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A narrativa antimoderna e antimodernista de Miguel de Unamuno: considerações sobre Niebla à neblina da hermenêutica ricoeuriana

 Revista Sísifo. N°15, Vol. Único 2022. ISSN 2359-3121. www.revistasisifo.com

 

 

 


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Walter Pinto de Oliveira Neto. 

Graduação em Letras português-espanhol e literaturas pela UEMA (2020). Mestrando do Programa de Pós-graduação em Letras – PGLETRAS da UFMA, na linha de perspectivas críticas e teóricas em literatura (2021 –). Membro dos grupos de pesquisa TECER (UEMA), Polifonia (UFMA) e GEPLIT (UFMA). Bolsista CAPES. E-mail: walteroliveira16@outlook.com 

 

Rita de Cássia Oliveira. 

Graduação em Filosofia pela Universidade Federal do Maranhão (1993), Mestrado em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (2003) e Doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2009). Professora Associada do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Letras/PG-Letras e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia/PPGFIL, da Universidade Federal do Maranhão. E-mail: rcoliveiraveiga@gmail.com 


Resumo: No presente artigo analisamos algumas nuances do romance Niebla (1914) por meio da hermenêutica narratológica de Paul Ricoeur (1994), tencionando encontrar no texto literário a crítica que o intelectual espanhol Miguel de Unamuno fez a respeito da modernidade filosófica e estética contemporânea a ele, tornando-o, portanto, segundo a teoria de Compagnon (2014a), num antimoderno. Além de Ricoeur e comentadores, valemo-nos de críticos literários especializados em literatura espanhola moderna, como Campos (2012). Tais suportes bibliográficos assinalam que a configuração estética da nivola se constitui como uma rejeição à modernidade e ao modernismo ocidental finissecular, propondo, a partir dessa negação, uma antimodernidade e um antimodernismo. 

Palavras-chave: Antimoderno. Miguel de Unamuno. Hermenêutica. Ricoeur. Niebla. 

 

Abstract: In the present article we analyze some nuances of the novel Niebla (1914) through the narratological hermeneutics of Paul Ricoeur (1994), intending to find in the literary text the criticism that the Spanish intellectual Miguel de Unamuno made about the philosophical and aesthetic modernity contemporary to it, making it, therefore, according to Compagnon's theory (2014a), an anti-modern. In addition to Ricoeur and commentators, we avail ourselves of literary critics specializing in modern Spanish literature, such as Campos (2012). Such bibliographical supports point out that the aesthetic configuration of nivola is constituted as a rejection of modernity and finissecular Western modernism, proposing, from this negation, an antimodernity and an antimodernism. 

Keywords: Antimodernism. Miguel de Unamuno. Hermeneutics. Ricoeur. Niebla.

 

Considerações iniciais



Publicado em 1914, Niebla é o romance mais conhecido e debatido do escritor espanhol Miguel de Unamuno. Tal obra chega ao público no momento de maior maturidade intelectual do autor; maturidade premiada pela reconquista do reitorado da Universidade de Salamanca e, também, evidenciada pela definição de um plano estético que iniciara em 1902 com Amor y pedagogía e culminara, anos depois, com Niebla.

Esse projeto romanesco seria autonomeado pelo autor de nivola. Entretanto, a nomeação ousada desse novo gênero provavelmente não se demonstre exclusivamente nas transfigurações estéticas que a obra unamuniana traz consigo. Sendo assim, qual a intenção deste com tal nomeação? Campos (2012), por exemplo, considera que o termo não passa de uma provocação teórica – ou antiteórica –, que abre a porta a reflexões filosóficas e literárias, áreas que, na concepção do autor (UNAMUNO, 2005a), são a mesma coisa. Nas palavras de Campos:

Talvez a renomeação do gênero, ou seja, a criação da nivola, não passe de uma grande provocação que tenha também o propósito de dar voz a questões que estão latentes no romance. Como por exemplo até que ponto é possível discutir a fundo questões existenciais metafísicas ou filosóficas dentro de um romance? Ou talvez, não seria justamente no palco da ficção que se pudesse ir mais além, nas questões mais reais? Não seriam a metáfora ou a poética recursos mais incisivos do que a própria razão? (CAMPOS, 2012, p. 121-122).

Assim, a proposta nivolesca antirracional evidencia uma orientação epistemológica que perpassa pela dimensão metafísica e estética do texto, permitindo ao autor, assim, liberar-se das amarras do logos. Contudo, não só ao autor lhe é dada a independência criativa absoluta, mas também ao leitor. Unamuno (2009) considera que o leitor é tão criador quanto o criador primogênito da obra; mais que isso, o leitor tem a obrigação de desarraigar do texto qualquer paternidade semântica, a fim de fazer sua a obra.

Essa proposta hermenêutica assemelha-se à de Ricoeur. Em Tempo e narrativa (1994), o francês pondera que a obra só chega à sua máxima potencialidade quando esta exibe um mundo do qual o leitor se apropria. A apropriação da obra por meio do ato da leitura, por sua vez, possibilita que a intriga, isto é, a narrativa, atualize sua configuração paradigmática de sentidos. É nesse estágio que o processo de leitura se funde no exercício hermenêutico antirracional/dissonante, uma vez que, ao permitir que a subjetividade, a interioridade e o páthos de um outro – neste caso, o leitor – entrem no círculo mimético, onde a lógica fechada da linguagem pela linguagem é desfeita.

A partir do exposto, é possível inferir que a hermenêutica ricoeuriana se traduz, também, numa ética. Como ele comenta:

Uma vez liberada do primado da subjetividade, qual pode ser a tarefa primeira da hermenêutica? Ela é, para mim, buscar no próprio texto, de um lado, a dinâmica interna que preside a estruturação da obra e, de outro, o poder da obra de se projetar fora dela mesma e de engendrar um mundo que será verdadeiramente a “coisa” do texto. Dinâmica interna e projeção externa constituem o que eu chamo de o trabalho do texto. É a tarefa da hermenêutica reconstruir esse duplo trabalho do texto. (RICOEUR, 1986, p. 32).

