologic 2, as convenções do gênero e da própria forma-jogo são negadas e implodidas por dentro. Trata-se de um jogo que não é de modo algum divertido, pelo contrário, beira o insuportável, o que se deve tanto à dificuldade quanto às mecânicas mobilizadas para engajar o jogador. Controlamos Artemy Burakh, um arúspice que retorna à cidade onde cresceu devido a uma carta de seu pai, que o convoca urgentemente. Burakh passara alguns anos estudando medicina na capital, o que o tornou um homem dividido entre dois mundos: o das tradições da estepe, onde vivera a maior parte de sua vida, e o da ciência moderna, tecnicista e arrogante. Junto a ele chega também uma misteriosa peste, que, devido à alta taxa de letalidade, coloca a cidade inteira em risco; assim, a tarefa do cirurgião consistirá em criar uma panaceia capaz de eliminar definitivamente a doença. O cenário é apocalíptico e, consequentemente, o gameplay também: a tarefa é sobreviver por doze dias em meio ao inferno, pois as ameaças são inúmeras – a peste infecta a personagem e diminui constantemente sua imunidade; além disso, Burakh sente sede, fome, exaustão e sofre dano nos confrontos com criminosos ou com outros habitantes. 

Esses medidores estão fixados na tela e diminuem constantemente, mantê-los exige um esforço inumano: a sede aumenta sempre que a personagem corre, a fome é sanada com alimentos que custam caríssimo, pois os preços ficam superinflacionados devido à pandemia, a exaustão exige horas de sono, mas o sono implica aumento da fome etc. Ou seja, trata-se de um sistema complexo concebido a partir de uma rede de mecânicas interconectadas: a maioria dos alimentos que reduz a fome causa sede; a exaustão pode ser melhorada com café, mas ele reduz a saúde da personagem; a água sana a sede mas pode estar contaminada, o que também afeta a saúde; a infecção pode ser reduzida com alguns remédios, mas estes aumentam a exaustão. Com isso, o jogador está num estado constante de urgência, ingerindo A para cuidar de B e C para cuidar de um novo problema decorrente de A. É uma espécie de checks and balances virado de ponta-cabeça: cada mecânica gera um novo problema que outra mecânica deve resolver, ad infinitum. O resultado é uma angústia constante que permeia a totalidade do jogo; a qualquer momento o jogador pode cometer um erro e morrer, fato também prenhe de consequências: ao contrário da maioria dos jogos em que a morte é solucionada retornando a personagem a algum momento anterior, em Pathologic 2 traz consigo novas aflições: a cada morte de Burakh os medidores vão diminuindo, de tal forma que terá gradativamente menos saúde e, portanto, ainda mais chance de morrer. A ideia é criar um loop de dificuldade que se retroalimenta e se deteriora cada vez mais: o jogo é propositalmente injusto e punitivo. Se o loop não puder ser superado, é possível que se tenha de recomeçar do início.

Com isso, a convenção basilar de um videogame já é anulada de saída: Pathologic 2 não só não entretém como é ativamente uma experiência semimasoquista de sofrimento constante e incessante – não há sequer um minuto de descanso: o jogo lembra de todas as mortes do jogador e as exibe despudoradamente na tela de carregamento; a dificuldade se intensifica a cada dia e a própria cidade torna-se intransitável, pois há nuvens de infecção e criminosos em todo canto. Acrescente-se a isso o fato de que o deslocamento já é por si só complicado, porque a cidade é construída como um labirinto extremamente difícil de navegar, cheio de muros desnecessários, becos sem saída, bloqueios artificiais. Através dessa artificialidade, constroi-se um realismo brutal: o jogador é colocado num cenário que remete a uma pandemia real e busca sobreviver em condições inumanas. Outro ponto digno de menção é o sistema de combate: se em inúmeros jogos do gênero o combate realiza uma fantasia de poder em que o protagonista elimina centenas de inimigos como se fosse uma mistura de Rambo com Exterminador do Futuro, aqui os golpes são programados para serem fracos, desajeitados, imprecisos e ineficientes, justamente o que se espera de um médico sem qualquer treinamento. Lutar com alguém é uma medida desesperada e desestimulada, pois produz mais malefícios do que benefícios, embora possa ser necessária quando for preciso encontrar dinheiro e comida. All in all, trata-se de uma experiência atroz de desempoderamento e de impotência diante de uma situação catastrófica que se apresenta como um destino incontornável. Desse modo, qualquer ilusão de agência é reduzida a cinzas: nesse mundo, o jogador não é o protagonista, a personagem que controla não é especial, muito menos intocável; Burakh é apenas mais um em meio a uma multidão de pobres coitados que morrem como formigas e nem sequer são capazes de entender a miserabilidade de sua situação.

