Revista Sísifo. N° 14, Julho/Dezembro 2021. ISSN 2359-3121. www.revistasisifo.com
Gabriel
Salvi Philipson
Tradutor,
formado e licenciado em Filosofia pela USP, doutorando em Teoria Literária na
Unicamp, realizou estágio de pesquisa na Freie Universität Berlin, bolsista
DAAD, CNPq e Fapesp (2017/27004-7).
Resumo:
Este artigo ensaístico
investiga a noção de poder positivo dentro do corpus
de Byung-Chul Han em sua relação com a tarefa da filosofia de pensar o
presente. A hipótese do artigo consiste em dizer que, embora o diagnóstico
presente nessas obras seja incompleto, ele ainda assim dá conta de prover uma
contribuição decisiva na atualidade. Argumenta-se que essa incompletude pode
ser encontrada na incapacidade de articulação do poder positivo do
neoliberalismo nos países abastados e operado pelas mídias em concomitância com
formas negativas de atuação do poder, por exemplo, no patriarcalismo ou no
colonialismo. Nota-se ainda que essa incompletude está na base da má leitura de Han,
por exemplo, da filosofia do exílio de Vilém
Flusser, à qual poderia recorrer para lidar com suas
hesitações entre, em linhas gerais, encampar ou criticar o romantismo alemão ou
a “ideologia francesa”. O artigo argumenta,
além
disso, que tudo isso dá mostras, por um lado, de sua formação filosófica universitária alemã, e,
de outro lado, de uma fidelidade a aspectos que fogem a esta educação alemã. No
entanto, esses aspectos teriam que ser vistos como orientalistas, na medida em
que, rejeitando a abordagem da crítica pós-colonial, reforçam
e se mantém em estereótipos do par ocidente-oriente, ou seja, na medida em que, por se apegar
a um diagnóstico incompleto da forma de operação do poder no neoliberalismo
contemporâneo, se
fecha à crítica pós-colonial que poderia prover, assim como Flusser, uma linha de fuga
para suas hesitações. Sem encontrar saída, se vê capturado nos
três polos de sua própria hesitação.
Palavras-chave: Filosofia contemporânea;
Crítica e filosofia;
Midialogia; Filosofia política; Filosofia pop.
Abstract: This essayistic paper investigates the notion
of positive power in the works of Byung-Chul Han regarding its relation to the
task of philosophy toward thinking the present. The hypothesis consists in stating
that, whereas the diagnostic found in these works remains incomplete, it
nevertheless succeeds in providing a decisive contribution concerning current
issues. We argue that this incompleteness can be found in the failure to
articulate the positive power of neoliberalism in wealthy countries and
operated by the media in concomitance with negative forms of power, for
example, in patriarchy or colonialism. We also note that this incompleteness
underlies the misreading of Han, for instance, of Vilém Flusser’s philosophy of
exile, to which he might have turned to deal with his hesitations between, in
general terms, embracing or denying German romanticism or "French
ideology". The paper argues, furthermore, that all this demonstrates, on
the one hand, his German university philosophical education, and, on the other
hand, a loyalty to aspects of his background that escape this education.
However, these aspects should be seen as orientalist in the sense that, by
avoiding the postcolonial approach, they strengthen and uphold stereotypes of
West-East, to the effect that, by insisting on an incomplete diagnosis of the
way power operates in contemporary neoliberalism, he closes himself off from
the postcolonial critique that could provide, like Flusser, an elbow-away line
for his hesitations. Facing no way out, he finds himself trapped in the
three poles of his own hesitation.
Keywords: Contemporary Philosophy; Criticism
and Philosophy; Midialogy; Political philosophy; Pop philosophy.
I.
O sucesso e o sucesso da
filosofia
Pensar o presente,
essa em geral a tarefa da filosofia que, por assim dizer, não teme dizer seu
nome. É evidente que o que a cada vez significa “presente”, “pensar” e “tarefa” – e não menos, é claro, “filosofia” – varia conforme o contexto também varia, mas não se
pode dizer que Byung-Chul Han (BCH) não tenha tido sucesso em sua tradução
equívoca desse imperativo. Com seus pequenos ensaios que se multiplicam e
variam em mutações, qual vírus, atinge desde seu apartamento na Rote Insel, em
Schöneberg, Berlim, rincões nos
quais qualquer que seja a filosofia contemporânea mal sonha poder se espraiar.
A gente pode se perguntar se é essa a medida – ou a tradução equívoca – do que “sucesso” quer dizer,
ao menos em “filosofia”. A verdade, porém, é que, nesse sentido, também não se pode ignorar que o tema da sua massificação
e de sua crescente deslegitimação e diminuição de importância para além de suas cercanias
assombra a filosofia ao menos desde a sua institucionalização nas universidades
modernas e lhe dita momentos de crise com os quais tenta lidar até hoje. Aqui vale
relembrar aos puristas desavisados das mais variadas espécies tanto que a (não)
popularização – ou massificação – do discurso filosófico igualmente não
pode significar a medida (ou a falta) da “qualidade” de elaborações teóricas, quanto que, se
deixando levar ingênua e ideologicamente por essa premissa, o discurso filosófico que não
teme dizer seu nome, por vezes e em determinados lugares geográficos, deixou de
disputar esse espaço, oferecendo-lhe de mão beijada a charlatões oportunistas de toda espécie.
Se se abandona a perspectiva purista – por vezes
associada à neurose narcísica de único sujeito capaz de realizar e ditar uma “teoria crítica” –, percebe-se
que, como o bom-senso, o ser-charlatão é compartilhado de certo modo entre todos que se
atrevem em aventuras filosóficas de qualquer espécie – só variando em grau,
mais do que em qualidade. É raro, afinal, quem nos dias de hoje não sofra ao
menos de síndrome do impostor e, quando não é esse o caso, não se veja
nem mesmo coagido à hiperprodutividade. Quem escolhe, no entanto, a via
aparentemente honrada da recusa do imperativo “publique ou morra” só pode tomar tal decisão e, mesmo
assim, não perecer no campo caso detenha capital simbólico, institucional ou cultural para tanto, e o faz mais em nome próprio e de
seu próprio ego (mal disfarçando
a falsa crença, afinal, na meritocracia), ou seja, em seu próprio benefício, do que de
forma organizada e sistemática.
