Humanidades Digitais e Jogos:
as possíveis ferramentas para um “fazer filosófico” sobre o mundo passado
Entrevista com Celeste
Pedro
Celeste Pedro
Celeste Pedro é
designer de comunicação graduada pela Faculdade de Belas Artes do Porto,
Portugal. Desde então, seu foco principal tem sido a tipografia e o design
editorial. Tem mestrado em Design e Intermídia pela Universidade de Barcelona.
Seus estudos sobre design de dicionários a aproximaram do campo da história da
tipografia e do envolvimento em vários cursos de idiomas, workshops e escolas
de verão relacionados à edição de textos e à produção de livros. Nos últimos
anos, especializou-se em livros impressos antigos e paleografia enquanto realizava
sua pesquisa de doutorado sobre a História da Cultura Impressa Portuguesa no
Século XVI, financiada pela FCT. Recentemente foi pesquisadora contratada para
o projeto "From Data to Wisdom - Philosophizing Data Visualizations in the
Middle Ages and Early Modernity (13th-17th Century)" no Instituto de
Filosofia da Universidade do Porto, onde agora continua seu trabalho sobre
diagramas medievais e do início da modernidade.
Camila Ezídio (Entrevistadora)
Doutora em Filosofia pela UFBA. Atualmente é
pesquisadora de pós-doutorado pelo CNPq/UFBA.
1)
Celeste,
nos fale um pouco de sua trajetória acadêmica nos explicando o que te levou do
design, sua formação inicial, para a investigação na filosofia medieval?
Camila, muito obrigada pela oportunidade
de falar sobre o meu trabalho!
Logo desde cedo que o que mais me
motivava eram as artes. Quando terminei o ensino secundário fiquei na dúvida
entre escolher arquitetura ou pintura; acabei a escolher o design de
comunicação. E foi em design que comecei a trabalhar. Mas rapidamente percebi
que não era suficiente para mim, e comecei então a estudar, à noite a aos
fins-de-semana, tudo o que gostava de saber e que não fazia parte da minha
formação de base. Foi assim que entrei nas línguas, na paleografia e na
história do livro. A certa altura decidi que estava na hora de fazer um
intervalo no trabalho e de me dedicar a novos desafios. Fiz muitas candidaturas
internacionais até encontrar um programa doutoral aqui na Faculdade de Belas
Artes que “oferecia” bolsas e assim me permitiria uma dedicação a 100% à
investigação. Escolhi um tema pouco apetecível para a maioria na altura, a
história da tipografia em Portugal. E foi assim que cheguei ao Instituto de
Filosofia: depois de procurar muito pelo orientador “ideal”, encontrei o
Professor Meirinhos! Foi amor à primeira vista, do Instituto obtive o saber e a
amizade que precisava para me aventurar na academia. Daí para a filosofia
medieval foi uma transição suave. Encontrei no projeto “From Data to Wisdom” a
ligação ao design que, no fundo, consolidava o meu conhecimento, dando sentido
a todo o meu percurso.
2)
Você
esteve envolvida em um projeto de investigação no âmbito das humanidades
digitais na Universidade do Porto, por isso, gostaria de te perguntar em que
medida e de que maneira as ferramentas digitais podem ser úteis nas nossas
pesquisas sobre a história da filosofia de um mundo passado?
Sim, o projeto “From Data to Wisdom”
incluía uma parte importante de humanidades digitais, não só porque se baseava
na criação de uma base de dados de imagens tiradas de manuscritos e impressos
(medievais e pré-modernos), mas também porque refletia sobre a transmissão do
conhecimento através de ferramentas de visualização de dados. E, aqui, estou a
falar não só de ferramentas contemporâneas, mas também das que eram usadas há
mil anos. No fundo, estudamos o papel dos diagramas ao longo dos séculos,
produzindo aplicações (apps) digitais que nos ajudam a visualizar interrelações
(ou redes/networks) em grandes conjuntos de imagens. Penso que este é um bom
exemplo de como as humanidades digitais podem ser úteis para a história da
filosofia: produzimos e usamos ferramentas que facilitam a investigação, e ao
mesmo tempo, nos permitem descobrir caminhos e contatos entre autores e temas
que, de outra forma, permaneceriam obscuros ou até inacessíveis (pelo simples
fato de lidarmos com quantidades enormes de informação).
