Revista
Sísifo. N° 16, Vol. 1. Janeiro/Junho 2023. ISSN 2359-3121.
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Digitalização
e Gamificação da vida: uma leitura crítica a partir de Byung-Chul Han
Camila Braga Soares Pinto
Doutora em
Administração pela UFRJ, Mestre em Filosofia pela UFRRJ e Professora
colaboradora da Pós-graduação em Administração da UFF.
Leandro Pinheiro Chevitarese
Doutor em Filosofia pela PUC-Rio, Professor do Departamento de Educação e
Sociedade e Professor da Pós-graduação em Filosofia da UFRRJ.
Resumo: Este artigo
propõe uma leitura crítica acerca do avanço da digitalização por matizes de
Byung-Chul Han sobre a forma como a Sociedade do Desempenho vem se
desenvolvendo (HAN, 2015; 2023a). O objetivo deste estudo é o de promover uma
contraposição filosófica sobre como o uso da tecnologia, sobretudo a
gamificação (HAN, 2018a) como negócio da diversão, permeia a dinâmica do
sistema capitalista neoliberal e seus respectivos efeitos psicossociais.
Sabe-se que há outras contribuições teóricas que exploram a digitalização da
vida de forma aparentemente mais otimista. No entanto, Han tem envidado
esforços em alertar a sociedade contemporânea que, pari passu ao que ela
denomina de “progresso”, há também que considerar-se como dado de realidade um
certo empobrecimento do mundo a partir da fragmentação, da descorporificação e
da desnarrativização da vida. Estes fenômenos repercutem sobre a experiência do
pensamento, do agir humano, da forma como se lida com trabalho e ócio, do
tensionamento entre desempenho e liberdade, e impactos coercitivos envolvidos.
Palavras-chave: Gamificação
da vida. Coação e Liberdade. Sociedade do Desempenho. Byung-Chul Han
Abstract: This
article proposes a critical reading of the advance of digitalization through
Byung-Chul Han's views on how the Performance Society has been developing (HAN,
2015; 2023a). The aim of this study is to promote a philosophical counterpoint
on how the use of technology, especially gamification (HAN, 2018a) as a
business of fun, permeates the dynamics of the neoliberal capitalist system and
its respective psychosocial effects. It is known that there are other
theoretical contributions that explore the digitalization of life in an
apparently more optimistic way. However, Han has made an effort to warn
contemporary society that on the one hand there is what it calls
"progress". On the other, there is also a certain impoverishment of
the world based on the fragmentation, disembodiment and denarrativization of
life. These phenomena have repercussions on the experience of thought, human
action, the way we deal with work and leisure, the tension between performance
and freedom and the coercive impacts involved.
Keywords:
Gamification of life. Coercion and freedom. Perfomance Society. Byung-Chul Han
Introdução
Este artigo explora as
novas interfaces presentes entre os âmbitos físico e digital para discutir-se os
efeitos deste paradigma ambivalente de mundo sobre as relações que
estabelecemos nas diversas dimensões da vida, bem como a liberdade de nossas
escolhas e as perspectivas de ser e estar no tempo contemporâneo.
Propõe-se uma leitura crítica acerca do avanço
da digitalização por matizes de Byung-Chul Han, pensador contemporâneo de
origem sul-coreana e radicado na Alemanha, que vem se dedicando a articular
contranarrativas sobre a dinâmica da Sociedade do Desempenho (HAN, 2015; 2023a).
O objetivo deste estudo é o de promover uma contraposição filosófica sobre como
o uso da tecnologia, sobretudo dos jogos, permeia a dinâmica do sistema
capitalista neoliberal e seus respectivos efeitos psicossociais. Na medida em
que a gamificação[1],
como “negócio da diversão”, vem interferindo na forma como se lida com o
trabalho, como se pensa e se aprende, como se entretém e dedica-se tempos e
espaços crescentes ao jogo cotidianamente, busca-se observar seus efeitos nas
relações e, por conseguinte, como repercutem em nossa própria existência (HAN,
2018a; 2022a).
Sabe-se que há outras
contribuições teóricas que exploram a digitalização da vida de forma aparentemente
mais otimista, esforços louváveis que procuram apresentar “vantagens” a partir
de iniciativas que incrementam projetos de ensino-aprendizagem e jogos
educacionais, por via de suas interfaces amigáveis, criativas e hedônicas.
Todavia, este artigo contribui com a matriz de pensamento de Han, que tem
envidado esforços em alertar a sociedade contemporânea que, pari passu
ao que ela denomina de “progresso”, há também que considerar-se como dado de
realidade um certo empobrecimento do mundo, com os efeitos da fragmentação, da descorporificação
e da desnarrativização da vida sobre possíveis ameaças à maturidade da
faculdade do pensar e do juízo humanos (HAN, 2022a).
Seus ditos em
entrevistas e escritos em diversas obras destacam questionamentos sobre a forma
como a digitalização oferece uma perspectiva da vida em que o jogo vai se
mostrando cada vez mais onipresente. Ainda que inebrie o sujeito pelo
envoltório da ludicidade, Han traz à tona discussões sobre em que medida tal
situação de mundo sustentada por telas e informações, o expõe à coação do
desempenho em troca de uma falsa sensação de estabilidade temporal, liberdade e
felicidade (HAN, 2018b; 2022a; 2022b). O autor difere esta configuração de jogo
que se apresenta na contemporaneidade daquilo que seria um bom e belo
entretenimento como um “modo de conduzir a vida”. O negócio do entretenimento ao
qual o pensador se refere, claramente não separa trabalho do ócio[2],
sendo este último associado a um tempo livre de desfrute sem finalidades[3], que
escapa às pequenas pausas que nos regeneram para retornar à produção,
tratando-se, portanto, de viver “uma nova experiência do mundo e do tempo”
(HAN, 2019).