 

No trecho supracitado se vê o quão importante é para o filósofo que o texto saia de si. Essa ênfase não se dá somente pela rejeição à crítica literária estruturalista de sua época, como comenta Barros (2021), mas, também, aos outros estágios de sua teoria da tríplice mimese, cujo fim, em síntese, é o de transformar o texto em conduto de desalienação do ser. Para isso, é preciso que o hermeneuta se preocupe “em reconstruir o arco inteiro das operações pelas quais a experiência prática se dá obras, autores e leitores” (RICOEUR, 1994, p. 86).

Tanto a obra (Mímese II), autor/cultura (Mímese I) e leitor (Mímese III) são elementos indispensáveis para que o entendimento e ação do texto desempenhem o papel de compreender melhor o mundo. Miguel de Unamuno vislumbrou as possibilidades éticas da narrativa de maneira semelhante à Ricoeur, inculcando nas suas nivolas uma série de personagens e intrigas que dessem conta de exemplificar os impasses de seu tempo, a saber, o domínio da técnica, a finitude da vida, o embate irreconciliável entre fé e razão, entre outros. A fim de expor tais temáticas, valeu-se de uma estética que abarcasse sua metafísica, em contraposição aos modernistas, que, para ele, esqueciam-se da metafísica para dar uma atenção medular à estética (UNAMUNO, 1950).

Assim sendo, neste trabalho apresentamos algumas das críticas que o autor fez à epistemologia e literatura dessa era, valendo-nos, para isso, além do romance Niebla como corpus de análise, a hermenêutica ricoeuriana como subsídio de compreensão das diferentes instâncias do texto ficcional do espanhol.



Paul Ricoeur, um antimoderno?


Em Os antimodernos (2014), o aluno de Paul Ricoeur, Antoine Compagnon, desenvolve a teoria do antimoderno. Esta, em poucas palavras, remete a uma série de intelectuais que, sendo modernos, negaram de sua modernidade latente e incondicional. “Modernos a contragosto, modernos atormentados ou modernos intempestivos” (COMPAGNON, 2014a, p. 11), os antimodernos foram pontos fora da curva do ethos epistêmico, filosófico e intelectual de seu tempo, refletindo-se tal orientação de negação em seus textos. Por isso, Os antimodernos, ademais de um estudo filosófico-histórico, é, também, uma proposta hermenêutica.

Baseando-nos na negação de Ricoeur à linguagem racional, isto é, à linguagem a serviço da técnica, poderíamos situar o autor dentro do grupo de intelectuais antimodernos. Ora, o terceiro paradigma do antimoderno é a tendência Anti-Iluminista, isto é, uma negação ao racionalismo Iluminista. Não obstante, vale a pena ressaltar que tal tendência, mais que uma rejeição aos filósofos e à filosofia iluminista em si, o que repudiam os antimodernos são as epistemes modernas que reproduzem certas características essenciais às Luzes, a saber: o utopismo, a razão secular e o idealismo (COMPAGNON, 2014a). Esse espírito das Luzes tem como herdeiro a maioria das narrativas da modernidade, que, na opinião do autor, foi “avassaladora e conquistadora”, encontrando nos antimodernos um dos poucos focos de resistência a elas. Por isso diz:

A aventura intelectual dos séculos XIX e XX sempre hesitou diante do dogma do progresso, resistiu ao nacionalismo, ao cartesianismo, ao Iluminismo, ao otimismo histórico – ou ao determinismo e ao positivismo, ao materialismo e ao mecanicismo, ao intelectualismo e ao associalismo. (COMPAGNON, 2014a, p. 16).



Dessa forma, Ricoeur, assim como o intelectual antimoderno como um todo, desdenhando o inteligível em todas suas faces, opõe-se ao cogito cartesiano porque este exalta o logos à máxima potência. É por isso que a narrativa se torna tão importante na hermenêutica dele e na produção literária dos antimodernos, pois ambos apoiam a junção da práxis com a epistemologia antirracional própria à poesia; ingredientes que, outrora considerado incompatíveis, são, na concepção desse tipo de pensadores, necessários para a criação de uma narrativa eticamente eficiente, isto é, uma literatura que “exige a generosidade, o amor do mundo, a vontade de abraça-lo” (COMPAGNON, 2014a, p. 419).

Ricoeur acrescenta, ainda, que, dentre as formas da literatura, é no romance onde melhor se pode vislumbrar o poder de transformação da narrativa. Isso porque tal gênero permite uma maior abrangência e liberdade dos elementos internos (linguagem) e externos (cultura) que o constituem:

O romance constitui simplesmente um entre outros gêneros da narrativa de ficção? (…) Ora, temos razões para duvidar que o romance se deixe enquadrar numa taxionomia homogênea dos gêneros narrativos. Acaso o romance não é um gênero antigênero, que justamente por isso torna impossível reunir o modo diegético e o modo dramático sob o termo englobante de narrativa de ficção? (RICOEUR, 2010, 269).



Nesse viés, Miguel de Unamuno não propõe diretamente uma axiologia dos gêneros literários, mas é indubitável que no romance é onde melhor se vislumbram as propostas antimodernistas e antimodernas do autor. Campos (2012), entre outros críticos, afirmam que a prosa romanesca é o reduto mais propício para conhecer as particularidades estéticas e metafísicas desse autor. E é por isso que, apoiando-nos na hermenêutica ricoeuriana, valer-nos-emos dessa fonte de análise para validar a tese de que ele é um literato antimoderno e, portanto, também, antimodernista.



A ode antimoderna e antimodernista de Niebla



A primeira vez que o termo Nivola aparece é no texto literário mais conhecido do autor: Niebla (1914). Nessa obra, Miguel de Unamuno experimenta processos narrativos inovadores no romance, como o diálogo entre o autor empírico e sua personagem no fim da intriga, a autonomia da personagem e o nivelamento das vozes do autor e do herói/anti-herói (CAMPOS, 2012).

