Revista Sísifo. N° 16, Vol 1. Janeiro/Junho 2023. ISSN 2359-3121. www.revistasisifo.com
Brincadeira e Jogo
Lourenço Fernandes Neto e Silva
Doutor em Filosofia
pela Universidade de São Paulo. Especialista em história do método na
modernidade. Contato: lourencofnsilva@gmail.com
Resumo: Este artigo parte de uma distinção entre os conceitos de
brincadeira e jogo como esboçada pelo antropólogo David Graeber em suas
discussões a respeito da lei, da ordem e da burocracia. Expomos e analisamos a
distinção em seu caráter filosófico, atinente à questão do respeito ou da
transgressão às regras, em seus aspectos epistemológicos e políticos,
recorrendo a diversas outras fontes para discutir sua pertinência e explorar
experimentalmente sua fecundidade. Porém, a análise do problema nos leva a um impasse
na definição dos termos, uma vez que as categorias parecem deslizar umas às
outras de forma imprevisível. Após reconhecer a presença simultânea da
brincadeira e do jogo nas atividades humanas, encontramos o próprio uso da
linguagem como jogo/brincadeira paradigmático. Finalmente, discutimos
brevemente como consequência qual ou quais seriam as disciplinas próprias a
tratar desses conceitos e dessas discussões, uma vez que elas parecem desafiar
a lógica.
Palavras-chave: Jogo. Brincadeira. Regra. Ordem. Linguagem.
Abstract: This article starts from a distinction between two concepts of play as
outlined by the anthropologist David Graeber in his discussions of law, order
and bureaucracy. We expose and analyze this distinction in its philosophical
character, amounting to the question of respect or transgression of rules, in
its epistemological and political aspects, drawing on several other sources to
discuss its pertinence and experimentally explore its fruitfulness. However,
the analysis of the problem leads us to an impasse in the definition of terms,
since the categories seem to slide into each other in an unpredictable way.
After recognizing the simultaneous presence of both conceptions of play in
human activities, we find language’s usage as the paradigmatic game/play. Finally,
we briefly discuss, as a consequence, which discipline(s) would be appropriate
to tackle these concepts and discussions, since they seem to defy logic.
Keywords: Game. Play. Rule. Order. Language.
Introdução: Brincadeira e Jogo
A seguirmos indicações do antropólogo
David Graeber em seu livro The Utopia of Rules (2015), conjunto de
ensaios ainda sem tradução ao português, as discussões filosóficas em torno do
jogo padecem desde o começo de uma dificuldade própria à língua, uma vez que to
play, em inglês, jouer, em francês, ou spielen, em alemão,
são todos verbos que contêm uma ambiguidade similar, e inexistente em
português, entre os sentidos de brincar e jogar. Neste texto argumentamos em
favor da distinção proposta entre os dois termos, partindo da reconstrução da
argumentação de Graeber sobre a questão.
O livro, composto de uma introdução,
três ensaios e um apêndice, não tem no jogo seu tema principal, mas parece, em
vez disso, se aproximar lentamente e como ao acaso deste problema. Se o livro
se concentra no problema político da burocracia, o problema das regras pervade
então a discussão, em especial na questão política do nosso aparente desejo por
elas. Assim, fenômenos como o endurecimento das regulações, a proliferação de
novas regras ou as punições para quem viola o que se estabeleceu pertencem ao
tema próprio do autor, reconhecido em suas contribuições às ideias anarquistas.
Entretanto, o título nos convida a pensar em uma “utopia das regras”. É
relevante notar que este é o título do livro, mas também o título do terceiro
dos ensaios (pp.149-205), e finalmente também da quarta seção deste último
(p.190ss.). Surpreendente, enfim, é descobrir que o tema da seção, o referente
mesmo dessa utopia, é o jogo. Ali, Graeber
introduz o problema:
“First of all, what is the relationship between play and games? We play
games. So does that mean play and games are really the same thing? It's
certainly true that the English language is somewhat unusual for even making
the distinction between the two – in most languages, the same word covers both.
(This is true even of most European languages, as with the French jeu or
German spiele.) But on another level they seem to be opposites, as one
suggests free-form creativity; the other, rules.” (GRAEBER, 2015, p. 190).[1]
Parece-nos, portanto, que há um uso
transitivo do verbo to play, cujo objeto exprime um jogo a ser jogado, e
um uso intransitivo, em que a ação existe por si mesma. Essa distinção de
Graeber pode ser vantajosamente vertida ao português nas noções respectivas de
jogar (um jogo) e de brincar. Enquanto “jogar” remete necessariamente ao jogo,
compreendido como um enquadramento específico e delimitado de regras estritas,
mas que vigoram apenas temporariamente (GRAEBER, 2015, p.190), “brincar”
costuma trazer a ideia de travessura, insolência ou transgressão que Graeber
encontrava na segunda acepção do termo em inglês. Dessa forma, nos livramos da
ambiguidade, e podemos nos valer a) de um termo que diz respeito ao lúdico
enquanto submissão a regras, o jogo, e b) de um outro que diz respeito
ao lúdico enquanto transgressão ocasional das regras vigentes, a
brincadeira. Portanto, a questão da distinção entre o jogo e a brincadeira já
se encontra bem enquadrada em meio à discussão a respeito do comportamento de
uma pessoa diante das regras, quer impostas, quer a impor.
Apesar da pertinência da distinção, é
importante apontar que nenhum dos dois polos pode existir por si mesmo. A
submissão completa a regras tem caráter apenas de princípio regulador, e
do ponto de vista moral ela pode e deve ser tratada sob suspeita. O soldado
“perfeito” só poderia ser chamado assim de forma bastante relativa. Quanto ao polo
oposto, da inexistência absoluta de regras, ele é mais frequentemente
apresentado como figuração de divindade: os deuses brincam conosco, talvez como
um gato brinca com um rato (GRAEBER, 2015, p.192). Porém, se pudermos partir do
curioso pressuposto de que a própria questão filosófica das leis da natureza
toma como ponto de partida a questão teológica da onipotência divina (cf. FUNKENSTEIN,
2018, p.98ss.), é de se pensar que, por um lado, o divino é a única força
realmente capaz de forjar regras, ao passo que as criaturas se limitam a
obedecê-las; por outro, que todo desvio das regras, sinônimo de brincadeira,
tem algo de divino, seja como anulação de uma regra vigente ou como instituição
de uma nova regra que suplanta a antiga.
