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O primado da memória entre as potencialidades da alma, na busca do conhecimento de Deus, segundo Santo Agostinho

 

Revista Sísifo. N°15, Vol. Único 2022. ISSN 2359-3121. www.revistasisifo.com

 

 

 


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Luccas de Amorim Rêgo Cavicchioli.

Graduando em Filosofia pra UFPE. E-mail: l.amorim.adm@gmail.com



Prof. Dr. Marcos Roberto Nunes Costa.

Doutorado em Filosofia pela PUCRS, Pós-doutorado em Filosofia pela Universidade do Porto, professor efetivo do Departamento de Filosofia da UFPE. E-mail: marcosnunescosta@hotmail.com



Resumo: Santo Agostinho insere-se numa tradição de estudos acerca do conhecimento da alma e Deus que se segue desde os filósofos pré-socráticos, sendo especialmente marcada pelas obras de Platão e Aristóteles. O tema figura na sua obra desde seus primeiros escritos, no entanto, é em suas Confissões que aparece, circunscrito, a importância da memória, nosso objeto de estudo aqui. Ao estudar a memória, Agostinho identifica que há nela objetos de naturezas distintas, alguns como imagens de coisas que chegaram a ela pelas portas dos sentidos, outros que parecem ter sua existência efetiva na própria memória. Nosso estudo, portanto, perscruta os tipos de objetos presentes na memória e sua atuação na formação de uma teoria do conhecimento. Destacados estes objetos, verificamos que, na composição daquilo que a alma alcança, em termos de objetos, encontra-se uma completa recusa de reduções racionalistas ou empiristas, facultada por uma ontologia dos tipos de objetos encontrados na memória.

Palavras-chave: Agostinho. Memória. Alma. Deus. Conhecimento.


Abstract: Saint Augustine is part of a tradition of studies about the knowledge of the soul and God that follows from the pre-Socratic philosophers, being especially marked by the works of Plato and Aristotle. The theme appears in his work since his first writings, however, it is in his Confessions that the importance of memory appears, circumscribed, our object of study here. When studying memory, Augustine identifies that there are objects of different natures in it, some as images of things that reached it through the doors of the senses, others that seem to have their effective existence in memory itself. Our study, therefore, scrutinizes the types of objects present in memory and their performance in the formation of a theory of knowledge. Highlighting these objects, we find that, in the composition of what the soul reaches, in terms of objects, there is a complete refusal of rationalist or empiricist reductions, provided by an ontology of the types of objects found in memory.

Keywords: Augustine. Memory. Soul. God. Knowledge.







Introdução


O problema da alma é algo antigo e recorrente na história da filosofia. Na antiguidade, Platão já nos apresentava a alma como imortal, fonte da vida e do movimento do corpo. Em sua República, ele indica quais as potências da alma, sendo elas a concupiscível, a irascível e a racional, esta última, a mais relevante (cf. ABBAGNANO, 1998). No Banquete, o filósofo convida a alma humana a elevar-se através de “aproximações sucessivas”, i.e., em níveis, desde a beleza de um único corpo até a contemplação da beleza em si mesma (cf. ABBAGNANO, 2001).

Assim como Platão, Aristóteles nos apresenta uma teoria da alma; nela, a alma é concebida a partir de uma divisão tripartide de suas funções: nutritiva, sensitiva e racional. Tal esquematização das funções, apresentadas no peri psychês, é também categorização da natureza, já que apenas as plantas apresentam a primeira parte da alma, os animais apresentam as partes nutritiva e sensitiva e apenas o homem tem as três partes. Entretanto, ao contrário de Platão, Aristóteles considera a alma como entelechéia (perfeição ou ato) do corpo e, que se encontram intrinsicamente unidos entre si, constituindo a famosa “unidade substancial alma-corpo” aristotélica (cf. VAZ, 1991, p. 38-40).

Plotino, por sua vez, buscando um caminho intermediário entre Platão e Aristóteles, apresenta as almas singulares como partes da Alma do Mundo, que é a terceira emanação do Uno1. Para ele, assim como a Alma do Mundo ordena e embeleza todo universo, a alma individual deve ordenar e embelezar o corpo que o anima (cf. ABBAGNANO, 1998). Assim como Platão, Plotino descreve esse caminho de ascensão da alma em três estágios distintos:

O primeiro que consiste na passagem do corpóreo ao incorpóreo, o segundo [...] em proceder passo a passo na esfera do incorpóreo, e o terceiro [...] no termino do processo, [...] a união estática da alma com o Absoluto (REALE, 1987, p. 568).

Finalmente, Santo Agostinho, autor em estudo neste artigo, insere-se nessa longa tradição de pesquisas filosóficas sobre a alma. Como herdeiro da tradição greco-romana, tal é a importância do tema em suas reflexões filosóficas que, no diálogo Solilóquios, uma de suas primeiras obras escritas no “retiro de Cassísiaco”2, chega ao ponto de afirmar que queria conhecer apenas duas coisas em suas investigações: “Deus e a alma” (AGOSTINHO, Sol., I, 2.7). Dentre as questões internas que orientam as discussões sobre a alma em Agostinho, destacamos três que se encontram interrelacionas: a estrutura psíquica da alma, suas potencialidades; e, a última, em especial, merece um estudo mais detalhado, a memória, conceito este que será nosso principal objeto de estudo.

Depreende-se dessa consideração aurida dos primeiros parágrafos a centralidade desta faculdade (ou potência) na alma humana, visto que se alça à memória na procura de Deus, o ens realissimum, como também é onde, paradoxalmente, “armazena-se” os objetos conhecidos, imaginados ou qualquer um que pela alma tenha passado, donde se depreende sua posição determinante frente a questão: “quem sou?”

Durante suas investigações, Agostinho distingue na alma objetos de diferentes naturezas, tais como: objetos sensíveis (ou ao menos egressos na memória pelas “portas da sensibilidade”) e objetos não sensíveis, ou inteligíveis, os quais, propriamente, só existem na memória, tais como números ou as regras da gramática.