Se não há escapatória e temos que ser em algum grau
charlatões, também pode-se dizer, contudo, que há charlatões e charlatões. O desafio consiste, então, em
encontrar uma via de fuga dessa condição.
Sob certo contexto,
BCH pode ser capturado em seu plano de fuga, nesse sentido, nessa curiosa
hesitação: de um lado, assume o superego à adorniana de uma sociedade
capitalista hiperprodutivista e doente, produzindo uma crítica de “sujeitão” universal, generalizando e extremando traços essenciais dessa
sociedade da positividade; por outro lado, contudo, o faz em uma proliferação
de mini-ensaios (à Rancière e Baudrillard,
talvez?) a toque de caixa, qual produção industrial de textos, modulando a cada
novo livro temas que vão se repetindo e se diferindo, como se fossem nova
coleção (velha) de uma Primark. Apenas mais um exemplo de forma que contradiz o conteúdo, mais um “faça como eu falo, não como eu faço” que se repete como farsa? Talvez,
já que, como se diz, prudência nunca é demais. Mas também pode ser vislumbrada nessa
hesitação uma estratégia que visa lidar com e assumir como tarefa esse lugar ingrato de toda
e qualquer aventura filosófica em nosso tempo: se não há como
escapar do ser-charlatão e da hiperprodutividade, como desarticular essas
instâncias senão as reproduzindo? Faz assim na esperança de poder desoperá-las,
revelando pela própria forma do corpus sua verdade pela repetição “traumática”, o que
reencenaria o gesto de Andy Wahrol analisado por Hal Foster (2014) (valeria à
pena realizar uma pesquisa das apropriações e migrações da arte moderna e pós-moderna
para uma história da filosofia contemporânea, como é antes a filosofia –
que não só nesse aspecto se mantém romântica apesar de tudo – que se apropria de seus
gestos e estratégias, do que, como acredita o senso comum de nossos dias, a arte que é elaborada a partir
de questões postas pelas ciências humanas).
Nessa reprodução da
hiperprodutividade como trauma e esperança de sua própria desoperação, vai criando variações ao gosto do
freguês de ensaios-produtos, vai produzindo uma superabundância, uma inundação
de ensaios no mercado que variam na mesma proporção que vai variando as opções cromáticas das
capas de seus livrinhos. Com suas frases curtas, os textos atuam exatamente no
limiar entre a superfluidez da leitura e a complexidade abstrata de seus temas
filosóficos. Desde sua posição periférica no interior do campo institucional da filosofia na Alemanha, país
no qual decidiu se naturalizar, o que BCH procura fazer, desde essa
perspectiva, é sublimar sua posição condenada a ser charlatão, assumindo uma relação ativa e tirando proveito dela dentro das
possibilidades e de acordo com sua interpretação a cada vez equívoca.
Afinal, não são
justamente os marginalizados no campo da filosofia institucional aqueles mais
propensos a serem vistos e reproduzirem o estereótipo do charlatão,
embora todos – e por vezes os mais bem-sucedidos filósofos profissionais
funcionários do Estado – não possam fugir da e compartilhem a “má-consciência” de serem charlatões? E quem acredita que, nas condições atuais, seria
possível um sul-coreano (que dirá de uma latino-americana, indiana ou africana, se nem mesmo as alemãs de origem turca...) se
inserir na instituição universitária alemã na área de filosofia alemã? Quem o faz tem que acreditar também em papai-noel se quiser
manter as aparências da coerência.
Nisso, outro sentido
equívoco de seu sucesso, outro do que o ter se tornado um best seller em
tempos de crise do discurso filosófico: ao acoplar uma reflexão sobre novas
mídias, como o celular, sobre esgotamento, mas também, por exemplo, sobre
zen-budismo e burnout, a temáticas tradicionais e da ordem do dia
da história da filosofia, BCH foi capaz de equivocar o imperativo da filosofia
que não teme dizer seu nome de maneira bem-sucedida, indo ao âmago de inquietações de nosso tempo. E aquele sucesso está ancorado neste. Não lograsse
gerar uma tradução exitosa do imperativo da filosofia de pensar o presente, não
importaria o quão curtas fossem suas frases, ou o quão chamativas a variação cromática das capas
de seus mini-ensaios.
II.
No início do sucesso havia
o equívoco
Em que consiste,
contudo, esse sucesso? Como ocorre esse acoplamento? O que é exatamente que BCH
fala sobre as novas mídias? Em princípio, teria que se perceber que seu sucesso
não diz respeito tanto ao quê ele diz sobre as
novas mídias, mas ao fato simples de que as aborda em suas aventuras filosóficas.
Antes de tudo, são palavras-chave que importam e que geram o desejo de lê-lo,
em um contexto em que o fe(i)tiche é gerado mediado pelo Instagram e pelo Twitter. Mas há
vários modos de
acoplar história da filosofia a essa temática e o diabo
mora nos detalhes.
Abro A sociedade do cansaço para passar à parte
analítica desse artigo ensaístico. Já nas primeiras
frases o problema que abordo aqui se anuncia in my face. O mini-ensaio, talvez o mais viral
de BCH, se inicia com a busca por detectar aquilo mesmo que caracterizaria as
enfermidades de nossa época. Se “cada época possuiu suas enfermidades
fundamentais”, se trata de realizar um diagnóstico do presente, a
tarefa, pois, da filosofia. Para isso BCH se vê na necessidade de diferenciar “nossa época”, ou “nosso” capitalismo, ou
ainda “nossa” sociedade, das anteriores, já
analisadas por gente como Foucault, Arendt, Adorno e Benjamin, autores que ele
convoca ao longo dos seus textos para dialogar. Em seguida, vem: “Apesar do medo imenso que temos hoje de uma pandemia gripal, não
vivemos numa época viral” (HAN, 2017a, p. 7).
Triste ironia dos tempos, que fez envelhecer esse diagnóstico tão rápido e ao custo
de tantas vidas!
