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Vilém Flusser, designer de jogos? Um ensaio sobre a ludicidade, no âmbito da Comunicologia


Revista Sísifo. N° 16, Vol 1. Janeiro/Junho 2023. ISSN 2359-3121. www.revistasisifo.com


Vilém Flusser, designer de jogos? Um ensaio sobre a ludicidade, no âmbito da Comunicologia



 

          Tadeu Rodrigues Iuama

Doutor em Comunicação pela Universidade Paulista, com pós-doutorado em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade de Sorocaba. Professor do Centro Universitário Belas Artes e da Universidade de Sorocaba.

[1]

Resumo: O presente ensaio tem por tema a relação dos conceitos de design e jogo no pensamento de Vilém Flusser, polímata e autodidata cuja obra perpassa a linguagem, a filosofia, a culturologia e a tecnologia – para citar alguns exemplos. Projeta, com isso, defender o argumento de que é possível um conceito de design de jogos a partir dessas reflexões transversais na obra do ensaísta tcheco-brasileiro. Para tanto, uma revisão bibliográfica coloca Flusser em diálogo com estudiosos contemporâneos da área do design de jogos – assim como dos game studies –, em busca de paralelos e ressonâncias. Como achados, destaca-se a noção de que o design de jogos, pensado a partir de Flusser, é um conceito com aplicações mais abrangentes do que os objetos habitualmente chamados de jogos, alcançando fenômenos diversos da existência humana. Faz-se de única ontologia possível – como defendido pelo próprio Flusser – num mundo cuja reflexão levou a uma cosmovisão e, consequentemente, a uma filosofia que se constitui em sucessivos jogos.

Palavras-chave: Comunicação. Design de Jogos. Vilém Flusser.

Abstract: The subject of this essay is the relationship between the concepts of design and play in the thinking of Vilém Flusser, a polymath and self-taught whose work permeates language, philosophy, culturology and technology – to name a few examples. Thus, it proposes to defend the argument that a concept of game design is possible based on these transversal reflections in the work of the Czech-Brazilian essayist. To this end, a bibliographical review puts Flusser in dialogue with contemporary scholars of game design – as well as game studies –, in search of parallels and resonances. As findings, we highlight the notion that game design, thought from Flusser, is a concept with broader applications than the objects usually called games, reaching diverse phenomena of human existence. It is the only possible ontology – as defended by Flusser himself – in a world whose reflection led to a cosmovision and, consequently, to a philosophy that is constituted in successive games.

Keywords: Communication. Game design. Vilém Flusser.

 

 

Introdução

 

O presente texto visa provocar o leitor acerca da possibilidade de compreender Vilém Flusser (1920-1991), ensaísta que viveu por três décadas no Brasil, como um designer de jogos. É evidente que a emergência do design de jogos, na condição de campo de estudo, é posterior à morte de Flusser. Mas o que se tensiona aqui é a noção de que o pensamento do autor atravessa o mesmo Zeitgeist que, menos de uma década depois de sua morte, faria com que os jogos passassem a ser estudados com maior intensidade.

Não que os jogos já não fossem tema de estudo antes de Flusser. Pelo contrário: o autor sorveu de fontes tais como Johan Huizinga, Oswald de Andrade e Anatol Rappaport, para ficar em apenas alguns exemplos – todos pensadores que se debruçaram sobre os jogos. Mas a centralidade dada por Flusser aos jogos – tema de levantamento de pesquisa mais ampla, desenvolvida em pós-doutorado[2] (IUAMA; SILVA, 2022b; SILVA; IUAMA, 2023; IUAMA; SILVA, 2023) – faz com que sua reflexão sobre o papel dos jogos avance com relação aos seus referenciais.

Intencionamos fornecer uma perspectiva mais ampla do design de jogos, que vai além da visão de jogo stricto sensu empregada tanto pela indústria de jogos quanto pela área do conhecimento científico que os estuda. Por conta disso, justifica-se como relevante as aplicações nos mais diversos contextos: se fenômenos do design e da publicidade, para ficar apenas em dois exemplos, podem ser compreendidos como jogos, então podemos absorver reflexões do design de jogos que se fazem pertinentes para ampliar nossos horizontes e possibilidades com relação a esses.