Procuraremos mostrar, no limite de nossas competências, a natureza da alma e a distinção dos objetos mnemônicos descritos por Agostinho. Em seguida, discutiremos a natureza desses conjuntos de objetos da memória pelas suas diferenças específicas (i.e., essenciais), como seu gênero, de modo a compreendermos por que são todos objetos de uma só memória, e de que maneira esta concorre como potência da alma humana, justamente, a potência que permite ao indivíduo saber de si mesmo e de Deus.


1 A estrutura psíquica da alma em Santo Agostinho


1.1 “Tipologias de almas”


Embora, ao falar acerca da alma humana, Agostinho use, geralmente, o termo alma em sentido genérico, em alguns momentos, o filósofo é levado a falar em mais de um tipo, partes ou conceitos de almas, com potencialidades distintas, as quais chamaremos aqui de “tipologias de almas”. Este fato levou Étienne Gilson a afirmar que, no que concerne ao conceito de alma, “a terminologia de Agostinho […] é flutuante” (2007, p. 95). Para Ricardo Lima, não significa que devamos “considerar a terminologia agostiniana incerta e duvidosa – o que de fato não é – mas, antes, inconstante e variável” (2015a, p. 6), e isto é perfeitamente justificável, diz o mesmo comentador, uma vez que:


a terminologia agostiniana flutua conforme a pretensão ou intuito de apresentar e/ou tornar compreensível uma determinada ideia ou conceito. Daí porque, quando Agostinho precisa explicar ou definir algum aspecto particular da alma, ele é levado a utilizar um determinado termo; em outros momentos, quando precisa apresentar ou fazer com que a noção seja compreendida sob outro aspecto, Agostinho utiliza outro termo (Ibid., p. 7)3.

Uma primeira “tipologia de almas” que encontramos nas obras agostinianas da juventude tem como referência a classificação tripartida de almas da tradição aristotélica, à qual Agostinho tomou conhecimento através de Cícero4.

Assim, já no diálogo Sobre a Potencialidade [ou Extensão] da Alma (De Quantitate5 Animae), uma obra da juventude, e a primeira em que trata especificamente da questão da alma, Agostinho dar-nos notícias de três tipos, ou melhor, de três níveis, graus ou funções da alma no homem, responsáveis, respectivamente, pelas atividades nutritivas, sensitivas e racionais6:

A alma, como podemos ver em todos os seres humanos, vivifica com sua presença este corpo terreno e mortal, ela o unifica, e o mantém organizado como corpo vivo, e não permite que se dissolva nos elementos de sua composição originária. Faz com que os alimentos sejam igualmente distribuídos na conservação de todo o organismo, conserva a harmonia e proporção nos membros, não só em aparência, como no crescimento e reprodução [...]. Mas estas coisas podem ser entendidas como comuns aos homens e às plantas (= vida vegetativa), pois vemos e sabemos que as espécies vegetais conservam suas estruturas, também se alimentam, e reproduzem segundo a sua espécie (De quant. an., XXXIII, 70).Suba mais um pouco e contemple o poder da alma em relação à vida sensível, onde o viver é manifesto de modo mais evidente [...]. Concentra-se a alma no tato, e por meio dele sente e identifica o quente e o frio, o áspero e o suave, o duro e o macio, o leve e o pesado. E saboreando, cheirando, ouvindo e vendo, distingue diferenças inúmeras de gostos, cheiros, sons e formas. Apetece ali o que lhe agrada à natureza corporal, repelindo do que desagrada [...] ninguém pode negar que os [animais] irracionais também fazem estas coisas sensíveis (vida sensível) (Ibid., XXXIII, 71).Suba mais um grau, e chegue ao terceiro, próprio do homem. Pense na lembrança de coisas inumeráveis, não decorrentes apenas do costume, ou dos hábitos repetidos, mas da intenção aplicada nas coisas intencionalmente pretendidas, e na conservação de tantas coisas obtidas. São muitas variedades de artes e técnicas, no cultivo dos campos, na construção de cidades, e realizações de todos os tipos de grandezas produzidas (Ibid., XXXIII, 72).



Na continuidade do supramencionado diálogo, a esses três níveis de operações ou níveis, Agostinho acrescenta outros quatro, desta feita, apenas de ordem mística, perfazendo sete graus de magnitude, em que a alma cresce do ponto de vista moral, culminando com a visão e contemplação da Verdade – Deus, a saber:

[...] indo de baixo para cima, o primeiro grau, por uma técnica pedagógica, é a animação (animatio); o segundo, a sensação (sensus); o terceiro, a arte (ars); o quarto, a virtude (virtus); o quinto, a tranquilidade (tranquillitas); o sexto, o ingresso (ingressio); o sétimo, a contemplação (contemplatio) (Ibid., XXXV, 73).

Entretanto, estes quatro novos níveis não formam uma nova divisão da alma, mas são desdobramentos do terceiro nível da divisão triádica anterior – da alma racional (animus), conforme veremos mais adiante.

Nas demais obras agostinianas, é comum, por um lado, reduzir as três supracitadas nomenclaturas greco-romanas a apenas duas: anima e animus7, e, por outro lado, ampliar ainda mais esses conceitos, em que cada um deles sofrerá divisões internas, de acordo com suas potências ou faculdades.

Quando se refere aos dois primeiros supracitados tipos ou níveis da alma da tradição greco-romana – nutrição e sensitividade –, Agostinho utiliza genericamente o termo latino anima, responsáveis, respectivamente, pelas funções de 1. animação/vivificação, nutrição e reprodução do corpo (nos vegetais, animais e homens) e 2. sensitividade (nos animais e homens).