Interessa observar
sobre essa frase a tentativa de se diferenciar do diagnóstico do
presente de um Agamben, de um Negri, de um Habermas, ou mesmo de um Žižek – o
que vai sendo desdobrado ao longo desse e de outros ensaios. Nessa própria
tentativa de diferenciação com outros discursos é preciso enxergar igualmente
o diálogo com esses autores. Com isso, está se dizendo também com quem BCH não
está travando um diálogo: é patente a ausência de autoras do feminismo, do
ativismo queer, com gente ligada aos movimentos negros e pós- ou de-coloniais, mas
também
ressoa o silêncio do diálogo com certa vertente da “ideologia francesa” –
estou falando de Derrida, Nancy, Menschonnic –, com gente da turma de Latour,
da turma de Haraway, entre outros que poderiam ser convocados aqui e que ficam
completamente ausentes nos mini-ensaios de BCH. Me diga com quem tu andas, que
te direi quem és.
É patente a presença
de Foucault em seu diagnóstico do presente, de modo que talvez não seja
precipitado afirmar desde já que a noção de sociedade do cansaço, de hiperprodutividade, de sociedade
positiva, se constitui, em certo sentido, como um
desdobramento “natural” do Foucault da analítica do poder. A hipótese de BCH, grosso modo, consiste em dizer:
veja, a sociedade, o capitalismo analisado por Foucault ficou para trás, é coisa do passado,
precisamos atualizar o diagnóstico. Deixamos de ser uma sociedade imunológica, disciplinar, preocupados com a infecção, com a negatividade, para
sermos uma sociedade da positividade, sem resistências, diferenças, alteridade, do excesso de igual, do hiper. Não é aleatório que o segundo
capítulo se chame “Além da sociedade disciplinar”.
Como entender, no
entanto, essa alteração naquilo mesmo que caracteriza “nossa” sociedade?
Essa a pergunta que BCH se dispõe a responder filosoficamente. E é na sua análise do conceito de poder que podemos
encontrar a chave para compreender o sucesso de sua tradução equívoca da tarefa
da filosofia, do seu diagnóstico do seu tempo. De certo modo, é nesse ponto que BCH
percebe se diferenciar dos outros discursos críticos sobre o seu tempo e poder
contribuir para a tarefa da filosofia que não teme dizer seu nome. Nesse
sentido, toda sua analítica
da topologia da violência nos diferentes modos como ela
aparece hoje é não mais do que uma derivação da sua analítica do poder.
Pois, com efeito, é com e contra
Foucault e Hegel, por exemplo, que explorará as possibilidades de um conceito “positivo” de poder
como forma de captar o tempo presente. Sua aventura filosófica, então, começa a se
delinear na pergunta, na hipótese que no limite, como vamos ver, só pode ser
ficcional, filosoficcional: o que acontece quando o poder se passa por liberdade, quando escolho
de livre e espontânea vontade fazer aquilo que o poder quer que eu faça? O que
acontece quando o poder, portanto, consegue o que quer não por meio da
violência ou da coação, mas por conseguir convencer o outro que o melhor para
ele seria escolher para si próprio o que o poder quer?
Na
realidade, a opressão representa apenas uma forma determinada de poder,
a saber uma pobre de mediação ou mesmo sem mediação. O poder,
contudo, não se baseia na repressão. `Foucault está sempre se distanciando
dessa concepção negativa de poder: “deve-se parar de escrever os efeitos do
poder sempre como negativos, como se fossem apenas ‘excluir’, ‘oprimir’,
‘expulsar’, ‘censurar’, ‘abstrair’, ‘mascarar’, ‘dissimular’. Na realidade, o
poder é produtivo; e produz o real” (HAN, 2019b,
p. 63-4).
O próprio Foucault
“deveria ter analisado o poder a partir de seu potencial semântico para que
aparecesse em sua positividade e produtividade” (HAN, 2019b, p. 65), tarefa, afinal, que BCH se propõe
a fazer, não sem antes, em nota, criticar “as discussões feministas” que
proporiam um além do poder entendido apenas como controle, “como violência e
opressão” (HAN, 2019b, p. 64-5).
Com efeito, BCH
insiste com frequência na ideia de que já não vivemos em uma sociedade em que o
poder, para se pôr como poder, necessita utilizar de meios negativos,
violentos. Já não estamos na Idade Média, já não estamos na sociedade do controle e da
disciplina. Mas o que marca a passagem de uma sociedade a outra? Não pode ser a
simples passagem do século 20 para o 21. BCH não versa sobre isso, apenas aponta as
diferenças entre esses dois momentos sociais. Nós, seus leitores,
podemos aventar que dois marcos seriam a queda do muro de Berlim e o fim da
Guerra Fria, iniciando um período de três décadas de hegemonia dos Estados Unidos que agora
parece se aproximar do fim; e o avanço tecnológico, a digitalização do mundo, o encurtamento das distâncias pela
globalização, entre outros efeitos do que ele chama de dataísmo. Em
Topologia da diferença, BCH (2017b, p. 246)
escreve: “depois da derrocada do comunismo nada pode
representar ameaça ao capitalismo. Até mesmo o terrorismo islâmico não representa uma
manifestação de poder semelhante que pudesse realmente ameaçar o sistema
capitalista”. É nesse mundo em que o poder hegemônico não encontra adversário
à altura que o poder não se depara com qualquer negatividade digna desse nome [1].
Ressalto esse ponto
sobre as marcas da passagem de uma sociedade a outra, pois ela faz aparecer o
que ao mesmo tempo me parece uma obviedade e um assombro: no frigir dos ovos, o
conceito de poder positivo é primo-irmão do de
ideologia. Obviedade, porque apenas pela ideologia o outro é convencido a fazer
pelo poder, ou pela classe
dominante, pelo um por cento, caso
traduzíssemos seus conceitos equivocamente para um linguajar mais marxista [2],
aquilo que ela quer. E assombro porque BCH e muitos de seus leitores talvez não
gostassem de se ver assim tão próximo de um conceito, afinal, marxista em sua
forma mais conhecida, e tão batido [3].
No fundo, seu diagnóstico
está em perceber como dos anos 1990 para cá o poder, ou a classe dominante,
ganhou terreno em seus meios e técnicas para se fazer passar como liberdade e
abandonar as técnicas anteriores de controle, disciplina e punição. Faz isso ao
encucar uma ideologia neoliberal que aumentou a produtividade e,
portanto, os lucros, aumentando, assim, também a desigualdade. E é também uma das tarefas que BCH se coloca analisar as
consequências dessa introjeção do ideário ideológico neoliberal, por exemplo, na psique – como a depressão, a ansiedade
e, sobretudo, o burnout.