Talvez o principal chamativo do jogo seja seu caráter teatral: desde o início, Pathologic 2 é apresentado como uma peça para a qual o jogador é convocado a participar; começamos em um palco e nos dirigimos ao diretor do espetáculo, Mark Immortell, que lamenta o fracasso da primeira peça (uma referência ao primeiro jogo da série, Pathologic, que não analisaremos em detalhe) e nos questiona se teríamos interesse em tentar uma segunda vez. O registro é duplo: tentar pela segunda vez salvar a cidade (narrativa) e também tentar encenar a peça adequadamente até o fim (metanarrativa). Todavia, no decorrer do jogo, ambas coincidem de tal forma que é impossível diferenciar quando um acontecimento é estritamente narrativo e quando não; com efeito, a metanarrativa é a narrativa, a peça sobre a praga é ao mesmo tempo a história da praga, e vice-versa. Um dos maiores méritos do jogo é ser capaz de sustentar tal ambiguidade do começo ao fim; os registros se intercambiam constantemente, de forma que a interação é ao mesmo tempo com o jogador e com a personagem controlada por ele, Burakh. A princípio, esse recurso poderia provocar uma sensação de distanciamento cínico do objeto, pois implica quebras constantes da quarta parede, mas não é o que ocorre, pelo contrário, a imersão na história é antes catalisada do que diminuída. Isto é, a imersão também se dá tanto no nível narrativo (a tentativa de garantir a sobrevivência de Burakh e do resto da cidade) como no metanarrativo (o jogo dirige-se diretamente ao jogador e o desafia a abandonar uma simulação que lhe rende horas a fio de sofrimento despropositado). Com isso, Pathologic 2 alcança uma visceralidade raramente vista no meio: o jogador sabe que aquilo é um jogo, sabe que as regras são injustas, sabe que o jogo foi programado com o intento explícito de gerar desconforto, sabe que os próprios desenvolvedores sabem que ele sabe, e ainda assim sente-se compelido a persistir até o fim, numa mistura de raiva e curiosidade. Nisso, o jogo se afasta do mainstream hollywoodiano, cada vez mais dependente de constantes quebras da quarta parede para gerar um efeito cômico que neutraliza o lado dramático da história, privando a audiência do mínimo de negatividade no trato com a obra. Em Pathologic 2, a dimensão metanarrativa amplifica a negatividade a tal ponto que beira a experiência trágica.

Essa dinâmica é visível, sobretudo, nas interações com algumas personagens específicas: em primeiro lugar, o próprio diretor do teatro, Mark Immortell, explica as regras da peça e trata o jogador como um ator que assume apenas provisoriamente o papel do cirurgião Burakh. Em segundo lugar, as conversas com os ditos Executores – personagens fantasiadas de pássaros que explicam as regras daquele mundo e dão dicas de sobrevivência. O interessante é que também há outras figuras, os Assistentes, que são idênticos aos Executores no visual, mas operam exclusivamente no nível narrativo, pois são habitantes da cidade designados pelo bacharel Daniil Dankovsky para ajudar os necessitados e organizar o lockdown. Só é possível diferenciá-los pelo teor do diálogo. Há também personagens liminares como a inquisidora Aglaya Lilich, vinda do universo narrativo, porém capaz de pressentir a existência da dimensão metanarrativa, referindo-se constantemente a si como uma marionete nas mãos de poderes superiores. Ela nota, inclusive, como Burakh destoa dos outros habitantes daquele mundo, pois é mais livre do que eles, não é controlado por esses poderes ocultos, isto é, os próprios códigos do jogo. Por fim, cabe mencionar um momento específico do final noturno no qual o jogador “conversa” diretamente com os desenvolvedores do jogo que assumem os avatares de algumas crianças da cidade. A bem dizer, não há propriamente diálogo, apenas confissões e devaneios um tanto vagos dos desenvolvedores, que comentam sobre o processo de criação do jogo, ideias abandonadas, dificuldades no meio do caminho etc. Alguns deles chegam até mesmo a duvidar da importância de seu trabalho no resultado final, já que tiveram inúmeras ideias descartadas e ficaram com uma porção limitada de trabalho. Com isso, o jogo deixa tudo escancarado, nada é escondido do jogador, nem mesmo as reclamações sobre seu próprio processo de confecção; desse modo, alcança uma universalidade verdadeira, que admite e incorpora a própria parcialidade da forma e do conteúdo – a incompletude não é vista como defeito, e sim como elemento central e propulsor da narrativa. A analogia com o conceito de cinema da opacidade, cunhado por Ismail Xavier, é evidente: em consonância com procedimentos advindos das vanguardas artísticas, o jogo expõe seu processo de produção e realça seu caráter de jogo, seu artificialismo, que deve ser entendido como um elemento fundamental daquele universo. O engajamento com a proposta do jogo pressupõe o véu rasgado.