Entretanto, essa compreensão da
brincadeira seria imprecisa, pois ela não se resume à mudança de regras, de
modo a ser integralmente absorvida pela alternativa acima. Afinal de contas, é
possível brincar dentro de um conjunto de regras instituídas. Esse é o cenário
mesmo de uma criança que brinca: submetida inexoravelmente ao conjunto de leis
naturais, e respeitando-as de forma estrita, ela ainda assim brinca. Esta cena
pode ser compreendida como um subconjunto de brincadeira, contido e inferior ao
conjunto superior das leis da natureza. Algo semelhante também ocorre dentro de
jogos em sentido próprio: por exemplo, o drible que, sem a intenção de chegar
ao gol, diverte o jogador às custas do adversário. Ou seja, a liberdade do
brincar não contradiz necessariamente a determinação das leis superiores. Como conjuntos
dentro de conjuntos, os humanos instituem subcampos em que vigoram regras
específicas: “um, dois, três, valendo!” - e o caráter lúdico do jogo também
depende da instituição de uma região em que regras arbitrárias vigoram. Como sub-região
do jogo de futebol, por sua vez, o drible pode ser uma brincadeira.[2]
É claro, porém, que as leis humanas, em
oposição às divinas, são passíveis de exceção e jamais saturam todas as
possibilidades, o que implica a necessidade de discutir sub-regras, instituir
novas regras, e em geral produzir leis, regulamentos, códigos, acordos. Já as
presumidas leis divinas impostas à natureza não conhecem violação; quando assim
parecer será, presumivelmente, apenas porque desconhecemos algumas regras mais
restritas, todavia instituídas desde sempre. Historicamente, seguindo manobra
semelhante, o que antes se considerava um milagre foi aos poucos (sécs.
XVI-XVIII) tendendo a ser interpretado como mero caso particular de leis
regularíssimas, mas ainda por conhecer. (cf. DASTON & PARK, 2001, pp.334–59).
De toda forma, pode-se concluir que a figuração da legalidade da natureza tem
como modelo e motivação uma analogia com ações propriamente humanas.
Entretanto, se houver mesmo uma
anterioridade das ações humanas face à figuração da divindade, isso engendra
problemas próprios, pois: acaso a criança ou o animal que brincam compreendem a
legalidade da natureza? Provavelmente não, o que torna a noção secundária em
relação ao brincar para quem o executa: “True, one can play a game; but to
speak of ‘play’ does not necessarily imply the existence of rules at all.” (GRAEBER,
2015, p.191)[3]. A possibilidade de
brincar antes de conhecer as regras, ou sequer saber que elas existem, pode ser
figurada como uma progressão temporal, do não-legal ao legal, ou do devir-lei.
Sob este ponto de vista, então, a instituição mesma de regras teria algo de
adulto, em oposição à candura infantil do brincar. Todos, ademais, podem se
lembrar de alguma situação em que crianças de idade mais avançada brincavam com
outras mais novas que, incapazes de compreender as regras de um jogo proposto,
são ao mesmo tempo excluídas e incluídas sob uma alcunha como “café com leite”.[4]
Isto é: elas participam sem que estejam lá “para valer”. Elas são e não são
parte do jogo, ao mesmo tempo.
Um outro caso, talvez mais
interessante, e mencionado por Graeber, é a de brincadeiras infantis que se
cristalizam como regras. Inicialmente, as crianças estão apenas brincando sem
objetivo claro, mas algo faz vislumbrar o começo de um jogo. As crianças se
unem e discutem, então, as regras de um possível jogo futuro, e defini-las pode
ser em si mesmo uma brincadeira. Começa a aparecer em nossa discussão mais
claramente, então, uma ambiguidade própria do par jogo-brincadeira, mas que
atacaremos diretamente um pouco adiante.
Se as regras são uma parte importante
da vida social, vimos que é possível retirar prazer e diversão tanto do
respeito estrito a elas, como ocorre mais frequentemente no jogo, quanto em sua
violação, isto é, na brincadeira. De fato, um comentário impertinente feito
numa roda de conversa pode ser rapidamente apaziguado se enquadrado como uma
“brincadeira”. Do ponto de vista antropológico, isso significaria que as regras
da interação social, em suas múltiplas nuances, podem ser dobradas ou
tematizadas no comportamento dos indivíduos através de transgressões
ocasionais. Embora não seja possível tirar uma regra geral que distinga as
brincadeiras inofensivas das de mau-gosto, é patente que este é um recurso
comum de violação lúdica das regras, que pode ser bem ou mal recebida de acordo
com o contexto e o teor da violação.
Uma pergunta adicional importante a
este assunto, que por ora nos limitamos a assinalar, é a da motivação do
jogo. De onde surge o prazer de jogar? A pergunta inicial de Graeber, devemos
lembrar, estava direcionada à burocracia: ao mesmo tempo que reclamamos dela,
ela exerce um fascínio que chega às raias propriamente do prazer. Na mesma
seção em que trata do jogo, onde explicita que, em sua concepção, “Games are
pure rule-governed action.” (GRAEBER, 2015, p.191)[5],
ele também identifica a burocracia a um jogo maligno (idem, p.190). Mas
esse prazer não poderia ser derivado exatamente do respeito às regras? Haveria
aqui então uma interseção com problemas de ordem estética, em que a beleza da
arquitetônica regular produz um prazer que incita à ação? Ou ele estaria antes
na visão do controle sobre um determinado campo de eventos? Como quer
que seja, está evidente que o mesmo prazer pode ser posto a bom ou mau uso, num
jogo inocente ou numa maligna arquitetura legal de verve kafkiana. De fato, a
própria existência da literatura de Kafka ilustra perfeitamente a transição das
promessas utópicas da burocracia ao controle distópico de regras que fogem à
racionalidade, o paradoxo prático de que é possível um uso irracional do
símbolo mesmo da racionalidade, isto é, a regra. A todo momento, e nas mais
variadas instâncias, as categorias parecem escorregar de umas às outras
imprevisivelmente.