Para realizar tal proposta, a opção metodológica – pela própria natureza da investigação – é a pesquisa bibliográfica (STUMPF, 2010). E, em consonância com as bases epistemológicas de Flusser, a expressão dos achados se dá de maneira ensaística (KÜNSCH, 2020): a busca é por uma interpretação, e não uma explicação, com uma noção de autoria implicada no assunto estudado.

Como ensaio, não busca esgotar o tema, com respostas fechadas e definitivas. Pelo contrário: a intenção é gerar novas/outras dúvidas, para que o espaço de possibilidades se amplie. Ou, nos termos que o texto trará: jogar com (e não contra) o programa, aumentando-lhe a competência.

O ponto de partida escolhido é delinear o léxico flusseriano no que diz respeito tanto ao conceito de design quanto ao conceito de jogo. Com isso, o objetivo é estabelecer uma linguagem comum para que a conversação se faça possível. Além disso, o contexto da comunicologia, meta teórica da obra do autor, se fará presente conforme necessário. A intenção aqui, mais do que esgotar o tema, é convidar a novos diálogos.

 

O design de Flusser

O design é um fenômeno importante no pensamento de Flusser (2014, p. 273), uma vez que “pelo menos in nuce¸ o trabalho se desvalorizou e o informar, o design, o programar, tanto faz que nome lhe damos, é a fonte de todos os valores”. Para definir esse design flusseriano, a sugestão é começar pelo trajeto etimológico, prestigiado pelo autor. Nesse contexto, aprendemos que “a palavra é de origem latina e contém em si o termo signum, que significa o mesmo que a palavra alemã Zeichen (‘signo’, ‘desenho’). E tanto signum quanto Zeichen têm origem comum. Etimologicamente, a palavra design significa algo assim como de-signar (ent-zeichnen)” (FLUSSER, 2017a, p. 180). Mas, para além desse contexto etimológico, comparece um contexto semântico. Assim, no discurso atual, “a palavra design ocorre em um contexto de astúcias e fraudes. O designer é, portanto, um conspirador malicioso que se dedica a engendrar armadilhas” (FLUSSER, 2017a, p. 180). Mas, da arte de desenhar para o ardil de trapacear, aparentemente existe um abismo. Por isso, cabe também a contextualização histórica. Ainda de acordo com Flusser (FLUSSER, 2017a, p. 182):

A cultura moderna, burguesa, fez uma separação brusca entre o mundo das artes e o mundo da técnica e das máquinas, de modo que a cultura se dividiu em dois ramos estranhos entre si: por um lado, o ramo científico, quantificável, “duro”, e por outro lado o ramo estético, qualificador, “brando”. Essa separação desastrosa começou a se tornar insustentável no final do século XIX. A palavra design entrou nessa brecha como uma espécie de ponte entre esses dois mundos. E isso foi possível porque essa palavra exprime a conexão interna entre técnica e arte. E por isso design significa aproximadamente aquele lugar em que arte e técnica (e, consequentemente, pensamentos, valorativo e científico) caminham juntos, com pesos equivalentes, tornando possível uma nova forma de cultura.

O design, como habitante dessa brecha, é duplamente marginal. Artístico demais para ser puramente técnico. Técnico demais para ser puramente artístico. Mas na medida ideal para criar encontros – comunicar. E cabe reforçar ainda que “o design que está por trás de toda cultura consiste em, com astúcia, nos transformar de simples mamíferos condicionados pela natureza em artistas livres” (FLUSSER, 2017a, p. 183). Adiciona-se, assim, uma camada contestadora no designer: por meio da cultura, construída a partir de seus projetos, enfrentamos os determinismos e imposições da natureza.

Ainda de acordo com o ensaísta, o olhar do designer é ambivalente – uma característica compartilhada com os profetas da antiguidade. Por um lado, é um olhar técnico e prático. Por outro, é um olhar formal e teórico. O designer, por possuir simultaneamente os dois olhares, é capaz de transformar as formas eternas em técnicas relevantes. Transformar teoria em prática. Flusser (2017a, p. 209) aponta que essa concepção de design como “imposição de uma forma sobre uma massa informe” seria uma perspectiva ocidental. Contudo,

Enquanto no Ocidente o design revela um homem que interfere no mundo, no Oriente ele é muito mais o modo como os homens emergem do mundo para experimentá-lo. Se considerarmos a palavra estético em seu significado originário (isto é, no sentido de “experimentável”, de “vivenciável”), podemos afirmar que o design no Oriente é puramente estético.