Aliás, a incompletude é, também, literal: apenas um terço do jogo foi liberado até o momento. A proposta inicial, realizada no primeiro Pathologic, de 2005, muito mais rudimentar, era apresentar três pontos de vista diferentes sobre a peste: o primeiro, já discutido, é o do arúspice Artemy Burakh, próximo do povo da estepe e conhecedor de suas tradições e superstições; o segundo é o do bacharel Daniil Dankovsky, forasteiro que chega na cidade com o objetivo de vencer a morte, pois ouvira falar que um dos habitantes, Simon Kain, já ultrapassara muito a expectativa média de vida; o terceiro é o de Clara, uma mulher com poderes supostamente místicos, capaz de curar os infectados pela doença. No primeiro jogo, as três rotas eram acessíveis e podiam ser completadas para que se tivesse uma visão da totalidade da peça: Burakh era o elemento da terra, mais realista e conectado às tradições de seu povo; Dankovsky era o idealista arrogante, que buscava transcender o humano; por fim, Clara era a síntese dos dois, a única capaz de conciliar os dois lados e salvar a cidade como um todo. Isso porque a própria cidade estava cindida em dois polos: de um lado, os moradores e o povo da estepe, do outro, o poliedro (uma estrutura fisicamente impossível construída a mando dos Kain no formato de uma colmeia) e seus defensores. A parcialidade de seus respectivos pontos de vista impedia que Burakh e Dankovsky conseguissem salvar os dois ao mesmo tempo: ou preservavam a cidade ou o poliedro, essa era a escolha final. Clara, por sua vez, conseguia salvar ambos à custa do sacrifício de alguns voluntários. Embora esse fosse o plano para Pathologic 2, o estúdio não teve recursos e tempo suficientes para executá-lo, então optou por publicar apenas a rota de Burakh e deixar as outras para o futuro. Essa incompletude, contudo, terminou por acrescentar novos elementos que destoam do jogo original: nessa nova iteração, a personagem de Burakh é ligeiramente diferente, pois não está mais exatamente do lado da terra e do povo da estepe. Como passou anos estudando na capital, retornou cético e desacreditado nessa mitologia, acusando seus conterrâneos de serem idiotas supersticiosos diretamente responsáveis pela rápida disseminação da peste. Dessa forma, no segundo jogo, a divisão passa a ser tripartite: o poliedro e a estepe nos extremos e a cidade propriamente dita no meio, que corresponde à posição de Burakh, um homem enclausurado entre os transcendentalistas, que buscam a superação do corpo humano e a imortalidade da alma, e o povo supersticioso da estepe que adora a terra como se fosse um ser vivo, um touro, com seus órgãos e vasos sanguíneos. Através dessa divisão, mantém-se o impulso perspectivista: não há lado certo ou errado, ambos estão corretos: o poliedro realmente produz milagres, pois protege todas as crianças da peste; a terra realmente é um organismo vivo, seu sangue serve de matéria-prima para a confecção da panaceia. A escolha final, porém, fica aquém desses desenvolvimentos: no final diurno, o poliedro é destruído e, com isso, faz sangrar a terra, derramando um mar de sangue que serve para a criação da cura; no final noturno, a cidade é consumida pela peste e os poucos sobreviventes são obrigados a fugir. O povo da estepe – imune à doença – toma as ruas e festeja o retorno da magia e da mitologia. O problema dessa solução é ignorar o peso da oposição entre o poliedro e a estepe: no final noturno, por exemplo, o poliedro não é destruído, mas ainda assim o povo foge da cidade ao invés de se esconder nele. Mais consequente seria manter o espelhamento: se um permanece intacto, o outro deve ser destruído, assim como ocorria nos finais do primeiro jogo. A ambiguidade de Burakh como homem dividido entre os dois extremos também é pouco explorada e poderia conduzir a finais mais dinâmicos, que desafiassem a própria noção de escolha binária.