Gostaríamos ainda de apontar, aqui, o
carnaval como problema filosófico. Neste caso, ao contrário de uma passagem progressista
do lúdico ao sério como amadurecimento, o carnaval possibilita a passagem
inversa, do sério ao lúdico, agora em meio à vida adulta e comunitária. A
irreverência própria à festividade (termo que, embora seja correntemente
sinônimo de bom-humor, remete à não-reverência, presumivelmente diante
de uma autoridade) traz em si mesma uma inversão, uma dissolução das regras
estabelecidas, ainda que momentaneamente. Ou seja, o carnaval parece o reverso
do jogo, que as institui também momentaneamente, e lembremos que se diz
comumente “brincar o carnaval”. De modo geral, o tema antropológico dos
rituais em sua ambiguidade de faz-de-conta ou de passagem ao ato está bem
estabelecido, e é mais uma vez o próprio Graeber quem aponta o carnaval como
momento propício ao começo de revoltas muito sérias (GRAEBER, 2015, p.182).
Igualmente, e para voltar a nossas experiências infantis, “brincar de lutinha” pode
ou não ser o primeiro passo para uma briga de verdade, como bem sabem os pais.
O caráter de todas essas situações pode mudar de repente, e um arcabouço lógico
e conceitual próprio a compreender este aspecto nos parece ausente.
Regras: limitação, possibilitação, metacomunicação
Acrescente-se à confusão o fato de que
as próprias regras guardam uma ambiguidade para quem as vive. Nas palavras de
Graeber (idem, p.199), elas podem ser entendidas como limitações (rules
as constraining), isto é, uma interdição que impede o que se deseja, mas
também como possibilitação (rules as enabling), na medida em que
constituem um contexto que pode ser contornado pela manipulação das próprias
regras. Afinal, as leis da física nos impedem de voar, mas também nos permitem
a invenção da asa-delta, do balão, do avião... Da mesma forma, e de modo mais geral,
ter um corpo é estar aprisionado a ele, mas também estar livre para usá-lo como
puder. O próprio desenvolvimento da habilidade motora exige a vigência
constante de leis e constrangimentos físicos muito concretos. Mas é também ao
obedecer às restrições, e forçá-las em seus limites, que é possível desenvolver
novas habilidades e abrir novos campos de ação.
Nossa intenção, a partir daqui, é
apresentar sumariamente o problema filosófico mais geral que parece estar
retratado num tal cenário. Se, como dissemos, o problema é o do devir-lei,
insere-se necessariamente o problema do tempo, ou pelo menos o das mudanças de
estados consecutivos. Se, na problemática do jogo e da brincadeira, as regras
se instituem e se dissolvem, podemos dizer que este é o problema da emergência
da forma (idem, p.192). Não se trata, porém, de uma emergência ex
nihilo, mas da contínua readaptação das formas sociais. Se tomamos a
infraestrutura legal (seja da natureza, de uma sociedade ou de uma instituição
particular) como uma questão de forma, então a mudança das regras no tempo
configura e reconfigura novas circunstâncias, que por sua vez demandarão novas
intervenções. Num jogo agonístico, por exemplo, podemos dizer que cada time
quer dar forma a seu próprio objetivo, isto é, estabelecer definitivamente a
vitória; porém, a cada lance, o cenário muda de novo e de novo, e exige mais
uma vez a intervenção do time para que leve o jogo até o que cada um considera
seu bom termo.
Poderíamos dizer, então, que o jogo e a
brincadeira são questões de sistema, isto é, de um conjunto de regras
inter-relacionadas. Mesmo a brincadeira, que parecia a ausência de sistema,
pode ser encarada como as flexões de um sistema, mesmo que desconhecido
para quem brinca. E a generalidade dessa abordagem permite transpor ao problema
do jogo-brincadeira questões mais amplas, como por exemplo o modo como se
figuram os estados do sistema e suas potencialidades, de modo a serem
posteriormente mudadas por uma ação direcionada.
Neste momento, parece interessante
introduzir a abordagem de outro antropólogo, Gregory Bateson, que em seu Uma
Teoria do Jogo e da Fantasia (1987; publicado pela primeira vez em 1955) descreve
esses dois fenômenos como um paradoxo lógico. Para o autor, a passagem crucial
do surgimento da linguagem se dá quando uma mensagem deixa de ser um sinal
automático para tornar-se algo que possa ser interpretado. O plano
superior que assim surge, que Bateson chama de metacomunicativo, diz
respeito às mudanças de caráter da situação global, e que podem ser ilustradas
por enunciados como “isto é um jogo”, “era só uma brincadeira”, ou “eu não
estou brincando”. A surpresa deste pesquisador foi descobrir que esse nível
ocorre corriqueiramente mesmo nas interações entre animais, ao passo, segundo
suas expectativas deveria ser o mais elevado de todos. Mas como isso seria
possível?
Para Bateson, apontar o que se está
fazendo como brincadeira é um enunciado metacomunicativo paradoxal. “Isto é uma
brincadeira” seria uma negativa que contém uma negativa metacomunicativa
implícita. Segundo o autor: “These actions in which
we now engage do not denote what those actions for which they stand would
denote.” (BATESON, 1987, §4, p.139)[6].