Um outro ponto que o
autor destaca nas discussões de digitalização e gamificação da vida, diz
respeito a como se comungam as relações de alteridade[4]
neste ambiente. Han promove reflexões sobre o quanto elas fenecem,
caracterizando uma realidade em que o sujeito, no desfecho, parece se encontrar
não em partilha com os outros e com as coisas ao seu redor, mas, sobretudo, em
relação apenas consigo mesmo, girando em torno do próprio eixo e, mais ainda,
competindo consigo mesmo quando está em “jogo” (HAN, 2023a).
Assim, a partir da
visada haniana, a centralidade deste estudo reside em compreender a
complexificação do âmbito digital e da gamificação e seus efeitos.
Considerando o crescimento do protagonismo dos jogos, em um contexto no qual as
conexões aparentam ser próximas, mas que talvez promovam mais distanciamento, em
uma “realidade” cada vez mais imaterializada, indaga-se: como se configuram as
relações neste curso de mundo imagético, descorporificado, desnarrativizado e gamificado
e as implicações deste fenômeno para a experiência do pensamento, bem como para
os passos civilizatórios do sujeito contemporâneo?
Digitalização da vida: a descorporificação, a
desnarrativização e os efeitos sobre o sujeito contemporâneo
Para Han, no meio
digital nada é considerado sólido, tangível e rotineiro, e, portanto, o sujeito
que empreende múltiplos projetos simultâneos, talvez esteja menos suscetível ao
contínuo da vida. Trata-se de um ambiente “que não tem idade, destino e morte.
Nela, o tempo mesmo é congelado. Ela é uma mídia atemporal” (HAN, 2018b, p.
57). O digital é enriquecido de elementos que para acolher o outro não deveriam
decompor um objeto em um vazio que acaba sendo a não-coisa (Kitirianglarp, 2022). O que se observa é que se está diante de uma
transição de uma era de coisas materializadas, sólidas e presenciais para uma
era informacional, imagética, via conexões remotas ilimitadas: a era das
não-coisas[5].
Com o avanço da virtualização
e o excesso de produção de coisas descartáveis, com as quais não se criam
laços de afeição mais intensos, se está diante de uma desvalorização das
coisas, e o “ciclo de aparecimento e desaparecimento das coisas é cada vez mais
breve” (HAN, 2016, p.111). Preencher espaços antes ocupados por coisas
físicas, com novas experiências momentâneas repletas de emoções mais
instantâneas e sem muitos vínculos, nos projeta para uma constante e
surpreendente vivência de um “precisar do novo” (HAN, 2022a), do não repetível.
Isto nos possibilita, em alguma medida, de desfrutar de uma sensação aparente
de liberdade, de “escolha” do consumo que queremos fazer, tratando-se na
verdade, de uma condição ilusória, própria a uma “prisão inteligente” (HAN,
2022b, p.19).
Nesse sentido, está
em curso um processo de “alienação” das coisas físicas, que vão sendo
substituídas pelo aporte de informação. É como se a informação fosse o
“objeto de desejo” do momento, que não se cansa de acumular. O apego aos
“objetos virtuais”, mesmo com as restrições de sua falta de corporalidade
física, mostra como as relações entre pessoas e objetos também se dão de
alguma forma nesse âmbito, ainda que com menos laços na falta da experiência
do campo de alguns sentidos. Objetos virtuais já alcançam volumes equivalentes
aos dos objetos do mundo real. Nesta esteira, deixamos de colecionar, zelar ou
cuidar das coisas físicas, para simplesmente acessar uma informação
compartilhável e intercambiá-la de forma excessiva e barulhenta nas redes
quando se é conveniente, conforme o autor destaca que
as informações não se
deixam possuir tão facilmente quanto as coisas. A posse determina o paradigma
da coisa. O mundo da informação não é governado pela posse, mas pelo acesso. Os
laços com coisas ou lugares são substituídos pelo acesso temporário a redes e
plataformas. A economia de compartilhamento também enfraquece a
identificação com as coisas que constituem posse [...] (HAN, 2022b, p. 33).
O mundo digital nos
retira da opção de posse, de manutenção e cuidado de coisas em prol do
“aluguel”, do compartilhamento da informação em nuvem, em que a escolha pelo acesso
“será a metáfora mais potente da próxima era”. Assim, Han (2022b) nos retrata
que
hoje queremos vivenciar mais do que possuir,
ser mais do que ter. O vivenciar é uma forma de ser. Erich Fromm escreve em Ter
ou Ser: “Ter se refere às coisas [...]. O ser refere-se a vivências [...]”. A
crítica de Fromm de que a sociedade moderna estaria mais orientada para o ter
do que para o ser não se aplica exatamente hoje, pois vivemos em uma sociedade
de vivência e comunicação, que prefere o ser ao ter. A velha máxima do ter não
mais se aplica: quanto mais eu tenho, mais eu sou. A nova máxima da vivência é:
quanto mais eu vivencio, mais eu sou (HAN, 2022b, p. 31).
Inversamente ao mero
acesso por compartilhamento ou ao acúmulo (muitas vezes desmedido) de rasas vivências,
a posse é sentida, internalizada e carregada de conteúdo, cujas narrativas aqui
apresentam início, meio e fim, bem como referências, uma vez que “[...]
algoritmos, não importa o quão inteligentes possam ser, não são capazes de
eliminar a experiência da contingência de maneira tão eficaz quanto uma
narrativa o é” (HAN, 2022a, p. 21). As coisas que possuímos são espacialidades,
sentimentos e memórias. A história que se deposita nas coisas pelo longo uso
lhes confere relações e, por conseguinte, um valor sentimental e não apenas
afetos de reações instantâneas.