Sua crítica à sociedade da transparência, acoplada à sua crítica à hiperculturalidade, nesse sentido, reencena um pensamento sobre a
globalização neoliberal, que torna tudo igual e que encurta distâncias, torna a
comunicação lisa. Aqui, é preciso destacar a contribuição que suas reflexões podem ter para
pensar processos como a assim chamada “uberização do
trabalho”, para darmos apenas um exemplo, ou, se quisermos chamar por outro
nome, a flexibilização das leis trabalhistas e a consequente perda de direitos
e de poder de empregados “empresas de si mesmos”. Em certo sentido,
poderíamos, se forçarmos um pouco, fazer ecoar aqui aquela discussão que se tornou tão
central em certos meios de reflexão literária, sobre a literatura-mundo. A
ideia de poder positivo é poderosa também para pensar o
esgotamento não só psíquico do empreendedor de si atual, mas também da Terra ou de
Gaia, se se preferir, como lugar de recursos finitos na época do neoliberalismo.
BCH parece refletir,
no entanto, desde dentro da fórmula liberdade=coação, isto é, desde seu horizonte, evitando fazer a passagem de
uma noção de poder que atue na contemporaneidade igualmente de maneira negativa
e positiva. Um dos motivos é que o modo negativo do poder operar revelaria uma fraqueza, enquanto o
poder que atua positivo é ainda mais potente, pois não se percebe aquilo que ele é. Na forma da
autoexploração do poder positivo, não há a possibilidade de formação de um “nós”, de uma comunidade. A exploração vem desde si mesmo, gerando o
autoesgotamento. Seu signo é o burnout ou a obesidade extrema, e ela age no sentido de formar
uma sociedade da comunicação
dêitica, sem comunicação com o outro, apenas autoexposição
pornográfica de si mesmo.
No entanto, ao fazer
isso, BCH constantemente passa a fazer uso de advérbios como “totalmente”, “completamente”, ou de fórmulas que expressam uma totalidade e universalidade da experiência contemporânea que não
se sustenta para fora de seu exercício filosoficcional, de suas aventuras filosóficas. Ao
focar no desenvolvimento do conceito positivo de poder, BCH, é verdade, logra
traduzir o imperativo da filosofia, contribuindo para pensar especificidades do
presente e produzir uma atualização “pós-marxista”, como diria Spivak, da ideologia e de suas
consequências singulares contemporâneas. É como se, por hipótese, “comprasse” a tese liberal do fim da história de Fukuyama, mas
mostrasse que mesmo nesse caso o poder atua, e pior, de modo ainda mais
pernicioso. Em tempos de tiktokização da vida e positividade tóxica, nada
mais atual e relevante. Em contrapartida, esse sucesso da tradução tem que
ser igualmente equívoco, na medida em que o leva a uma aventura
filosoficcional que necessita constantemente menosprezar traços decisivos do
presente em nome do próprio desenvolvimento conceitual que está se aventurando trabalhar.
A
história, afinal, não acabou: a pandemia viral veio, e, para se manter nos
seus próprios termos, somos forçados a dizer que formas do poder positivo
parecem, na verdade, mais bem conviver com formas do negativo. O modo como ocorre
essa convivência e quais as suas implicações, algo como a relação
entre a passagem para o trabalho livre europeu (poder positivo) simultânea ao
trabalho escravo (poder negativo) dos empreendimentos coloniais na Modernidade,
fica de fora, como um interdito. Seu mérito é ter explorado
filosoficamente o primeiro, pensando ficcionalmente a respeito de uma sociedade
do desempenho total, e produzindo, assim, um corpus filosoficcional marcado pela
distopia; seu equívoco, ou um deles, o erro de diagnóstico que o leva a
falar em total, de modo a impedir uma abordagem mais complexa da coexistência de
diversas estratégias do poder de se continuar no outro.
III.
Do equívoco (e do equívoco)
à hesitação
Isso pode explicar seu
silêncio mencionado acima em relação ao feminismo. É como se considerasse que
as reflexões nele contidas pouco têm a contribuir com a tarefa da filosofia
para a analítica de um poder positivo. Entretanto, BCH não retorna
posteriormente a esse campo do saber para aplicar e alargar o conceito de poder
dele, contribuindo com o desenvolvimento das reflexões ali presentes que não
deixam de traduzir a seu modo e equivocamente o imperativo da filosofia. A
impressão que fica é que, ao contrário, essa rejeição rápida e leviana em nota
de rodapé ao feminismo aponta mais para uma racionalização de um incômodo de
princípio e uma falta no discurso oriundo do diagnóstico de seu tempo do que se
constitui uma refutação de fato dessas teorias. Pois, se a teoria feminista, ou
“discussões feministas”, como prefere BCH, não estão à altura de seu conceito
de poder – como, aliás, nem o próprio Foucault, por exemplo, estaria, já que
formula, na esteira de Hegel, um conceito positivo de poder, mas não o explora
em toda sua extensão –, isso não se deve ao diagnóstico falho desse campo. É,
antes, o contrário: é mais o diagnóstico falho ou ficcional de BCH de que
vivemos num momento de mundo sem negatividade que o leva, como que por equívoco
produtivo, a querer explorar as extensões de um conceito de poder positivo.
Quanto a isso, é
preciso dizer com todas as letras: o equívoco improdutivo, ou no mal sentido do
termo, de sua tradução da tarefa da filosofia não está em se assumir
charlatão, em ser best-seller. Está antes em não desarticular essa
tarefa em sua estrutura desejante, ou seja, em (desejar) se manter um “sujeitão” crítico de nosso tempo, capaz de dar uma resposta completa,
universal, e não localizada, ao imperativo da filosofia. Se seria interessante
aplicar a ideia de poder positivo nas teorias feministas, a verdade é que é BCH quem teria muito a aprender lendo teorias
feministas. Não só conceitos decisivos como o aludido de “saber localizado” de D.