Dado que o romance moderno espanhol ainda se encontrava em período de amadurecimento, Don Miguel achou necessário modificar a nomenclatura concedida a esse gênero literário, anunciando, assim, que o que o leitor está lendo não é uma novela1, mas algo diferente, ou seja, uma nivola. Mas o que seria a nivola em si? E o que é mais importante: tem alguma implicação prática, estética ou filosófica essa nomeação?

O termo se utilizou ineditamente no ano de 1914, na obra Niebla. Nela, narra-se a história de um burguês, Augusto Pérez, que não encontra prazer na vida até que se depara com uma bela mulher, pela qual se apaixona à primeira vista. Depois de muitos rechaços ao homem, esta, Eugenia, acede a namorá-lo, logo noivá-lo e finalmente com ele se casar. Contudo, um dia antes do casamento, Augusto recebe uma carta de Eugenia, anunciando-lhe que o matrimônio nunca acontecerá, já que por quem realmente está apaixonada é pelo seu ex-namorado, Mauricio. Triste, Augusto decide suicidar-se, mas antes visita ao próprio Unamuno, a pedido deste, na cidade de Salamanca, com quem estabelece um diálogo. Nesse diálogo, Don Miguel faz o papel de Deus e Augusto o de criatura. Deus/Unamuno anuncia à criatura/Augusto, que este, em realidade, não existe, que não passa de uma personagem ficcional criado pela própria imaginação dele, o Autor. A partir disso, Augusto se rebela contra seu destino, mas, antes de deixar-se morrer, lembra-lhe ao seu Criador que ele também morrerá, uma vez que ele, Unamuno, tem outro Criador:

[...] Pues bien, mi señor creador don Miguel, ¡también usted se morirá, también usted, y se volverá la nada de que salió…! ¡Dios dejará de soñarle! ¡Se morirá usted, sí, se morirá, aunque no lo quiera; se morirá usted y se morirán todos los que lean mi historia, todos, todos, todos, ¡sin quedar uno! (UNAMUNO, 2001, p. 175).



Em paralelo a todos esses acontecimentos, Augusto conversa com seu melhor e único amigo, Victor Goti, que, na concepção de Campos (2012) e também na nossa, é o alter ego de Unamuno. Este personagem é colocado na narrativa por duas razões: para expor a ideologia do autor e propiciar, entre ambos os personagens – antagônicos em maneiras de vislumbrar o mundo – diálogos cuja estrutura dialética ancora-se numa proposta semelhante à da maiêutica socrática.

No romance, não há praticamente elementos exteriores aos agentes e seus monólogos internos e diálogos, mas, como diz Gullón (1964), só aparentemente que não se incluem marcas da cultura europeia e espanhola no texto. Há, sim, uma mimese I, isto é, uma referência ao ambiente imanente, refletidos nas

Charlas de casino, murmuraciones, diálogos caseros, deambulaciones y devaneos, rarezas de algún personaje (como don Fermín), ociosidad del señorito, lecciones de piano y tantos otros elementos [que] aluden a formas de vida nada extraordinarias, adecuadas para reflejar la vida de una ciudad que bien pudiera ser Salamanca misma. (GULLÓN, 1964, p. 95).



Como visto no trecho, as referências às formas de vida nada extraordinárias estão depositadas na obra para ilustrar o estilo de vida das pessoas que formam parte de uma urbe qualquer, sendo esta, provavelmente, Salamanca ou alguma cidade próxima. A análise de Gullón (1964) está correta, mas gostaríamos de adicionar a ela um ponto importante. Sim, é verdade que as formas de vida evidenciadas em Niebla são “nada extraordinárias”, mas nessa ordinariedade há todo um sentimento trágico pulsando nos personagens. Ou seja, o meio e até as situações experienciadas no meio se caracterizam pela sua falta de transcendência. Entretanto, é justamente nessa carência de transcendentalidade que germinam os grandes dilemas existenciais. O sujeito moderno, representado por Augusto, protagonista da intriga, movimenta-se peripateticamente em diálogo com sua consciência, buscando justamente o sentido da vida em que está imerso desde que sua mãe morrera:

Al aparecer Augusto a la puerta de su casa extendió el brazo derecho, con la palma abajo y abierta, y dirigiendo los ojos al cielo, quedose un momento parado en esa actitud estatuaria y augusta. No era que se tomaba posesión del mundo exterior, sino era que observaba si llovía. […] Abrió el paraguas por fin y se quedó un momento suspenso y pensando ‘y ahora, ¿hacia dónde voy?, ¿tiro a la derecha o a la izquierda?’. Porque Augusto no era un caminante, sino un paseante de la vida. ‘Esperaré a que pase un perro – se dijo –, y tomaré la dirección inicial que él tome’. (UNAMUNO, 2001, p. 27).



Esse trecho, pertencente à primeira página do segmento da intriga de Niebla, apresenta três momentos decisivos para o primeiro desvelamento geral do personagem. Primeiro, Augusto está na porta de casa, isto é, fora de sua residência, o que simboliza que inicia sua vida, sua verdadeira vida, sem a intercessão de outrem, neste caso, a mãe, que, até então, havia guiado rigorosamente os passos dele.

Segundo, Augusto mostra um certo medo por dar esse passo rumo à existência autêntica, devendo tomar suas próprias decisões e por elas se responsabilizar. Situa-se frente à sua casa, estende a mão, olha para o céu e fica parado, como uma estátua. Além de estátua, Augusto também está numa pose augusta, que, de acordo com o Diccionário de La Real Academia Española (2001), tem uma significação ambígua. Por um lado, augusto pode significar “que infunde o merece gran respeto y veneración por su majestad y excelencia” e, por outro, “payaso de circo que, con carácter bromista y ropa extravagante, forma pareja con el clown”. Ou seja, uma pessoa augusta pode ser admirada, respeitada e/ou admirada, mas também uma pessoa extravagante, brincalhona até o ponto de parecer um palhaço de circo. Levando tais sentidos ao personagem aqui em destaque, podemos dizer que, ao menos até o fim da narrativa, ele se assemelha mais a um clown que não quer ser tal coisa, que a um indivíduo respeitado.