Ainda é cedo para falarmos explicitamente de jogo (embora, como perceberemos mais tarde, já estamos falando de jogos). Mas a relação Ocidente-Oriente[3] pode ser melhor abordada. Para sintetizarmos o raciocínio de Flusser (2021) pertinente à nossa discussão, é possível afirmar que as línguas simultaneamente são, propagam, criam e formam a realidade, já que esta não teria existência senão pela linguagem. Muda a língua, muda a realidade. Destarte, Flusser agrupa as línguas existentes em três blocos: aglutinantes, flexionais e isolantes. Os dois últimos são particularmente pertinentes para nossa reflexão, uma vez que deram origem, respectivamente, às civilizações ocidental e oriental. Enquanto “o mundo das línguas flexionais é um mundo dinâmico, consistente de elementos plásticos, mas constantes, e obedecendo a regras reduzíveis à lógica. É uma cadeia de situações organizadas” (FLUSSER, 2021, p. 60), o mundo das línguas isolantes seria:

[...] impenetrável para nós, e o máximo que podemos dizer é o seguinte: consiste de uns poucos elementos duros e imutáveis, os quais, não tendo significado, não fazem tanto parte, como são condição daquele mundo. (Como, por exemplo, os átomos não são parte da matéria, mas condição das moléculas deles formadas.) Esses elementos formam conjuntos estéticos, sem regras formais (a não ser, talvez, regras estéticas), que emanam uma aura de significado. Se o ideal da frase flexional é a verdade, então o ideal do conjunto silábico é a beleza. Naturalmente, estaremos falsificando todo esse problema ao formulá-lo em português, em língua flexional, portanto (FLUSSER, 2021, p. 62-63).

O design ocidental, nesse sentido, comparece como um conjunto de elementos (a massa informe) organizados de acordo com regras (as formas). Destarte, designer seria o indivíduo capaz de enxergar as regras e de trapacear, escolhendo a melhor configuração possível de elementos dentro das brechas que as regras permitem.

 

O jogo de Flusser

Para começarmos a compreender o papel que os jogos desempenham no pensamento de Flusser (FLUSSER, 2014, p. 274-275), evoco que “no século XVIII, tudo parecia uma máquina; no XIX, um organismo. No século XX, tudo parece um jogo. Vemos o mundo como jogo, como jogo entre acaso e necessidade”. E é possível inferir que Flusser não se surpreenderia com a afirmação de que também o século XXI poderia ser chamado de século lúdico – denominação proposta pelo designer de jogos Eric Zimmerman (2014).

A definição de jogo proposta por Flusser (FLUSSER, 2014, p. 257) é sucinta: “um sistema que se compõe de elementos combinados entre si segundo regras”. Mas, apesar de sucinta, é abrangente. Para nos atermos aos exemplos empregados pelo próprio autor, xadrez, a língua alemã, o jogo de guerra e o futebol seriam exemplos de jogos. Todos são sistemas compostos de elementos – sejam eles peças, palavras ou os próprios jogadores – combinados de acordo com regras. Não por acaso, sua definição de jogo é análoga à sua definição de língua flexional:

O mundo das línguas flexionais consiste de elementos (palavras) agrupados em situações (frases = pensamentos). Dentro da situação, o elemento conserva a sua identidade e entra em relação com outros elementos. Há regras que governam as modificações dos elementos em situações diferentes, e há regras que governam a estrutura das situações (FLUSSER, 2021, p. 59).

Não seria exagero afirmar que, observado a partir de uma realidade definida por uma língua flexional – como é o caso da presente reflexão, escrita em português – o mundo passa a ser percebido como um aglomerado de jogos. A ousadia do polemista Flusser se faz presente.

