Revista Sísifo. N° 16, Vol. 1. Janeiro/Junho 2023. ISSN 2359-3121. www.revistasisifo.com
Trilogia do Inumano[1]
Gabriel Ferri Bichir
Doutorando em Filosofia
pela Universidade de São Paulo, onde estuda a relação entre história e natureza
na obra de Hegel. Professor de filosofia na rede privada de ensino.
Resumo:O presente ensaio
reúne textos relativos a três jogos – Inside, Life is Strange e Nier:
Automata – que, apesar de apresentarem diferenças consideráveis, tanto na
forma quanto no conteúdo, são perpassados por uma temática comum: a dialética
entre humano e inumano (ou desumano). Trata-se de uma temática abordada tanto
na tradição da Teoria Crítica (vide Adorno e suas reflexões sobre a
desumanidade que confronta a arte no pós-guerra) quanto no pós-estruturalismo
francês (vide o famoso livro de Lyotard), mas que se reflete de maneira
singular em cada uma das obras analisadas. Com efeito, nosso objetivo é
desenvolver uma análise paciente dessa singularidade, evitando lançar mão de
esquemas demasiado genéricos, que correm o risco de acorrentar a obra a modelos
pré-formados. Para tanto, desenvolvemos uma crítica imanente de cada um dos
jogos, articulando suas especificidades formais com o conteúdo e refletindo
sobre as diferentes maneiras como trabalham a interatividade, que, afinal, é o
caráter distintivo de um videogame frente a outros meios.
Palavras-chave: Crítica; Dialética;
Inumano; Jogos.
Abstract: This
essay brings together texts relating to three games – Inside, Life is
Strange and Nier: Automata – which, despite having considerable differences
in both form and content, are permeated by a common thread: the dialectic
between the human and the inhuman. This theme is addressed both in the
tradition of Critical Theory (see Adorno and his reflections on the inhumanity
that confronts art in the post-war period) and in French Post-Structuralism
(see Lyotard's famous book), though it is reflected in a unique way in each of
the works presented here. In fact, our aim is to engage in a patient analysis of
each game, avoiding overly generic schemes that run the risk of tying the work
to pre-formed models. To this end, we undertake an immanent critique of each of
the games, articulating their formal specificities with the content and
reflecting on the different ways in which they operate in regard to
interactivity, which, after all, is the distinctive character of a video game as
opposed to other media.
Keywords:
Critique; Dialectic; Games; Inhuman.
Introdução
Não há como salvar a arte
após a extinção do sujeito, muito menos ao estufá-lo, e o único objeto que hoje
seria digno dele, o puro desumano, escapa à arte tanto pela desmedida quanto
pela desumanidade
(Adorno)
Nessa trilogia, trataremos de três
jogos que, a partir de premissas bem diferentes, abordam a dialética entre
humano e inumano numa mirada apocalíptica. O primeiro e o terceiro – Inside e Nier: Automata
– partem de um cenário pós-humano para explorar as consequências de um mundo
capitalista devastado, explorando tensões próprias ao conceito de liberdade e
como essas podem ser incorporadas no modo de jogabilidade. Já o segundo – Life is Strange – aposta numa narrativa mais tradicional, de
verve trágica, centrada na relação entre duas amigas e na impossibilidade de
reviverem a nostalgia da infância. Os três jogos levam suas respectivas
premissas às últimas consequências, produzindo choques interessantes entre
forma e conteúdo, que servirão de fio condutor de nossa análise.
Inside – Distopia como destino
Inside, jogo lançado em 2016 pela
empresa Playdead, sucede a Limbo,
de temática semelhante. Num cenário distópico e sombrio, controlamos um menino
sem feições definidas que deve escapar de seus perseguidores e ultrapassar uma
série de obstáculos para alcançar um objetivo não revelado inicialmente ao
jogador. O cenário orwelliano de uma sociedade de controle absoluto é utilizado
como crítica da massificação da conduta sob a égide do capitalismo avançado. O
título já evidencia o motivo central: o jogo todo se passa no interior de um
gigantesco complexo industrial, e cada vez mais se mergulha em suas instalações
subterrâneas; não há propriamente um lado de fora – no momento em que se
escapa, o jogo termina.
Um jogo no estilo plataforma já traz em si uma série de
expectativas atreladas à limitação da jogabilidade: a movimentação é, via de
regra, unidimensional e unidirecional (embora haja certas exceções); espera-se
uma narrativa linear com algum tipo de progressão e recompensa ao longo do
caminho, mas Inside busca subverter
tais expectativas: não possui história clara, não recompensa de maneira alguma
o jogador, nem sugere progressão; pelo contrário, penetra-se cada vez mais
fundo naquele ambiente sufocante e não há opção de retorno. A própria ideia de
divertimento é imprópria para caracterizar os afetos que o jogo mobiliza: há,
na verdade, uma experiência de urgência para terminá-lo o mais rápido possível,
pois em certos momentos beira o insuportável.
O jogador vê-se constantemente perpassado por uma forte
experiência de angústia: o menino-protagonista, completamente indefeso, é
perseguido e assassinado das maneiras mais brutais por seus perseguidores,
humanos ou animais. Não há qualquer explicação para essa perseguição
incessante, embora o jogo forneça elementos para a formulação de algumas
hipóteses. O cenário colabora para reduplicar esse sentimento: escuro e
desolado, com uma paleta de cores frias e pouco saturadas, ele se torna cada
vez mais sufocante, criando uma experiência de desconforto e claustrofobia.
Pouco resta da natureza nesse mundo pós-apocalíptico, o que mais se vê são as
inúmeras instalações cinzentas pertencentes ao complexo industrial, povoado por
dois tipos de homens: os responsáveis pela administração e as cobaias de algum
tipo de experimento, homens-zumbi que perderam a autonomia e só reagem a
comandos e estímulos externos. Como não é explicada a origem dessa condição,
não é possível saber se as cobaias já estavam previamente infectadas ou se
foram criadas em experimentos de laboratório.
Ao contrário de Limbo, ainda mais obscuro com
relação às origens das personagens e ao contexto que as circunda, Inside afirma claramente seu conteúdo
social ao longo de seu desenvolvimento. O complexo industrial serve como
microcosmo de um mundo de controle total: nele, observamos experimentos
absurdos, linhas de montagem de zumbis, soldados armados até os dentes e uma vigilância
incessante. O cenário distópico possui uma forte conotação onírica, sobretudo
em seus momentos mais estáticos e silenciosos. Essa impressão é acentuada
devido ao fato de as personagens humanas terem rostos genéricos e serem
incapazes de demonstrar sentimentos, à exceção do protagonista. O jogo é,
porventura, monotônico e repetitivo; seu caráter beira o sadismo, dada a
dificuldade de ultrapassar os obstáculos na primeira vez, o que força o jogador
a observar inúmeras vezes as mortes violentas do protagonista até ter sucesso
na fuga.