Terceiro, Augusto observa o mundo à fora não para tomar possessão do mundo exterior, mas para observar que chovia. Dito de outra forma, o sujeito ainda não está jogado no planeta, ainda é um ente não consciente de sua condição ôntica, encontra-se em uma atitude passiva, observando o exterior, mas sem querer apropriar-se dele ou, melhor, sem querer fazer parte dele. Visualiza o céu a fim de poder diagnosticar se choverá ou não, permitindo que tal evento atmosférico modifique suas decisões. Se as nuvens indicassem que poderia chover, então Augusto seria “forçado” a entrar de novo em sua residência; e se, pelo contrário, não encontrasse qualquer pista de que poderia ser, a qualquer momento, vítima da chuva, caminharia pelas ruas da cidade. Como nada indica a aparição próxima desse fenômeno, fica em dúvida, questiona para onde há de ir, se à direita ou à esquerda. Não se decide, não sabe como reagir diante da liberdade, pelo que se apoia na expectativa de que apareça um cachorro e, dependendo da direção que o animal tomar, encaminhar-se-á por um caminho ou outro.

Essa pequena referência à cidade e a estagnação do sujeito no meio dela parece indicar que o cenário é somente uma desculpa para a inserção de problemas vitais que acompanham o ser imperiosamente abandonado na modernidade, onde o cenário o influi, claro, mas, ao menos na visão do texto unamuniano, perde grande importância, uma vez que os verdadeiros dilemas e impasses existenciais se localizam na consciência, isto é, no plano interior.

Por isso, mais que a interação desse sujeito moderno com o meio, Niebla evidencia a interação do sujeito com outros sujeitos e do sujeito consigo mesmo. Se de vez em quando se mencionam elementos exteriores, estes perdem praticamente toda sua importância à medida que os diálogos tomam conta das páginas da obra, inserindo o leitor numa atmosfera de drama onírico, em que não se vislumbra no palco senão os personagens, em cujo corpo é jogado a variedade de focos. Intuímos que há elementos decorativos atrás deles: a porta de uma casa, a sala de um cassino, uma calçada, e mesmo assim os perdemos de vista quando as reflexões filosóficas são postas em cena. Por isso, mais que um drama per se, Niebla é uma nivola, isto é, um drama íntimo e angustiante.

Essa ética, no que lhe diz respeito, a quem pretende atingir? De acordo com Campos (2012), Unamuno se vale do discurso mítico construído ao redor do homem burguês, para apresentar uma crítica à cultura deste, como sendo esta desgastada e em decadência. Entretanto, para além do homem burguês de inícios do século XX, há também no romance, a nosso ver, um canal direto ao sujeito universal. Ora, Augusto é um homem comum, impregnado de inquietações existenciais, falhas morais, contradições e vontade de ser feliz. Tudo quanto obra, todo caminho que percorre tem como desejado fim o encontro com a paz. Assim, o personagem funciona afirmativamente como mensagem ao burguês europeu ou espanhol das primeiras décadas do século XX, mas em consonância com o indivíduo universal, pois, para o intelectual, “lo absolutamente individual es lo absolutamente universal” (UNAMUNO, 2005b, p. 202).

Abordada a Mimese I, faz-se importante para o hermeneuta seguir adiante com sua interpretação textual, procurando aí uma literariedade, ou seja, uma estética que desafogue a literatura da condição de mera reprodutora da realidade. Dessa forma, sair da Mimese I para a Mimese II significa transportar-se do nível paradigmático ao nível sintagmático, onde “a imaginação produtiva desempenha papel determinante, pois é aí que a cultura adquire a forma empírica de um récit.” (BARROS, 2021, p. 35-36).

Tal categoria é denominada por Ricoeur (1994) de mediadora em dois sentidos. O primeiro, de nível mimético, intercede entre a cultura à qual faz menção a obra; e, o segundo, entre “acontecimentos ou incidentes individuais e uma história considerada como um todo” (RICOEUR, 1994, p. 103). No segundo tipo de mediação, juntam-se uma série de fatores heterogêneos, como agentes, fins, meios, interações, circunstâncias, resultados inesperados etc, que, ao reunirem-se no lócus da narrativa, formam o que o autor intitula de síntese do heterogêneo. Essa síntese arquitetada de materiais distintos entre si provoca que a narrativa tenha sua própria temporalidade e, portanto, sua própria realidade, permitindo, assim, uma melhor compreensão de nosso cosmos por meio de um cosmos paralelo – o da ficção.

No caso específico de Niebla, as categorias que formam a síntese do heterogêneo se confundem, principalmente, pela maneira em que o autor estrutura o romance. Nas versões mais recentes, a obra apresenta quatro prólogos e um epílogo. Dos quatro prólogos, o primeiro é escrito por um crítico literário – na versão aqui em uso, Ignacio Amestoy –; o segundo por Víctor Goti, personagem da nivola; o terceiro por Unamuno na condição de ente de ficção; e o quarto pelo Unamuno empírico. Assim, o que encontra o leitor, em resumo, são quatro prólogos formados por dois escritores “reais” e dois “ficcionais”.

Contudo, para o intelectual espanhol, não há distanciamento entre a ficção e a realidade. O personagem é tão real quanto a pessoa, dado que o mundo empírico não deixa de ser um sonho formulado por uma imaginação atrelada à realidade, e o mundo ficcional uma realidade dentro de um sonho atrelado à realidade. Sendo assim, Victor Goti, Augusto Pérez e outros agentes da intriga convivem, dentro e fora da nivola, para o autor, no mesmo plano.

Isso posto, para Unamuno (2001) e Ricoeur (1994) há uma temporalidade humana que é desconexa e incompleta, sendo preciso, por isso, a narratividade como amalgama que dê sentido à existência temporal da humanidade ou, em outras palavras, que o tempo se torne “tempo humano na medida em que é articulado de um narrativo, e que a narrativa [atinja] seu pleno significado quando se [torne] uma condição da existência temporal” (RICOEUR, 1994, p. 85).