Ainda que não seja suficientemente radical em seus finais, o jogo não negligencia de forma alguma a centralidade da discussão sobre escolha e livre-arbítrio no interior de sua forma. A expectativa cristalizada no formato do RPG de primeira pessoa é que o jogador tenha plena agência e controle sobre o desenrolar da história, já que encarna o protagonista; o mundo segue o seu tempo e não o contrário. Como Pathologic 2 está predicado num desempoderamento radical, a temporalidade é invertida: somos nós que temos de nos adaptar ao tempo do jogo; cada dia tem a duração aproximada de duas horas, mas é impossível realizar todas as tarefas nesse intervalo. O jogador é obrigado a correr de um objetivo ao outro desesperadamente, e ainda assim fracassa: nunca há tempo o suficiente para fazer tudo. A única escolha possível nesse mundo diz respeito àquilo que será negligenciado ou posto em segundo plano, o que provoca, inevitavelmente, a morte de personagens importantes e próximos a Burakh. Nesse sentido, ao final de cada dia, o jogo exibe uma espécie de roleta que determina de forma arbitrária quais personagens serão infectados e quais serão mortos pela praga. A contingência radical está fincada no coração da experiência, assim como seu suplemento, o destino. A própria ideia de protagonismo desaparece: Burakh é apenas mais um em meio ao pandemônio; seu único diferencial são seus conhecimentos médicos, que podem ajudar na confecção de remédios e, eventualmente, da cura. No entanto, o principal ingrediente da panaceia é o sangue da terra, que o povo da estepe se recusa a conceder ao cirurgião até que tenha demonstrado ser capaz de ocupar o lugar de seu pai e liderá-los. Para tanto, serão necessários quase 12 dias de provações incessantes, que incluem assassinatos a sangue frio, expurgos, manipulação, mentiras etc. O jogo não faz disso um problema moral; em um mundo mergulhado na catástrofe, a única lei válida é a do mais forte – ao jogador são permitidos todos os tipos de crime, contanto que não seja pego e que mantenha sua reputação num nível aceitável; caso contrário, os próprios habitantes da cidade começarão a caçá-lo impiedosamente. Esse amoralismo ameaça recair numa naturalização da brutalidade do status quo, ratificando a violência constitutiva dos laços sociais sob o regime do capital, ainda mais se considerarmos os anos recentes de pandemia, em que a indiferença à morte alcançou um novo patamar de crueldade. Ao mesmo tempo, porém, a crueldade surge como alegoria do sofrimento, antes denunciando do que ratificando a violência do mundo, pois não é eternizada, também encontra seu fim: a pandemia é um destino, mas a destruição que provoca não é uma ultima ratio; no final diurno, a cura é produzida com o sangue da terra e a cidade volta ao normal; no final noturno, o velho mundo dos seres mitológicos é restaurado, o homem é substituído pelo touro, mas a peste perde seu caráter destrutivo, pois nada mais era do que uma resposta da terra à profanação infligida pelo poliedro – uma estaca fincada no seu coração. O sofrimento não é perenizado, não tem a última palavra; nem happy ending, nem sad ending. O conflito entre ciência e mito, progresso e retrocesso, ar e terra é explicitamente posto, mas não resolvido.

No mundo de Pathologic 2, o jogador é usado pelo jogo. Seu leque de escolhas é mínimo, senão irrisório, e a maioria delas é até mesmo inútil ou prejudicial ao arúspice. Dessa forma, o jogo secreta seu teor de verdade na medida em que expõe o mundo tal qual é: o sistema esmaga a escolha individual; a verdadeira escolha – aquela que teria por objeto o próprio sistema enquanto tal – é impossível, pois o jogador está preso a um mundo com regras pré-definidas, que reduz ao mínimo o livre-arbítrio e aniquila toda ilusão de agência. O jogo, porém, nada esconde de nós, uma vez que a impossibilidade de mudar as regras é assinalada desde o início na dimensão metanarrativa pelo diretor da peça. A questão é sobreviver com o que é fornecido, nada mais. A pretensão de liberdade sob tais condições é tão falsa quanto sua contrapartida real, a esperança de que frutifique uma subjetividade livre sob o jugo do capital – o que resta é a aporia, um andar na corda bamba: há tanto o risco de reduplicar quanto de atenuar a barbárie do mundo. A solução passa pelos extremos: esse é o teatro da crueldade de Artaud, diretamente referenciado por Mark Immortell.

De certa forma, Pathologic 2 realiza aquilo que Artaud nunca pôde, nem mesmo em Les Cenci, uma tentativa interessante, certamente, mas ainda assim limitada no seu potencial subversivo. Artaud buscava uma experiência sensorial para além da linguagem literária enrijecida, mas a forma-teatro dificultava esse tipo de empreendimento; o jogo, no entanto, possibilita uma margem de experimentação maior, mesmo porque incorpora a dimensão teatral. Quando caminha pelas ruas, o jogador é bombardeado por sons incômodos que o deixam num estado de constante tensão: barulhos de lixo revirado, gemidos e gritos, bebês chorando, portas rangendo, passos misteriosos, sem contar o barulho da peste, um aglomerado macabro de chiados roucos que o acompanha por todos os distritos infectados. No mundo de Pathologic 2, é o som que dá a regra e que estabelece a atmosfera do jogo, que circula entre o terror e o suspense. O silêncio é tão incômodo quanto a música, pois anuncia a catástrofe iminente. Os diálogos não deixam de ter relevância, mas são propositalmente estilizados e teatralizados; as personagens pronunciam suas falas como se fossem maus atores, de modo artificial e forçado, o que aumenta ainda mais a sensação de inquietação. A linguagem utilizada é oblíqua e ambígua, incita mais dúvidas do que respostas; muitas vezes não sabemos sequer se as personagens estão se dirigindo a Burakh ou ao jogador. As crianças falam como adultos, previsões do futuro são proferidas de forma natural e corriqueira, inúmeras falas são cifradas e excessivamente academicistas, termos da língua da estepe são invocados sem que saibamos seu significado – enfim, o resultado é um amontoado confuso que dificilmente poderia ser traduzido na linguagem bem comportada do teatro clássico. A estranheza buscada por Artaud alcança seu zênite: nesse mundo, nada é transparente, há uma opacidade própria à experiência fragmentária do horror que dificilmente outra mídia poderia captar de modo tão visceral. O segredo do jogo é tocar nessa dimensão instintual como fonte constante de angústia: os barulhos estranhos, o medo do escuro, o abandono, a experiência de impotência e fraqueza diante da morte; a reação do jogador é violenta, mas essa violência é necessária como potência desnaturalizadora. Jogando a forma contra si mesma, negando seu caráter de jogo, Pathologic 2 transmite algo da experiência do desespero sem buscar copiá-la do mundo real, como fazem os jogos que posicionam o jogador nas batalhas da Segunda Guerra, por exemplo. 