O final do jogo é central para a compreensão da temática
que mobiliza: o menino, penetrando no núcleo do complexo, encontra uma grande
centrífuga habitada por um experimento bizarro: trata-se de uma massa humana
sem forma definida, composta de inúmeros corpos aglomerados. O menino é
assimilado a essa massa e o jogador passa a controlá-la, buscando escapar do
complexo. Quando a fuga termina, o jogo se encerra. Por meio desse
procedimento, o jogo assimila na forma uma perspectiva crítica ao
livre-arbítrio: nessa sociedade de controle, aparentemente o único elemento
ainda humano era o menino-protagonista (não por acaso, o único vestido com
cores quentes); sua liberdade era, contudo, ilusória: todo aquele esforço
serviu apenas para que fosse assimilado ao aglomerado disforme. O próprio
jogador vê-se frustrado em seu intento e de certa forma manipulado pelo jogo: a
inevitável identificação com o protagonista é brutalmente negada, como se tudo não
passasse de um jogo de cartas marcadas.
A crítica ao controle do jogador visa desestabilizar a
ideia de um fim já dado de antemão, o happy
ending gratificante e reconciliador. Inside,
no entanto, não termina. Sugere-se que o jogador era apenas uma peça na
realização de um objetivo que lhe era alheio, de tal forma que, finalizado seu
papel, torna-se tão descartável quanto a personagem que controlou. Esse fim
transcendente à intenção subjetiva expressa, em seu teor de verdade, a
alienação do produto humano no capitalismo. A liberdade do jogador de manipular
os elementos do jogo é tão falsa quanto a liberdade do indivíduo no interior da
sociedade de mercado, já sempre assimilada à não-liberdade do sistema. Nesse
sentido, a tentativa de subversão de uma forma enrijecida fala a favor de seu
conteúdo crítico: Inside compreende
que a única maneira de levar a crítica às últimas consequências é desativando
hábitos subjetivamente internalizados no modo de jogabilidade.
Essa experiência deve, necessariamente, implicar um
choque. A ilusão do livre arbítrio produz monstros: um horror somatizado numa
forte experiência de angústia diante do destino do protagonista, aliado à
frustração pelas mortes sucessivas e pela impossibilidade de significar com
clareza a experiência do jogo. Isso fica evidente em certos momentos em que
vemos o minúsculo protagonista cercado pela maquinaria infernal daquele cenário
gigantesco, numa imitação distópica de Caspar David Friedrich, e quando
acompanhamos seu afogamento durante vários minutos numa tomada propositalmente estetizada,
como nos slow motions de von Trier.
Nessa narrativa catastrófica, alegoria de um tempo morto,
o final permanece em aberto. Em certo sentido, Inside não deixa de esboçar um caráter utópico na medida em que a
massa humana é capaz de escapar da zona de controle. Dessa forma, parece
subscrever à ideia de um indivíduo plenamente assimilado, desprovido de
perspectiva crítica, mas que descobre uma válvula de escape enquanto coletivo.
Não deixa, porém, de fornecer uma imagem desoladora e, portanto, verdadeira, de
um mundo administrado que submete implacavelmente o indivíduo às suas
exigências de conformação. A reificação dos modos de sentir é tensionada quando
a posição-jogador – supostamente neutra e distanciada dos fatos narrados – é posta em xeque; para evidenciar tal tensão,
faz-se necessária a experiência visceral de uma identificação com o menino que,
para resguardar o resquício de humanidade que exprime, precisa ser
violentamente negada.
Life is Strange – Nostalgia como utopia
Life is Strange é um jogo de história interativa desenvolvido pela
empresa Dontnod e lançado em 2015. À primeira vista, pode parecer uma
reciclagem de drama colegial americano barato com um toque de ficção
científica, mas logo descobrimos que as coisas não são tão simples. Na
história, controlamos Max, uma estudante de fotografia num renomado high
school de Oregon, que descobre ter o poder de voltar o tempo por alguns
instantes. Ela vê Chloe, sua melhor amiga de infância, sendo morta com um tiro
no banheiro por outro estudante e, no calor da hora, faz o tempo retroceder até
o momento em que estava numa sala de aula. Assim, já sabendo o que aconteceria
em seguida, consegue impedir o assassinato da amiga e precisa lidar com as
consequências cada vez mais catastróficas de sua interferência no fluxo
temporal.
A premissa é banal e pouco difere das dezenas de filmes
do tipo, que exploram loops temporais advindos do efeito borboleta; o
jogo em nenhum momento faz profissão de fé de originalidade, pelo contrário,
deixa claras suas intenções desde o momento em que Max vê uma borboleta no
banheiro e tira uma foto dela. A questão é que a ficção científica e a temática
“coming of age” não passam de molduras a partir das quais a história se
desenvolve, pois a narrativa do jogo é propriamente uma tragédia – condensada numa história de amor entre Max e Chloe – em
que se desenvolve a paradigmática dialética de salvação e aniquilamento
descrita por Szondi: nas sucessivas tentativas de salvar a amiga com seu poder,
Max provoca danos irreparáveis ao meio-ambiente que culminam em uma tempestade
que põe a cidade inteira em risco. Os motivos são claramente retirados do
Romantismo: a epopeia de um amor que conduz à morte, uma atmosfera melancólica
e nostálgica focada no conflito interior. Destarte, o jogo mistura elementos de
diferentes gêneros sem se comprometer com nenhum deles: a narrativa colegial “uplifting”
logo vira uma história de detetive sombria com assassinatos e suicídios, a
ficção científica não tem qualquer independência e sempre aparece subordinada à
mecânica das escolhas e ao ritmo narrativo. Como o fio condutor é o amor
tempestuoso das duas, o jogo permite-se uma maior margem de experimentação para
quebrar expectativas atreladas ao formato.