A partir do exposto, é possível inferir que há uma confusão intencional de Unamuno ao mesclar as distintas temporalidades, a saber, a cosmológica e a narrativa. Não obstante, tal pandemônio produz imbricações para além do mero caos. Esse imbricamento caótico deságua na proposta epistemológica antirracional exposta pelo próprio personagem/persona Victor Goti no segundo prólogo de Niebla, como uma espécie de apoiador da metafísica unamuniana, seu Criador:

Si ha habido quien se ha burlado de Dios, ¿por qué no hemos de burlarnos de la Razón, de la Ciencia y hasta de la Verdad? Y si nos han arrebatado nuestra más cara y más íntima esperanza vital, ¿por qué no hemos de confundirlo todo para matar el tiempo y la eternidad y para matar el tiempo? (UNAMUNO/GOTI, 2001, p. 15).



O trecho supracitado é especialmente interessante, pois faz uma crítica à Razão, ao Cientificismo e à Metafísica moderna tanto no plano do discurso quanto do enunciador. No discurso há uma zombaria às categorias racionalistas previamente expostas, mas não só. O enunciador, que, desde o ponto de vista racional é um personagem de ficção, ao ser depositado na trama como pessoa de carne e osso, isto é, como um ente situado numa temporalidade cosmológica, representa a virada lógica do autor; representa, enfim, a liberdade estética antimoderna e antimodernista – ou raridade da obra, como denomina Compagon (2014a) – da nivola.

A raridade da obra se produz porque ela se estrutura mediante uma carnavalização estética. Vemos uma fragmentação em que cada segmento tem um narrador-autor reconhecido diferente. Essa dissonância é proposital porque com ela se abandona a estética racionalista/realista de escolas literárias pretéritas, em que a ordem narrativa tinha de ser mantida a qualquer custo.

Esse efeito de discordância faz parte da concepção de literatura do antimoderno. Este vê que a narrativa, uma vez associada à realidade histórica, precisa ilustrar a complexidade da própria realidade. Esta não é linear, homogênea ou empírica, mas “feita de desenvolvimentos e dialéticas, ou de reviravoltas e rupturas, é inadequada diante da mobilidade heterogênea e imprevisível da duração real” (COMPAGNON, 2014a, p. 251).

Essa descontinuidade do tempo narrativo também a concebe Ricoeur (1994), que leva para sua teoria hermenêutica a concepção agostiniana de tempo da alma, utilizada com o intuito de afirmar que o tempo é interno, independente do movimento físico e do movimento exterior. Ou seja, é na própria distensão do espírito de cada um que as impressões subjetivas sobre tempos longos e tempos curtos acontecem.

Os personagens de Niebla vivenciam esse amorfismo temporal quando, por exemplo, no terceiro prólogo, menciona-se que sob o mundo ficcional e o mundo real está o mundo do sonho, racionalmente inclassificável, onde os agentes da literatura nivolesca convivem na consciência de seu autor/deus:

Bajo esos dos mundos, sosteniéndolos, está otro mundo, un mundo sustancial y eterno, en que me sueño a mí mismo y a los que han sido —muchos lo son todavía— carne de mi espíritu y espíritu de mi carne, mundo de la conciencia sin espacio ni tiempo en la que vive, como ola en la mar, la conciencia de mi cuerpo. (UNAMUNO, 2001, p. 23).



Os ecos dessa fragmentação temporal atingem os personagens criados pelo próprio autor empírico do trecho previamente explicitado. Assim a informa Augusto a Orfeo, seu cachorro:

Por debajo de esta corriente de nuestra existencia, por dentro de ella, hay otra corriente en sentido contrario; aquí vamos del ayer al mañana, allí se va del mañana al ayer. Se teje y se desteje a un tiempo. Y de vez en cuando nos llegan hálitos, vahos y hasta rumores misteriosos de ese otro mundo, de ese interior de nuestro mundo. Las entrañas de la historia son una contrahistoria, es un proceso inverso al que ella sigue. El río subterráneo va del mar a la fuente. (UNAMUNO, 2001, p. 55).



Ambas as instâncias da realidade, a empírica, onde habita Unamuno-pessoa, e a ficcional, onde habita Augusto, entrelaçam-se numa névoa, pois as consciências estão conectadas. Translada-se de um ponto ao outro, com uma constância frequente no decorrer do texto, o discurso do autor empírico rumo aos personagens, intitulados de filhos espirituais em alguns textos de Don Miguel (UNAMUNO, 2009). Inclusive, a ruptura de planos ontológicos permite que refutemos o que Unamuno-personagem comenta no capítulo XXXI, isto é, de que ele é um deus e Augusto sua criatura. Tal tese é validade hermeneuticamente quando citamos Ricoeur (1994), que diz: “a diferença ontológica radical que separa a criatura do criador, diferença que a alma descobre precisamente no seu movimento de retorno e por seu próprio esforço para conhecer seu princípio” (RICOEUR, 1994, p. 50). Nesse sentido, ou todos os personagens, incluído o próprio Unamuno-pessoa e Unamuno-personagem, são criaturas de um deus – no caso Deus e não Unamuno – ou, pelo contrário, não pertencem a ninguém – em todo caso, a si mesmos.

Essa pequena análise da ideia do tempo em Niebla cumpre a função de mostrarmos que, por mais que a obra esteja dividida em segmentos distintos, criando, ao menos a princípio, a sensação de discordância, de ruptura da própria ideia de romance, a intriga permite que nela se unam todos os polos dispersos – eis a dissonância concordante (RICOEUR, 1994).