Valendo-se da análise de Bertrand Russell no texto On Denoting [Sobre a
Denotação], Bateson declara que anunciar algo como brincadeira tipifica um
paradoxo em “Teoria dos Tipos”, chamado Paradoxo de Russell ou de Epimênides. A
contradição, afinal, remete à discrepância dos níveis comunicativo e
metacomunicativo: na cena de dois cães que brincam de pega-pega, no nível
básico um animal persegue o outro; no segundo, ele de algum jeito informa que a
perseguição não é “de verdade”. Apontamos, então, a dificuldade de Bateson,
neste contexto, em distinguir claramente uma brincadeira de uma mentira. Pois a
brincadeira não é simplesmente falsa, pois costuma trazer de forma implícita,
mas clara, que se trata de brincadeira; mas, sobretudo, ela compreende como
parte fundamental a alegria da simulação. Nesse sentido, o brincar
compreende uma abertura do leque de possibilidades e de sua figuração: primeiro
como simulação, para então figurar o que seria o para-valer. Embora não
possamos nos deter no texto de Bateson, notamos que ele também aponta o ritual
e a fantasia como instâncias dignas de interesse, e de alguma forma aparentadas
ao problema da brincadeira e do jogo. A possibilidade da coexistência dos dois
níveis, entretanto, causa alguma angústia ao autor, mesmo que ele não subscreva
integralmente às análises de Russell. Ao contrário, Bateson prefere referir-se
a um hoje obscuro livro de Korzybski (1950), autor ao qual ele atribui a
distinção entre mapa e território.
Agora, a distinção mapa-território é
análoga àquela entre os níveis comunicativo e metacomunicativo. Para Bateson, a
navegação por entre níveis será descrita através de “enquadramentos” [framings]
e meta-enquadramentos, que selecionam um nível específico de referência. O
território é o atual, o nível básico, e o mapa é aquilo que se retém dele de
modo a usá-lo de uma determinada forma, o nível “meta”. Em meio a essa
problemática, temos mais uma vez a distinção entre aquilo que existe e a
compreensão que se tem disso; mas também entre o cenário concreto e as
possibilidades de ação sobre ele, particularmente quando se fala no “jogo”
seriíssimo da estratégia militar, que literalmente usa mapas para buscar
controlar territórios.
Porém, a esta altura, convém que nos
detenhamos um pouco para fornecer ao leitor, enfim, um mapa (ainda que
provisório) dos próprios temas compreendidos sob a problemática
jogo-brincadeira. Ele nos é fornecido por um excelente trabalho de Sutton-Smith
(2001), e citado por Graeber (2015, p.194), ao qual remetemos. Aqui, resumimos
sua tipologia de sete tipos de discurso com relação ao play: 1) o jogo
como progresso (brinca-se para aprender); 2) o jogo como destino ou fortuna
(jogo divino), associado à ideia de sorte e de interações com a probabilidade;
3) o jogo como poder (brinca-se para vencer uma competição, séria ou não); 4) o
jogo como construção de identidade comum (brinca-se para fazer parte da
comunidade, identificada a rituais, festividades sazonais, etc); 5) o jogo como
imaginação (brinca-se em imaginar outros cenários, sonhar acordado, etc); 6) o
jogo como individualismo (brinca-se para desfrutar de um prazer individual); 7)
o jogo como frivolidade (em viés moralista, o brincar seria mera fuga do trabalho
sério) (cf. SUTTON-SMITH, p.215). Cada um desses itens poderia ser longamente
explorado, como faz o autor de forma pormenorizada na obra a que nos referimos.
Mas esclarecemos que, se apenas listamos sua tipologia, é para fornecer ao
leitor um mapa que descreva, ao menos provisoriamente, todo o campo da
pesquisa. Os sete discursos compreendem em geral tudo o que trouxemos até aqui,
como o que Bateson chamava de fantasia (quinto tipo), e nos parece uma
tipologia suficientemente consistente para direcionar outras pesquisas.
Gostaríamos, porém, de nos deter brevemente sobre o terceiro item: o jogo como
relação de poder.
O caso paradigmático deste discurso
sobre o jogo é a competição que termina com apenas um vencedor, em particular
nos esportes. Sabemos, porém, que o espírito esportivo não é a coisa mais bem
distribuída do mundo. O chamado “espírito competitivo” pode fazer deixar de
encarar uma competição enquanto mero jogo para tratá-lo como algo mais sério.
Acreditamos, assim, que a oposição entre o sério e o lúdico é fundamental na
discussão do jogo, e que a descrição que demos aqui em termos de respeito às
regras ou sua violação na questão do jogo-brincadeira não toca, ainda, esta
questão. De fato, o sério também pode se dar tanto no respeito quanto na
violação das regras: um jogo pode ser sério, mas uma questão séria pode
ultrapassar as regras, afinal, “vale tudo no amor e na guerra”. É a segunda vez
que tocamos aqui o problema da guerra, momento sério em que, a seguirmos o
provérbio, e à revelia da tentativa de controle pelos protocolos
internacionais, aproxima-se mais do polo que inventa novas práticas ou dobra as
regras convencionais através de estratagemas. Mas o que determina que o
nível metacomunicativo se apresente como sério ou como lúdico parece-nos dizer
mais respeito ao valor que tem, para cada jogador, aquilo que está em disputa,
e se torna portanto um problema de motivação dos participantes, o que
nos afigura como outra questão supostamente extra-lógica, pois teleológica.
Porém, o verbo play + objeto não
significa apenas “jogar”. Brincar de boneca, em inglês, se diz to play with
a doll, enquanto a construção to play a doll significa, antes,
imitar uma boneca. Já tocamos na questão da simulação em Bateson, mas veja-se
que o verbo to play significa também “fazer o papel de”, num contexto
mais frequentemente teatral. A relação entre o jogo e a imitação é um caso
curioso de se considerar, vista a importância dessa atividade no aprendizado
infantil. Entretanto, recorreremos aqui ainda a outro teórico, René Girard, e
sua noção de “rivalidade mimética” como origem do jogo que se torna competição
por poder (1978, passim). Segundo Girard, o “instinto mimético” humano
nos faz imitar, naturalmente, não apenas outras pessoas, mas também outras
coisas do nosso entorno (animais, plantas, objetos). Na vida social,
entretanto, o instinto mimético pode degringolar para uma rivalidade, tão mais
forte quanto mais parecidos forem os rivais. A escalada do jogo de espelhos que
é a rivalidade mimética deságua frequentemente numa competição mais ou
menos explícita entre os rivais. Isso pode se dar em qualquer âmbito da vida
humana: é possível rivalizar a respeito de tudo. Mas tal escalada de conflito,
segundo nos parece, equivale a uma passagem do lúdico do imitar ao sério da
competição. Na mitologia grega, há histórias em que um mortal se torna
hábil numa arte, mas acaba severamente punido por perder uma competição contra
um deus: Aracne e o bordado, Mársias e a lira. De toda forma, parece-nos
razoável supor que, quanto mais intensamente sedutor o prêmio da competição,
menor a chance do fair play. Enfim, esse aspecto antropológico também é
observado por outros autores, aparecendo em Bateson sob a noção de cismogênese,
termo aliás retomado por Graeber em outras obras.