No primeiro caso – da nutrição, alma é sinônimo simplesmente de vida, daí, no tratado Sobre as Duas Almas, contra os Maniqueus, Agostinho dizer que, até o animal mais vil, a mosca, por exemplo, possui este primeiro tipo ou nível de alma:

E se, aqui, por demais agitados, tivessem me perguntado, se acaso eu não pensava que também a alma da mosca era superior a esta luz [luz solar], eu lhes teria respondido: certamente. E o fato de a mosca ser pequena não me aterroriza, antes, sustenta a minha ideia o fato de que ela possui vida (De duab. an., contra man., I, 4).

No caso da sensitividade, por sua vez, embora ao se referir especificamente aos animais irracionais, embora estes já se distingam dos vegetais pela sensação, que é a capacidade de apreender imagens do mundo sensível8 e armazenar na memória. Entretanto, neste caso, a alma continua no nível da anima, já que os animais ainda não são capazes de reflexão, pensamento ou raciocínio (razão). Trata-se, pois, de uma espécie de “força instintiva ou estimativa”9, natural, da alma – anima, daí, Maria Rita Leal preferir chamar a sensação, neste nível, de “percepção corporal” (1960, p. 67), dada a sua íntima relação (naturalidade) com os sentidos, diz ela, “que é, pois, a percepção, senão o órgão dos sentidos sendo informado (recebendo a forma) pelo objecto recebido?” (Ibid.), conceito este que ela justifica citando o próprio Agostinho: “o corpo […] gera a forma, ou seja, a semelhança do corpo recebido, a qual se realiza no sentido, ao percebermos (vermos) o objecto” (De Trin., XI, 2, 3).

De qualquer forma, como ressalta José Carlos Miranda, mesmo ainda estando no nível da sensitividade, “na esteira aristotélica, S. Agostinho não deixa de considerar a memória no âmbito do conhecimento sensível” (2001, p. 227), estendendo-a até os animais irracionais10.

Aqui, pelo fato da alma do homem [anima] ter também esta potência “instintiva ou estimativa”, Agostinho o chama, neste nível, de “homem exterior”, conforme vemos no tratado Sobre a Trindade:

[...] tudo o que temos na alma em comum com o animal dizemos com razão que pertence ao homem exterior. O homem exterior não é apenas definido pelo seu corpo, mas também por certa manifestação de vida que confere vigor a todas as articulações e sentidos corporais, instrumentos esses da percepção do mundo exterior. E quando as imagens percebidas pelos sentidos e fixadas na memória são revistas mediante a recordação, elas também referem-se ao homem exterior. Em todos esses pontos não estamos distantes dos animais, a não ser pela atitude natural de nosso corpo: eles são curvados para o chão, nós somos eretos (De Trin., XII, 1, 1).

Outrossim, em alguns momentos, Agostinho chamar a esse primeiro nível de percepção da alma/anima – a sensação, com seus sentidos corporais responsáveis pela captação dos objetos sensíveis, de “lux, visio ou oculus corporalis ou animalis”. No entanto, quando Agostinho se refere à faculdade sensitiva, especificamente, no homem, esta passa a ser sinônimo de spiritus, a qual é a parte mais elevada da anima humana, responsável não só pela formação das imagens dos objetos sensíveis a serem armazenadas na memória, a exemplo dos demais animais, mas também de prepará-las para os momentos seguintes da reflexão.

Tais aspectos levam Agostinho a dizer no tratado Sobre o Gênesis ao Pé da Letra, que “existe em nós alguma natureza espiritual onde são formadas as semelhanças das coisas corporais; que quando tocamos em algum objeto pelo sentido do corpo, então imediatamente sua semelhança [imagem] é formada no espírito e armazenada na memória” (De Gen. ad. litt., XII, 23, 49).

O spiritus é, destarte, o que faz com que a sensação no homem seja algo mais elevado do que nos outros animais, ou pode ser dito como sendo a parte superior da anima, que funciona como intermediária, ou ainda considerado ser aquilo que estabelece a ponte com a mens/ratio hominis/intelligentia, que é, por sua vez, o primeiro nível do momento seguinte, do animus, sendo o último elemento dessa tríade – a intelligentia, que representa o elo com o intellectus, que é o último nível do animus, conforme veremos mais adiante.

Em síntese, o spiritus está intimamente ligado, ou é o elo entre os dois tipos de almas: por um lado, é o último nível da anima, uma espécie de “faculdade instintiva ou estimativa”, natural, como falamos anteriormente, capacitando a alma à sensação, através da qual são formadas as imagens dos objetos sensíveis e armazenadas na memória, e nisso o homem se iguala aos demais animais. Por outro lado, ele é o primeiro nível do animus, embora ainda inferior a mens/ratio hominis/intelligentia, conforme vemos numa passagem no tratado Sobre o Gênesis ao Pé da Letra: “A profecia pertence mais à mente que ao espírito, o qual em sentido próprio é só uma qualidade da alma, inferior à mente, na qual se representam as semelhanças das coisas corporais” (De Gen. ad litt., XII, 9, 20).

Por conseguinte, como ressalta Saturnino Alvarez Turienzo, Santo Agostinho “insiste que alma e espírito não formam duas coisas ou substâncias distintas. A única substância, ao lado corpo, é a alma” (1988, p. 138). Em outras palavras, do ponto de vista da potencialidade, há vários tipos de almas, do ponto de vista da substancialidade, uma única alma. O espírito é apenas um dos níveis da alma.

Ao referir-se à alma, no terceiro sentido da divisão tripartide greco-romana – a alma racional, Agostinho usa genericamente o termo animus, que é a parte da alma relacionada às realidades intelectivas ou do raciocínio11. E esta – o animus –, apenas o homem a possui, além das anteriores, e embora o homem já se diferencie dos animais irracionais pelo spiritus que, como vimos, é a parte mais elevada da anima, precisamente, o animus que o torna superior aos demais seres, conforme diz o tratado Sobre a Trindade:

Os animais também podem perceber através dos sentidos do corpo os objetos materiais colocados no mundo exterior, lembrar-se deles, depois de impressos na sua memória, desejar entre eles os que lhe são úteis e fugir dos que lhe são nocivos.