Formas de estar entre
o mundo físico e o digital demandam cada vez mais que o sujeito se desprenda
dos vínculos contidos na imanência viva das coisas, tornando-o insensível a
coisas silenciosas, discretas e ordinárias, que demandam tempo e envolvimento
para serem apreciadas (HAN, 2022b). Ao contrário, o volume de informações (ou
as não-coisas), fragmenta a atenção, desnarrativiza histórias e seus contextos,
numa avalanche em que se é esperado apenas reagir instantaneamente. Talvez, se
esteja diante de novos padrões de comportamento que nos afastem da ordem
terrena, que descartem o que é factual.
Corre-se atrás da
informação sem chegar a um conhecimento de fato. Toma-se nota de tudo sem
elaboração e ganho de conhecimento. Viaja-se para todos os lugares para
acumular vivências sem ganhar uma experiência mais aprofundada com o lugar, as
pessoas, a língua e as peculiaridades regionais. Comunica-se contínua e
extensivamente sem participar de uma comunidade. Armazena-se grandes
quantidades de dados sem memórias para manter. Acumula-se amigos e seguidores
sem que encontros sejam realmente possíveis. A informação cria assim uma forma
de vida sem permanência e duração (HAN, 2022b).
A cultura da
informação, característica da formação societária do desempenho, provoca a
perda do laço com a coisa. E isto é decorrente de uma sociedade que entende o
consumo como modo de eliminar a alteridade em proveito do acúmulo, da
circulação de bens (também imateriais), da aceleração, das diferenças
consumíveis, e, como já dito, de tudo o que o novo ou o que surpreende pode
representar em termos de produções identitárias incitadas pelo neoliberalismo.
Percebe-se, portanto, a “realidade” como fonte inesgotável de estímulos e de
surpresas (HAN, 2022b).
Consome-se, assim, a
fugacidade e, como consequência, coloca-se a realidade da vida em condição fortuita.
Outrora, apreciava-se mecanismos de se conquistar a relação com algo que
impetrava níveis de vínculo e afeições em diferentes gradações. Agora, passa-se
ao mero acesso às plataformas e nuvens e restringe-se às reações de
classificações entre gosto e desgosto.
Tornamo-nos caçadores
de informação e nos entregamos à vigília e ao controle dos infômatos[6],
que são capazes de reunir e se tornar um centro de controle de informação
instantâneo, bem como de tomada de decisões, muitas vezes independente de nós
mesmos.
Armazena-se uma
quantidade considerável de dados que falseia os acontecimentos e deforma nossa
condição cognitiva de buscar conhecimento relevante, nos acometendo a uma
entropia informacional. As informações são apenas aditivas e não narrativas, na
verdade elas podem assumir um caráter deformativo por conta das estruturas
ramificadas das mídias digitais que não apresentam um centro e não são capazes
de eleger relevância (HAN, 2022a). Se assim se caracterizassem, talvez, fosse
mais trivial conseguirem contar histórias, criar memória e contexto. Por tal
circunstância, nos mostra o autor, está em curso um processo de transformação
digital, de descorporificação, desestabilização temporal, desnarrativização e
fragmentação da vida. Sem narrativa, que cria laços e nos une através de uma
história comum, perdemos experiências que tornam a passagem do tempo mais
significativa e trazem poder transformador para a sociedade (HAN, 2023b).
Mesmo assim, curvamo-nos
aos estímulos dos algoritmos que não nos facultam identificar suas programações.
Somos embriagados à compulsão num mundo que paliativamente “se refugia nas
imagens para ser melhor, mais bonito e mais vivo” (HAN, 2018b, p. 54).
A informação ou a
não-coisa empalidece as coisas físicas, na medida em que “o digital
arrebata-lhe todo o mistério, toda a estranheza, e transforma tudo em
conhecido, em banal, em familiar, em like e em idêntico. Tudo se torna
comparável, consumível e, portanto, identificável” (HAN, 2021c).
Quando se trata do
âmbito digital, não se vive, portanto, em um reino de violência explícita, mas
em um domínio regido pela informação, subliminarmente coercitivo e disfarçado
de experiências de estímulos, que manipulam e se confundem com opções de
escolhas autônomas. Em síntese, encaminha-se a um estado ilusório que se seduz
pelas inúmeras ofertas e a concessão de escolhas, configurada pelo panóptico
digital[7] (HAN,
2022b).
A questão que se
impõe é que a sociedade da informação não é tão monótona. Como caçador de
informação, o sujeito do desempenho não se sensibiliza para coisas que
despertem atenção profunda. Todavia, são estas tipicidades de coisas que
ancoram o ser. Constata-se, portanto, vicissitudes oriundas dos processos de
digitalização da vida que promovem perdas de senso de realidade do sujeito
contemporâneo, submetido à volatilidade do capitalismo da emoção (HAN, 2018a,
2022b).
De acordo com Han
(2022b) a positividade, ou o excesso de estímulos, culmina por trazer um ar
mais rarefeito à cultura e à Sociedade do Desempenho e da transparência,
reduzindo a singularidade, o respeito ao outro ou a coisa, às relações, ao
tempo, ao privado e à diferença. Tal cenário desencadeia um empobrecimento das
relações familiares, laborais, sociais, caracterizando a desfacticidade da
existência humana, em um “falso estar-no-mundo”, a partir de uma representação
pobre de mundo através das telas. Sergio Fanjul, jornalista do El País,
publica uma declaração de Han descrevendo a subjugação do sujeito contemporâneo
ao digital onde
a vivência presencial
se perde. Nós nos desconectamos do mundo de modo crescente. Vamos perdendo o
mundo. O mundo é mais do que a informação. A tela é uma representação pobre do
mundo. Um sintoma fundamental da depressão é a ausência de mundo (FANJUL, 2021).