Em relação à forma, cabe comentar a pertinência da assim
chamada “narrativa interativa”, que consiste na escolha entre diferentes opções
nos diálogos com as personagens que habitam aquele mundo. Max tem contato com
vários estudantes, professores, funcionários e desenvolve uma série de
conversas com eles que podem tomar diferentes rumos dependendo das escolhas
feitas pelo jogador. Esse formato nada tem de revolucionário e é muitas vezes
utilizado de maneira preguiçosa para simular uma espontaneidade e uma complexidade
narrativa inexistentes. Busca-se realçar a liberdade do jogador através da
criação de múltiplas possibilidades de caminhos e finais para a história, mas
isso pode facilmente recair em seu contrário: uma experiência enrijecida do
jogo que não consegue articular essas possibilidades de forma orgânica a partir
de um fio narrativo comum; a dispersão pode facilmente levar ao desinteresse
pela narrativa ou à multiplicação arbitrária de desfechos que atentam contra as
próprias premissas do jogo (vide os miseráveis produtos da Quantic Dream). Esse não é o caso de Life is Strange, que
faz o melhor possível com esse formato um tanto pobre de gameplay; aqui,
muitas das escolhas efetivamente têm o peso que alegam ter, encontrando
ressonâncias em todos os capítulos subsequentes e sendo comentadas por vários
personagens principais e secundários. No entanto, o que separa o jogo de outros
do gênero é que ele ensaia a negação de sua própria forma: a escolha final de
Max no quinto capítulo nega todas as escolhas anteriores e torna-as, de certo
modo, inúteis. Esse exercício de autonegação não atinge as alturas de Nier:
Automata, em que a negação da forma é um elemento integrado ao conteúdo
mesmo do jogo, mas ainda assim gera um choque interessante e uma espécie muito
particular de frustração nos momentos finais – afinal, como veremos, a escolha
derradeira é absoluta e precisa sê-lo para manter-se fiel ao desenvolvimento
narrativo.
O jogo está predicado numa forte identificação com a
protagonista, que é talhada na medida certa para suscitar a simpatia do
jogador. Trata-se de uma garota comum, com gostos assumidamente hipsters,
que têm grande dificuldade de fazer amigos no colégio devido à sua timidez,
algo que o jogo deixa claro já na primeira vez que a controlamos: logo que sai
da aula, Max coloca os fones de ouvido para ouvir música e atravessa um longo
corredor sem conversar com ninguém, tentando fazer-se invisível. Temos também
acesso ao seu celular, com pouquíssimos amigos, e a seu diário, em que relata
as dificuldades de adaptação na nova escola. Apesar disso, ela não é uma
protagonista passiva, nem desprovida de personalidade: podemos interagir com
muitas pessoas e objetos e Max sempre tem opiniões fortes e, não raramente,
irônicas, sobre tudo e todos. Apesar de tímida, é inteligente, curiosa e
genuinamente disposta a ajudar aqueles que precisam dela. A dinâmica com Chloe
funciona bem porque ambas têm personalidades opostas: enquanto Max é tímida e pensa
mais do que age, Chloe é destemida, corajosa e extrovertida, tirando Max de sua
zona de conforto. É dito que antes desse dia fatídico as duas passaram cinco
anos afastadas, pois Max havia se mudado para Seattle e não contactara a amiga
nenhuma vez durante esse tempo, o que gerou um forte ressentimento em Chloe,
que se sente traída e abandonada.
A atmosfera do jogo, inicialmente leve e descontraída,
adquire ares cada vez mais mórbidos e sombrios, até alcançar o clímax no final
trágico. Uma situação de bullying no colégio leva ao potencial suicídio de uma
aluna (dependendo de escolhas do jogador); o professor de fotografia de Max
revela-se um assassino em série obcecado por tirar fotos de suas vítimas
inconscientes; mudanças climáticas cada vez mais estranhas culminam em um
tornado que ameaça destruir toda a cidade. Com isso, o jogo deixa clara sua
veia romântica na medida em que representa exteriormente a interioridade
turbulenta da protagonista; com efeito, o dilaceramento subjetivo é
imediatamente revertido numa força externa destruidora, pois os poderes de Max
são diretamente responsáveis por causar o tornado. O problema é que não importa
o caminho escolhido, Chloe sempre acaba morrendo de alguma forma; nas inúmeras
tentativas de evitá-lo, Max provoca alterações temporais que interferem não só
nas vidas das personagens, mas também no ecossistema.
O percurso do jogo até o final turbulento, que em breve
comentaremos, conta as peripécias das duas amigas na tentativa de redescobrir o
amor de infância. Chloe perdera o pai num acidente de carro pouco antes da
mudança de Max, quando ambas tinham treze anos; depois disso, sentiu-se sozinha
e sem perspectivas e tornou-se uma típica jovem punk revoltada contra a
mãe e o padrasto. Antes do retorno de Max por causa do curso de fotografia,
Chloe conheceu Rachel e se apaixonou por ela; as duas tinham como objetivo
fugir de Arcadia Bay e tentar a vida em Los Angeles, mas pouco antes de
executarem seu plano Rachel desapareceu misteriosamente e Chloe começou a
procurá-la por todos os cantos da cidade, sem sucesso. Defrontada com esse
imbróglio, Max promete ajudar a amiga em sua busca, pois suspeita que Rachel
fora sequestrada por Nathan, o estudante que quase atirou em Chloe no banheiro,
o que é comprovado mais à frente. Com efeito, a investigação que as duas levam
a cabo é visivelmente secundária diante do desenvolvimento de sua relação; o
que realmente importa é a maneira como se relacionam à nostalgia da infância e
à impossibilidade de revivê-la no presente. As duas eram inseparáveis e
passavam os dias juntas; nas interações presentes, revivem constantemente as
antigas fantasias e sempre tentam reproduzi-las de alguma forma: dormem juntas,
assistem filmes, criam aventuras e fazem planos para o futuro. Contudo, logo
percebem que é impossível: Max sente-se culpada por ter ignorado a amiga e
Chloe a ressente por tê-la abandonado em seu momento de maior fragilidade.
Particularmente interessante é o fato de o jogo não negar a força afetiva da
nostalgia – inclusive assimilando-a como princípio formal nos gráficos
impressionistas –, mas mostrar como a relação das duas só pode se transformar
se aceitar a impossibilidade de revivê-la, sem abrir mão do amor previamente
construído. Por isso, a própria natureza da relação permanece ambígua: elas se
beijam, demonstram ciúmes e flertam de modo velado, mas nunca discutem
explicitamente o status do relacionamento; quando Max apresenta Chloe a
um professor, hesita alguns instantes antes de chamá-la de “amiga”. Essa
indeterminação é um elemento constituinte do amor das duas e, ao contrário do
que se poderia esperar, fortalece-o em vez de enfraquecê-lo; justamente porque
esse amor é absoluto, a escolha final de Max também precisa sê-lo.