[...] contudo, é a uma função mais alta da alma que pertence a possibilidade de fazer juízo a respeito dessas realidades corporais, segundo razões incorpóreas e eternas. Essas razões, se não estivessem acima da mente humana não seriam imutáveis. Entretanto, se elas não tivessem nenhuma ligação com nosso ser, que lhes é submisso, não poderíamos emitir juízo algum a respeito daquelas realidades corporais. Ora, fazemos juízos sobre tais realidades, baseados na razão de suas dimensões e figuras, e cuja razão nossa mente reconhece como imutável (De Trin., XII, 2,2).

A alma animus, por sua vez, comporta duas (ou três) partes, funções ou conceitos, de acordo com suas faculdades. Primeiro, é correlata ao termo mens/ratio hominis/intgelligentia, que é o primeiro nível ou parte da alma capaz das atividades intelectivas ou cognitivas. Ela é a alma da reflexão, da razão (raciocínio), do pensamento ou da inteligência, daí muitas vezes aparecer como sinônimo de ratio hominis ou intelligentia, responsável pelo exercício das atividades ou artes práticas, das ciências, das quais fala Santo Agostinho no diálogo Sobre a Potencialidade (ou Extensão) da Alma, ao descrever o terceiro grau da alma, denominando de ars:

Ergue-te, agora, ao terceiro grau, o qual é próprio do ser humano, e pensa na memória das inumeráveis coisas, das inveteradas pelo hábito, mas gravadas e retidas pela reflexão e pelos sinais, em tantas obras de artistas, no cultivo dos campos, na construção de cidades, nas variadas maravilhas de inúmeros edifícios e monumentos, na descoberta de tantos sinais nas letras […] em tantas coisas novas, em tantas restauradas […] no poder do raciocínio e da investigação […] na perícia da arte musical, na precisão das medidas, na ciência dos cálculos, na interpretação do passado e do futuro pelo presente. São grandes essas realidades e exclusivamente humanas (De quant. an., XXXIII, 73).

E tal é a importância da mens/ratio/intelligentia, que o próprio Santo Agostinho chega a usar genericamente esses termos como sinônimos de animus, e alguns comentadores a classificá-la como sendo a parte superior ou mais elevada da alma. Porém, reiteramos, a mens/ratio hominis/intelligentia é apenas o primeiro nível do animus, ou da racionalidade humana, ainda não faz parte da ratio superior, mas tão somente da ratio inferior, estando ainda relacionada ou direcionada a explicar as realidades sensíveis, ficando, portanto, no nível da ciência.

Para além da mens/ratio hominis/intelligentia, há no animus um outro elemento, função ou faculdade a que Santo Agostinho chama de intellectus – terceiro e último nível da alma humana que, irradiada pela Iluminação divina, capacita os níveis anteriores a desenvolverem suas atividades. Esta é a alma, ou parte da alma, diretamente relacionada às Verdades ou Razões eternas, e como tal é propriamente a ratio superior.

A ratio superior (intellectus) não se trata da Verdade em si e tampouco significa que ela tem as Verdades Eternas em si. Na realidade, ela é apenas o meio ou a mediadora entre a nossa mens/ratio hominis/intelligentia (a alma – animus) e as Verdades Eternas, imutáveis e universais, que as recebe de fora (de Deus), pois, sendo os seres humanos mutáveis, não podem conhecer por um contato direto as Verdades eternas, mas só por mediações, por “leis” ou “normas” racionais (razões sempiternas). A Verdade mesma é Deus, e esta a razão humana não alcança diretamente, ou por forças próprias, mas tão somente mediante a Graça divina.

Tais Verdades imutáveis, universais e eternas são impressas na alma ou na memória humana (animus) pelo próprio Deus no ato da criação (imago ou memoria Dei)12, que, mediante Iluminação Divina, torna-se apta a realizar todas as funções, atividades ou faculdades por nós demonstradas aqui, desde o spiritus até o intellectus.

Não obstante, reiteramos que, se trata de uma única e mesma alma, isto é, no homem há apenas uma alma com potências ou funções diversas. Desse modo, Marcelo Andrade ressalta que, a distinção entre as partes da alma em Santo Agostinho “não deve ser entendida como distinção de emanações ou de substâncias, mas de operações. A alma é toda ao contemplar as Verdades eternas, ao imaginar, ao pensar, ao sentir e ao animar o corpo” (2007, p. 24).


2 Os sete graus da alma em Santo Agostinho


Qual é, então, a verdadeira grandeza da alma? Qual o seu valor? Ora, o Doutor de Hipona nos explica em que consiste suas capacidades (ou potencialidades), desde a de dar vida ao corpo, até a capacidade de contemplar a Deus e unir-se todo a Ele: “quão grande é a alma, não pelo espaço de lugar e de tempo, mas pela sua força e poder” (De quant. an., XXXII, 69). A seguir, apresenta-se, um a um, os sete graus da grandeza da alma, que podem ser resumidos em: “o primeiro grau, por uma técnica pedagógica, é a animação; o segundo, a sensação; o terceiro, a arte; o quarto, a virtude; o quinto, a tranquilidade; o sexto, o ingresso; o sétimo, a contemplação” (Ibid., XXXV, 79).