Mas nem todos os jogos são iguais. Em primeiro lugar, existem jogos abertos e jogos fechados. “Um jogo é fechado quando nenhum elemento ou regra novos podem ser introduzidos sem que, com isso, o caráter do jogo seja totalmente destruído. Um jogo é aberto na medida em que possam ser introduzidos novos elementos e novas regras” (FLUSSER, 2014, p. 259-260). Num jogo fechado, o objetivo é esgotar as combinações de elementos possibilitadas pelas regras. Num jogo aberto, por sua vez, a intenção é ampliar as possibilidades de combinações, seja pela inserção ou pela retirada de elementos, seja pela modificação das regras.

Além disso, os jogos flusserianos se distinguem entre os jogos de soma zero e os jogos de soma positiva. Nos jogos de soma zero, para um jogador ganhar, outro deve perder. Já nos jogos de soma positiva, todos os jogadores podem ganhar. Por fim,

Os jogos podem ser complexos estrutural ou funcionalmente. O xadrez é estruturalmente simplíssimo. Funcionalmente, é complexíssimo. Pode-se formular a seguinte tese: a humanidade se desenvolve ou avança na medida em que seus jogos se tornam mais simples estruturalmente e mais complexos funcionalmente (FLUSSER, 2014, p. 264).

Não por acaso, para Flusser (FLUSSER, 2007), compreender os jogos é compreender as dinâmicas comunicológicas: interpretar como as informações são processadas, transmitidas e armazenadas. Em outras palavras (FLUSSER, 2014), interpretar como ocorrem diálogos, discursos e a própria cultura. Isso porque a comunicação, enquanto fenômeno social e linguístico, é ela mesma um jogo.

Diante dos mais diversos jogos, Flusser (FLUSSER, 1998, p. 169) aponta para três estratégias: “jogar para ganhar, arriscando derrota. Ou jogar para não perder, para diminuir o risco da derrota e a probabilidade da vitória. Ou jogar para mudar o jogo”. Uma interpretação possível é que a terceira estratégia relaciona-se com mais afinidade aos jogos abertos. Em todas elas, comparece um pensamento lúdico, que é um pensamento formal, uma vez que escrutina as estruturas (o conjunto de regras) que prescrevem um jogo, a fim de investigar as possiblidades de esgotar/ampliar as combinações possíveis deste.

 

Design de jogos

Embora Flusser tenha discutido tanto sobre design quanto sobre jogos, não fui capaz de encontrar uma relação explícita de ambos os conceitos em sua obra. Contudo, implicitamente, as pistas existem: o autor aponta o design como sinônimo de programar (FLUSSER, 2014) e, em outro contexto, um programa é definido como um “jogo de permutação entre elementos claros e distintos” (FLUSSER, 2018, p. 85). Programar seria então jogar com símbolos (FLUSSER, 2017a). Se seguirmos essa trilha, é possível inferir que, no pensamento flusseriano, todo design é um design de jogos. Mas tal definição totalizante pouco explica. Tomemos outro caminho.

Dentre as obras consolidadas no campo do design de jogos, destaca-se Regras do jogo: fundamentos do design de jogos, uma coautoria da designer de jogos Katie Salen com o já mencionado Eric Zimmerman. Para os autores, o design de jogos pode ser definido como “o processo pelo qual um designer de jogos cria um jogo, a ser encontrado por um jogador, a partir do qual surge a interação lúdica significativa” (SALEN; ZIMMERMAN, 2012a, p. 96).

Algumas questões se abrem. A primeira delas é a respeito da definição de jogo utilizada pelos autores. Para Salen e Zimmerman (SALEN; ZIMMERMAN, 2012a, p. 95), “um jogo é um sistema no qual os jogadores se envolvem em um conflito artificial, definido por regras, que implica um resultado quantificável”. A ideia de um sistema definido por regras é explicitamente comum com a definição flusseriana. Por artificial, os autores apontam para a distinção da vida cotidiana, uma vez que os jogos são sempre limitados no espaço e no tempo (comumente, os limites dessa distinção são chamados de círculo mágico[4]). Cabe lembrar que, para Flusser (2014), a comunicação e o design são também artifícios, ardis para escaparmos das limitações impostas pela natureza.