Haraway (2009), mas também, por exemplo, toda sua analítica da relação entre erótico e pornográfico, que
remete sobretudo a Barthes e Bataille, poderia se valer do refinamento em torno
da constelação conceitual do pornográfico de autoras feministas como Virginie
Despentes, Itziar Ziga, Nelly Arcan e, claro, Preciado. O testemunho do estupro
de Despentes (2016, p. 27-46) em “Impossível estuprar essa mulher cheia de vícios”, terceiro capítulo
de Teoria King Kong, por exemplo, vai de encontro com a tese de que não há
atualmente elementos negativos no poder, aqui entendido como patriarcado.
Passando ao largo desse e de outros refinamentos possíveis, suas análises por
vezes carecem de uma alterocupação da posição do sujeito (NODARI, 2019), da
perspectiva do “sujeitão” que deseja ser, imagem que
produz de e para si mesmo, a de outras sujeitas, em diferentes graus de
subalternidade.
Em Hiperculturalidade: Cultura e globalização,
BCH (2019a) convoca Homi Bhabha para
pensar a hibricidade da cultura. Segundo o autor sul-coreano naturalizado
alemão, a noção de hibricidade, embora “coloque em questão a
pureza ou originalidade da cultura”, peca ao fazer uso tanto da imagem da
escada para pensá-la, quanto da “ponte” utilizada por Heidegger em Construir, habitar, pensar. Por um lado, a interpretação de Bhabha seria dialética demais: “Bhabha pensa ainda excessivamente de modo dialético. [...] Assim, Bhabha
está ainda em grande medida preso na tensão agonal-dialética entre colonizador e
colonizado, entre dominante e dominado, entre senhor e escravo” (HAN 2019a, p. 46-7). Por outro lado, não perceberia,
por omissão, que a figura da ponte em Heidegger seria antes um conceito teológico do
que cultural. Em certo sentido, Heidegger, para BCH (2019a, p. 46), nega a hibricidade da cultura
proposta por Bhabha – sua
ponte, a de Heidegger, “é, por assim, dizer, demasiado
estreita”.
De certo modo, BCH se
mantém
hesitante nesse livro. Ficamos sem saber se ele critica Bhabha por Heidegger,
ou Heidegger por Bhabha. Pois “O conceito de Bhabha de ‘passagem
intersticial’ ou entre-espacial que cria identidades culturais apenas como efeitos da
diferença, de fato constitui um primeiro passo na des-substancialização da
cultura”. No entanto, “ele não leva a uma windowing hipercultural” (HAN, 2019a, p. 97). Ele se mantém “excessivamente
acoplado ao complexo racista e colonialista do poder, da dominação, da opressão
e da resistência” (HAN, 2019a, p. 48). E em que
isso seria um problema ficamos sem saber.
Mas a “hipercultura”, embora
não seja um espaço sem poder, se contraporia ao poder econômico como um império do lúdico. Seria
isso uma tentativa de encontrar uma saída no interior da lógica que
identifica no poder positivo? Ao mesmo tempo, o turista hipercultural estaria
em si mesmo em qualquer lugar. É como se fosse o resultado capturado pela lógica
capitalista neoliberal globalizada da liberação prometida na des-localização do
lugar.
Hiperculturalidade pode ser visto como um livrinho de passagem. Não só por terminar com
uma análise sobre a “soleira”, o “entre”, a partir de
Nietzsche e Heidegger, mas também por marcar um ponto de viragem na trajetória de seu
pensamento, a partir da qual começa a perceber os limites da crítica ao
modernismo perpetratada por autores tidos como pós-modernos. Hesitante é o seu final:
Os humanos
do tempo vindouro provavelmente não ultrapassarão soleiras com caras consumidas
pela dor, mas serão turistas com riso animado. Não deveríamos saudá-los como homo
liber? Ou deveríamos, ao contrário, com Heidegger ou com Handke, permanecer
um homo doloris petrificados na soleira? (HAN, 2019a, p. 146).
Essa hesitação do
final retoma a hesitação do início do livro, de modo que este se mantém retornando à mesma
questão, como um trauma de que não consegue escapar:
A hipercultura sem centro, sem deus, sem lugar, levará ulteriormente a
resistências e levantes. Não por menos levou ao trauma da perda.
Reteologização, remitologização e renacionalização da cultura são usos comuns
contra a hiperculturalização do mundo. Assim, a des-localização hipercultural,
no limite, será confrontada com um fundamentalismo do lugar. Será que as
“ancestral voices” [vozes de outrora] que profetizaram o desastre teriam razão?
Ou seriam apenas vozes de alguém que resiste a se extinguir em breve? (HAN,
2019a, p. 25-6)
Em seguida, BCH trava
um fugaz diálogo com Flusser que ressoa essas hesitações. Se Flusser “possivelmente”
gostaria de ver na conexão uma “práxis do amor e do reconhecimento” (HAN,
2019a, p. 28-9), o que existe no tempo
de hoje, digital, é, para BCH (2019a, p. 29-31),
uma superabundância de conexão que, não importa se incentivada pelo “eros” ou
não, leva a uma “desfactização do ser-aí”, a um “já estar em si mesmo em qualquer outro lugar”:
“não é que se abandona a casa como turista para voltar
depois como nativo. O turista hipercultural já é consigo em casa um
turista”. Ao convocar um texto lateral e especulativo de Flusser, infelizmente
passa completamente batida para BCH toda a filosofia do exílio de Flusser.
Nela, o que está em jogo é uma desoperação da lógica da Heimat, que leva ao kitsch, ao “bonitinho”. Ao contrário do turista hipercultural, que está como um
turista em casa, a filosofia do exílio de Flusser (1992) desarticula, como
forma de combater o fascismo, as raízes que a cada vez formam uma Heimat. Ele não está em
casa como turista nem como exilado, já que a própria noção de casa fica desoperada.
Como lembra BCH (2019a, p. 117), a figura do apátrida, do Wanderer, já era invocada por Nietzsche
contra o “fundamentalismo do lugar”, o “nacionalismo artificial”:
O “nacionalismo artificial” seria uma espécie de fundamentalismo do
lugar, em um tempo em que o lugar, com a morte de deus, também estava
ameaçado de desaparecer. “Nós apátridas” somos, diz Nietzsche, “muito
‘viajados’” para cair na lábia do nacionalismo“. Nietzsche via o “valor e o
sentido autênticos da cultura atual” em um “se misturar e se fecundar mútuo”.
Apesar de uma visão ampla digna de nota, Nietzsche ainda não podia
saber a que forma de cultura levaria a “troca rápida de lugar e de paisagem”.