O primeiro grau da alma, chamado “animação”, consiste no poder da alma de conferir unidade e ordenar o corpo. Este grau também é responsável pelas funções comuns entre os homens, animais e plantas, pois, cada um deles “se preserva, se alimenta, cresce e se reproduz” (Ibid., XXX, 70). É a alma que deve vivificar todas e cada uma das partes do corpo, mas não é extensa como o corpo, ao contrário, está toda inteira em cada parte do corpo (cf. STREFLING, 2014)

O segundo grau da alma, chamado “sensação”, é a função da alma que percebe o mundo sensível. Ela é comum aos homens e aos animais, mas não às plantas, conforme indica Agostinho ao falar da “impiedade que acredita que a videira sofre quando se vindima a uva” (De quant. an., XXXIII, 71). É interessante notar que a sensação não é função do corpo, mas exclusivamente da alma. Entretanto, para o filósofo, o corpo não pode ser causa de nada na alma, visto que ele é inferior. A sensação, para Agostinho é, portanto, função ativa da alma que atenta para uma modificação no corpo (cf. STREFLING, 2014).

O terceiro grau da alma, chamado “arte”, representa a função racional do homem e, por isso, é exclusivo do mesmo. Ele inclui a capacidade de conhecer, raciocinar e produzir. Para Agostinho, “a razão julga ao sentido interior, assim como este supera e julga ao sentido exterior”, e é, poquanto, esse o primeiro grau em que a alma se volta para dentro de si (cf. STREFLING, 2014).

O quarto grau da alma, chamado “virtude”, consiste no uso correto da razão que torna o homem naquilo que foi criado para ser: imago Dei. Só a partir desse nível há mérito: “o quarto grau, no qual começam a bondade e todo louvor verdadeiro” (De quant. an., XXXIII, 73). Entretanto, para realizar esse trabalho o homem necessita da graça divina. É o grau das lutas e combates, assim como é o início do amor (cf. STREFLING, 2014).

O quinto grau da alma, chamado “tranquilidade”, é o grau em que a alma mantém-se no estado de pureza alcançado no quarto. “Uma coisa, porém, é realizar a purificação, e outra, manter-se na pureza” (De quant. an., XXXIII, 74), e é isto que diferencia o quarto do quinto grau. Neste, a alma está toda purificada e pode dirigir-se com confiança para Deus, depois de perceber com clareza sua própria grandeza (ibid.).

O sexto grau da alma, chamado “ingresso”, consiste em fazer aquilo mesmo que o quinto grau lhe possibilitou, i.e., dirigir-se com confiança para Deus, ou também “dirigir o olhar […] ao que pode ser visto” (ibid., 75). Agostinho procura explicitar a necessidade dos demais graus para alcançar-se o sexto. Ora, sendo a contemplação dessa luz o sumo bem, é natural que queiramos dirigir-nos o quanto antes para ela o nosso olhar. Entretanto, o Bispo de Hipona logo nos adverte que os que tentam fazê-lo sem antes purificarem-se são repelidos por essa luz. Ou, como ele mesmo diz nas Confissões: “o homem que publica sua mortalidade, arrastando o testemunho do seu pecado a prova de que Vós resistis aos soberbos” (Conf., I, 1, 1).

O sétimo grau da alma, por fim, chamado “contemplação”, é a visão direta da verdade mesma, que é Deus. S. Agostinho não considera como um grau propriamente dito, mas como uma “mansão” (De quant. an., XXXIII, 76), em latim “mansio”. Neste grau nossa alma considera todo o resto como vaidade e admite que nunca conheceu nada (cf. ibid.).

Em suma, sendo a contemplação da verdade o fim último para o qual o homem foi criado, é só nela que encontrará o repouso desejado. É necessário que o homem, para isso, coopere com a graça divina e utilize o seu livre-arbítrio de forma correta, tratando Deus como fim único a ser fruído e as demais coisas, por ele criadas, como meios úteis para alcançá-lo.


3 O primado da memória entre as potencialidades da alma em Santo Agostinho


No decurso de suas Confissões, Agostinho mobiliza, linguisticamente, a indicação espacial para distinguir os objetos mnemônicos, e utiliza metaforicamente a imagem de um palácio “dentro” do qual ocorrem as operações intelectuais com esses objetos, como diz o Filósofo: “Faço isso internamente [lembrar e distinguir as memórias], no enorme palácio de minha memória” (Conf., X, 8, 14). A despeito deste recurso, sabe-se com clareza que não se trata, de maneira alguma, de um espaço stricto sensu, o que seria contraditório, visto que a alma não é extensa, como já mencionamos, e como o próprio Agostinho explicitamente anuncia, quando diz que “lá está também, como num lugar mais interno que não é um lugar” (Ibid., X, 9, 16). Procuraremos evitar esse recurso linguístico para oferecer um tratamento estritamente formal, algo que nos parece permear o texto, quando o autor declara:

Pois, mesmo quando estou na escuridão e no silêncio, produzo cores em minha memória, se quiser, e distingo o branco do preto, e qualquer outra cor que queira, e os sons não se intrometem perturbando o exame daquilo que foi colhido pelos olhos, muito embora eles também estejam lá, como que latentes em outro recanto. Com efeito, posso chamá-los também, se me agradar, e logo se apresentam, e com língua inerte e garganta calada canto quanto quiser, e as imagens das cores, não menos presentes, não se intrometem e não me interrompem, enquanto trago de volta outro tesouro, que entrou pelos ouvidos (Conf., X, 8, 13 – destaque nosso).

Nossa leitura se justifica pela não interferência de uma memória sonora em uma memória visual, isto é, um objeto sonoro e um objeto visual. Na medida em que delimitamos nosso objeto, a memória, como gênero generalíssimo, temos aí que uma primeira diferença específica é a origem sensível donde decorre a espécie dos objetos mnemônicos hauridos pelos sentidos. Essa, por sua vez, tem como diferença específica o sentido que gerou certa memória, fazendo dos objetos mnemônicos sensoriais um gênero do qual a citação acima nos indica duas espécies, a saber, os sonoros e os visuais.

Ambos os quais não podem ser limitados um pelo outro, pois ainda que assista-se a uma orquestra, pode-se recordar da imagem dos músicos ou dos instrumentos, sem recordar do som, e vice-versa. Ora, disso decorre uma característica essencial do gênero dos objetos de origem sensível: são imagens de objetos que atravessaram os sentidos, mas não dos objetos que os causaram. Essa distinção será cuidadosamente reconstituída e examinada.