Face ao padecimento
do outro e das coisas até o seu desaparecimento por completo, bem como de suas
memórias, despercebidamente, aquilo que se “coisifica” e se constrói com tempo
perde-se contrapartidas e a estabilização que a “presença intensa” poderia
conferir quando o sujeito se deixa afetar pela informação. Assim, esta seção
discutiu as bases da transformação digital e os efeitos da onipotência da
informação que atomizam o tempo, descorporificam as coisas, desnarrativizam e
fragmentam a continuidade da vida contemporânea. Na próxima seção, objetiva-se
discutir os processos mais específicos referentes à gamificação que se
instauram nas diversas atividades cotidianas e seus efeitos sobre a percepção,
a cognição humana e realidade do sujeito “empreendedor de si mesmo”.
Gamificação da vida
Na visão de Han
(2018a), com a crescente gamificação da vida e o trabalho, prima-se pelo
desempenho e recompensas imediatas, explorando o homo ludens, ou seja, o
jogador, conforme leitura de Han sobre os escritos de Vilém Flusser.
Contrariamente ao homo faber (o trabalhador), o homo ludens quer
apenas se deleitar com o jogo, sendo este “o ser humano do futuro intangível” (HAN,
2018b). A questão é que o homo ludens de Flusser não parece ser a figura
sem mãos[8]
que opera a vida e se comunica apenas com os dedos, comportamentos típicos do sujeito
do cenário contemporâneo da Sociedade do Desempenho. Este é o homo digitalis,
que emancipa as mãos deixando-as inativas ao aposentar a ideia de ser um
trabalhador que manipula coisas em suas atividades laborais, para se tornar um
jogador que pressiona teclas, conforme Han nos retrata que
não parte do digital
qualquer resistência material que se teria que superar por meio do trabalho.
Desse modo, o trabalho se aproxima, de fato, do jogo. Mas em contraposição à
visão de Flusser, a vida intangível, digital não introduz o tempo do ócio.
Permanece oculto a Flusser o princípio do desempenho, que frustra
novamente a aproximação entre trabalho e jogo. Ele priva o lúdico de todo o
jogo e o transforma novamente em trabalho. O jogador se dopa e se explora, até
que ele se arruíne com isso. A era do digital não é uma era do ócio, mas sim do
desempenho (HAN, 2018b, p. 63).
Em contraposição à
visão de Flusser acerca do jogo e do ócio, Han destaca que o homo digitalis
se submete à exploração do desempenho, mas não vai precisar vencer manualmente
as resistências da materialidade. O autor ainda detalha que a percepção do homo
digitalis é muito centrada nas facilidades, nas felicidades episódicas (HAN,
2022a), no que motiva e nas emoções inerentes ao alcance do objetivo e da
eficiência no calor do jogo, sobretudo quando se está em cena laboral. Assim,
as emoções têm uma função eficiente como controle psicopolítico[9] do
indivíduo.
Uma mudança de
paradigma está em andamento no gerenciamento atual de empresas. As emoções se
tornam cada vez mais importantes. No lugar do management racional, surge
o management emotivo. O manager atual se despede do princípio do agir
racional e se parece cada vez mais com um treinador motivacional. A motivação
está ligada à emoção. A moção as
une. As emoções positivas são o fermento para o aumento da motivação (HAN, 2018a,
p. 67-68).
O sujeito do desempenho é incutido nos
processos de gamificação gerando mais produção para o capitalismo da
emoção que aquele com perfil que racionaliza, na medida em que se autorrealiza com
a dramatização que o jogo empresta ao ambiente e às relações de trabalho. Ao
agir pouco com o corpo difere do homo faber que precisava se entregar
por inteiro para produzir. O enfoque de agora passa a ser “na enumeração” que
mais depende das pontas de seus dedos para êxitos e recompensas imediatas.
Como dito por Marques (2023), a digitalização se configura “um poder
totalitário” que se resume como “nova razão de mundo”. Processos de gamificação
se infiltram e vão tecendo os acontecimentos da vida, entorpecendo o sujeito
contemporâneo que prefere paliativamente se entregar aos prazeres da “liberdade
na ponta dos dedos” do “clicar, curtir e postar” em vez de viver as angústias
do agir (HAN, 2018a; 2022a).
Na visão haniana, os
processos de gamificação incutem uma distopia da competição (em que o homo
digitalis concorre consigo mesmo), do desempenho imediato e da exploração,
e não do desfrute do ócio ou da capacidade de ir além do que está dado (HAN, 2018a;
2018b; 2022a; 2023a).
Vale notar que o
desempenho se caracteriza pela aparente liberdade de escolha e pelo
desenvolvimento incessante das habilidades, as quais não possuem limite algum para
elevar-se e crescer (HAN, 2023a). Eis que surge o paradoxo entre liberdade e
coação, em que Han nos explica que “(...) a liberdade é propriamente a contrafigura da coação. Ser livre significa
ser livre de coações. Apenas que essa liberdade, que tem de ser o contrário da
coação, gera ela própria coações (...)” (HAN, 2023a, p. 117). O autor ainda
complementa seu pensamento sobre liberdade e escolha em leitura de Flusser, ao
destacar que temos a impressão de sermos completamente livres para escolher e o
quanto “a liberdade da ponta dos dedos se revela uma ilusão”, já que mãos laboram
e necessitam de tempo para edificar e dedos escolhem para satisfazer
necessidades imediatas (HAN, 2022b).
A livre escolha é, na realidade, uma escolha
consumista. O homem sem mãos do futuro não tem realmente outra escolha, pois
ele não age. Ele vive na pós-história. Ele nem sequer percebe que não tem mãos.