A confiança de Max em seus poderes é gradualmente minada
ao longo do jogo porque suas escolhas levam frequentemente a situações piores
do que aquelas que deveriam consertar. Em certo momento, ela retrocede cinco
anos e consegue evitar o acidente que levou à morte do pai de Chloe; no
entanto, quando vai atrás da amiga para verificar o resultado de seus esforços,
encontra-a numa cadeira de rodas e é informada de que naquela realidade foi ela
e não o pai que se acidentou. Sua condição é tão sofrida que ela pede a Max que
aumente sua dose de morfina para matá-la por overdose (a escolha de fazê-lo
fica a critério do jogador). Max não suporta a situação e decide retornar à sua
realidade, deixando o pai de Chloe morrer para que ela possa viver. A escolha
final do jogo reduplica a anterior elevando-a à segunda potência: Max deve
escolher entre salvar Chloe e deixar a cidade inteira ser destruída pelo
tornado ou voltar no tempo e permitir que ela seja assassinada para que as
alterações no ecossistema nunca aconteçam. Por ser uma escolha absoluta, é
pertinente que ignore todas as anteriores: desse modo, o jogo entende que o
amor das duas é o fio condutor de toda a narrativa e o peso de levá-lo ou não
às últimas consequências deve ter precedência sobre todo o resto. A história
certamente seria muito pior se contasse com dezenas de finais talhados a partir
de escolhas anteriores menos importantes. Contudo, é precisamente por ser
absoluta que a decisão final não deveria ser uma escolha: Max sacrificou tudo
pela amiga sucessivas vezes até aquele momento, é evidente que não existe nada
mais importante do que evitar sua morte; para esse amor que vai até o fim,
preservar-se é a única escolha possível – supor que salvar a cidade seja uma
possibilidade de mesmo peso é ignorar todo o desenvolvimento da protagonista
até então. No mundo não-reconciliado, um ato de amor verdadeiro só é possível
como afirmação máxima do egoísmo, em que o mundo mesmo desaparece diante do
objeto amado.
É verdade, porém, que a simples possibilidade dessa
escolha subverte os clichês típicos do gênero “efeito borboleta”: via de regra,
os protagonistas descobrem-se presos num loop temporal indestrutível e
precisam retornar ao ponto de origem para desfazer tudo ou, não raramente,
sacrificar a si mesmos ao longo do caminho. Esse é o caso de Dark, que
estrutura muito bem sua narrativa, mas falha em subverter tais lugares-comuns.
Ora, o simples fato de Max poder escolher manter a amiga viva sacrificando uma
cidade inteira fala a favor do ímpeto do jogo de permitir ao conteúdo fraturar
a forma pronta; ainda assim, seria mais radical eliminar por completo o
mecanismo de escolha e fornecer como único final possível a salvação de Chloe.
Nos momentos finais, Max encontra-se, por assim dizer,
num horizonte de fim de análise: pouco antes de deliberar por Chloe ou por Arcadia
Bay, controlamo-la numa sequência semionírica em que se defronta com suas
piores fantasias. Aqui, o dilaceramento subjetivo assume o primeiro plano e o
jogador precisa executar uma série de tarefas nos “sonhos” de Max enquanto ela
está desacordada e sendo carregada por Chloe até um local protegido. Tratam-se
de várias cenas separadas construídas a partir de elementos de filmes de
terror, em que Max precisa confrontar as pessoas que ajudou e prejudicou,
juntamente com seus próprios medos. Nesse processo, ela mesma levanta a
possibilidade de ter querido tudo aquilo, extraindo um prazer sádico de ver o
mundo em chamas. Um momento particularmente marcante ocorre quando ela se
encontra novamente na sala de aula do início do jogo e precisa conversar com Jefferson,
o professor desmascarado como assassino em série; quando Max aproxima-se para
conversar com ele, todas as opções de diálogo são insinuações sexuais
explícitas e propositalmente ridículas, de tal modo que a própria protagonista
diz que “não vai falar nada daquilo”. Trata-se de um artifício muito bem
construído pelo jogo, que busca reduplicar a violência dos pensamentos
involuntários de Max tirando a liberdade do jogador de escolher outro tipo de
opção na conversa. Emocionalmente, a protagonista está em frangalhos: sente-se
culpada tanto por seus fracassos como pelos sucessos; fantasia com o professor
que queria matá-la; imagina uma série de personagens transando com Chloe e
questiona seu suposto altruísmo quando tentou ajudar os outros com seu poder. A
escolha final só pode ser feita depois que Max atravessou o fantasma e aceitou
seu desamparo – assim, após confrontar a violência de seu desejo, pode assumir
o peso catastrófico de seu amor e afirmá-lo num ato final de negação do mundo.
Max não nega seu sofrimento, mas usa-o como único
ingrediente possível numa escolha irracional, que pesa o destino de uma pessoa
amada frente àquele de milhares de desconhecidos. Com isso, o jogo entrevê uma
dialética possível entre humano e inumano: o ato de Max é verdadeiramente ético
justamente porque não nega seu fundo inumano; ela compreende as consequências
de permitir a destruição da cidade, mesmo porque a mãe de Chloe está lá e
morrerá também, mas ainda assim afirma o amor egoísta acima de todo o resto e
mantém-se fiel ao seu desejo, tal como Antígona, que deixa perecer a lei da
pólis diante da tarefa de enterrar o irmão. A radicalidade desse ato falsifica
todos os experimentos mentais abstratos do tipo trolley problem; aqui, a ação ética é forçosamente traumática, mas
esse trauma é precisamente a força que fratura a subjetividade utilitarista
calculadora de vidas - num mundo absolutamente desumano, a escolha impossível
de Max resguarda a única afirmação possível do humano.
Nesse sentido, o mecanismo da teoria do caos funciona
como uma espécie de alegoria da não-liberdade do mundo capitalista, algo que
não é diretamente tematizado no jogo, mas surge como um lampejo num momento
específico: quando visita a realidade alternativa em que Chloe é tetraplégica,
Max descobre que sua família atolou-se em dívidas, sendo obrigada a hipotecar a
casa simplesmente para conseguir manter a filha viva. Ali, o sofrimento
individual é imediatamente sofrimento social, denunciando implacavelmente a
sociedade que ratifica e reproduz tamanha barbárie. A experiência de não-liberdade
de Max, de não conseguir efetivamente mudar as coisas com seu poder, replica a
impotência do indivíduo diante do destino que o capitalismo lhe impõe,
juntamente com o sentimento de culpa que a acompanha. O desejo que não faz
concessões e mergulha no que há de mais cinzento sem reivindicar pureza anuncia
a possibilidade de uma sociedade livre.