3.1 Memória de objetos sensíveis


Como diz o próprio Agostinho, “ali se encontram conservadas distintamente, segundo os gêneros, as sensações que entraram cada uma pela respectiva porta” (Conf., X, 8, 13). Ora, é evidente que se os objetos mnemônicos sonoros são uma espécie do gênero de objetos visuais, é, por sua vez, gênero dos diversos sons particulares, que podem ser distinguidos de diferentes maneiras. Isso nos indica que o autor tinha em vista uma distinção dessa natureza.

Ainda assim, através de diferentes portas entram na memória elementos que constituem a memória de um único e mesmo objeto. Tome-se de exemplo a memória de um cavalo; sua forma entra na memória através da visão, no entanto, o animal relincha e esse elemento, que também o constitui, entra na memória através da audição, e assim sucessivamente através dos vários sentidos, até que se constitua a memória de um objeto na (quase) integralidade dos seus atributos.

Dado esse processo, dizemos que se formam “imagens” desses objetos na memória (PEREZ; MASSIMI, 2012, p. 73), e sempre de objetos dispostos no espaço – daí o que faculta a Agostinho a metáfora do espaço para referir-se à memória. De fato, toda vez que se recordar de um objeto de tipo sensível, ele será lembrado ocupando espaço. As portas, então, relacionam a alma com o mundo corpóreo, e permitem que nela se encontrem coisas muito maiores do que o corpo por ela habitado, como grandes cidades e mesmo a imagem do oceano – o que implica que nesse tipo de memória o que encontramos são objetos distintos dos objetos reais, isto é, representações deles, mas que existem na memória com atributos semelhantes ou alterados.

Posto isso, temos que, diferentes fontes sensoriais constituem um único objeto de recordação, ou uma fonte sensorial pode distinguir um único objeto (a música pela audição, por exemplo), que, no entanto, distingue-se do objeto real enquanto o primeiro é uma imagem e o segundo, a coisa disposta no espaço.

3.2 Memória dos objetos inteligíveis


Além das imagens dos objetos sensíveis, temos também, os objetos ditos inteligíveis da memória, isto é, coisas que em si mesmas só têm existência enquanto objetos mnemônicos, que produzem uma outra espécie de objetos, tais como as artes liberais, a lógica, cabe perguntar se também as palavras. Diz Agostinho que, permanece na memória “tudo o que aprendi e ainda não esqueci sobre as disciplinas liberais. E delas não carrego as imagens, mas as próprias coisas” (Ibid., X, 9, 16). Para delimitar a natureza desses objetos, avaliaremos a relação entre o signo (a palavra “gramática”), com o objeto referido, o qual nesse caso indica um conteúdo inteligível, que não se presta às portas dos sentidos.

Alguns elementos possuem características mistas. Tome-se a exemplo o estudo da retórica – a arte de falar ou escrever. Uma vez que a imagem pressupõe que há um objeto diferente dela que lhe dá origem, então a arte aprendida não é uma imagem, algo que por aí se encontra, mas a própria coisa que já na memória encontra seu modo de existir, ao contrário do conhecimento dos corpos. Assim sendo, o conhecimento de um objeto desse tipo pode se dizer de dois modos: conhecer a palavra e saber que se trata de uma habilidade e o domínio próprio da habilidade. Uma vez dominada uma arte liberal é a própria coisa que se encontra na memória.

Até então, portanto, vemos que as coisas se encontram na memória ou por imagem, ou as próprias coisas, o que já nos mostra dois modos de objetos mnemônicos. Além disso, também vemos que os objetos inteligíveis não se prestam à metáfora da espacialidade, uma peculiaridade que parece típica dos objetos sensíveis, ainda que, no entanto, o conteúdo inteligível da memória encontra-se organizado, e este é um predicado que responde bem ao conceito de espaço. As coisas organizam-se aproximando-se e separando-se, e estes são conceitos espaciais.


3.3 Memória de sentimentos


Para além dos dois supracitados tipos de objetos, encontramos também na memória os sentimentos. Aparentemente, estes não são objetos hauridos pelos sentidos, tampouco parecem identificar-se com objetos inteligíveis. O espanto diante dessa aporia é expresso por Agostinho nos seguintes termos:

Mas eis que, quando digo que as perturbações da alma são quatro: desejo, alegria, medo e tristeza, tiro isso da memória; e qualquer coisa que eu possa argumentar a respeito delas, dividindo-as em espécies singulares, cada uma segundo seu gênero, e definindo-as, é lá que encontro o que dizer e é de lá que o trago […]. Pode ser, portanto, que como o alimento retorna do ventre na ruminação, assim esses conteúdos retornem da memória na lembrança. Por que então quem argumenta, isto é, quem lembra, não sente na boca do pensamento a doçura da alegria ou a amargura da tristeza? (Conf., X, 14, 22).

Se ao recordar da alegria não retorna ao recordante a própria alegria, nem tampouco esta pode ser atribuída pelos sentidos a algum objeto de tipo extenso, segue-se que não pode ser inserida em nenhuma das distinções precedentes, o que nos sugere que há uma espécie dos objetos mnemônicos afetivos. Agostinho apresenta com isso a metáfora segundo a qual a memória é o estômago da alma, daí que sentimos o sabor dos afetos enquanto são mastigados, mas quando levados ao estômago, isto é, à memória, nós nos lembramos deles, no entanto, sem senti-los, ainda que tenhamos por eles sido nutridos.

A metáfora permite ilustrar a questão, sem, contudo, nos deixar entrever de onde vêm e onde se instauram os afetos, quando em voga. Questão esta que permanece em aberto, diríamos, não apenas na obra de Agositnho, mas no curso da própria história da filosofia.