Nós, entretanto, somos capazes de criticar porque ainda temos mãos e podemos
agir. Somente a mão é capaz de escolha, da liberdade como ação (HAN, 2022b,
p.29)
Curiosamente, como
visto na seção anterior, as coisas que nos ancoram e trazem sustentação para a
vida com sua materialidade, referência, contextos, memórias e narrativas
oriundas de sua história, estão perdendo sua capacidade de atração, interesse e
manuseio também pelo fato de que vão sendo substituídas pela “leveza flutuante
do jogo” (HAN, 2022b, p.26). A arena de mediação é formada pelos infômatos,
tal como os smartphones que funcionam como playgrounds. Tais
objetos são programados para reunir as formas como o phono sapiens (o
homem sem mãos do futuro que tecla em seu smartphone) vai estabelecendo
relações de trabalho e de comunicação com o mundo em que joga. Ele desfruta sem
muita preocupação, contrariamente a um outro tipo de liberdade, em sintonia com
o pensamento arendtiano[10],
que era ligada ao agir.
(...) Aqueles que agem rompem com o
existente e trazem algo novo, algo completamente diferente para o mundo. Ao
fazer isso, eles devem superar uma resistência. O jogo, por outro lado,
não intervém na efetividade. Agir é o verbo para a história. A pessoa do futuro
que joga e não age encarna o fim da história (HAN, 2022b, p. 28).
O telos da
ordem digital é, portanto, o de superar preocupações do sujeito, incluindo
obrigações de ter que fazer algo para deixar como legado (tendo em vista
referências históricas) ou que mude uma dada realidade presente ou de futuro. O
domínio da realidade digital se dará em sua plenitude quando todas as pessoas simplesmente
só jogarem (HAN, 2022b). Desta forma, Han nos relembra que as noções de
liberdade parecem se modificar numa linha de tempo. Pelos ditos do autor, ele
resgata que, na antiguidade, a liberdade significava ser um homem livre, não um
escravo. Na modernidade, a liberdade é internalizada como autonomia do sujeito,
como liberdade de ação. Hoje, a liberdade de ação é reduzida à liberdade de
escolha consumista. O homem manualmente ocioso do futuro se entregará à suposta
liberdade na ponta dos dedos (HAN, 2022b), quando na verdade deveria estar
repensando o sentido de tempo livre, bem como qual o sentido de ser e
estar no mundo. Mais ainda, o sentido de estar livre da necessidade e como
supri-la, pois a liberdade flerta com o desvio, e se esquiva da obrigação do
desempenho com a finalidade de se manter vivo. O sentido pleno de liberdade
está em sintonia com a busca do bem-viver (HAN, 2019a; 2023c).
A vida se impõe como
pulsão para um tipo de jogo que gamifica como meio de produção, em que o
sujeito não quer refletir sobre o que vai fazer e como irá agir para estar no
mundo. No lugar, prefere ter a suposta liberdade ilusória e episódica de vivenciar,
comunicar e desfrutar, escapando de afazeres que possam ser substituídos pela
máquina. A lógica de gratificação do jogo pelo êxito e recompensa se estende a
outras esferas da vida como a comunicação e a socialização, na medida em que se
acumulam afetos colecionando-se likes, amigos e seguidores (HAN, 2018a).
Até mesmo a atividade
de pensar é dominada pelos efeitos do jogo no indivíduo, dando lugar a um
pensamento por vezes obliterado, sem a possibilidade de um demorar-se, de
amadurecer sobre as coisas, de perceber a realidade com detalhes, bem como de
considerar o lugar do outro nesses processos. O sujeito que empreende e que
joga é envolto em um cenário de imediatez e pressão por aumento de resultados
em múltiplas esferas: na economia, no mundo organizacional e na política (HAN,
2022a). Correlata e inversamente, observa-se uma degradação na formação
educacional do sujeito contemporâneo, uma vez que se instaura uma “crise no
âmbito cognitivo”. O excesso de positividade, a transparência de dados, a
fragmentação e a ausência de estabilidade temporal produzem na vida deste
século uma atmosfera de irreflexão e descartabilidade em que se anseia pelo
cálculo, pela “previsibilidade total” (HAN, 2021c, p. 158), culminando com a
“protocolização da vida” em prol do controle psicopolítico (HAN, 2022a).
Em virtude de sua instabilidade temporal, fragmentam a percepção. Rompem
a realidade em uma “vertigem permanente de atualidade”. Não é possível demorar
em informações. A coação de aceleração inerente às informações recalca as
práticas de tempo intensivo, cognitivas, como saber, experiência
e compreensão (HAN, 2022a, p. 35).
Tendo em vista a
inquietação hiperativa da era contemporânea, Han (2016; 2023c) se preocupa com o
fato de o comportamento agitado não caminhar no mesmo passo do pensamento, não
permitindo que este seja aprofundado. Seguindo uma perspectiva heideggeriana, Han
(2016; 2023c) parece estar de acordo com a clássica distinção operada pelo
filósofo alemão que diferencia, em sua análise da emergência da hegemonia
tecnológica na sociedade contemporânea, aquilo que denomina como “pensamento
calculativo”, do que seria o “pensamento meditativo”.
O pensamento que
calcula faz (das rechnende Denken) cálculos. Faz cálculos com
possibilidades continuamente novas, sempre com maiores perspectivas e
simultaneamente mais econômicas. O pensamento que calcula corre de oportunidade
em oportunidade. O pensamento que calcula nunca pára, nunca chega a meditar. O
pensamento que calcula não é um pensamento que medita (ein besinnliches
Denken), não é um pensamento que reflecte (nachdenkt) sobre o
sentido que reina em tudo o que existe. Existem, portanto, dois tipos de
pensamento, sendo ambos à sua maneira, respectivamente, legítimos e
necessários: o pensamento que calcula e a reflexão (Nachdenken) que medita
(HEIDEGGER, 2002, p.13).