A discussão até aqui pode ter feito
parecer que as regras são ou extremamente rígidas, no caso do jogo, ou bastante
livres, no caso da brincadeira. Porém, a relação pode ser melhor compreendida
como um contínuo da rigidez à flexibilidade. Há jogos que não admitem exceção,
em particular aqueles de computador, onde nada escapa à precisão do
processador. Já um jogo de futebol obedece ao juiz, que nem por isso é
sumamente justo e atento. A criança que brinca de boneca, por sua vez, segue um
script vago baseado no que compreende como próprio ao cotidiano, mas
varia livremente em torno desse tema. Enfim, um exercício teatral de
improvisação livre parece mais aberto a todo tipo de possibilidade, embora os
versados nessa arte possam encontrar ali parâmetros um pouco mais fixos.
Pode-se dizer que há, portanto, um
contínuo entre as regras extremamente rígidas e as regras flexíveis. Um outro
trabalho recente, da filósofa e historiadora das ideias Lorraine Daston (Rules,
2021), tipifica esses dois polos como o das regras “finas” [thin] ou das
regras “grossas” [thick]. Em seu erudito trabalho, ela reconstrói a
história das regras no mundo contemporâneo, que podem ser entendidas como cada
vez mais “finas”, isto é, precisas e independentes do contexto. Seus exemplos
principais disso são historicamente recentes, como a burocracia em seu formato
contemporâneo e a computação eletrônica. As regras em geral, porém, raramente
são assim tão simples e diretas. No caso das regras “grossas”, que são a maior
parte delas, a exceção é sempre possível, e a parametrização não atinge um grau
tão alto de precisão. Daston nos fornece, entre outros, o exemplo da história
das receitas culinárias: embora “unte a forma” seja uma instrução bem simples, há
inúmeras maneiras de executá-la incorretamente. A simplicidade da instrução, e portanto
das regras dessa atividade, esconde um mundo flexível de formatos de fôrma, de
substâncias que cumprem melhor ou pior esta função, e principalmente de
habilidades e conhecimentos particulares de quem tenta executar a receita.
Essas observações contribuem a vislumbrar a “espessura” variável das regras, o
que colocará mais dificuldades à divisão entre jogo e brincadeira, muito embora
sejam vistos como polos de um contínuo, não como tipos estanques.
A própria concepção de um determinismo
completo das regras, diz-nos Daston, é informada por um contexto sociotécnico,
um fundo [background] em que vigora uma reprodutibilidade industrial tal
que a torna “natural” de se pensar (cf. DASTON, 2021, principalmente o capítulo
4). Só esse ambiente enquanto tomado como um todo integrado pode assegurar a
inequivocidade de um comando de computador ou de um formulário eletrônico. Porém, “When the background conditions for thin, rigid rules suddenly
collapse, thick, flexible rules return, no matter what the epoch.” (DASTON, 2021, p.266)[7].
Isso nos ajuda a historicizar o paradigma do jogo enquanto aquilo que não
admite exceções como uma ideia lentamente gestada, parida definitivamente no
período iluminista, e que hoje pode até parecer a muitos a única acepção
possível do termo. As regras, porém, podem ser, e frequentemente são, bem mais
flexíveis que isso.
Diremos, então, a título de conclusão
desta seção, que os conceitos de jogo e de brincadeira se entremeiam: é
possível brincar dentro do jogo, assim como é possível que a brincadeira se
cristalize num jogo de regras claras. Tanto o polo extremo do jogo, como algo
completamente regido por regras, quanto o da brincadeira, o que não tem regra
alguma, são impossíveis para a condição humana, e apenas teorizadas, desejadas,
ou simuladas de forma artificial. Porém, bem mais importante é que o caráter de
jogo-brincadeira cria uma situação lábil, que permite uma transição do
sério ao lúdico e vice-versa, donde surge sua ambiguidade inerente. “Toda
brincadeira tem um fundo de verdade”, diz a sabedoria popular, mas a verdade da
brincadeira não precisa ser diretamente apresentada. Sério e lúdico têm por
correspondentes epistêmicos respectivos o atual-provável e o meramente
possível; mas apenas se tomados enquanto categorias provisórias, jamais
definitivas, e isso pela natureza mesma da questão tratada. Porém, o que este
caráter plástico e mutável indica? E, talvez mais importante para orientar a
pesquisa: qual é o nome de seu campo próprio, isto é, a que disciplina
pertence?
Brincadeira, jogo e as disciplinas da
linguagem
De fato, perguntará o leitor, se
buscamos analisar a questão da brincadeira e do jogo sob um ponto de vista
filosófico, por que é então que nos valemos principalmente de autores oriundos
da antropologia? É uma pergunta importante, que cremos poder responder com uma
reflexão a respeito da classificação das disciplinas. Haverá aqui, então, uma
dupla questão: se é assunto filosófico, por que não é tratado pela filosofia? E
por que é tratado em vez disso pela antropologia, pela psicologia do
desenvolvimento, pelas artes, pela psicanálise, pela política…? Para responder
à questão, destacamos ainda outro aspecto interessante da discussão de Graeber
quanto ao brincar: sua aproximação entre essa problemática e o tema da gramática
(pp.197-201).