Ele não chegou a uma ideia de hipercultura. E não era sempre a favor do
“cruzamento de culturas”. Ele leva, afirmou Nietzsche em outro lugar, a um
“excesso de feiura” e a um “sombreamento do mundo”. A hipercultura opera
deslimitando em múltiplos sentidos. Ela é, assim, também uma cultura para além
do “belo” e do “feio”.
Mas vale pontuar que
esse Wanderer apátrida ainda é “herdeiro da Europa” (NIETZSCHE, 1999, KSA III, p. 628-31 [§377]), ou seja, ainda tem um lugar, que herda. Flusser contrapõe a ele
a figura do Einwanderer, do imigrante, que seria ainda mais “befremdender, unheimlicher”. Ao se inserir em
um local outro que sua “casa”, ao contrário do andarilho que opera um movimento de saída e de
entrada em sua “casa”, a presença do imigrante, a sua inserção andarilha – Ein-wanderer – seria
capaz de estranhar os hábitos dos patrícios, daqueles que se mantêm em casa. O
turista hipercultural não seria nada outro que um patrício-turista, que se
sente em casa em qualquer lugar, que já está em si mesmo em qualquer lugar. O
imigrante de Flusser não é uma figura do poder positivo, ele não prolonga seu ser no outro. Está
mais para o Odradek e os “nômades do norte”, de Kafka, convocados
também
por BCH. À diferença destes, o imigrante não retorna para sua casa. Desde seu caráter de “totalmente outro”, de “estrangeiridade”, de “inquietante”, tem lugar
uma “troca”, uma “comunicação”, com os patrícios ou “nativos” (HAN, 2019a, p. 91).
Ao evocar Flusser como
um suposto adepto da conectividade que caracterizaria a globalização neoliberal
de nossos tempos, BCH (2019a, p. 73-9)
perde a oportunidade de pensar a figura do “turista hipercultural” não apenas perante as do
peregrino ou andarilho, invocadas por Bauman para pensar o ser humano moderno,
mas também perante o imigrante apátrida, aquele para quem a casa não está em
nenhum lugar. Assim escreveu
Flusser (sem data, 1 [Per_1_2013-04-09 (10)]), em Sehnsucht,
saudade ou nostalgia, um poema sem data: “ Gib es denn keinen Weg
zurueck, dort in den Schatten,/ wo die Liebe wohnt und die Erinnerung der
Zeiten?/ Wo windet sich der Weg im
Staube hin?“ [4]. O imigrante apátrida é um exilado, sem casa em nenhum lugar, mas para quem
as categorias de saudade e de memória não deixaram de operar, como no caso do turista hipercultural. Ele não está em
si mesmo em nenhum lugar, gerando desse ser-exilado não ressentimento, mas
força de vida.
É tratando Flusser
como um messiânico digital que, em No enxame: perspectivas do digital,
BCH (2018, p. 63) pode afirmar que a “utopia do jogo e do ócio de
Flusser se mostra como a distopia do desempenho e da exploração”. Sem perceber
o jogo desprogramatizante entre utopia e distopia operada por Flusser e que
constitui sua filosofia do exílio, BCH (2018, p. 86) se apressa em dizer que o “messianismo [de Flusser] da conexão não se confirmou”, que Flusser não teria percebido os perigos da sua
profetização do fim da política, tornada “curtição” e marketing (HAN, 2018,
p. 117-9). Ora, bastaria que BCH se debruçasse sobre O universo das imagens
técnicas ou sobre um texto filosoficcional como A
vaca ou o “Décimo quarto cenário: extração do animal” de Suponhamos
para que tivesse que rever o espantalho que faz do autor praguense.
Enquanto em O universo... a questão surge como
uma inexorabilidade com a qual teremos que lidar, procurando uma possibilidade
de fazer política nessa nova
era digital – “O domínio das imagens técnicas está raiando. Domínio
nosso?” (FLUSSER, 2008, p. 178) –, nos outros dois textos filosoficcionais, essa visão pretensamente utópica, messiânica, não aparece
sem um quê de ironia e de horror, nos entremeios do narrador em primeira
pessoa, neste último, e da bricolagem de notícias que dizem muito mais do que
seu sentido ali expresso, no primeiro.
Com efeito, Flusser
explora a noção de tempo pontual da era digital e sua ampliação de
possibilidades não só em textos “objetivos”, mas também “subjetivos” [5], ou seja, filosoficcionais. Em Suponhamos, seu último livro
publicado em vida, podemos ver mais concretamente como funciona a “ampliação
das possibilidades” do
“universo-mosaico” de que fala Flusser no
texto comentado por BCH (2019a, p. 28):
O tempo de hoje, em contrapartida, não tem um horizonte nem mítico, nem
histórico. Falta-lhe o horizonte de sentido abrangente. É des-teologizado ou
des-teleologizado em um “universo-bit” “atômico” ou “universo-mosaico” no qual
possibilidades sem qualquer horizonte mítico ou histórico “zunem” como pontos
ou “escorrem” como “grãos” “de sensações discretas”: “essas possibilidades aproximam-se
de mim: elas são o futuro. Onde quer que eu olhe, ali está o futuro (…) Dito de
outro modo: o buraco em que estou não é passivo, mas suga como um turbilhão de
possibilidades que o rodeiam”. Nesse “universo-ponto” não há “imagem” ou
“livro” que fosse limitado de possibilidades. A existência, ao contrário, se
rodeará de possibilidades flutuantes. De tal modo que o “universo-ponto”
promete mais liberdade. O futuro está “em qualquer lugar” “para onde eu me
virar”.