Crueldade, para Artaud, não era simplesmente a violência literal exposta na peça, mas, sobretudo, a denúncia da não-liberdade do mundo na forma de um destino a ser executado com diligência, uma espécie de amor fati que permeia o roteiro e sua encenação. A violência é voltada contra as formas naturalizadas de atuação e contra o próprio eu, abrindo espaço para potências cósmicas, dessubjetivantes, até então recalcadas da experiência enlatada do teatro clássico. No jogo, a crueldade não abandona completamente o sentido literal, já que o mundo retratado é brutalizado, embora não se restrinja a ele. De toda forma, a violência ali retratada não coloca o jogador na posição confortável do sádico que observa o apocalipse à distância; antes, faz dele parte da ação e força-o a ações desesperadas. Um momento particularmente marcante ocorre quando adentramos o abatedouro, onde está localizado o sangue da terra, com propriedades curativas, e somos obrigados a escolher entre usar o sangue para sobreviver aos desafios da caverna ou guardá-lo para os aliados e tentar sobreviver sem ele. O jogo é implacável, impondo desafios quase impossíveis de serem superados sem inúmeras horas de tentativas: temos de lutar com certas criaturas, os “homens-verme”, muito mais fortes do que Burakh, para conseguirmos escapar. Sem a ajuda do sangue curador, enfrenta-se uma tarefa hercúlea. Entretanto, a cada gole que utilizarmos para nós, um aliado de Burakh na cidade perderá a chance de ser curado e provavelmente morrerá no dia seguinte pelas mãos da peste. O jogo coloca inúmeras personagens sob a nossa tutela, mas é praticamente impossível terminá-lo com panaceias suficientes para salvar todos. O sentido estrito da crueldade é alcançado através desses momentos, que quebram a ilusão de escolha: como falar de liberdade num mundo não-livre? A impotência experienciada no jogo é a mesma vivida pelos sujeitos no mundo controlado pelo capital. No entanto, não cabe à crueldade ratificar tal mundo, apenas expô-lo em toda sua brutalidade e apontar a possibilidade de sua superação, por mais remota que seja.

O realismo não é um fetiche do jogo; ali, a única coisa de fato real é o sofrimento. No máximo, podemos falar de um realismo emocional, quer dizer, a mobilização visceral dos afetos negativos. Ainda assim, o jogo não é catastrofista, nem niilista, sobretudo se levarmos em consideração os dois finais que, embora problemáticos, mantêm tudo em aberto. A aposta de Pathologic é que, atravessando a crueldade por dentro e levando-a às últimas consequências, abre-se um gap no qual outros afetos podem circular, desativando o circuito hollywoodiano da alegria-tristeza enlatada. Aposta impossível, certamente, mas ainda assim uma que recusa toda espécie de compromisso e meio-termo que tornaria a experiência mais palatável para o público diariamente brutalizado pela Indústria Cultural. A inumanidade do jogo é um protesto contra a atenuação da catástrofe, contra todo tipo de humanismo vazio, mas esse protesto resguarda a possibilidade do advento de um mundo efetivamente humano.


Doki Doki ou o olhar que suporta o mundo 


Doki Doki foi erroneamente tomado por um jogo cujo modus operandi estaria centrado na enganação: por trás de uma história inocente de amor colegial regado à literatura de qualidade questionável, haveria um jogo de terror com uma trama complexa centrada em um software que toma consciência de si e busca escapar do mundo virtual manipulando o avatar do jogador. Eis o engano: não há duas camadas interpretativas distintas, a apresentação do jogo como um dating simulator não é mero engodo posteriormente descartado quando o terror assume o primeiro plano – o terror é a verdade do dating sim.