Retornemos ao fio condutor de toda a narrativa, a saber,
o tatear pela nostalgia da infância. O desejo abissal de Max é ao mesmo tempo
afirmado em seu nome e contra ela; não se trata de negar abstratamente sua
possibilidade, mas de afirmá-la insistentemente ainda que seus componentes não
sejam mais os mesmos. Trata-se de uma nostalgia não passadista, que aceita sua
impossibilidade no momento mesmo em que reitera sua promessa: Max quer a leveza
do amor da infância com a felicidade futura que prometia, mas reconhece que
terá de sacrificar tudo em seu nome. Ora, nem toda nostalgia é reacionária; ela
pode conter um elemento utópico quando não se prende ao restauracionismo, mas
compreende a impossibilidade de sua repetição – para que possa se realizar,
aquilo mesmo que lhe servia de fundamento deve perecer. Isso não é
desimportante quando consideramos que a alt-right fez da nostalgia uma
poderosa plataforma de ação: ela invoca aquele vago “no meu tempo era melhor”,
dando a entender que o mundo era perfeito quando as minorias não faziam tanto alarde, o politicamente correto não se intrometia nos
jogos de videogame, as empresas não vendiam justiça social como algo
moralmente superior. Não é mera coincidência que esse tempo seja comumente
associado à infância. O jogo desativa essa nostalgia na medida em que encena
sua autonegação; por si só, ela poderia apenas gerar uma repetição sem fim de
dor e sofrimento, pois tem como fundamento a frustração que advém da impotência
de transformação do mundo hostil. Max e Chloe não só não repetem, mas criam
algo novo a partir dessa impossibilidade: um amor redescoberto, que não se
pretende livre dos ressentimentos do passado, mas ainda assim se afirma de modo
absoluto e destrói tudo em seu caminho, até mesmo sua versão idealizada da
infância. A verdadeira nostalgia é a nostalgia de um mundo sem nostalgia.
Nier: Automata – O núcleo utópico da distopia
Nier: Automata, desenvolvido pela PlatinumGames
e lançado em 2017, explicita sua estranhice desde os primeiros instantes da
narrativa: começa com um breve monólogo da protagonista sobre a banalidade da
existência e seu inevitável ciclo de vida e morte, clamando pela oportunidade
de matar o deus que a colocou numa situação tão deplorável. O jogador mal tem
tempo de digerir o início inusitado e vê-se no meio de uma guerra entre
androides e máquinas pela disputa do legado da Terra. Jogamos inicialmente com
2B, uma androide de alta letalidade que é enviada numa missão com seus
companheiros para retomar uma fábrica dominada pelas máquinas, que são
prontamente estabelecidas como o inimigo. A partir disso, segue-se quase uma
hora de ação incessante, em que a protagonista, juntamente com seu ajudante hacker,
9S, destroem absolutamente tudo o que encontram pela frente numa power trip
digna dos animes mais ensandecidos. A comparação não é sem propósito:
apesar de ser uma androide (supostamente) sem sentimentos, 2B está vestida como
uma lolita japonesa que maneja com destreza uma espada gigantesca e corre com
saltos altos. Talvez uma parte do público mais acostumada com essa estética
possa ver tudo isso com naturalidade, mas para o resto a primeira impressão é
quase atordoante. Contudo, mal há tempo para pensar no que acontece porque o
ritmo desse primeiro capítulo é intenso e o jogador logo se depara com batalhas
contra máquinas gigantescas que culminam, para aumentar ainda mais a
estranheza, na morte dos protagonistas, que se sacrificam para destruir o
inimigo.
Depois desse momento de choque, aprendemos que as
memórias dos protagonistas foram arquivadas num bunker que orbita a Terra e
abriga um exército de androides. Dentro do bunker, retomamos o controle de 2B e
recebemos mais informações sobre o conflito: milhares de anos atrás, uma raça
alienígena invadiu a Terra munida de um exército de máquinas e obrigou os
humanos a se refugiarem na Lua. Estes criaram um exército de androides para
contra-atacar e estão até então tentando recuperar a Terra, que está infestada
de máquinas e conta com alguns poucos remanescentes que compõem a resistência.
Nada de muito original, em suma. No primeiro gameplay, essas são todas
as informações a que temos acesso: 2B é obediente e segue rigorosamente suas
ordens sem questionar as razões de sua comandante; como nos colocamos em sua
perspectiva, só temos acesso ao que ela sabe. No entanto, ainda poderemos jogar
duas vezes depois de terminar sua história: uma segunda vez com 9S e uma
terceira com a androide rebelde A2. Com essas sucessivas mudanças de
perspectiva, descobrimos que todas as informações apresentadas inicialmente são
falsas e que o conflito é mais complicado do que aparentava.
Até certo ponto, a forma reduplica o perspectivismo do
conteúdo pois toma como base o modelo RPG em terceira pessoa, mas ensaia o uso
de diferentes gêneros em momentos específicos: em corredores estreitos, o jogo
funciona no modo plataforma (2D); em batalhas aéreas, comandamos os
protagonistas numa tela que reproduz os antigos jogos de arcade de naves
espaciais; nos momentos em que hackeamos o inimigo, somos levados a uma tela de
mini-game com visual retrô e música em 8 bits; por fim, altera-se
propositalmente a tela do jogador em certas situações (pois vemos apenas o que
os próprios protagonistas enxergam): se o visor deles for hackeado, por
exemplo, nossa tela ficará distorcida. Por outro lado, há uma gritante
contradição entre os dois: a forma, derivada da estética dos animes e dos JRPGs, é propositalmente
exagerada e mirabolante – os combates são grandiosos, os poderes de 2B parecem
ilimitados e os inimigos são infindáveis. Já o conteúdo fica constantemente
aquém dessa extravagância: algumas missões principais não parecem ter muito
propósito e sequer são apropriadas para um modelo de combate como 2B. Para além
disso, descobrimos que uma grande parte das máquinas que habita aquele mundo
tornou-se pacífica e se recusa a lutar contra os androides. Defrontamo-nos,
primeiramente, com um parque de diversões com máquinas “hippies”, que se
vestem de palhaço e alegam querer espalhar o “amor”; em seguida, desbravamos
uma vila pacifista liderada por uma máquina chamada Pascal que ama conversas
filosóficas, milita contra a violência e tenta ensinar as outras máquinas a
desenvolverem sentimentos. O exagero da forma é refratado no caráter reflexivo
e introspectivo do conteúdo.
Com isso, desenha-se o principal conflito da história de
2B: descobrir o que aconteceu com as máquinas, posto que não deveriam ser
capazes de falar, muito menos de exibir comportamentos humanos. Os androides
têm forma humanoide e são equipados com uma espécie de chip de
autoconsciência, mas – diz-se – esse não é o caso das máquinas, construídas
pelos alienígenas com o único objetivo de destruir a humanidade. O próprio design
delas reforça a estranheza: ao contrário do que poderia se esperar, seu visual
não é futurista, de alta tecnologia, mas velho e ultrapassado, evocando aqueles
sacos de ferro ambulantes que passavam por máquinas em filmes antigos como O
Mágico de Oz. Todavia, um dos motivos centrais do jogo será desconstruir
a presumida diferença entre os dois lados dessa guerra farsesca.
Desse modo, poderíamos caracterizar o modus operandi
de Nier como uma espécie de “enganação para a verdade”: a fachada de
anime serve para engajar o jogador na power trip proporcionada pelo jogo
e reforçar sua identificação com a protagonista, que é explicitamente talhada a
partir da fantasia masculina – o que gerou não poucas críticas quando o jogo
foi lançado. Ainda que tais críticas tenham procedência, pois não há qualquer
explicação plausível para o visual lolita de 2B, o jogo apoia-se na fantasia
masculina para quebrá-la por dentro, juntamente com as expectativas de ser mais
uma história genérica de lutas pós-apocalípticas contra máquinas desgovernadas.