É interessante notar
que Heidegger vê a importância das duas formas de pensamento, sendo a primeira
fundamental à realidade – considerando a práxis, e a segunda, fiel às
possibilidades mais significativas de experiência do pensamento. Todavia, é
como se cada vez mais só houvesse espaço apenas para o pensamento calculativo,
em sintonia com as demandas crescentes do dataísmo[11]
que “quer calcular tudo que é e será” (HAN, 2022a, p.20). Diferentemente da
sedução da previsibilidade dos algoritmos, Heidegger nos descreve que
o pensamento que
medita exige de nós que não fiquemos unilateralmente presos a uma
representação, que não continuemos a correr em sentido único na direção de uma
representação. O pensamento que medita exige que nos ocupemos daquilo que, à
primeira vista, parece inconciliável (HEIDEGGER, 2002, p. 23).
O regime da
informação e do jogo retiram-nos, portanto, da faceta rica, reflexiva e
meditativa do ato de pensar, que requer um demorar-se que concede tempo, um
deixar-se absorver pelo processo em si, sua amplitude e pela problemática
instalada, até que culmine em um estado de serenidade para com as coisas (die
Gelassenheit zu den Dingen) e o enfrentamento que isso requer (HAN, 2016).
Coloca-se em questão,
portanto, em que medida, no cenário digital e da gamificação em que o
alcance desse estado de “serenidade” do pensar seja improvável, somos ainda
capazes de pensar sobre a experiência da vida, elaborar em termos de
significado e orientação, e problematizá-la filosoficamente? Em tal âmbito,
parece ser incerto considerar as contingências e dúvidas que, porventura,
possam emergir de representações e certezas anteriormente construídas, bem como
de importar-se com o lugar do outro e de sua alteridade na formação do
pensamento (HAN, 2022a). Esta reflexão parece manter afinidade com Heidegger
(2002, p.12), uma vez que se configura como um empobrecimento do processo de
pensar que desvela que o ser humano atual “foge do pensamento”, culminando com
“a ausência-de-pensamentos” e a falta de “perspectiva de um novo enraizamento”
que oportunamente pudesse fazê-lo florescer.
Nessa arena digital,
o exercício de livre pensar que raciocina, que se dispõe a uma experiência
meditativa, hoje agoniza, evitando qualquer angústia ou experiência sensorial e
emocional desafiadora. Raciocinar requer tempo, coragem e certa abertura ao
desconhecido, e parece haver uma opção muito mais sedutora e acalentadora em
formar opiniões que figuram meramente num locus intermediário, entre o
estágio significativo do pensamento e aquele em que há completa ausência de
saber.
Em linha com este
argumento, Han (2022a) em leitura de Neil Postman, aponta que a infoesfera
arbitra o entretenimento, por exemplo a “arte de jogar”, se divertir com
plataformas de conteúdo, como itinerários formativos desta era. Em outras
palavras, Han critica este caminho que seduz e analgesia o sujeito do
desempenho em detrimento de outras formações e comportamentos mais racionais.
Muito diferente seria
o resgate da “arte de brincar”, tal como formulada na leitura que Benjamin
desenvolve sobre a dinâmica dos jogos infantis: “sabemos que a repetição é para
a criança a essência da brincadeira, que nada lhe dá tanto prazer como ‘brincar
outra vez’” (BENJAMIN, 1987, p.252). Este brincar articula-se a uma outra forma
de experiência e de vivência do tempo, na qual não há propriamente nenhum
objetivo a atingir, desempenho a realizar ou informação a ser adquirida.
Trata-se tão somente de um reviver da memória que nos recoloca exatamente onde
já estamos, conferindo significado ao tempo presente. Como enfatiza Benjamin
(1987, p.253), “toda experiência profunda deseja, insaciavelmente, até o fim de
todas as coisas, repetição e retorno, restauração de uma situação original, que
foi seu ponto de partida”.
No lugar de
empenhar-se por conhecimento e percepção, ou simplesmente de permitir-se
“brincar” sem nenhum compromisso ou exigência, surge o “negócio da diversão”. A
consequência disso é uma decadência rápida, tanto da capacidade de
discernimento humano, como da possibilidade de uma “experiência profunda”.
Em aderência ao
pensamento de Luhmann, Han relata que se soma ainda aos mecanismos provenientes
do entretenimento, a necessidade de comutar o pensamento racional pelo
pensamento inteligente. Enquanto o primeiro requer tempo para formulação de um
fundamento argumentativo e ação discursiva e deliberativa, o segundo tem outra
dinâmica de temporalidade, na medida em que “a ação inteligente se orienta a
soluções e resultados de curto prazo” (HAN, 2022a, p.37).
As ações derivadas
deste pensamento otimizado se instalam numa camada inconsciente. Elas aceleram
e aderem aos sentidos de uma atenção diminuta e máximo desempenho. São regidas pelo
avançar dos idênticos, requerendo pensamentos calculativos, uniformes e
“comportamentos inteligentes” que “quebram” a temporalidade do pensar em
profundidade e são pouco cúmplices de movimentos de estranhamento da realidade.
A partir desta
atrofia do pensamento e da ausência de um estado de serenidade, coloca-se em
risco a experiência de reflexão sobre a era atual, como ilustrado no pensamento
heideggeriano, e de formação do pensamento crítico que se torna capaz de
considerar o próprio sentido de ser no mundo.