Todavia, essa compactação permite separar a obra modernista da antimodernista, uma vez que a modernista – entendida pelo antimodernista como parnasiana e/ou simbolista, que dificulta ao extremo a compreensão dos elementos simbólicos do texto literário – detém sua configuração literária na dissonância, já seja do tempo, da intriga ou da linguagem, ou de tudo, enquanto que a antimodernista não perde de vista o conteúdo, situando-o axiologicamente num nível superior ao da forma. Por isso, Unamuno, ainda sendo um inovador da literatura modernista ocidental, como comentam Campos (2012) ou Oliveira (2016), entre outros, não pode ou não deve ser considerado algo mais que isso. Intitulá-lo de pós-modernista, precursor das vanguardas ou vanguardista, tal qual afirma Correia (2013), parece-nos que obvia uma das características mais essenciais do pensador espanhol, a saber, sua adesão a contragosto ao presente e sua apologia idealizada ao passado, em contraponto ao discurso da vanguarda, que, diferentemente do discurso da modernidade, “tem consciência histórica do futuro e a vontade de se ser avançado em relação a seu tempo” (COMPAGNON, 2014b, p. 40). Essa consciência tem implicações estéticas, que voga por desumanizar a arte de seus valores éticos, humanos e ontológicos, criando uma dissonância na intriga que se fecha na incomunicabilidade de símbolos sem alicerces culturais e receptivos, impedida de alcançar a consonância, e, portanto, a síntese do heterogêneo, onde convergem a forma e o conteúdo a favor de uma ética, de uma comunicabilidade, tão cara para a hermenêutica ricoeuriana, a literatura antimodernista e o romance unamuniano.

Sobre esse foco radical na forma vai comentar o próprio Víctor Goti no primeiro prólogo da obra, onde apresenta a Unamuno-pessoa. Nesse segmento, diz sobre seu hipotético deus que os “escritores pornográficos, o simplemente eróticos, le parecen los menos inteligentes, los más tontos” (UNAMUNO/GOTI, 2001, p. 15). Para Unamuno-pessoa, de acordo com Goti, esse tipo de escritores fica somente na superfície do papel, cuja espessura é coberta somente por preocupações formais, inibidas de ver para além da realidade, onde os temas metafísicos, sociais, intra-históricos, enfim, profundos, são negados.

Chegamos, assim, ao terceiro e estágio da hermenêutica ricoeuriana: o leitor. Sobre ele, Unamuno é claro: o quer atencioso, o quer ativo e o quer autônomo. Sobre isso fala no segundo e quarto prólogo, assim como na imanência da intriga, por meio de um Victor Goti não mais na condição de persona de carne e osso, mas, agora, como personagem do mythos.

No segundo prólogo, Goti afirma que este romance, pela sua rara configuração estética, pode e deve incomodar o leitor, mais acostumado com comédias superficiais. Unamuno, por seu lado, diz Goti;

se empeña en que si se ha de hacer reír a las gentes debe ser no para que con las contracciones del diafragma ayuden a la digestión, sino para que vomiten lo que hubieren engullido, pues se ve más claro el sentimiento de la vida y del universo con el estómago y del universo con el estómago vacío de golosinas y excesivos manjares (UNAMUNO/GOTI, 2001, p. 14).



Quando Goti fala que Unamuno está ofertando uma literatura isenta de “golosinas y excessivos manjares”, remete à literatura modernista, cujos “escritores pornográficos, o simplemente eróticos” são, para ele, “los menos inteligentes, los más tontos, en fin” (UNAMUNO/GOTI, 2001, p. 15). Nesse sentido, parece clara a polêmica proposta pelo intelectual espanhol: a literatura modernista, cheia de cores, palavras doces e sem substância, precisa ser vomitada pelo leitor, a fim de deixar espaço espiritual para a digestão da amargura da nivola.

Uma vez vazio e disposto a experienciar o romance unamuniano, Don Miguel pede ao leitor que não leia suas obras como uma ficção, mas como uma realidade – composta tanto de ficção (sonho) quanto de realidade. Uma vez residido nessa realidade nebulosa, isto é, na nivola, o leitor deve ser partícipe da criação da obra por meio da interpretação que este faz dela, no intuito de que sua interioridade se conecte à interioridade do texto, e, a partir disso, eternizar-se e eternizar a obra. Dito de outra forma, o leitor nivolesco se torna criador desta. Ao tornar-se criador, entende-a da maneira que o toque, a partir de sua subjetividade e seus propósitos. Essa ruptura com o sentido primário do texto, ou seja, com o sentido fornecido pelo autor empírico, faculta que o leitor sofra a transformação que a obra enquanto espaço ético dá. Mas não só: também viabiliza que a própria obra e o próprio autor primitivo atravessem a circunstância limítrofe do tempo e do espaço, fazendo, com isso, que se imortalizem.

Assim, se a nivola consegue transportar sua mensagem a tempos vindouros é porque ela se abre a um leitor desconfortado e, portanto, transmutado por meio da experiência com a intriga. No horizonte da simbiose entre a literatura e o leitor, isto é, na “intersecção entre o mundo do texto e o mundo do ouvinte ou do leitor” (RICOEUR, 1994, p. 119), que a nivola molda a percepção do ser acerca do mundo moderno, ancorado numa vertigem lógica que há de ser superada para poder a humanidade, como diz Unamuno (2009, p. 195), “salvarse de su soledad radical”, ou seja, voltar ao íntimo das coisas, da existência vivida.

Outro momento em que se constata a importância vital do leitor reside num dos últimos diálogos entre Goti e Augusto, quando o primeiro lhe dá mais informações a respeito da pseudoteoria da nivola: “— El alma de un personaje de drama, de novela o de nivola no tiene más interior que el que le da… —Sí, su autor. —No, el lector.” (UNAMUNO, 2001, p. 167).

Assim, o leitor reconfigura o sentido da narrativa, assumindo, por isso, o papel de coautor. Em Do Texto à Ação (1986), Ricoeur menciona que toda narrativa se organiza em três momentos: começo, meio e fim. O começo corresponde ao ato inaugural da história, cujas ações provocam desequilíbrios e abrem o texto ao leitor para tornar-se este coprodutor da narrativa. O meio, por sua vez, está em toda parte. A ação converte as experiências iniciais em experiências arriscadas, introduzindo na diegese surpresas constantes, peripécias que seduzem o leitor para que este modifique a significação da história ao mesmo tempo em que modifica a si mesmo, convertendo a travessia do mundo prefigurado em um mundo refigurado. Já o fim do texto se inscreve na categoria de sentido, em que o leitor participa da interpretação dos atos narrativos, escolhendo o último enunciando semântico da obra e abandonando o texto para outras inserções hermenêuticas de outros leitores.