3.4 Memória da memória


Os objetos até então levantados, fazem suscitar, quase por consequência lógica, um outro elemento certamente mais delicado, como nos aponta o Bispo de Hipona:

Nomeio a imagem do Sol, e ela está em minha memória; não, porém, a imagem de sua imagem, mas a própria imagem é que lembro: Ela mesma está à disposição para que eu a lembre. Nomeio a memória e sei o que nomeio. E onde o sei, senão na própria memória? Porventura ela também estaria em si mesma por imagem, e não por ela mesma? (Conf. X, 15, 23)

Até então, tudo quanto pudemos observar em relação aos conteúdos da memória, se encontrava na memória, enquanto a própria coisa ou enquanto uma imagem da coisa, seja em parte, seja de maneira integral. Decerto, podemos notar que, tudo quanto lembramos deve estar na memória, e tenha sido encontrado no mundo corpóreo, num diálogo silencioso da alma consigo mesma.

A memória, enquanto recordada, guarda com os objetos inteligíveis e com os sentimentos a semelhança de serem objetos encontrados e descobertos na própria memória. Os inteligíveis existem na memória; os afetos são ora encontrados perturbando a alma, ora recordados por ela enquanto imagem daqueles. A memória, por sua vez, de acordo com Agostinho, quando lembrada, é a própria memória e não uma imagem dela, isto é, a memória lembra de si mesma – tal como o pensamento que pensa a si mesmo. Se a palavra ‘memória’ adquirir significado genuíno quando nela penso, dela me recordo, então é a própria memória que estou a acessar nesse processo.


3.5 Memória do esquecimento


Por fim, temos a recordação do esquecimento. Neste caso, duas situações- limite: recordar de que algo foi esquecido, sem que se recorde do que tenha sido, e tão somente o esquecimento e sua relação com a memória. A dificuldade do problema se faz notável, na medida em que não apenas esqueço, mas nomeio o esquecimento e lhe imputo significado. Entrementes, como é possível, assim, recordar do esquecimento? Ainda no sulco do problema da relação entre o signo e seu objeto, diz Agostinho:

Logo, quando lembro a memória, ela está disponível por si mesma na própria memória; mas, quando lembro o esquecimento, ao mesmo tempo estão à disposição a memória e o esquecimento; a memória, pela qual lembro; e o esquecimento, que é o que lembro (AGOSTINHO, Conf., X, 15, 24).

Quando definimos esquecimento, sabemos que se trata de um instante no qual a memória está em privação – o ato de não acessar ou não possuir algo na memória. Se, seguindo os métodos até aqui propostos, examinarmos o esquecimento como algo que é encontrado ele mesmo na memória, caímos imediatamente no contrassenso de dizer que estamos acessando, intelectualmente, a própria ausência de memória na memória.

Por outro lado, se tomarmos o esquecimento como uma imagem que dele temos, uma vez que já nos esquecemos outrora, continuamos em situação difícil, pois temos que admitir que a ausência, ou a privação, deixou uma marca que constitui uma imagem, sendo que uma imagem é sempre a imagem de algo.

De fato, não encontramos uma solução satisfatória para o que seja o esquecimento nas Confissões. Os caminhos e a metáfora espacial até então mobilizados facultam-nos chegar até a aporia, no entanto, nossos estudos não nos alçaram a respostas. Ainda assim, esperamos ter demonstrado que a distinção de cada um desses objetos mnemônicos nos abre a possibilidade de vincular todos à unidade da memória, e que esses objetos existem, ainda que constituam a realidade de maneira diferente. Também, pudemos verificar que o uso de metáforas leva a limites e a uma aporia, quando do trato do esquecimento.


Conclusão

Diante dessas considerações, tendo verificado a estrutura psíquica da alma, e da memória, junto com seus respectivos objetos, verificamos que, não se pode, a princípio, considerar a teoria agostiniana da memória como empirista. Uma vez que, o todo da alma concorre para a contemplação da Verdade e que a alma contempla a obra Divina, isto é, aquilo que foi criado, a anima participa desta estrutura contemplativa. Anima, como vimos, corresponde à capacidade da alma de perceber o mundo, de sentir as mudanças no corpo, noutras palavras, da experiência sensível, esta que conduz os objetos sensíveis ao palácio da memória.

Além disso, não se pode apontar Agostinho como um racionalista estrito, ainda que a contemplação da Verdade seja por via da mens/ratio hominis/intelligentia, pois, como discutimos, o spiritus, ao organizar os objetos sensíveis na memória, é determinante para a organização e classificação desses objetos, cruciais para se apontar sinais de conhecimento e, além disso, atua na união entre anima e animus – duas estruturas componentes da alma humana, que atua em harmonia na experiência do conhecimento.

Ademais, a memória deve ser encarada como elemento central, recorrendo a metáforas, a memória pode ser tida como o coração da teoria do conhecimento em Agostinho, uma vez que é nela que estão impressas as memoria Dei, isto é, a recordação das Verdades Eternas, motivo pelo qual é possível ao homem procurá-las, o que não ocorre no caso dos demais animais.

A memória, por sua vez, é una e indivisível, ainda que contenha diversos objetos de naturezas variadas. Desse modo, a memória dos objetos sensíveis deve ser considerada como componente do conhecimento humano, o que assegura a Agostinho uma posição de neutralidade em relação à posterior dicotomia moderna entre racionalistas e empiristas.


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1 Plotino, seguindo o sistema platônico, divide a realidade (o Todo) em dois mundos: mundo inteligível e mundo sensível, onde, internamente, cada um sofrerá desdobramentos obedecendo a disposição hierárquica da perfeição. Começando pelo mundo inteligível e incorpóreo, que como um todo é superior a realidade sensível, Plotino apresenta a famosa tríade composta pelas três hipóstases primordiais: No ápice de tudo está o Uno, o Super-Bem, que é transcendente, perfeito, eterno, infinito e necessário. Deste primeiro Princípio, emana a segunda processão, a Inteligência, Espírito, Lógos ou Noûs, que é uma cópia do Uno que, embora tenha sido engendrada imediatamente pelo Uno, e, portanto, ser a mais perfeita de todas as processões, esta não tem a unidade perfeita. Por fim, encerrando o mundo inteligível, temos a terceira emanação, a Alma universal ou Alma do mundo (substância espiritual), princípio animador do universo, que dar vida a todos os corpos (seres), a qual emana não diretamente do Uno, mas do Noûs e faz a ligação do mundo inteligível com o mundo sensível.