A aproximação se justifica pela
situação análoga das regras no jogo-brincadeira e na língua. Há sem dúvida uma
legalidade gramatical mínima, que permite dizer o que é um enunciado e o que
não é. Porém, suas regras são quase impossíveis de fixar de forma teórica,
ainda que haja uma espécie de sentimento gramatical em todos os falantes: as
regras encontram exceção a todo momento. De fato, a poesia figura muitas vezes
como um brincar com a língua, e outras vezes como jogos de palavras, ainda que
estes últimos sejam considerados poesia de menor valor. Encontramos na
conclusão de um dos principais trabalhos a que recorremos: “Play is like
language: a system of communication and expression, not in itself either good
or bad.” (SUTTON-SMITH, 2001, p.219)[8].
Veja-se que aqui os dois assuntos são
aproximados enquanto sistemas de comunicação e expressão. Quanto às
disciplinas, vemos então que se trata de uma semiótica, que lida com
esses aspectos para além da língua em sentido estrito (ECO, 2014). Afinal, é
possível tratar outros assuntos como se fossem linguagem. Ainda que não
se reconheça ampla ou suficientemente este fato, é esta a grande história do
Método, que passa até mesmo pela compreensão da matemática (por vezes reputada o
próprio núcleo metodológico) como apenas mais uma linguagem. A generalidade da
noção permite transferir por analogia o método de disciplina a disciplina,
sempre como se se tratasse de linguagem. Foi esse o caso dos discursos sobre as
artes no renascimento (VICKERS, 1988, pp.340–373), e em seguida das ciências
nos séculos seguintes (ONG, 1959); mas a complicada história do método
ultrapassa o escopo deste artigo. Apontaremos, em vez disso, que muitos
aspectos da questão do jogo e da brincadeira se tornam perfeitamente razoáveis a
partir do momento que assumimos este pressuposto. Para começar, podemos revelar
a esta altura que o que chamamos até aqui de “discursos” em Sutton-Smith na
verdade é chamado pelo próprio autor de “retóricas” [rhetorics]. Para
ele, a questão do play é “centrally mercurial” (SUTTON-SMITH, 2001, p.222),
centralmente mercurial. Mercúrio é deus da medicina, do roubo, do comércio, e
das mensagens em geral, ou seja, da comunicação, verdadeira ou falsa, ou
melhor, séria ou lúdica, sob regras ou não. A própria noção de “jogos de
linguagem” de Wittgenstein, tão célebre, é mencionada no Prefácio de
Sutton-Smith indiretamente, quando identifica o autor como um dos principais
impulsionadores, no século XX, de uma “abordagem retórica” (idem, p.ix).
Mas o que isso significa?
Cabe, antes, relembrarmos a
classificação do nível metacomunicativo de Bateson como um “paradoxo”, isto é,
como uma violação da lógica. Neste momento, parece-nos incontornável retornar à
distinção entre Lógica e Retórica em meio às três disciplinas tradicionais que
lidam com a linguagem, as artes sermocinales do Trivium:
gramática, retórica, dialética/lógica. O filósofo Paul Weiss escreveu, num
artigo apêndice à edição de Kobzinsky utilizada por Bateson e que consultamos (1950,
pp.737-748), que a Teoria dos Tipos de Russell era inepta, e precisava ser
abandonada. O texto se inclui num trabalho que se propõe “anti-aristotélico”.
Estaria aí então a distinção?
Provavelmente não. Afinal de contas,
Aristóteles também é autor de uma Retórica. Porém, a alcunha de “aristotélico”
ou “peripatético” de fato costuma significar aquilo que não admite nenhum tipo
de equivocidade ou ambiguidade, ao modo da preocupação daquele autor desde o
início das Categorias em separar claramente os termos homônimos (a ameaça do
proverbial “o ser se diz de muitos modos”). Barbara Cassin, em seu Elogio da
Tradução (2016), retrata o impulso classificador aristotélico como uma
investida contra qualquer tipo de equivocidade no uso dos termos. Igualmente, o
já mencionado Funkenstein caracteriza o ideal “aristotélico” de conhecimento
como o de não-equivocidade (2018, 2B2, p.35-36). Ora, ambiguidade ou
equivocidade é exatamente o que encontramos na dissonância entre os níveis
comunicativo e metacomunicativo de Bateson. Se não se trata propriamente de uma
referência ao estagirita, o uso do adjetivo é ainda coerente quando se refere
ao objetivo epistêmico de uma desambiguação universal que garanta
definitivamente o uso inequívoco da língua.
Lembramos, neste ponto, que o título do
trabalho de Sutton-Smith é, precisamente, The Ambiguity of Play, e que já
encontramos em nosso curto artigo muitas vezes o deslize imprevisível entre
categorias que se propunham distintas: do sério ao lúdico, do jogo à
brincadeira, e vice-versa. O jogo como fenômeno, portanto, arrisca pôr abaixo a
inequivocidade almejada por certa vertente logicista. Entre as três disciplinas
clássicas da linguagem, o jogo não pertenceria propriamente à lógica, senão à
retórica.
Mas vejamos, então, alguns aspectos da Retórica
que a tornam apta à análise do jogo e da brincadeira. Primeiramente, e de forma
contundente, pertence à tradição retórica a própria categoria de lei ou
regra, a questão do escopo de aplicação da regra, a definição dos casos, a
distinção dos casos, o difícil sopesar de exigências conflitantes na aplicação
da lei. Um mesmo fato pode ser colocado sob luzes diferentes a depender dos
interesses em jogo: o mesmo caso tem advogados de defesa e de acusação. É neste
contexto, aliás, que se aplicam todos os termos tradicionais para a pluralidade
de interpretações possíveis. Em Quintiliano (2015, livro VII, caps. 6-10, e em
especial o 9), a “ambiguidade” [ambiguitas, amphibolia] entre a letra da
lei e o espírito do legislador que a escreveu é um tema longamente tratado,
pertencente à tradição legal do Direito romano, e aplicada a todo tipo de
discurso judiciário.
Embora a lógica tenha “regras”, é de se
notar que elas são derivadas historicamente mais das regras da gramática, ou
melhor, da álgebra, que a certa altura do XIX, com Boole (1847), vem a ser
encarada como mais um “sistema de expressão”, para usar as palavras de
Sutton-Smith, na esteira da longa tradição de Leibniz. Nesse labirinto, a
questão não é se se trata de linguagem, mas de que modo ela pode
ser encarada como tal, e sob que ponto de vista há maior analogia entre
os jogos e a linguagem (e os jogos de linguagem!). Segundo pensamos, a resposta
está no arsenal conceitual da retórica.