No lugar, o entretenimento se torna a base que sedimenta as relações em
todas as diversas esferas da vida. Sem perceptibilidade dos mecanismos de
dominação, fomenta-se movimentos por uma vida “mais leve”. Inere-se a este
processo a coação pela prática do consenso.
O saber, o
reconhecimento, a compreensão ou a experiência se reduzem, de um horizonte
temporal de futuro a um presente, sem muita capacidade analítica, sensitiva e
inventiva, adotando-se uma atitude de imaturidade perene. Han (2021a) alerta
para uma substituição de paradigma das “abordagens psicológicas” em curso na
sociedade contemporânea. Parece haver uma mudança de um tipo de psicologia do
sofrer para a “psicologia positiva” que nada se assemelha com o pensamento
meditativo. Nesta última, há uma preocupação em formar pensamentos associados a
“bem-estar, felicidade e otimismo” que rompem com a noção de “fraqueza” e
“sofrimento” inerente à angústia e à dor. E assim, declara que a dor tem sido
silenciada em prol da performatividade: “pensamentos negativos devem ser
evitados. Eles devem ser substituídos imediatamente por pensamentos positivos.
A psicologia positiva submete a própria dor a uma lógica do desempenho” (HAN,
2021a, p. 11). Não parece difícil de perceber como o processo de gamificação
da vida se alinha com este tipo de “abordagem psicológica”, própria à
digitalizada Sociedade do Desempenho, na qual o que importa é sempre vencer
o jogo – e isto só depende de seu próprio esforço e performance.
Considerações Finais
Como visto ao longo deste artigo, a vida na atualidade é envolta em
informação em demasia, dominada pela aceleração, pelo consumo compulsivo e
pelos mecanismos de hiperprodução, gamificação e comunicação por
conexões ilimitadas. É pautada por um imperativo econômico simpatizante a um
sistema neoliberal e a um paradigma digital apoiados no dataísmo e na
efemeridade, que seduzem e interferem sobremaneira nas relações que
estabelecemos para estar e nos orientar no mundo, sobretudo em nossa
experiência de pensar e sentir.
Para Han, há,
portanto, uma tentativa de se pôr em prática um tipo de “liso” comum às telas, especialmente
dos jogos. Um liso sem corpo texturizado, que vive do cálculo algorítmico. Ele
fomenta, em certa medida, um ludismo precário sem nada a emanar, sem destinos a
interpretar, sem temporalidade longa, sem ócio e sem cara de mundo das coisas
tangíveis e distintas, comoditizando e desestabilizando as noções de
viver em comunidade ao torná-las comunidades digitais desritualizadas e
desculturificadas.
Este artigo tratou ainda
de descrever as formas de pensamento – calculativo e meditativo – em que Han se
alinha à abordagem heideggeriana para emulá-las e como os processos de
entretenimento que tomam conta das esferas da vida, sutilmente as reduzem a um
estado empobrecido de inteligência, percepção, simbologia, significação e juízo
sobre o agir.
Explorou os
enredamentos que o sujeito contemporâneo vem estabelecendo com um tipo de
sistema que não o envolve a narrativas que concedam um horizonte hermenêutico
de interpretação. Ele é retirado da possibilidade de exercer um pensamento
meditativo além do calculativo, de ir ao confronto com seus valores, mais ainda
ao cuidado consigo mesmo em formar visões de mundo, eventualmente, distintas
daquelas a sua volta, numa atitude filosófica digna de serenidade e
questionamento das estruturas de poder em voga. Para vencer o jogo, relega o
outro ou a coisa que vem ao encontro no mundo que somos lançados, que requerem
cuidado e zelo a um “isso” disponível e consumível. A partir do fenômeno da
imaterialização, que vai invadindo as instâncias da vida, o sujeito transforma
tudo que pode em não-coisas. A experiência do cuidado é substituída por
dispositivos de controle de informação, em que agora não se cuida, mas apenas
se monitora. Este processo, gradativamente, finda por acometer o sujeito ao isolamento,
à solidão e à atrofia da cognição. Atordoa-se, portanto, ao ser indiferente a
ideias vinculantes, simbólicas, sentimentais, todas adeptas aos ideais de cultivo
do bem-viver, principalmente em comunidade.
Assim, Han faz um
chamamento ao risco em que a Sociedade do Desempenho se empareda quando se
funde ao regime coercivo da informação e seus mecanismos psicopolíticos, “lúdicos”,
e ditos “criativos e livres”, encontrados no processo de gamificação da
vida. A pergunta que fica é, em que
medida, tal sociedade estaria mais próxima de formas de amabilidade, liberdade
e vislumbre civilizacional, passando ao largo de um tipo de vida apenas por
mera sobrevivência.
Os indicativos
demonstram um caminho pouco pacificado entre desempenho e liberdade, trilhado
pela hiperatividade, pelo desmantelamento das estruturas temporais, pela ausência
de ligações mais intensas, pela restrição à abertura para as relações extras às
infobolhas, pela substituição da corporeidade física das coisas por acessos,
representações e nuvens e os efeitos que exercem sobre nós. Conduzidos por uma
vida aparentemente “mais leve” e “inteligente” do jogo, parecemos nos
dessensibilizar cada vez mais para o exercício de formas de vida poetizadas, plenas
e contemplativas, ao nos distanciar da faceta reflexiva do pensar e limitar nossa
amplitude de ser e nos guiar pelo viver.
Referências
AGAMBEN, G. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2008.
BRAGA, C.; CHEVITARESE,
L. P. Considerações sobre a Sociedade do Desempenho e o problema da alteridade
em Byung-Chul Han. Revista
Sísifo. N° 14, julho/dezembro, 2021. ISSN 2359-3121.