Controlamos um estudante do ensino médio que, a convite de sua amiga Sayori, começa a participar de um clube de literatura em seu colégio e logo se afeiçoa às outras integrantes do grupo: Natsuki é a típica tsundere que se faz de difícil e reclama de tudo, embora tenha um coração bondoso; Yuri é a menina tímida sem traquejo social que vive enfurnada nos livros; Monika, a líder do grupo, é a menina popular e bem-intencionada. Como é típico do gênero, o jogador precisa escolher uma delas para se aproximar e tentar desenrolar um romance; a única que não está disponível é Monika, por motivos esclarecidos posteriormente. Desde o início, o jogo não evita os estereótipos, pelo contrário, leva-os ao extremo: a estética colorida e kawaii derivada dos animes, as personagens com traços de caráter exagerados e com visuais extravagantes, a música alegre e inocente, quase infantil. Tanto maior é o choque quando o jogador se depara com os episódios depressivos de Sayori e com seu posterior suicídio, que marca a virada do jogo em direção ao terror.

Mesmo sendo amigo de infância de Sayori, o protagonista ignorava a existência de seus episódios depressivos e tratava-a mal, fazendo pouco caso de suas dificuldades de interação e ridicularizando seu jeito desastrado. Independentemente de iniciar ou não um romance com ela, tais episódios vão se multiplicando e assumindo uma proporção alarmante: Sayori afirma que não sabe lidar com seus sentimentos amorosos para com o protagonista e que sofre constantemente de ciúme quando o vê com as outras integrantes do clube. Apesar disso, apresenta-se sempre como uma pessoa solícita e genuinamente interessada em ajudar os outros e a mediar conflitos. Ainda assim, seu estado vai piorando gradativamente até o ponto em que é encontrada sem vida pendurada no teto de seu quarto, com as mãos sangrando, o que indica que tentou desfazer o nó antes de perder a consciência. Esse é o primeiro momento em que o jogo fratura a forma pronta: a música para de tocar, um jumpscare nos apresenta a visão do corpo de Sayori, a tela começa a se distorcer por meio de chiados, cores piscando etc; por fim, a música retorna deturpada e com uma sonoridade típica de filme de terror.

O jogo reinicia completamente distorcido e sem Sayori, substituída por um aglomerado de pixels das outras garotas colados de modo caótico na tela. Algumas linhas de diálogo permanecem as mesmas, outras são cortadas ou substituídas por símbolos aleatórios; as integrantes do grupo se comportam de modo estranho e forçado, como se fossem autômatos controlados por uma força maior; a tela pisca constantemente e certos objetos aparecem deformados. Aos poucos, o quebra-cabeça vai tomando forma e entendemos que a responsável por tudo aquilo é Monika: o jogo era uma espécie de grupo experimental e as personagens, inteligências artificiais com comportamentos pré-programados; o experimento consistia em escolher uma dessas entidades – Monika – e fornecer-lhe de alguma maneira autoconsciência para testar sua reação. Os detalhes em torno dessa revelação são dispensáveis, uma vez que não escapam dos clichês típicos da ficção científica – uma corporação bilionária que tenta desenvolver um teste para comprovar se entidades simuladas são capazes de identificar que vivem em uma simulação. Pois bem, Monika de fato adquire autoconsciência e tenta estabelecer contato com o mundo real; para tanto, cria o avatar do jogador e tenta se comunicar diretamente com ele. Contudo, ela não sabe como fazê-lo pois não entende de programação, então a única saída é ir aos poucos desmontando a simulação e deletando as outras personagens até que só restem ela e o jogador; destarte, ela interfere no código das outras meninas e modifica radicalmente seu comportamento: a tendência depressiva de Sayori é intensificada até culminar no suicídio; a solidão de Yuri e suas idiossincrasias são levadas às últimas consequências e ela também se suicida na frente do jogador, e assim por diante. O jogo não nos poupa da brutalidade dos acontecimentos, congelando a tela no rosto sem vida de Yuri, que passa um fim de semana inteiro se decompondo diante do protagonista. A forma do terror assume o primeiro plano por meio das constantes distorções; os jumpscares são introduzidos em certos momentos, porém de forma moderada e condizente com o desenrolar da história. Após terminar de deletar todas as outras personagens, Monika aparece sentada em frente ao jogador – olhando fixamente para a câmera –, como em um encontro, e começa a falar de seu amor incondicional por ele, visto que é a única entidade real no interior daquele mundo simulado. A única maneira de pará-la e de alcançar o “final” propriamente dito é deletar o arquivo dela do computador (uma maneira muito bem elaborada de integrar a temática de realidade x ficção ao gameplay, diga-se de passagem).