Curioso, porém, é que Sutton-Smith, na
esperança de dar maior confiabilidade a suas teses, aproxima suas descrições do
play à ciência biológica. Recorrendo a
Stephen Jay Gould, ele cita:
“Precise adaptation, with each part finely honed to perform a definite
function in an optimal way, can only lead to blind alleys, dead ends, and
extinction. In our world of radically and unpredictably changing environments,
an evolutionary potential for creative responses requires that organisms
possess an opposite set of characteristics usually devalued in our culture:
sloppiness, broad potential, quirkiness, unpredictability, and, above all,
massive redundancy. The key is flexibility, not admirable precision.” (JAY
GOULD, Full House, 1996, p.44; apud SUTTON-SMITH, 2001, p.221)[9].
Onde poderia estar, então, a proximidade entre a biologia e a
retórica? Ora, nas regras mesmas. Outros filósofos da ciência médica, e em
especial CANGUILHEM (1991), enxergam no fato vital uma questão, mais uma vez,
de instituição de regras de funcionamento. A fisiologia de um animal é
aqui o exemplo perfeito: cada ser humano tem uma pressão arterial específica,
mas todos se esforçam em manter a sua própria tanto quanto possível a fim de
evitar a morte. Para Canguilhem, a normatividade, instituição de normas, é o
fato básico da própria vida em geral. Mesmo a ameba institui regras e, através
delas, escolhe, pois busca certas coisas e evita outras. Isso evidencia que as
características retóricas contribuíram inadvertidamente ao avanço inclusive das
ciências que consideramos pacificamente dignas deste nome. Como traço
evolutivo, o ser vivo deve manter suas regras, mas não pode instituí-las de
forma absolutamente estrita, sob pena de limitar suas próprias possibilidades. Para Canguilhem, está aí a própria definição de saúde: “What
characterizes health is the possibility of transcending the norm, which defines
the momentary normal, the possibility of tolerating infractions of the habitual
norm and instituting new norms in new situations.” (CANGUILHEM, 1991,
pp.196-197)[10]. A vida, sob essa
perspectiva, é ela mesma um jogo, de modelo gramatical, entre a repetição das
regras herdadas e da busca (lúdica?) por variações, ou seja, pela ampliação das
possibilidades. Este talvez seja um começo de resposta possível à perplexidade
de Bateson diante do nível metacomunicativo dos animais. Para que possa
brincar, o animal precisa gostar de se movimentar. A alegria da vida diz
respeito também às potencialidades que ela abre. Estar vivo não é mover-se, mas
poder mover-se, estar inclinado a mover-se, e ter prazer neste ato. A natureza
brinca com os animais e com as crianças para ensiná-las o que é sério, e a
brincadeira é apenas um degrau nesta caminhada: porém, a partir do que já
vimos, é possível dizer que esta é apenas uma das figurações possíveis da
transição entre o sério e o lúdico.
Como quer que seja, surge mais uma vez de forma clara aqui o
problema da motivação ou da teleologia. Por que não há regras fixas que
definam onde acaba o lúdico e começa o sério, ou vice-versa? Quando o jogo vira
brincadeira, e a brincadeira, jogo? A tradição retórica e gramatical já sabe,
desde a antiguidade, que não é possível interpretar um texto abstraindo da
intenção do autor. Essa incontornabilidade da teleologia na linguagem é outro
aspecto que dificulta classificar o jogo e a brincadeira sob a alcunha
estritamente “lógica”, que normalmente diz respeito ao caráter exclusivamente
formal das relações. Nesse sentido, o nexo fundamental de um jogo ou
brincadeira é seu objetivo, e é por isso que todo livro de regras começa por
ele. Ora, se a filosofia acadêmica quis expulsar esse tipo de concatenação de
seus próprios limites, ele foi plenamente aceito em todas as demais disciplinas
que costumamos classificar como “humanas”. O arsenal retórico pervade muitas
ciências, e mesmo a biológica, mas ele é mais saliente justamente na
antropologia, lugar em que parece ter se refugiado a questão do jogo e a maior
parte de suas instâncias. Ela existe, porém, também em outras áreas. O próprio
Huizinga, considerado pioneiro na investigação do jogo, foi um dos primeiros autores
da chamada “história social”, que incorpora à história aspectos da antropologia
e da sociologia. De forma mais geral, os aspectos retóricos das ciências
humanas vêm sendo apontados e valorizados por gerações mais recentes de autores
(cf. ROBERT & GOOD (eds.), 1993).
Um grande estudioso da tradição retórica e de seu significado
contemporâneo, Brian Vickers, chama a atenção à correspondência entre retórica
e vida (VICKERS, 1988, pp.1-6). Ele nos diz que os fatos desse uso interessado
da linguagem surgem, antes de mais nada, na vida cotidiana, e que apenas o
desejo posterior de teorização é que a transforma numa disciplina. Mas esse é
um fato comum das três artes do trivium, como sabemos: as línguas
funcionam gramaticalmente desde antes dos primeiros gramáticos. Os lógicos
igualmente se comprazem em saber melhor que as demais pessoas como elas mesmas
pensam. Igualmente, a retórica apenas teoriza e sistematiza fatos do uso da
linguagem, ou melhor, dos sistemas semióticos, que preexistem à disciplina em
sentido estrito. De modo geral, a ambiguidade ou a plurivocidade de sentidos é
um fato fundamental da língua, como reconhecido por Saussure e amplamente
disseminado na tradição estruturalista do século XX.