Para que haja um sentido propiciado pelo fim, o autor precisa dotar seu texto de um equilíbrio entre o fechamento narrativo de seu romance e a abertura semântica da obra, a fim de que se sucedam múltiplas interpretações possíveis por parte do leitor. Um final narrativo excessivamente aberto ou simplesmente uma ausência de fim (fim eminente) ou um fim demasiado cristalizado, demasiado rígido em sua significação (fim iminente), pode levar a obra à perda de uma ética ou à perda de uma recepção livre.

Niebla segue essa orientação hermenêutica do entre lugar. Por mais que inove o fim da obra quando insere um diálogo entre a criatura e o criador, isto é, o personagem com seu autor, ou quando deposita um epílogo em que nos adentramos na consciência de um cachorro, dificilmente se poderá duvidar de que a morte de Augusto representa o eixo final da obra, o desfecho conclusivo que, ainda assim, carece de rigidez semântica. Isso se constata no motivo do falecimento de Augusto, que, pela configuração da intriga, faz o leitor duvidar de se a causa do óbito foi pela escolha de Unamuno na postura de demiurgo ou pelo livre arbítrio do personagem.

A dúvida inicia nas últimas linhas do capítulo XXXI, no famoso diálogo entre Augusto e Unamuno-personagem. Este profetiza àquele que morrerá por suicídio. Não um suicídio voluntário, mas propiciado pelo desejo do escritor/deus, que não vê outro caminho para seus personagens senão a morte quando seus cometidos no texto literário finalizam. Todavia, informa que Augusto não passa de um ente ficcional, pelo que todas suas decisões, todos seus pensamentos e todas suas características, físicas e psicológicas, foram formuladas por um ente real antes inclusive de seu nascimento narrativo. Ao saber isso, o protagonista se revolta contra seu criador. Nega-se a acreditar que é um personagem de literatura ou, pelo menos, um personagem de literatura sem livre alvedrio. A resposta de seu fantoche desagrada a Unamuno-personagem, que acha uma impertinência sem medida o discurso revolucionário de sua criação, assim como o desejo deste de sair-se do roteiro estabelecido na consciência de seu criador.

Em decorrência disso, Unamuno-personagem impõe sua autoridade, mudando o destino de Augusto:

¡Bueno, basta!, ¡basta! —exclamé dando un puñetazo en la camilla— ¡cállate!, ¡no quiero oír más impertinencias…! ¡Y de una criatura mía! Y como ya me tienes harto y además no sé ya qué hacer de ti, decido ahora mismo no ya que no te suicides, sino matarte yo. ¡Vas a morir, pues, pero pronto! ¡Muy pronto! (UNAMUNO, 2001, p. 173).



A resposta de Augusto à decisão de Unamuno-personagem é, mais uma vez, a da negação. Entretanto, logo a seguir se resigna, comentando que se ele é o sonho de um deus, no caso, Unamuno, então Unamuno é também o sonho de outro deus: Deus. Assim, a arquitetura ontológica de ambos é equiparada, pois são sonhados e, por isso, constituídos por uma mescla nebulosa de ficção e realidade.

No capítulo seguinte, o XXXII, Augusto volta a casa se sentindo derrotado. Os próprios funcionários que cuidam de sua residência percebem isso. Inclusive, assustam-se com a tonalidade e textura da pele de seu chefe, que “parece más muerto que vivo… Trae cara de ser del outro mundo”, ao que Augusto responde: — Del outro mundo vengo, Liduvina, y al outro mundo voy. Y no estoy ni muerto ni vivo” (UNAMUNO, 2001, p. 177). Essa metamorfose da anatomia do personagem é recorrente em toda a obra, variando de acordo a seu estado espírito: quando possuído pelo sentimento trágico da vida, quando fiel à vontade de potência, de ser mais do que é, sabemos por meio do narrador ou do discurso direto de algum agente da intriga acerca de sua robustez física, as cores vívidas de sua pele e outros detalhes que nos permitem visualizar Augusto como alguém saudável; contudo, quando ele se entrega à apatia, à desídia existencial, escurece-se e torna-se transparente como um fantasma.

A mudança de atitude de Augusto altera assim que começa a comer avidamente os alimentos depositados na mesa. Não se conforma com estar satisfeito, com não sentir mais fome: quer mais e mais; quanto mais, melhor, uma vez que os víveres o fazem se sentir imortal e dono de seu destino. Os funcionários se assustam com o espetáculo grotesco que presenciam e pedem ao seu amo que pare, pois do contrário morrerá; e como não para, morre: “al poco rato se incorporó en la cama lívido, anhelante, con los ojos todos negros y despavoridos, mirando más allá de las tinieblas, y gritando: ‘¡Eugenia, Eugenia!’. Domingo acudió a él. Dejó caer la cabeza sobre el pecho y se quedó muerto” (UNAMUNO, 2001, p. 181).

Nesse momento, é inevitável que o leitor fique em dúvida de se Augusto escolheu seu destino por meio do suicídio ou se, pelo contrário, foi seu criador quem, com o diálogo do capítulo anterior com a criatura, manipulou as peças do tabuleiro para que a intriga tivesse tal fim. Essa dubiedade, para Campos (2012), tem implicações ontológicas, que, por sua vez, captam da mesma ambivalência de Dom Quixote: “assim como, Cervantes logra fazer Dom Quixote maior do que ele mesmo, Unamuno se desfaz, aos poucos, como autor ante a figura de seu personagem, até o momento em que Augusto sugere matá-lo, o que seria em certo sentido, um duplo suicídio” (CAMPOS, 2012, p. 34). Ou seja, a morte de Augusto representa a morte tanto do autor como do personagem, apagando as hierarquias possíveis entre um e outro.