O ponto fulcral está na interação lúdica significativa (meaningful play), que “surge da relação entre a ação do jogador e o desfecho do sistema; é o processo pelo qual um jogador toma medidas no sistema projetado de um jogo e o sistema responde à ação. O significado da ação em um jogo reside na relação entre ação e resultado” (SALEN; ZIMMERMAN, 2012a, p. 49-50).

É importante ressaltar que, para Salen e Zimmerman (SALEN; ZIMMERMAN, 2012a, p. 50), o significado “é menos sobre a construção semiótica do sentido (como o significado é criado) e mais sobre a experiência emocional e psicológica de habitar um sistema bem projetado de jogo”. Uma relação com o pensamento de Flusser (FLUSSER, 2017a, p. 54) que se faz possível é que, no contexto de um ambiente que desvalorizou o trabalho, substituindo-o pelo design,

O novo homem não é mais uma pessoa de ações concretas, mas sim um performer (Spieler): Homo ludens, e não Homo faber. Para ele, a vida deixou de ser um drama e passou a ser um espetáculo. Não se trata mais de ações, e sim de sensações. O novo homem não quer ter ou fazer, ele quer vivenciar.

Ainda sobre a interação lúdica significativa, cabe uma discussão sobre a interação lúdicaplay, no original – definida por Salen e Zimmerman (SALEN; ZIMMERMAN, 2012b, p. 26) como “o movimento livre dentro de uma estrutura mais rígida”. Em outros termos, interação lúdica (play), são as possibilidades de combinações permitidas por um conjunto de regras.

Faz-se pertinente uma digressão a um conceito amplamente abordado por Flusser (2014; 2017a; 2018), que é o de aparelho. Em linhas gerais (FLUSSER, 2018), aparelho é tudo aquilo que é criado para uma atividade que não serve ao trabalho e simula um pensamento. Nossos smartphones são aparelhos, mas nossa sociedade também o é. No caso dos smartphones, um software comanda o conjunto de regras, enquanto na nossa sociedade, como aponta Flusser (FLUSSER, 2021), a língua exerce essa função de programa. Destarte,

Aparelho é brinquedo e não instrumento no sentido tradicional. E o homem que o manipula não é trabalhador: não mais homo faber, mas homo ludens. E tal homem não brinca com seu brinquedo, mas contra ele. Procura esgotar-lhe o programa (FLUSSER, 2018, p. 35).

Assim, concluindo a digressão, aparelhos seriam jogos fechados – jogos nos quais o objetivo é esgotar as combinações possibilitadas pelo conjunto de regras (ou programa). Em jogos abertos, o indivíduo brincaria com, e não contra: ampliaria as possibilidades, no lugar de esgotá-las. É o que Salen e Zimmerman (SALEN; ZIMMERMAN, 2012b, p. 27) nomeiam como interação lúdica transformadora, que ocorre “quando o movimento livre da interação lúdica altera a estrutura mais rígida na qual toma forma. A interação lúdica não apenas ocupa e opõe-se aos interstícios do sistema, mas realmente transforma o espaço interno”. A experiência emocional e psicológica decorrente desse fenômeno seguramente pode ser considerada significativa, uma forma radical de agência, um conceito definido pela estudiosa de jogos Janet Murray (MURRAY, 2003, p. 127) como “a capacidade gratificante de realizar ações significativas e ver os resultados de nossas decisões e escolhas”.

Aproximações com Flusser são pertinentes. Sua obra caminhou para a sistematização de uma teoria da comunicação humana, ou comunicologia. Em sua esquematização pedagógica[5] para um curso de sua teoria da comunicação, Flusser (FLUSSER, 2007, p. 272) define o seguinte programa:

“Que teoria da comunicação seja metadiscurso de todas as comunicações humanas de maneira que a estrutura de tais comunicações se torne evidente, a fim de poder modificá-la”. “Comunicólogo” é quem dispõe de instrumentos para modificação das comunicações humanas, e a teoria deve fornecê-los.

Comunicólogo, proponho, é quem realiza interações lúdicas transformadoras. Joga com a intersubjetividade[6], e não contra ela, uma vez que procura ampliar-lhe o programa. Nesse sentido, a dinâmica comunicológica se opõe, compreensivamente (KÜNSCH, 2020), à dinâmica aparelhística.