Para compreendermos essa reviravolta, passaremos em revista a trajetória de 2B,
para então identificarmos a estrutura subjacente à totalidade da história.
No primeiro gameplay, o arco de 2B é evidente (ainda
que ressignificado no final do jogo): inicialmente quieta e avessa a demonstrar
sentimentos, ela se aproxima cada vez mais de 9S e desenvolve uma espécie muito
particular de amor por ele. Torna-se mais curiosa e assume seu lado humano nas
inúmeras vezes que precisa salvar seu assistente do perigo. Nesse primeiro
momento, os inimigos principais são duas máquinas-mutantes, que mais parecem
androides (Adão e Eva); 2B elimina os dois e termina o jogo abraçada com 9S. Ao
fim e ao cabo, a identificação com a protagonista é reforçada.
No segundo gameplay, passamos pelos mesmos
acontecimentos, porém na perspectiva de 9S. Agora, 2B deixa de ser sujeito e
torna-se objeto, vemo-la pelas lentes do assistente, que rapidamente se
apaixona por ela e faz de tudo para protegê-la. 9S não tem grandes habilidades
de combate, mas é um hacker experiente e ajuda sua companheira a invadir
os sistemas das máquinas e enfraquecer suas defesas. No entanto, durante o
processo de hackeamento, descobre uma série de informações gravadas nos
códigos das máquinas que revelam suas histórias – a grande maioria vinha há
tempos tentando reproduzir, sem sucesso, comportamentos humanos. Exploraremos
essa questão mais à frente. O que importa nesse momento é ressaltar a virada na
posição ocupada pelo jogador: agora, a identificação se dá com o amante e não
com o objeto amado; 9S é admitidamente carente e se deixa facilmente levar pelo
charme da companheira, que é uma máquina de matar impiedosa. A natureza
propriamente sexual de seu desejo é revelada quando um dos antagonistas
principais, Adão, captura-o e lê suas memórias: “You're just thinking about how
much you want to **** 2B, aren’t you?”.
Enfim, a identificação construída com a protagonista ao
longo de quase 30 horas de jogo é brutalmente negada no terceiro gameplay,
de duas formas distintas: de saída, o software de 2B é infectado por um
vírus numa batalha e ela busca um lugar isolado para morrer sem contaminar os
outros. Ela é encontrada por A2 e morta num gesto de piedade, para que não
fosse tomada pelo vírus e passasse ao controle do inimigo. 9S não sabia que a
companheira estava infectada e só chega a tempo de ver A2 perfurando-a com a
espada, o que estabelece um novo conflito-base entre os dois. Depois disso, não
jogamos mais com 2B, mas sua memória assombra as fantasias do assistente, que
cai numa espiral autodestrutiva por não conseguir suportar a perda. No entanto,
o verdadeiro choque vem apenas ao final do jogo, quando A2 e 9S estão prestes a
lutar: nesse momento, A2 revela que 2B era um nome falso – a androide era na
verdade 2E, um modelo especial de androides criado exclusivamente para eliminar
outros androides que se rebelassem ou ameaçassem os segredos do bunker. De
fato, apesar de estabelecer uma conexão amorosa com seu assistente, 2B o matou
mais de uma vez durante a história (há até um momento em que ela comenta, de
forma um tanto críptica, “sempre termina assim”). Com isso, o jogador vê-se
tomado pela frustração de que tudo o que realizara até então fora absolutamente
inútil, pois tratava-se de um jogo de cartas marcadas. Ainda assim, a narrativa
permanece em aberto: podemos entendê-la como uma tentativa de 2B escapar de sua
programação e, nesse processo, criar um laço autêntico com o companheiro, mas
também como um fatalismo cruel, de tal modo que ela teria apenas cumprido um
destino pré-programado. Essa tensão entre determinismo e liberdade não só
permeia o jogo, mas é diretamente tematizada nas interações entre as
personagens; através dela, a forma espalhafatosa e excessiva é negada pelo
conteúdo. A fantasia masculina projetada em 2B é esvaziada de sentido num
processo de desindentificação radical que recontextualiza a totalidade da
história em seus minutos finais.
Tendo tratado de alguns dos topoi centrais do
jogo, podemos reconstruir sua estrutura lógica subjacente, o que permitirá compreender
a radicalidade de seu gesto de autonegação. Nier é um caso singular no
universo dos jogos porque expõe as insuficiências de sua forma e de seu
conteúdo, incorporando certas técnicas advindas das vanguardas artísticas do
século XX, em que a obra tematiza a incompletude de seu processo de construção.
Assim, explora aquilo que há de específico num videogame – o fato de a
história só se desenvolver através da mediação do jogador, que controla as
personagens e determina a progressão e o ritmo do jogo – problematizando seu
núcleo: o jogador está de fato em controle? E se a progressão narrativa
tradicional se defrontar com a sua própria impossibilidade e reverter-se numa
repetição infernal? Essa circularidade pode transformar os tipos de afetos
mobilizados? Como é possível desativar certos condicionantes subjetivos
cristalizados na forma? Nesse processo de autodesconstrução, o jogo não
pretende em absoluto ser “profundo”; seu gesto é muito mais radical –
desconstrói a superfície apenas para mostrar que não há nada por trás: a forma
excêntrica é vazia, o conteúdo flerta com o niilismo, a identificação com as
personagens é negada, as ações do jogador pouco importam e não há happy
ending.
1 – O jogo opera
inicialmente com uma dupla oposição, que constitui o núcleo da guerra pela
Terra: androides/humanos x máquinas/aliens. Essas são as únicas informações
reveladas aos androides, mas 9S e 2B começam a perceber que a equação não
fecha, pois as máquinas estão adquirindo características humanas e não há
qualquer sinal de alienígenas na superfície.
2 – Mais ou menos na metade
do primeiro gameplay, os protagonistas têm uma longa conversa com Adão e
Eva, que revelam a eles que os alienígenas não mais existem, pois foram mortos
por sua própria criação, as máquinas. A partir de então, os dois são
considerados os responsáveis pela rede de conexão das máquinas e o objetivo
principal dos protagonistas passa a ser eliminá-los. A oposição simplifica-se
para androides/humanos x máquinas.