BENJAMIN, W. “Brinquedo e
brincadeira. Observações sobre uma obra monumental”. Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios sobre
literatura e história da cultura. Obras escolhidas. Vol.1. SP:
Editora Brasiliense, 1987.
FANJUL, S. C. Byung-Chul
Han: “O celular é um instrumento de dominação. Age como um rosário”. El País,
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HAN, B.C O Aroma do Tempo: Um ensaio
filosófico sobre a arte da demora. Relógio D’Água, Lisboa, 2016.
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poder. BH: Ed. Âyiné, 2018a.
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Digital. Petrópolis: Vozes, 2018b.
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HEIDEGGER, Martin. Serenidade. Lisboa:
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KITIRIANGLARP, Kengkij. The Far East as Resource: On Byung-Chul Han’s
and François Jullien’s Critical Philosophy. Darshika: Journal of Integrative
and Innovative Humanities, v. 2, n. 2, p. 38-48, 2022.
MARQUES, L.
Levantar-nos da sociedade do cansaço, eis o desafio. Outras Mídias,
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17/7/2023.
[1] Para explicar
a adoção da expressão gamificação, o autor sinaliza que “o jogo
emocionaliza e até dramatiza o trabalho, criando assim mais motivação. Através
da rápida sensação de realização e do sistema de recompensas, o jogo gera mais
desempenho e rendimento [...]” (HAN, 2018a, p.69).
[2] Para Han
(2018b, p. 64) “o ócio começa lá onde o trabalho cessa inteiramente. O tempo do
ócio é um outro tempo”. O autor tem o cuidado de distinguir o ócio do que seria
a pausa. O ócio possibilita uma atividade casual e sem finalidade e a pausa é
na verdade uma fase que ocorre durante o tempo do trabalho. O ócio hoje
é tomado pelo capital (HAN, 2019).
[3] O sentido do
ócio sem finalidade a que Han (2019) se refere, também se aproxima do sentido
estrito do jogo “como um brincar” para Agamben (2008, p.85) quando tal pensador
destaca que “brincando, o homem desprende-se do tempo sagrado e o “esquece” no
tempo humano”. Tal convergência de análise nestes autores nos remete a um solo
comum a ambos: o pensamento de Benjamin (1987).
[4] Braga e Chevitarese
(2021) destacaram o problema da alteridade no cenário contemporâneo,
particularmente a partir das análises desenvolvidas por Byung-Chul Han acerca
da Sociedade do Desempenho. A partir da consideração acerca da transição da
Sociedade Disciplinar de Foucault, para a Sociedade de Controle de Deleuze. Caracterizaram
a condição do atual do sujeito do desempenho, que padece de um processo de
agonia do pensamento, de violência neuronal, de aprisionamento narcísico e de
perda da possibilidade de experiência da alteridade atópica.
[5] Han adota o
conceito de não-coisa pela interpretação de Vilém Flusser, que já havia
observado que “as não-coisas estão atualmente invadindo nosso ambiente de todos
os lados e, estão suplantando as coisas. Essas não-coisas são chamadas de
informação” (HAN, 2022b, p. 11-12).
[6]Infômatos são objetos
com tecnologia embarcada tal como smartphones, smartbeds, smarthomes, etc.
[7] “O panóptico
digital do século XXI é aperspectivístico na medida em que não é mais vigiado
por um centro, não é mais supervisionado pela onipotência do olhar despótico. A
distinção entre centro e periferia, essencial para o panóptico de Bentham,
desapareceu totalmente” (HAN, 2017, p. 57). Na verdade, a vigilância e o
controle ocorrem de todos os lados, por todos, o tempo todo.
[8]
Han nos relata que as
não-coisas estão atualmente consumindo nosso ambiente por todos os lados e
deslocando as coisas físicas. Para o autor, este fenômeno provocará,
futuramente, modificações no corpo humano, dado que deixaremos de trabalhar,
por exemplo, com as mãos e substituiremos tais atividades por aparelhos
programados pelas pontas de nossos dedos. “Os aparatos digitais fazem com que a
mãos murchem. Eles significam, porém, uma libertação do fardo da matéria. O ser
humano do futuro não precisará mais de mãos. Ele não precisará mais lidar [behandeln]
com alguma coisa e trabalhá-la [bearbeiten], pois ele não tem mais
de lidar com coisas materiais, mas sim apenas com informações intangíveis. No
lugar das mãos, entram os dedos. O novo ser humano passa os dedos [fingern],
em vez de agir [handeln](...)” (HAN, 2018b, p.61-62).
[9] Han
identifica a transição para uma nova sociedade que se constitui em sintonia com
o regime neoliberal deixando de se apoiar na “biopolítica que se organiza como
corpo para dar lugar a ‘psicopolítica’ que se comporta como alma” (HAN, 2018a,
p.30).
[10] Han faz uma
leitura do pensamento arendtiano sobre vita activa e nos revela que “o
ser humano é ‘alguém’ à medida que ele age, isto é, à medida em que põe algo
novo no mundo” (HAN, 2023c, p. 110).
[11] Han (2019,
p. 79) cita um trecho extraído do New York Times, em 4/2/2013, escrito por
David Brooks, para explicar a revolução dos dados: “se você me pedisse para
descrever a filosofia que está na ordem do dia, eu diria que é o dataísmo.
Agora temos a capacidade de reunir enormes quantidades de dados. Essa
capacidade parece levar consigo certa suposição cultural – de que tudo o que
pode ser medido o deve ser; de que os dados são uma lente transparente e
confiável que nos permite filtrar o emocional e a ideologia; de que vão nos
ajudar a fazer coisas notáveis, como prever o futuro. [...] a revolução dos
dados nos oferece um instrumento excepcional para entender o presente e o
passado.”
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