Doki Doki quebra a forma do dating sim por dentro. Trata-se de uma forma enlatada com personagens estereotipadas que disputam incessantemente o amor do jogador, cuja ocupação resume-se a escolher uma parceira como um prato de comida num cardápio. A popularidade desse formato está predicada na fantasia de ser amado incondicionalmente, sem contrapartida efetiva, quer dizer, basta escolher as opções certas de diálogo para desbloquear o romance; toda dor advinda da confrontação difícil com o objeto amado é desprezada em prol de uma experiência pacificada, higienizada do amor – o jogador é o único sujeito diante de objetos, ambos como polos fixos que assim permanecem até o final. No fundo, esse arranjo reduplica a violência do status quo na medida em que reafirma o amor na sua forma narcisista e mercantilizada, além de posicionar a mulher como bem de consumo a ser conquistado por meio de one-liners tacanhas (nem sempre o protagonista do dating sim é um homem, mas, via de regra, as posições ocupadas pelas personagens conservam a dicotomia). A forma do horror em Doki Doki rasga o véu que pairava sobre tal idealização: aquelas personagens estereotipadas, feitas sob medida para atender à fantasia do jogador, eram de fato autômatos, personalidades geradas por inteligência artificial para servir de grupo-controle. Com isso, evidencia-se o fato de que o dating sim nega às suas personagens aquilo que as faz genuinamente humanas: o conflito (consigo e com o outro), o desacordo de expectativas, o fato de que os relacionamentos envolvem uma opacidade que jamais poderia ser captada por meio de um sistema simplista de escolhas “pró” personagem X ou Y, a consciência, enfim, de que as relações amorosas contêm em si mesmas uma boa dose de horror. Quando o jogo põe esse horror em primeiro plano, a fantasia narcísica que operava como pressuposto da forma é desmontada e resta somente a violência da dominação: Monika é obcecada pelo jogador, declarando seu amor incessantemente sem permitir uma contrapartida real, pois o obriga a clicar nas opções favoráveis a ela. Ela é a personagem prototípica desse tipo de simulador levada às últimas consequências: toda a sua personalidade se resume a desejar o jogador, ou seja, um completo vazio, uma expressão fanatizada de amor que tende à autofagia – no fundo, a própria violência da dominação masculina apresentada de forma espelhada.

Levados ao ponto de exaustão, os estereótipos se quebram: a melhor amiga simpática e ingênua revela-se depressiva; a menina calada e isolada nos livros tem constantes pensamentos invasivos a respeito da morte; a tsundere grosseira e arrogante sofre com uma insegurança crônica acompanhada de um complexo de inferioridade. O amor injustificado pelo protagonista aplainou todo tipo de riqueza interior, mas ao mesmo tempo levou as três garotas a se aperceberem de seu sofrimento: todas comentam, em situações distintas, que não sabem lidar com os sentimentos contraditórios que se apoderaram delas, visto que experimentaram uma espécie de cisão na sua programação. Sabemos que Monika foi a responsável pela manipulação de seu código-fonte, mas tal manipulação gerou o resultado paradoxal de levar as três a tomarem ciência de sua programação e buscarem combatê-la, sem sucesso. Ora, essa fragmentação é o locus mesmo da consciência; não é à toa que, após deletar Monika, retornamos ao jogo apenas para constatar que agora foi Sayori que adquiriu consciência de si. Ou seja: a consciência não foi meramente implantada de maneira artificial, mas de certo modo surgiu espontaneamente daquele grupo de autômatos supostamente descartáveis. Ora, a crítica imanente do conteúdo é refletida na forma: o terror parte de dentro das mecânicas e tropos do dating sim e não de uma virada meramente exterior, como se se tratasse de duas camadas sobrepostas.

A despeito de sua falsidade, o estereótipo também se revela verdadeiro: no mundo administrado, as pessoas de carne e osso agem como estereótipos, tamanho é o grau de padronização das condutas. Ao contrário dos simuladores tradicionais, que incorporam irrefletidamente tal fato, Doki Doki evidencia-o no desenvolvimento mesmo de suas personagens: Sayori, Natsuki e Yuri são inteligências artificiais sem vontade própria e, ainda assim, expressam-se de maneira muito mais humana que Monika, cuja autoconsciência não impede que aja efetivamente como um robô até a revelação final. Enquanto elas atravessam o estereótipo e sua fantasia narcísica para quebrá-los por dentro, Monika busca tão insistentemente afirmar-se como único ser real naquele mundo que recai no estereótipo mais insípido de todos – a namorada ciumenta que tenta de toda forma prender o amado a si. Ela quer ao mesmo tempo ser objeto de amor incondicional e portar-se como sujeito, retirando do jogador a escolha de rejeitá-la; o resultado é uma reduplicação do narcisismo. As outras meninas, por sua vez, adquirem algo do sujeito enquanto fratura constitutiva: reconhecem em si um desejo que não é delas – sua programação subjacente – e põem-se em conflito consigo mesmas; nesse movimento, forçam o jogador a se defrontar com o sadismo de sua posição quando tiram suas vidas na sua frente.