3 – Ainda no primeiro gameplay,
derrotamos os dois antagonistas e terminamos o jogo com 2B sem mais informações
extras, acreditando que o exército das máquinas fora destruído. Entretanto,
quando jogamos a segunda vez com 9S temos a opção de hackear o mainframe
do bunker e descobrimos que os humanos também foram extintos, antes mesmo de os
alienígenas invadirem o planeta. 9S opta por não revelar o segredo a 2B – seria
sua escolha fruto de um medo inconsciente de ser morto pela companheira? Uma
espécie de intuição premonitória? Com isso, a oposição é reduzida para sua
forma mais simples: máquinas x androides. Os criadores estão mortos e as
criaturas seguem lutando sem saber exatamente por quê. As máquinas, que já
estão cientes disso muito antes dos androides, exibem traços claramente
niilistas e começam a questionar sua existência, já que o propósito para o qual
foram construídas se perdeu. Uma dessas máquinas sente culpa pela destruição
que causou e se suicida.
4 – Na terceira vez que
jogamos, descobrimos que Adão e Eva não controlavam a network das
máquinas, e sim uma Inteligência Artificial altamente avançada que se
materializa na figura das red girls.
Essa IA revela aos protagonistas que controla os dois lados da guerra:
administra as máquinas e cria os androides a partir do núcleo de máquinas
destruídas (daí as semelhanças antes inexplicáveis entre os dois modelos). O
bunker também é dominado por ela, que decide livremente até quando quer sustentar
o conflito entre os dois “lados”; ela só não destrói definitivamente os
androides porque eles a ajudam indiretamente a evoluir e a melhorar sua
programação. Aqui, a oposição desaparece e dá lugar à unidade: o conflito não
passava de uma ilusão.
5 – Se terminasse no ponto
anterior, o jogo seria medíocre. A narrativa de um antagonista oculto
controlando os dois lados da guerra é um estereótipo comum das distopias do
gênero, até mesmo Hollywood alcança esse tipo de insight. É necessário ressaltá-lo porque o limite entre a
mediocridade e a grandeza é, muitas vezes, tênue, como podemos constatar em
inúmeras obras que poderiam ter sido algo que não foram. Nier, porém,
leva tudo às últimas consequências: no ato final do jogo, controlamos A2 e
invadimos o sistema da IA para tentar destruí-la, mas a androide logo percebe
que é impossível e vê-se presa numa situação desesperada. É nesse momento que a
IA começa a discutir consigo mesma se deveria ou não manter os androides vivos:
uma parte de si diz que sim, pois eles a ajudam a evoluir cada vez mais, já
outra parte afirma ter medo e escolhe destruí-los. Conclusão: a IA sofre uma
sobrecarga e destrói a si mesma. Eis um insight propriamente
especulativo: a oposição reduziu-se à unidade, mas essa entra em conflito
consigo mesma porque é unidade de opostos e não uma identidade tautológica. Não
há resto nessa operação; ao fim e ao cabo, desaparecem tanto o uno como o
múltiplo. Depois disso, A2 e 9S precisam enfrentar juntos uma grande máquina no
combate final, mas trata-se de uma luta inútil: a Inteligência Artificial já
foi destruída, não há propriamente mais nada a ser feito. A máquina os ataca
porque está desesperada: agora, a última instância de controle foi destruída e
ela está entregue ao próprio destino. É interessante como a própria forma do
jogo reflete esse desespero: o combate começa lento e arrastado, com cada um
dos protagonistas enfrentando uma metade do inimigo, mas com o passar do tempo
fica cada vez mais intenso, e a tela do jogador começa a alternar
freneticamente entre 9S e A2. No fim, as duas partes da máquina fundem-se numa
só e passamos a controlar um dos protagonistas apenas por alguns segundos antes
de passarmos ao outro. Isso se repete até destruirmos o chefe. Desse modo, a
forma é levada à exaustão: se no início do jogo esse gameplay dinâmico
realizava uma fantasia de poder, agora se tornou insuportável; o jogador não
aguenta mais destruir máquina atrás de máquina e não consegue sequer acompanhar
a alternância ridiculamente rápida entre os protagonistas. A forma nega-se a si
mesma.
Mesmo que a temática do jogo não seja revolucionária, o
fato de ir constantemente aos extremos constitui uma vantagem decisiva frente a
outras obras do gênero. Nier triunfa onde Matrix fracassa: no
jogo, o real é esvaziado de sentido e sobra apenas o simulacro. As irmãs
Wachowski nada entenderam de Baudrillard; a ideia central de Simulacros e Simulação era justamente a
constatação de que o regime de imagens da pós-modernidade gira em falso, pois
não possui qualquer correspondente real com o qual poderia medir-se. Em Matrix,
o simulacro é um estado sonambúlico do qual o indivíduo pode escapar, mas em Nier
ele é o próprio real; por um lado, é verdade que o conflito entre as máquinas e
os androides era falso, posto que controlado por uma mesma entidade virtual,
mas, por outro, não existe nada de “verdadeiro” por trás – os humanos estão
mortos há séculos, os alienígenas também, a IA perece por obra própria; em
suma, nenhum dos atores daquele mundo têm ideia do que fazer ou da razão de
seguirem existindo. O grande Outro está morto.
Nesse mundo niilista, o que resta é uma imitação vazia –
por todos os lados um sem-número de máquinas reproduzindo cegamente
comportamentos humanos. A IA reivindica a responsabilidade pelas ações das
máquinas, pois tudo seria um teste feito sob medida para garantir sua evolução,
mas isso é patentemente falso, pois ela mesma autodestruiu-se por demonstrar o
sentimento mais genuinamente humano: duvidou de si, cindiu-se em dois. As
máquinas de fato adquiriram capacidades humanas e passaram a copiá-las
compulsivamente: uma vila tornou-se pacifista, o reino da floresta criou uma
monarquia medieval, um outro grupo criou um culto religioso e escolheu uma
máquina como seu deus. O humano é insistentemente afirmado em sua ausência: as
máquinas fracassam, sua imitação é furada porque nada aprendem, apegam-se a
palavras vazias sem saber o que significam – and yet, não é precisamente
isto que melhor define o homem: uma imitação fracassada de si, a dor advinda da
perda, do não se bastar a si mesmo?
O sofrimento passado está estampado em cada máquina que
tenta, sem sucesso, encenar conceitos e instituições que não consegue
compreender. Por um lado, o mundo delas possui um princípio dinâmico: através
dos olhos de 9S, vemos como as diferentes sociedades maquínicas
desenvolveram-se no tempo tentando repetir seus correlatos humanos; por outro,
ele é estático, posto que incapaz de se corrigir, isto é, se a instituição da
monarquia falhar, as máquinas não serão capazes de conceber outra, mas
instituirão uma nova monarquia praticamente idêntica. A impossibilidade
vivenciada pelas máquinas é a mesma experimentada pelos homens no mundo
reificado: nele, os próprios homens são como máquinas, partes de um todo que os
supera em seu movimento automatizado – o Capital. Não há liberdade verdadeira
no mundo não-livre; a escolha autêntica é tão ilusória quanto a pretensão das
máquinas de criar algo diferente da repetição compulsiva. Nesse movimento, o
jogo refuta a filosofia aceleracionista de Nick Land: o mundo inumano não é o
mundo de uma tecnosingularidade caótica e indiferente ao humano, pois deve
necessariamente guardar resquícios daquilo que nega. Não é possível desfazer-se
completamente do homem, como num passe de mágica; ele só pode ser negado de
forma determinada, contaminando aquilo que o nega – em Nier, o desaparecimento do homem deixa
rastros que assombram o mundo das máquinas como espectros que nunca desvanecem
por completo.