2Lugar retirado nas campinas próximo à cidade de Milão, onde Agostinho permaneceu durante certo tempo, rezando e estudando após sua conversão ao cristianismo, em preparação ao batismo. Nesse lugar, a partir dos seus diálogos com os companheiros, nasceram seus primeiros tratados filosóficos.

3 Corrobora com essa ideia Maria Lúcia Soares, ao dizer que, em relação a uma definição de alma, “embora Gilson (1943:56) fale-nos de uma certa flutuação de conceitos em Agostinho, é importante observar que a essa flutuação no uso dos termos não corresponde uma ambiguidade na compreensão dos conceitos” (2002, p. 45).

4Com relação à famosa divisão tripartida da alma humana estabelecida por Platão, presente principalmente no diálogo Timeu, Agostinho não faz nenhuma menção, a saber: a alma racional, imortal, feita pelo Demiurgo, e as almas mortais – irascível e concupiscível – feitas pelos deuses menores (cf. Timeu, 69c – 71ª), e que na República (436-340) “explica em que consiste o apetite concupiscível (que se dirige às coisas agradáveis e fáceis) e o apetite irascível (que se dirige a objetos em si mesmo desagradáveis e difíceis, mas úteis pelas suas consequências), estando este último mais próximo da razão e mais disposto a cooperar com a vontade”(CRUZ, 2013, p. 35).

5 A versão brasileira da Editora Vozes traduz esta palavra por “Potencialidade”. Já a Editora Paulus traduz por “Extensão”, daí colocarmos as duas possibilidades em nossas alusões a essa obra daqui para frente.

6 Aqui, antecipamos o que defenderemos mais adiante, não se trata de três almas no homem, mas três funções de uma única e mesma alma, que continua indivisa, pois como enfatiza Daniel Fujizaka, seguindo as pegadas do francês Marin Ferraz, “Agostinho retoma os tipos de alma em Aristóteles, vegetativa, sensitiva e racional, não para atribuir três almas diferentes, mas como propriedades que estão presentes, ao mesmo tempo, em uma única alma” (2014, p. 154, nota 338).

7 Essa primeira grande divisão em duas almas, corresponde ao que no tratado Sobre a Trindade, Agostinho chamará genericamente de duas “visões”: “uma, a do que sente [sentientis]; outra, a do pensar [cogitantis]” (De Trin., XI, 9,16).

8 A esse “1º tipo de imagens”, que podem vir a ser depositadas na memória, Agostinho chama de “fantasia”.

9 Esse é o nome dado por Agostinho a essa potência natural da alma, da qual nos fala, por exemplo, no diálogo Sobre a Potencialidade [ou Extensão] da Alma: “[…] nos animais, os órgãos dos sentidos, favorecidos por uma força instintiva (consuetudine) e natural, conseguem distinguir o que lhes é prazeroso ou desagradável […] (De quant. an., XXVIII, 54). E, a qual Maria Rita Leal chamará em sua obra de “força vital ou animal”, quando diz: “Pertencem à força vital da alma dados os movimentos de alegria sensual: os instintos que unem os sexos, a ternura que assegura a proteção e o alimento dos filhos, […]” (1960, p. 78), os quais são descritos por Agostinho como pertencentes ao “segundo grau da alma”, no diálogo Sobre a Potencialidade (Extensão) da Alma.

10 Em diversos momentos Agostinho insiste na tese de que os animais irracionais, igualmente aos homens, são capazes de gerar imagens dos objetos sensíveis e as guardar na memória, podendo usá-las mais tarde quando da ausência dos objetos. Para tal, o filósofo cita, no diálogo Sobre a Potencialidade [ou Extensão] da Alma, por exemplo, “aquele cão de Ulisses que foi capaz de reconhecer seu dono, depois de vinte anos de ausência. E isso, sem contar outros casos” (De quant. an., XVI, 50). Trata-se, pois do episódio lendário da Odisseia, em que Argos, o cão de Ulisses, o reconhece vinte anos depois de sua ausência.

11 Em sua tese de doutorado Ricardo Lima assim define a diferença entre anima e animus: “Preferencialmente, o termo anima é empregado para falar ou da (i) alma de maneira geral, isto é, sem especificar uma parte ou faculdade, ou das (ii) almas dos animais não humanos. Assim, quando se quer referir-se especificamente à alma do homem, Agostinho emprega o termo animus. O animus, assim como a anima, tem a característica de ser uma substância dotada de princípio vital; para além do que caracteriza a anima, no entanto, o animus também é dotado de princípio racional. Considerando que os animais não são capazes de raciocinar, podemos afirmar que animus inere única e exclusivamente ao homem. Em virtude da sua distinta característica, o animus é geralmente entendido (e traduzido) como alma racional, o que realça a fundamental diferença entre anima e animus” (2015a, p. 21).

12No tratado Sobre a Trindade, tomando a justiça como exemplo de imagens impressas na alma por Deus no momento da criação, Agostinho diz: “Onde, pois, estarão escritas essas regras? Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que é justo, descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo não possui? Onde hão de estar escritas senão no livro daquela luz que se chama Verdade? Nesse livro é que se baseia toda lei justa que é transcrita e se transfere para o coração do homem que prática a justiça. Não como se ela emigrasse de um lado para o outro, mas a modo de impressão na alma. Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera, sem se apagar do anel” (De Trin., XIV, 15, 21).



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