Mudando de assunto, mas nem tanto, já
que continuaremos a falar de algo que pode ser entendido como uma ferramenta,
vamos aos jogos, tema do nosso dossiê.
3)
Você
desenvolveu um jogo de tabuleiro cujo tema é filosófico, desse modo, nos conte
como essa ideia surgiu: ela decorre do gosto por jogos, da curiosidade, do
fazer filosófico ou/e do espaço disponível ou que pode ser criado para esses
“produtos” no mercado?
Quando estava a terminar o doutoramento
descobri que um dos livros impressos por João de Barreira (um dos tipógrafos
que estudei) era demasiado fora do comum para ficar na gaveta: era um
livro-jogo de João de Barros (famoso historiador do séc. XVI). Tomei este como
um desafio pessoal: quando trabalhava em agências de design, um dos meus
maiores clientes era a Majora, uma empresa familiar de grandes dimensões em
Portugal para quem desenvolvi muitos jogos, pareceu-me lógico pegar nesse tema.
Aliás, foi este livro que me aproximou do projeto liderado pelo Professor
Higuera que descrevi acima, porque a ligação deste jogo a Ramon Llull era
evidente.
No
início, o meu interesse era puramente académico, queria saber tudo sobre a
história daquele jogo. Mas a minha experiência profissional levou-me a
considerar todo um projeto de produção e disseminação de versões “jogáveis”,
com objetivos educativos, mas também comerciais.
4)
O jogo que você desenvolveu se debruça sobre o
tema da moral a partir de um autor português, que tal contar mais aos nossos
leitores sobre o tema, o autor e como o teu jogo pode ser jogado?
João de Barros é um autor muito
estudado, exceto no que diz respeito a este livro. Nenhum dos investigadores
que escreveu sobre ele tentou realmente jogar ou reproduzir uma versão que
pudesse ser jogada.
Vou voltar um pouco atrás: estamos a
falar do “Diálogo de preceitos morais (...) em modo de jogo”, impresso em 1540
(e novamente em 1563)*. Este é um livro sobre teoria moral, baseado na “Ética”
de Aristóteles. E um simples livro, de pouco mais de 20 páginas, acabou por
oferecer uma multitude de perspectivas filosóficas e de investigação. O livro
contém um jogo destacável desenvolvido pelo autor para ensinar a teoria através
da prática aos jovens cortesãos. O jogo, tal como sobreviveu nas pouquíssimas
cópias disponíveis, não está completo; para que se pudesse jogar tive de
desenvolver um tabuleiro extra e corrigir as peças existentes. É, na realidade,
um jogo complicadíssimo, carregado de informação e de significação. Ao jogá-lo,
descobrimos o quão complexo é o caminho para a felicidade, e quão aplicável
Aristóteles é aos nossos dias. Neste momento, estou a trabalhar em colaboração**
com uma investigadora, uma tradutora e uma ilustradora para dar existência
digital a todo este mundo de João de Barros***.
5)
Como
estudante e investigadora, de que maneira você vê a relação dos jogos com o
ensino/aprendizagem da história da filosofia, principalmente para os mais
jovens?