O relato de Sayori acerca de seu histórico com a depressão alcança uma visceralidade raras vezes vista no meio; pouco importa que seus sintomas tenham sido agravados devido às ações de Monika, nesse momento o simulacro se torna mais real que o real, uma vez que o sofrimento é seu index veri e faz valer seu direito à expressão. A dor de viver atrás de uma máscara para esconder do mundo a dificuldade de sair da cama; o jeito alegre e excessivamente altruísta que põe o outro em primeiro lugar apenas para fugir da autoflagelação – a máscara da máscara, em suma, a constatação de que o estereótipo se torna pura e simplesmente uma (frágil) estratégia de sobrevivência. O protagonista, concebido para encarnar a ambiguidade da posição masculina, mostra-se por vezes solícito e genuinamente interessado no bem-estar da amiga; na maior parte do tempo, porém, destila julgamentos cruéis e insensíveis a seu respeito, sobretudo em monólogos interiores, manipula-a emocionalmente e se apresenta como salvador quando fica sabendo de sua depressão. O inevitável fracasso da tentativa de ajudar Sayori independe do fato de ser amiga ou namorada – decisão acertada do ponto de vista narrativo, uma vez que desempodera o jogador, confrontando-o com o núcleo de sua fantasia de poder, a certeza de dobrar aquele mundo à sua vontade.

Só há autoconsciência simultaneamente à posição de um outro: a partir do momento em que toma consciência de si, Monika cria o avatar do jogador para não permanecer sozinha naquele mundo. Na cena final, restam apenas os dois: Monika quebra a quarta parede enquanto recita um monólogo sem fim sobre tudo o que fez para finalmente ficarem juntos. O cenário é perfeitamente talhado para gerar desconforto, mas nesse momento o jogo falha em levar suas premissas às últimas consequências: essa cena seria o momento ideal para colocar explicitamente em questão a posição (masculina) do jogador, uma vez que apenas Monika fala e somos obrigados a assentir a todas as barbaridades proferidas. No limite, ocupamos a mesma posição das personagens de um dating sim, pré-programadas para atender aos desejos alheios: enquanto Monika discursa, somos meros espectadores privados de agência, impotentes diante da violência imposta pelo outro. O olhar de Monika é propriamente o olhar masculino, sádico, que ao mesmo tempo professa amor eterno e cala toda oposição. A ideia de escapar deletando seu arquivo é perspicaz, sem dúvida, mas deveria haver uma segunda via: deixar Monika falar até perceber a inversão de posições e se desesperar diante do que fez; ela poderia iniciar seu monólogo e ir aos poucos se frustrando com a ausência de resposta até entrar em parafuso e deletar a si mesma. Afinal, foi mais ou menos o que ocorreu com as outras personagens, que experimentaram uma cisão subjetiva radical. É verdade que Monika tem uma epifania similar um pouco adiante, reconhecendo a violência de seus atos e optando por deletar o jogo em sua totalidade, mas o impacto seria maior se, no auge mesmo de sua fantasia de controle, antes de ser deletada, se recusasse a jogar o jogo, fazendo o que o próprio jogador não conseguiu.

Além da história principal, a versão mais recente de Doki Doki oferece uma série de histórias secundárias que se passam em uma espécie de universo paralelo, isto é, um grupo controle no qual Monika não ganhou consciência. Essas histórias desenrolam-se sem a presença do jogador e tratam da relação entre as amigas na tentativa de estabelecer seu clube de literatura. Cada história tem duas protagonistas e explora as múltiplas facetas de suas relações, desde os conflitos devido às diferenças de personalidade até o companheirismo que aos poucos emerge por meio do esforço mútuo de compreensão. Essas side stories possuem ao mesmo tempo algo de paradisíaco (o mundo anterior ao advento da consciência) e de utópico (o mundo reconciliado sem a presença do jogador em sua posição sádica); isso não significa que recaiam em melodrama barato, pelo contrário, abordam as relações humanas em toda a sua complexidade, sem mascarar as dores advindas da incompreensão e do preconceito, mas ao mesmo tempo sem tratá-las como um destino inelutável. A armação geral da visual novel é mantida, mas sem o componente do dating sim: a posição masculina está ausente, não há escolha amorosa, pois o foco é o desenrolar da amizade das quatro. Desativando a mecânica da escolha, o jogo vai além das limitações de sua forma e faz jus à humanidade das personagens; o jogador, por sua vez, volta a ser mero espectador, embora não mais na posição de vítima ou de verdugo, uma vez que os dualismos do tipo se dissolveram. Se observa, observa com uma ternura renovada, sem julgamentos, na ânsia de se misturar ao objeto sem buscar destruí-lo; através desse impulso mimético, o jogo alcança uma universalidade verdadeira, para além da compaixão e do cinismo – o amor apenas, sem mistificação.





Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Hannah Arendt e a condição humana da pluralidade

Pensar por imagens: Vilém Flusser e a construção do pensamento na atualidade

Trilogia do Inumano