Já Correia (2013) comenta que a morte de Augusto e posterior aparição fantasmagórica deste no sonho de Don Miguel, no último capítulo da obra, não resolvem a dúvida da autoria da morte do protagonista, fazendo, assim, que a confusão permaneça: “eis a instauração permanente do metateatro na obra unamuniana. Da permanência confusa irradia a diferença da repetição ou a repetição da diferença, pautada sempre pela recordação” (CORREIA, 2013, p. 30). Por isso, se a vida é um teatro, em que sonho (ficção) e vida (realidade) se mesclam, é impossível conjeturar um sentido último à obra, dado que fazê-lo comprometeria a própria dissonância que todo romance, na opinião de Ricoeur (1994) e Unamuno (2001; 2009), precisam ter para não se amarrar na tirania do logos da modernidade. Por isso o leitor é tão importante; por isso sua presença no último estágio mimético, dado que sua participação no ato de reconfiguração da obra tem o poder de mudar o mundo:

[...] mundo já figurado vai receber uma configuração específica na obra narrativa, através do trabalho de composição que a constitui. Só no encontro do leitor com esta configuração através da leitura é que se realiza propriamente a referência, é o momento em que, segundo o esquema de Ricoeur, a obra remete à realidade, alcança a realidade. É o terceiro momento da mimesis [...]. Tocam-se aqui o mundo do texto e o mundo do leitor, saindo este último transformado desse encontro. (GENTIL, 2004, p. 225).



Assim, o plano cultural e o plano simbólico precisam desaguar no plano da recepção para se estabelecer uma ética nivolesca carregada de potência transformadora, resistindo ao discurso racionalista advindo da literatura realista ou do discurso vazio da literatura modernista/parnasiana e vanguardista, contrapondo-lhes o discurso do literato antimodernista, o qual “exige a generosidade, o amor do mundo, a vontade de abraçá-lo” (COMPAGNON, 2014a, p. 419), e do hermeneuta antimoderno, que defende a ideia de que compreender a nós mesmos é compreender-nos diante do texto, buscando não a imposição de uma interpretação definitiva do eu, “mas para expor ao texto e dele receber um si mais vasto, que será a proposição de existência respondendo da maneira mais apropriada à proposição de mundo” (RICOEUR, 1986, p. 117).



Considerações finais



A hermenêutica narratológica de Ricoeur tem a função de romper com a linearidade do logos epistêmico moderno. Esse logos, por sua vez, é inerente à narrativa, isto é, não pode e/ou deve ser desvinculada totalmente da intriga, uma vez que a dissonância pela dissonância, a distensão perpétua de retorno fechado a si faria ao texto se perder no jogo da linguagem, impossibilitando, assim, a função ética da literatura.

Como vimos previamente, Ricoeur opôs-se parcialmente aos estruturalistas e formalistas pela reincidência teleológica na forma como medida de todas as coisas. Pelo mesmo motivo, Miguel de Unamuno escreveu negativamente acerca dos modernistas e vanguardistas, propondo, como contrapeso a estes, um tipo de romance que, em lugar de aceitar a morte do romance enquanto gênero capaz de narrar alguma coisa, narrasse a crise do ente moderno.

O homem narrado por Don Miguel em sua nivola é o homem moderno, circunscrito inevitavelmente a uma circunstância moderna que o arraiga à Razão secular moderna. Esta Razão, na concepção do espanhol, tem como consequência a morte, tanto espiritual como física (UNAMUNO, 2005a). Por esse motivo que Don Augusto, personagem principal de Niebla, é assassinado pelo seu Criador, o próprio Unamuno. Não obstante, a Criatura de ficção se revolta contra seu Criador de carne e osso, gerando uma briga em que Augusto revela a chave da metafísica antirracional unamuniana: todos os seres humanos pertencemos simbioticamente ao mundo dos sonhos e da realidade; nenhuma vida real é tão vazia como para não estar ancorada, em maior ou menor medida, na vida de ficção. Dito de outra forma, “la vida es esto, la niebla. La vida es una nebulosa” (UNAMUNO, 2001, p. 32).

Essa nebulosa, esse entre lugar sem lugar, essa dialética sem síntese é própria ao antimoderno, que aceita a contradição como método, assim como a ambiguidade pela qual chegam a “uma terceira forma inclassificável”, fazendo despertar, a partir dela, uma “incoerência irredutível que faz sua força” (COMPAGNON, 2014a, p. 461).

Talvez, a nivola, com seus monólogos excessivamente catárticos, sua estrutura estética fragmentada, seus personagens insatisfeitos com sua condição de personagens de ficção, seu autor angustiado com sua condição de personagem da realidade e seu leitor demasiado desancorado pelas aberturas de sentido a ele impostas no texto, não passe de um tipo de romance cuja proposta ética antimoderna e antimodernista nega os paradigmas próprios à modernidade, mas sem rechaçar radicalmente, com isso, a circunstância moderna que o ente precisa atravessar para encontrar-se com o Ser.



Referências bibliográficas



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CAMPOS, Alexandre Silveira. Mito e metalinguagem em Niebla, de Miguel de Unamuno. Tese (Doutorado em Literatura) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, 161 f. 2012.



COMPAGNON, Antoine. Os Antimodernos: de Joseph de Maistre a Roland Barthes. Trad. Laura T. Brandini. Belo Horizonte:N Editora UFMG, 2014a.



COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Trad: Cleonice P. Mourão, Consuelo F. Santiago e Eunice D. Galéry. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora UFGM, 2014b.



CORREIA, Cristiane Agnes Stolet. O universo autobiográfico do bufão trágico Don Miguel de Unamuno. Tese (Doutorado em Ciência da Literatura) - Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 174 f. 2013.



GENTIL, Hélio Salles. Para uma poética da modernidade: uma aproximação à arte do romance em Temps et récit de Paul Ricoeur. São Paulo: Loyola, 2004.



GULLÓN, Ricardo. Autobiografías de Unamuno. Madrid: Editorial Gredos, 1964.



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REAL ACADEMIA ESPAÑOLA. Diccionario de la Lengua Española. 22ª ed. Madrid: Espasa-Calpe, 2001.



RICOEUR, Paul. Filosofia e linguagem. In: O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Tradução de M. F. Sá Correia. Lisboa: Rés, 1978.



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UNAMUNO, Miguel de. Cómo se hace una novela. 1ª ed. Madrid: Ediciones Cátedra, 2009.



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1 O equivalente a novela em português é romance. Ou seja, romance [port] = novela [esp].

 

 

 



 

 

 


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