Destarte, lembrando que “criar uma interação lúdica significativa é o objetivo do design de jogos bem-sucedido” (SALEN; ZIMMERMAN, 2012a, p. 50), um comunicólogo seria um designer – muito mais próximo do que Flusser aponta como uma perspectiva oriental do design – de jogos (abertos): busca projetar modificações nas estruturas de um determinado sistema (comunicacional), a fim de ampliar sua competência.

 

Aplicação

Uma vez definido o arrazoado teórico que permite a afirmação de que, dentre outros temas, Vilém Flusser discutiu o design de jogos lato sensu, a intenção é refletir sobre como um fenômeno lúdico poderia ser interpretado a partir desse repertório conceitual. Para isso, foram escolhidos os larps[7] – termo a ser explicado em seguida –, cuja escolha se dá tanto pela familiaridade com o tema (IUAMA, 2018; 2021a) quanto pela emergência desses jogos recentemente na cultura pop[8]. Os autores tradicionalmente associados com os estudos (do design) de jogos trazidos no intertítulo anterior – Salen, Zimmerman e Murray – proporcionam as definições de larp, a partir de onde iremos prosseguir nossa crítica. Para Salen e Zimmerman (SALEN; ZIMMERMAN, 2012c, p. 94):

Como nos RPGs de mesa, os jogadores de LARP assumem a personalidade de personagens fictícios, definidos por meio das estatísticas do jogo formal, bem como por meio da história pregressa da narrativa e de uma personalidade inventada. Mas os LARPs não acontecem ao redor de uma mesa. Em vez disso, os LARPs ocorrem em espaços físicos reais, pois os jogadores caminham e interagem uns com os outros, representando dramaticamente as ações de seus personagens em tempo real.

Murray (MURRAY, 2003, p. 53) complementa, afirmando que esses “jogos de representação são teatrais[9] de um modo não convencional, mas emocionante. Os jogadores são, ao mesmo tempo, atores e espectadores uns para os outros, e os eventos que eles encenam frequentemente possuem o imediatismo das experiências pessoais”. Tanto para Salen e Zimmerman, quanto para Murray, os larps são uma forma de RPG. Por isso, faz-se necessário definir os RPGs. Na mais[10] aprofundada e abrangente discussão sobre o tema, observa-se que:

Role-playing game é um termo usado por vários grupos sociais para se referir a várias formas e estilos de atividades e objetos lúdicos que giram em torno da criação estruturada por regras e da representação de personagens em um mundo ficcional. Os jogadores geralmente criam, representam e governam individualmente as ações dos personagens, definindo e perseguindo seus próprios objetivos, com escolhas amplas sobre quais ações eles podem tentar. O mundo do jogo geralmente segue algum tema do gênero ficção e é gerenciado por um árbitro humano ou computador. Frequentemente, existem regras para a progressão do personagem, tarefas e resolução de combate (ZAGAL; DETERDING, 2018, p. 46).

O que mais nos interessa aqui é que, nos larps, um jogador coloca sua personalidade cotidiana em segundo plano, com a intenção de assumir uma personalidade ficcional. O que nos leva, novamente, a Flusser: para o autor, a vida do ser humano do futuro (nós?) seria um movimento pendular entre o concreto e o abstrato. Nesse contexto, Flusser (FLUSSER, 2017b, p. 374) aponta que:

A vida ativa desse ser do futuro será a criação por ética de mundos deliberados e substituíveis. E a vida contemplativa será a visão da dependência desses mundos todos do inefável. Este homem do futuro será um ser que poderá habitar uma multiplicidade de mundos de estruturas intercambiáveis, porque estará ancorado no chão fundante do inarticulado. A sua criação de mundos será um serviço ao inefável, e estes mundos serão obras a serem sacrificadas no altar do inefável pela contemplação redutiva.