Finalmente, como expressão do impulso contrário, o da redução de
tudo a regras estritas, vemo-lo análogo a outras tendências contemporâneas,
como o próprio logicismo e a burocratização analisada por Graeber, ambos
contidos no sonho das regras extremamente “finas” no sentido de Daston, isto é,
diretas e que prescindam de especificações ulteriores. O antropólogo de que
partimos neste texto chega a enunciar abertamente a tese de que todo o esforço
burocrático se compreende como surgido do medo da brincadeira (GRAEBER, 2015, p.193),
e cristaliza-se no jogo maligno da burocracia, um expediente que sequer logra
realmente eliminar qualquer tipo de exceção, transformando-se em apenas outra
forma de exercício livre do poder por uma casta restrita. Porém, de forma
esperançosa e em espírito anarquista, se a burocracia é um jogo, então ela
vigora necessariamente apenas numa região circunscrita e de forma temporária;
o que por si mesmo indica a superação da forma hiperburocratizada vivida na
política atual.
Alguns dos temas deste artigo foram esboçados apenas como
brincadeira, isto é, como abertura de um leque de possibilidades. Se as
inserimos, é pela certeza de que como brincadeira elas já valem algo, mas ainda
que poderão ganhar mais força se tomadas como jogo por leitores futuros, mesmo
que esse jogo se proponha agonista e se dê contra nós. Quanto ao escopo da
Filosofia como disciplina, por sua vez, ela nos parece melhor afigurada como a
enciclopédia completa dos conhecimentos, e por isso não há razão para que a
restrinjamos ao que se considera “lógico” em sua acepção mais estrita. Dessa
forma, libertamo-nos para recorrer a autores de outras áreas, desde que com um
objetivo claro. Pode ser, enfim, que as coisas mais sérias não passem de um
jogo diabólico, e que a brincadeira é que seja coisa séria.
Referências
BATESON, Gregory: A Theory of Play and
Fantasy [1955], In: BATESON, Gregory: Steps to an Ecology of Mind. 2ª
edição. Northavle, New Jersey: Jason Aronson Inc., 1987, p.138-148.
BOOLE, G.: The Mathematical Analysis of
Logic. Londres: 1847.
CANGUILHEM, Georges: The Normal and the
Pathological. Nova York: Zone Books, 1991.
CASSIN, Barbara: Éloge de la
traduction: compliquer l'universel. Paris: Fayard, 2016.
DASTON, Lorraine: Rules: A Short
History of What We Live By. Princeton University Press, 2022.
DASTON, Lorraine, & PARK, Katharine: Wonders
and the Order of Nature, 1150–1750. Nova York: Zone Books, 1998.
ECO, Umberto: Tratado Geral de Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2014.
FUNKENSTEIN, Amos: Theology and the
Scientific Imagination, from the Middle Ages to the Seventeenth Century (2ª
edição). Princeton UP, 2018.
GIRARD, René: Des choses cachées depuis
la fondation du monde. Paris: Grasset et Fasquelle, 1978.
GRAEBER, David: The Utopia of Rules, or
Why We Really Love Bureaucracy After All, In: GRAEBER, David: The Utopia of
Rules: On Technology, Stupidity, and the Secret Joys of Bureaucracy.
Londres: Mellville House, 2015, p. 149-205.
ONG, Walter J.: Ramus, Method and the
Decay of Dialogue: From the Art of Discourse to the Art of Reason. Harvard University
Press, 1958.
QUINTILIANO, Marco Fábio. Instituição Oratória. 4 tomos.
Campinas: Unicamp, 2015.
ROBERTS, Richard H., & GOOD, James M.M.
(eds.): The Recovery of rhetoric: persuasive discourse and disciplinarity in
the human sciences. University of Virginia Press, 1993.
SUTTON-SMITH, Brian: The Ambiguity of
Play. Harvard University Press, 2001.
VICKERS, B.: In Defence of Rhetoric.
Oxford: Clarendon Press, 1989.
WEISS, Paul: The Theory of Types, in:
KORZYBSKI, Alfred: Science and sanity: an introduction to non-Aristotelian
systems and general semantics. Lakeville, Connecticut: International
Non-Aristotelian Library Publishing Company, 1950.
[1]
“Em primeiro lugar, qual é a relação entre play e jogos? Nós
jogamos [play] jogos. Isso significa então que play e jogos são
de fato a mesma coisa? É verdade que a língua inglesa é um pouco imprópria para
sequer distinguir as duas - na maior parte das línguas, a mesma palavra cobre
os dois sentidos. (Isso vale mesmo para a maior parte das línguas europeias,
como no francês jeu ou no alemão spiele.) Mas, num outro nível,
eles parecem opostos, pois um sugere uma criatividade de formas livres, e o
outro, regras.” (tradução nossa, como
todas as deste artigo, exceto indicação em contrário)
[2]
Agradeço o apontamento do exemplo do drible ao amigo Pedro Nagem.
[3]
“É verdade que se pode jogar [play] um jogo; mas falar em play
não implica necessariamente a existência de regras.”
[4]
É provável que diferentes regiões brasileiras tenham diferentes expressões para
designar essa situação, como por exemplo “carta branca” – mas isso seria um
trabalho propriamente antropológico que ultrapassa nossas pretensões.
[5]
“Jogos são ações puramente governadas por regras.”
[6]
“As ações de que participamos agora não denotam o que denotariam os
significados dessas ações.” (tradução nossa)
[7]
“Quando as condições de fundo das regras rígidas e finas entra em colapso de
repente, retornam as regras grossas, independentemente da época.”
[8]
“O jogo é como uma linguagem: um sistema de comunicação e expressão, nem bom
nem ruim em si mesmo.”
[9] “Uma adaptação precisa, com
cada parte finamente afiada para executar uma função circunscrita de forma
ótima, só pode levar a becos sem saída e à extinção. Em nosso mundo de
ambientes que mudam de forma radical e imprevisível, um potencial evolutivo
para respostas criativas exige que os organismos tenham um conjunto oposto de
características, em geral desvalorizado em nossa cultura: desleixo, potencial
amplo, estranheza, imprevisibilidade e, acima de tudo, redundância gigantesca.
A chave é a flexibilidade, não uma precisão admirável.”
[10]
“O que cararacteriza a saúde é a possibilidade de transcender a norma, que
define o momentaneamente normal; a possibilidade de tolerar infrações à norma
habitual e instituir novas normas em novas situações.”
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