O jogo busca captar essa tensão a partir de uma atmosfera
nostálgica, pois a ausência do homem povoa tanto as fantasias dos androides
quanto das máquinas. Em certo momento, 9S e 2B estão num shopping
abandonado e 9S promete levar a companheira para “fazer compras” depois que
tudo aquilo acabasse, ainda que nenhum dos dois fosse capaz de compreender o
propósito do ato de consumir. O gesto persiste na ausência do referente. Talvez
o principal componente na construção dessa nostalgia seja a música: a maioria
das faixas é lenta e melancólica e as letras são escritas na assim chamada chaos language, criada especificamente
para a série Nier. Essa língua tem
palavras e fonemas muito próximos aos de línguas reais (português, francês,
italiano, inglês), o que gera uma mistura muito peculiar de familiar e
não-familiar, que remete ao unheimlich freudiano. Como a maioria das
músicas é cantada, o humano está sempre presente na espectralidade da voz,
lembrando-nos a todo momento daquilo que foi perdido.
Não se trata, porém, de uma nostalgia passadista, dado
que se afirma do fracasso do ato de significação e não de uma idealização
abstrata da essência humana. De certa forma, o próprio fracasso é produtivo,
porque fornece uma brecha que abre aquele mundo a novas possibilidades; os
vários finais do jogo comprovam-no: todos são radicalmente abertos, embora
variem em alguns detalhes. No final E, A2 e 9S matam-se mutuamente na luta, mas
as memórias deles, juntamente com os de outros androides e máquinas, são enviadas
para o espaço numa espécie de “arca” que contém um gigantesco database.
Com isso, seus corpos são reconstruídos (incluindo o de 2B) e terminamos o jogo
com uma tomada dos três prestes a recobrar consciência. Nesse momento, os pods
dos protagonistas conversam sobre a probabilidade de que tudo se repita e o
resultado dessa arca seja catastrófico: “Ainda assim”, diz o pod de 2B,
“a possibilidade de um futuro diferente também existe”. O final C é uma
variação do mesmo tema: A2 vence a luta mas salva 9S, sacrificando-se em
seguida para evitar o lançamento da arca. Nesse caso, a abertura é ainda mais
radical: restam apenas 9S e as máquinas e androides que já estavam na Terra,
agora totalmente desconectados da Inteligência Artificial – aqui sequer existe
a segurança de um database miraculoso. A atmosfera niilista do jogo
provinha do fracasso na imitação das condutas humanas; nesses finais, o
niilismo é de certo modo consumado e nega-se a si mesmo, pois nunca foi algo
intrínseco àqueles seres, como uma programação metafísica, e sim fruto da
sucessiva derrocada de todas as instâncias transcendentes de controle, o
desespero advindo da morte do grande Outro. Tal processo não poderia não ser
traumático, pois anuncia o ocaso da sociedade falsa – o fim da reificação, o
advento da verdadeira individualidade, a destruição de todo sistema de controle
e das subjetividades patológicas que produz. A ironia da situação não deve
escapar-nos: as máquinas realizam o que os homens não conseguiram, mas fazem-no
em nome do próprio homem que não mais existe. O humano ganha uma segunda chance
no inumano, aprofundando sua autonegação sem buscar recuperar o que foi perdido
– nisso, a brutal distopia de Nier converte-se na utopia última de uma
vida liberada.
A grandeza de Nier advém do fato de replicar na
relação com o jogador o mesmo processo desconstrutivo observado no interior de
sua narrativa: ao longo dos três gameplays, perdemos todos os pontos de
apoio que ofereciam um modo fácil de significar a história: a estética de anime
é levada à exaustão e esvaziada de sentido, as escolhas pouco importam porque o
conflito encenado era uma farsa, a identificação com a protagonista é
brutalmente negada e nenhum final é propriamente “satisfatório”. O fracasso do
jogador espelha o fracasso das máquinas que tentavam construir algum sentido
naquele mundo a partir das ruínas do passado. Em nenhum momento isso é mais
evidente do que na história de Pascal: ao longo de todo o jogo, engajamo-nos em
várias missões em que devemos proteger sua vila e interagir com os habitantes
para compreender seu modo de vida pacifista. No terceiro gameplay,
porém, a Inteligência Artificial emite sinais que deixam as máquinas loucas e levam-nas
a incendiar sua própria vila e a destruir seus amigos. Pascal foge com algumas
“máquinas-crianças” para a fábrica abandonada e lá o jogador, na pele de A2,
deve protegê-los da invasão de um grande exército. Segue-se quase meia hora de
combate incessante contra infindáveis hordas de inimigos, em mais uma power
trip alucinante. Terminado o combate, Pascal e A2 retornam à fábrica e
descobrem, para sua surpresa, que todas as crianças estão mortas – por
suicídio. Ocorre que Pascal havia-lhes ensinado a ter medo porque acreditava
que assim teriam mais chances de sobreviver; pois bem, elas sentiram medo durante
a batalha e destruíram seus núcleos. Diante da catástrofe, Pascal se desespera
e implora ao jogador que a mate; o jogo, sabiamente, permite escolher entre
matá-la, deletar sua memória ou deixá-la ali e ir embora. Se de fato perdemos a
capacidade de suportar o trágico na contemporaneidade – o peso avassalador da
negatividade em uma subjetividade enfraquecida –, então nesse breve instante
vislumbramos a imagem possível do que poderia ser: as crianças se mataram não
apesar, mas devido às boas intenções de Pascal, e nenhuma power trip
ensandecida poderia impedi-las. O triunfo de Pascal é ao mesmo tempo seu maior
fracasso; aqui, não há um destino exterior que se impõe à personagem, ela
produz livremente seu destino, num autêntico jogo trágico entre liberdade e
necessidade. Com isso, reduz-se a cinzas qualquer expectativa de “agência” por
parte do jogador, que observa horrorizado seu fracasso e é obrigado a confrontar
a absoluta vacuidade de suas ações. O jogo, no entanto, não trata esse
sofrimento como a palavra final – afinal, ainda existe a possibilidade de um
futuro diferente.
[1] Texto publicado originalmente em 2021 no site LavraPalavra, que gentilmente autorizou a republicação.
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