Me parece ser exatamente isso que fazemos ao participar de um larp. Criamos, por ética – assumindo ética como a relação dialógica com o outro (Eu-Tu), como preconiza Buber (2001) –, mundos deliberados e substituíveis. Habitamos múltiplos mundos desses: ao menos um a cada larp diferente que participamos. Suas estruturas são intercambiáveis, justamente porque são flexíveis e negociáveis – para alguns[11], até demais. O inarticulado, que ancora tais estruturas, não é outro senão o próprio mundo interno de cada um dos participantes: mudam os participantes, muda a estrutura do jogo, pelo simples fato de a biografia dos participantes ser um elemento constituinte dos larps (IUAMA, 2018). E, ao contemplar as experiências vividas em um larp, ao imaginar – “reduzir para o nível da narração” (FLUSSER, 2017b, p. 97) –, um indivíduo pode transformar aquelas experiências vividas na ficção em modelos para aplicar em outros contextos da sua vida (IUAMA, 2021a). Em síntese, a descrição da vida do ser do futuro por Flusser poderia muito bem figurar como parte da descrição do que é um larp.

Voltemos para os conceitos descritos no intertítulo anterior. O programa de um larp – ou seja, sua estrutura (conjunto de regras), sua proposta narrativa, ou qualquer descrição que o valha, por vezes chamada de larpscript – prevê como elementos constituintes os jogadores, que por sua vez são compostos por suas próprias biografias. Só por esse motivo, pensar nos larps como jogos nos quais os jogadores buscam esgotar as possibilidades do programa é absurdo. Pelo contrário, o objetivo do jogo consiste em ampliar as possibilidades do programa. Destarte, o design de um larp consiste em criar um programa atrativo o suficiente para que os participantes se sintam convidados a se engajarem em ampliar suas possibilidades.

Dado o caráter iminentemente social dos larps, a intersubjetividade é solicitada. O que desperta interesse nos larps é que combinações poderiam emergir da relação com o outro. Jogo aberto, de soma positiva. No qual só se aplica a estratégia três: jogar para mudar o jogo. Afinal, a cada execução de um larp, o próprio larp se transforma, uma vez que, invariavelmente, são adicionados elementos não previstos.

Nesse sentido, pode-se inferir que o design de um larp caminha do Ocidente para o Oriente: apesar de partir da imposição de uma forma, transforma-se em um modo de como os indivíduos emergem nesse mundo para vivenciá-lo. Destarte, não é fortuita a noção flusseriana (2014, p. 263) de que “para poder jogar um jogo, é preciso ser competente. É preciso ser disciplinado. Além disso, no jogo, é preciso esquecer-se de si mesmo. O lúdico é algo esquecido de si”. Na intersubjetividade, o indivíduo abandona o ímpeto (tão celebrado na sociedade ocidental) de impor sua vontade ao informar um fenômeno, em troca de uma vivência coletiva daquele mundo ficcional compartilhado.

 

Considerações Finais

O comunicólogo (de) Vilém Flusser é, ao cabo, um designer de jogos. O é porque busca esmiuçar o conjunto de regras que programam as relações intersubjetivas, a fim de alterá-las. Esse é um gesto ambíguo, é importante ressaltar. O próprio Flusser, como é conhecido, é por vezes crítico aos jogos no decorrer de sua obra. Afinal, o mesmo jogo pode ser instrumento de libertação e instrumento de aparelhamento. Até por isso, Flusser também olha – sempre, é importante frisar – a necessidade de entender as estruturas (jogos) e a manifestação destas (design) com euforia, já que esse conhecimento é pré-requisito para elaborar qualquer ardil nas estruturas dadas, natural:mente (na grafia estilizada pelo autor para afirmar que tudo que é tido como naturalizado é, ao cabo, uma mentira).

E realiza essa trapaça (design) porque sabe que, alterando as estruturas de um sistema, aumenta-lhe a competência. Poderia agir de outra forma, é fato. Poderia jogar contra o programa da intersubjetividade. Poderia promover uma intersubjetividade aparelhada. Faria isso se assumisse que as regras para a intersubjetividade são um sistema fechado, e cabe a ele jogar contra: esgotar as possibilidades de combinações oferecidas por esse sistema supostamente fechado.

Mas nós, na condição de seres humanos, não somos sistemas fechados. Portanto, nossa mera presença como elementos de um sistema (e os larps exemplificaram isso no presente texto) fazem com que as combinações possam ser ampliadas. É nisso que o comunicólogo (de) Vilém Flusser aposta: em utilizar seu conhecimento das estruturas lúdicas para explorar brechas, ou criar trincas, nos programas dos quais participa.