Em Suponhamos, a noção de temporalidade é trabalhada por
Flusser por meio de uma desarticulação hesitante ao jogar uns contra os outros
teologia, ciência e mito. Uma série de “cenários” supostos vão sendo contrapostos,
espelhados e organizados ao longo do livro que segue a lógica do
fragmentário, do pontual. Como exercícios de “futurologia”, se
assemelha a um “congresso de espectros”: “o campo de possibilidade se assemelha, assim, mais a um congresso de
espectros: alguns se materializam, outros pactuam ou conspiram entre si,
enquanto outros se dissolvem em nada” (FLUSSER, 1989, p. 7). Esses congressos
de espectros vão sendo constituídos estranhamente à semelhança da lei do “caleidoscópio” do bricoleur que caracterizaria o “pensamento selvagem” (LÉVI-STRAUSS, 1970, p. 57). São exercícios de tradução
equívoca, de variações de ponto de vista, de perspectivação, de alterocupação. Em A
escrita: há futuro para a escrita?, Flusser (2010, p. 155) se
inscreve na comunidade bibliofílica, escrevendo, a propósito da
revolução das memórias artificiais que superariam a memória livresca:
Somos
traças de livros, não por bibliofilia, que se revela atualmente necrofilia, mas
sim por engajamento pela liberdade histórica – e contra aparelhos automáticos e
seres engajados por florestas verdes. Esse nosso “worm-like feeling”, o
sentimento de nos alimentarmos de cadáveres (livros), explica nosso horror pelo
desaparecimento dos livros.
Pode-se ver aqui a
comunidade de “nós” da qual Flusser
considera fazer parte, não sem um tom de autoironia: não, como BCH considerou,
a do digital, mas a linear do livro. Sua escrita do exílio, seu interesse pela
filosofia da técnica e das mídias, dos gestos, da comunicação e do design, sua escrita
e reescrita quase como função
fática, consistem em exercícios de fuga e de preparo do
que estava por vir.
Flusser, assim como
BCH, também percebe como as transformações midiáticas operam uma mudança de paradigma e de
estratégias
de dominação do poder contra as quais é preciso revolucionar o modo como se faz, por
exemplo, política, ou o modo como se percebe o tempo. Sua filosofia do exílio,
no entanto, opera jogando uns contra os outros os programas do aparato. Nesse
jogo desprogramatizante, ela anuncia e prepara o que está além dessa hesitação. BCH, em vez de reterritorializar a filosofia do exílio de Flusser
como uma ode à conectividade que o lugar-comum taxaria de pós-moderna,
poderia ter vislumbrado saídas para sua hesitação entre a dor e o riso da
ultrapassagem da soleira.
IV.
O poder positivo e a
amabilidade
É desde essa
hesitação, entretanto, que BCH vem propondo, ao longo de suas obras, modulações de saídas, de
plano de fugas.
Em Capitalismo e
impulso de morte, assim como em seu artigo sobre a pandemia, a saída
sugerida é uma espécie de “mais razão”. Inspirada pela invocação da figura do cosmopolita e da “paz perpétua” de Kant, BCH (2021a, p. 129)
escreve em “A beleza está no estrangeiro”, a partir de
uma ideia de “volta”:
A paz voltaria finalmente ao nosso planeta quando todos fossem um
europeu no sentido literal do termo, a saber, uma pessoa com visão larga. Uma
outra palavra para visão larga é razão. [...] O esclarecimento é uma conquista
europeia. Hoje nos distanciamos cada vez mais da razão, fugindo regressivamente
à mitologia da qual se valem os populistas de direita. A razão não comanda a
Europa, mas, como formulou Immanuel Kant em seu texto famoso, À paz perpétua,
a Gastfreundschaft, a hospitalidade.
Assim, como seu artigo
sobre a pandemia, esse pequeno texto intervencionista que trata da crise migratória na
Europa, pleno de lugares-comuns orientalistas e ocidentalistas, acaba revelando
mais de si do que BCH talvez gostaria [6].
Nele, advoga que “os alemães tendem ao abstrato”. Em
comparação com estes, nenhum coreano, segundo ele, se perguntaria “o que é o coreano?” (HAN, 2021a, p. 122). Sua proposta consiste em encontrar uma saída pelo
estrangeiro, pela diferença à globalização que “torna tudo igual e
comparável” (HAN, 2021a, p.124).
Com auxílio de dois exemplos – uma fala de Macron, dizendo ter descoberto
Baudelaire por Benjamin, e versos da canção Göttingen de Barbara –, BCH
(2021a, p. 127) conclui que “pessoalmente, não gostaria de me sentir em casa na Alemanha”. Desse
modo, diz se considerar “um patriota, ou seja, alguém que ama o país, ao
amar a Alemanha e a língua alemã como estrangeiras”. Talvez seja por orações
como essa que BCH evite ser entrevistado, o que não o impediu de se deixar
filmar em construções romantizadas de cenas de seu cotidiano em Berlim (MÜDIGKEITSGESELLSCHAFT, 2015).
Em sua cruzada contra
a eliminação e supressão da estrangeiridade, BCH faz uso de noções da mesma família da
hospitalidade. Talvez seja em Hegel e o poder, um de seus primeiros
textos, o ensaio onde a noção da amabilidade, de Freundlichkeit, tenha
sido analisada com mais extensão. Nele, ela aparece como um contraponto,
desprezado por Hegel em sua analítica do poder, à continuidade do ser em si no
outro. Se a liberdade do conceito é entendida por Hegel como a capacidade de fazer com
que a realidade exterior ao sujeito lhe esteja conforme, essa liberdade do
conceito não é outra coisa do que o poder do conceito de permanecer em si no outro. É
a capacidade do conceito de se exteriorizar e voltar para si nessa realidade: “A realidade exterior deve, portanto, se tornar completamente sua realidade, seu
outro, o ‘seu’, para que ele não se perca na realidade, mas nela permaneça constantemente em si. O
conceito se desfruta na realidade” (HAN, 2005, p. 23). A amabilidade, oposta a
essa continuidade de si no outro, a esse desfrute de si no outro, se mostra
como a desinteriorização e desinteresse do sujeito na realidade, o demorar-se
na expressão do outro enquanto outro.
BCH encontra na arte
dada, em Cage, em Cézanne, mas sobretudo em haicais e poemas zen tradicionais expressões
dessa amabilidade que ele contrapõe ao poder positivo e narcisista do conceito,
do sujeito hegeliano. Embora ele não cite esses poemas na bibliografia final do
pequeno ensaio, é a partir de suas inferências que BCH (2005, p. 31) procura fazer uma
crítica não ingênua a toda uma tradição da filosofia ocidental, na qual ele inclui,
entre outros, também Heidegger, a ponto de contrapor o espírito como interioridade ao espírito como amabilidade: “Bashô diria: espírito não é interioridade, mas
amabilidade”. A amabilidade, em resumo, consiste na relação com o mundo que
deixa com que ele seja “assim”, sem querer transformá-lo em seu – seja seu conceito,
seja sua realidade. É a capacidade de deixar o outro ser assim como ele é.