Todos sabemos que os jogos são poderosas
ferramentas. Juntar o elemento lúdico ao pedagógico é uma aposta ganha,
especialmente nas idades mais jovens. E esta não é uma estratégia recente, como
podemos ver com o jogo de João de Barros. O mercado de jogos históricos está
superdesenvolvido, há encontros de gamers especialmente dedicados a jogos de
tabuleiro relacionados com temas medievais, um pouco por todo o mundo. O que
não existe nesta quantidade são os jogos filosóficos. Embora numa procura na
internet encontremos rapidamente recursos didáticos para usar nas aulas (muitas
vezes apelidados de jogos) para cada idade, estes recursos baseiam-se
maioritariamente em texto (perguntas a colocar, perspectivas de discussão a
explorar, temas a desenvolver) e, pior do que isso, em texto estático, em que
não é oferecida a possibilidade de interação direta dos alunos com a “matéria”
do jogo. E uso as aspas para salientar a própria perspectiva de João de Barros:
“Esse foi o seu fundamento (do jogo): vendo que as palavras nuas, não eram
objeto tão eficaz como a pintura por ser material e mais familiar da memória. E
sabes quanta força têm as coisas materiais”.
Como
designer, não posso deixar de acrescentar que a forma (a interface) escolhida
para a maioria destes recursos se torna frequentemente, também ela, num
obstáculo à comunicação com o público-alvo.
6)
Ainda
sobre a função didática desempenhada pelos jogos: você acredita que a reflexão
sobre jogos pode auxiliar na reflexão sobre temas clássicos da filosofia? E,
inversamente, que a reflexão filosófica sobre os jogos pode ajudar no
desenvolvimento deles?
Sim, muito. Têm sido exploradas
recentemente duas perspectivas complementares: uma que usa os jogos para
explorar formas de transmissão de conhecimento, neste caso filosófico; outra
que explora a inclusão de mecanismos filosóficos em jogos. Em ambas, o objetivo
é encontrar um meio de aproximação e usufruto filosóficos: por um lado oferecer
melhores formas de acesso à filosofia (sua história, conceitos, sistemas de
pensamento, autores) através de objetos críticos e criativos, por outro desmistificar
a dificuldade aparente dos temas filosóficos, associando-os ao nosso dia a dia
e até a atividades que dão prazer.
7)
Celeste,
você pensa ser possível traçar paralelos entre o fazer filosófico (estudo,
reflexão, produção de conhecimento) e o desenvolvimento de jogos? Se sim, há
habilidades comuns que você considera importantes para as duas atividades? E,
por fim, você vê algum paralelo entre o desenvolvimento de um jogo e o
desenvolvimento de um sistema filosófico?
Tenho
de começar esta última resposta com uma confissão, eu não me considero uma
criadora de jogos, nem tão pouco filósofa, mas vou responder com base no que
tenho estudado e porque gosto muito do tema. Para ambos é necessária uma
reflexão sobre circunstâncias e hipóteses. A cada momento do jogo, o jogador
toma decisões com base na informação que possui. No caso dos jogos podemos
dizer que avaliamos as estatísticas e manipulamos o número de escolhas
possíveis consoante os objetivos do jogo e a história que queremos contar. Quando
criamos jogos temos de prever todos estes atos, colocamo-nos, como um filósofo
(e como um historiador), “acima” do caso e observamos as circunstâncias. Depois
ponderamos e agimos sobre onde cada ação levará o jogador.
Acho
que é este pormenor que me alicia mais, e é muito visível em João de Barros,
porque ele justifica e exemplifica a cada passo o que está por detrás de cada
escolha que fez ao desenvolver o jogo, tanto na criação do conteúdo (a teoria
moral), como na sua mecânica algorítmica.
* João de Barros, (1540 princeps), Dialogo de
preceitos moraes co[m] prática delles, em módo de iogo, Lisbon: Luis
Rodrigues. Acessível em https://purl.pt/12149.
2ª edição (1563), Dialogo de Ioam de Barros com dous filhos seus sobre preceptos
moraes em modo de jogo, Lisboa: João de Barreira.
Acessível em http://purl.pt/15189.
**https://historicaltype.eu/hacking
***
https://thedigitalreview.com/issue03/hacking/begin/index.html
Celeste, a Sísifo agradece muitíssimo a sua colaboração J
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