E faz isso não por um suposto prazer mórbido na destruição. Pelo contrário. O faz porque sabe que, se tudo que é ordenado tende à desorganização (entropia), a única chance de evitar a destruição é a mudança constante.

 

Referências

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SALEN, K.; ZIMMERMAN, E. Regras do jogo: fundamentos do design de jogos: principais conceitos: volume 1. São Paulo: Blucher, 2012a.

 

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SILVA, M. C. C.; IUAMA, T. R. Compreensão sob o signo de Abaporu? Em busca de diálogos e devorações. Comunicação & Sociedade, v. 44, p. 227-252, 2023.

 

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ZAGAL, J. P.; DETERDING, S. Definitions of “Role-Playing Games”. In: ZAGAL, J. P.; DETERDING, S. (Eds.). Role-playing game studies: transmedia foundations. New York: Routledge, 2018, p. 19-51.

 

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[1] Ed Sommer, »Portrait Vilém Flusser«, 1989.

[2] O projeto de pesquisa em questão é nomeado Ludofagia: o lúdico e o antropofágico na comunicologia de Vilém Flusser, e foi realizado junto ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba entre os anos de 2020 e 2021. Em consonância a esse, o projeto nomeado As dinâmicas comunicológicas flusserianas aplicadas a fenômenos de design e publicidade, do qual também resulta o presente texto, foi oferecido junto ao Programa de Iniciação Científica do Centro Universitário Belas Artes, ciclo 2021-2022, com o objetivo de compreender as dinâmicas de engajamento dos indivíduos em fenômenos de design e publicidade.

[3] Embora outras aproximações sejam possíveis, tais como a noção de jogos em Flusser ser derivada dos jogos de linguagem de Wittgenstein, a opção tomada no presente ensaio foi a fidelidade ao pensamento do próprio autor, que coloca esse tensionamento entre Ocidente e Oriente como pertinente. No caso específico de Wittgenstein, é importante colocar que o próprio Flusser (2021) contesta a noção wittgensteineana de linguagem, optando por outro caminho já em suas obras iniciais, e intensificando esse distanciamento no decorrer de sua trajetória intelectual.

[4] O termo é recorrente desde seu emprego pelo historiador Johan Huizinga (2017).

[5] As reflexões do autor sobre tal projeto pedagógico podem ser encontradas em sua autobiografia (FLUSSER, 2007). Uma discussão contemporânea desse curso foi realizada por Luís Mauro Sá Martino (MARTINO, 2020). Ambas as leituras são recomendadas para quem se interessar em aprofundar-se sobre o tema.

[6] Intersubjetividade, conceito transversal na obra de Flusser, é amplamente inspirado na palavra-princípio Eu-Tu, de Martin Buber (BUBER, 2001). Esta seria a relação ética entre dois indivíduos, que se opõe as interações pautadas pela objetivação (Eu-Isso).

[7] Embora existam autores que insistam em utilizar a expressão em letras maiúsculas, LARP, indicando o acrônimo para live-action role-play, existe um movimento para o uso em minúsculas, similar ao que aconteceu com as palavras laser e radar (DETERDING; ZAGAL, 2018).

[8] Um desses exemplos é o último jogo da franquia de jogos digitais Life is Strange (DECK, 2021) – franquia que também é ressonante com outros conceitos desenvolvidos por Flusser (IUAMA, 2022a).

[9] Cabe apontar que, embora existam pontos de contato (HOOVER et al, 2018), a discussão do larp se distancia das discussões sobre drama, teatro e performance na medida em que a ausência de público (consumidor passivo de estímulos) é prerrogativa nos larps.

[10] A adjetivação pode até parecer excessiva, mas é pertinente. A obra consiste “num esforço colaborativo de quarenta pesquisadores, de diversas nacionalidades, ao longo de cinco anos” (IUAMA, 2021b, p. 454), com o intuito de realizar um estado da arte abrangente e representativo dos estudos de RPG.

[11] A alusão aqui é ao estudioso de jogos Jesper Juul (2019), que se incomoda tanto com a flexibilidade das regras em um RPG a ponto de falar que estes deveriam ser considerados casos limítrofes no conceito de jogo. 

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