Se “Cage permite aflorar, no lugar da música
da interioridade, uma música do é-assim, uma música-mundo em
sentido particular, a qual, para Hegel, contudo, seria um ruído desalmado”, é porque sua música designa o silêncio da alma, convertendo o ouvido em “hospedagem” [Gasthaus] do som:
É uma outra expressão para a amabilidade que o ouvido converte em uma hospedagem
para a sonoridade. O “silêncio” não discrimina, não excluí. A amabilidade
da arte consiste no fato do sujeito humano se anular, se reter, e deixar vir à
palavra especialmente as coisas, o mundo, no fato de que, em prol de um
exterior, se desinterioriza, se esvazia de sua interioridade (HAN, 2005, p.
37-9).
Embora em Heidegger a
amabilidade seja caracterizada por uma “saudação à distância”, BCH
(2005, p. 70) aponta para o fato de essa saudação continuar presa à noção
metafísica de essência, já que “saudando, despedem-se em ‘sua própria essência’”. E continua: “A amabilidade do
vazio é mais aberta, mais ampla do que a amabilidade dialógica e da
preocupação com o outro de Heidegger”. Para BCH (2005, p. 71), “A amabilidade do vazio provoca uma continuidade do ser através dos espaços
amplos, uma continuidade, podemos dizer, do mundo. Ela se
distingue daquela continuidade do si mesmo na qual trabalha o poder”.
A amabilidade de
Heidegger é, afinal, percebe BCH, dependente da ideia de Deus. O pensamento do filósofo de Meßkirch permanece “teológico”. Esta passagem é decisiva para entender a
dimensão completa da saída proposta por BCH (2005, p. 93-4): “Heidegger permanece fiel a ‘deus’. Teria
que reconhecer que sob o pressuposto de ‘deus’ nenhum pensamento livre do poder é possível”. Ao analisar o poema tardio “Azul adorável” de Hölderlin, Heidegger,
ao fim e ao cabo, transforma, segundo BCH, a negação radical da
substantificação pressuposta na noção de amabilidade em “benevolência”
divina. Mas, lembra BCH, “o outro do poder pressupõe uma negação
radical desse cercado substantivado, a saber, um vazio. O vazio despoja do
poder todo e qualquer ponto de apoio”. A questão é como interpretar, no poema de Hölderlin, a medida – Maßnahme – segundo a
qual a humanidade “se mede” com o divino. Heidegger vê nela essa benevolência divina. Para BCH
(2005, p. 96-8), entretanto, Hölderlin, “falando enigmaticamente como um mestre zen”, está dizendo que a
amabilidade seria “o
divino no humano”: “Nem na terra nem no céu há uma ‘medida’. A
amabilidade é a medida face à ausência de medida. É uma medida sem medida. Faz com que cada um vigore
respectivamente em seu ser-assim, em seu caráter respectivo”.
Percebe-se, assim,
como a saída para o problema do poder em BCH se aproxima mais da doutrina do
vazio zen-budista do que de uma disputa entre teorias modernas ou pós-modernas,
como sugeriu Villa (2020). Na verdade, com base nesse seu ensaio muito
revelador, a oscilação hesitante entre modernismo e pós-modernismo que
podemos vislumbrar em seu corpus mostra mais como a sua fidelidade está
menos nos aspectos específicos desses regimes discursivos, dessas “epistemes”, do que naquilo que elas contribuem para a noção de
amabilidade, da “amigalidade”, da Freundlichkeit. O que permanece inquestionado e
fidelizado na escritura de BCH são as próprias instâncias nas
quais essas contraposições são possíveis, nas quais é possível contrapor o
vazio do zen-budismo ao pensamento impregnado pelo poder – do sujeito, do
conceito, de deus, do ser, de essência, do substantivo, do pronome... – da tradição “ocidental”.
Nesse sentido, o
(veneno-)remédio que BCH receita para atuar contra o diagnóstico de narcisismo
oriundo do poder (positivo) do conceito é da ordem moral e religiosa. Reencenando o gesto da
Escola de Kyoto, BCH aponta para a falta de desenvolvimento da noção de vazio – que os
autores da Escola de Kyoto chamavam de nada absoluto – na tradição “ocidental”. Faz isso, entretanto, na forma de uma crítica à noção de poder
no interior dessa tradição:
De modo que é pensável uma religião da amabilidade que busca o
infinito, o ilimitado, justamente fora do poder, fora da cumplicidade entre theos
e antropos.
A ideia de uma religião da amabilidade se aproxima muito da religião
budista, na medida em que esta nega radicalmente a substancialidade do ser. Mas
Hegel toma do budismo a amabilidade, na medida em que a força a caber nas
categorias teo-lógicas de “substância”, “essência”, “deus”, “criação”, “poder”
ou “domínio”. Todos esses conceitos negam o budismo. Justamente nisso consiste
a negatividade radical do “não” budista” (HAN, 2005, p. 99-100, 110-1).
É desde sua
interpretação do zen-budismo (ver também HAN, 2020a) como uma
religião a-teo-lógica que
BCH parece apontar para uma saída para fora do poder, que, para ele,
caracterizaria um ethos do budismo. Dentro dessa proposta que devemos entender, por exemplo, a
sugestão, posterior e apenas indicada, mas não analisada, de uma “ética das belas
formas” como contraponto ao “desaparecimento dos
rituais” (HAN, 2021b, p.
112).
V.
O complexo do homem célebre
É preciso compreender
melhor, contudo, de que maneira está acoplada essa reflexão moral e religiosa
da amabilidade como linha de fuga do poder com a tarefa da filosofia de pensar
o presente. É nesse movimento que se pode surpreender BCH em seu plano de
fuga, em sua rede desejante. Como foi dito, ao contrário do que Santiago Villa
(2020) afirma, não é ao “pós-moderno”, ou ao “romântico
alemão” (moderno) que BCH se filia. Em contrapartida,
Villa vislumbra, de certo modo acertadamente, o teor do plano de fuga dessa
hesitação de BCH ao chamá-lo de “o oriental orientalista”. Nisto
surpreendemos um rastro dessa fuga: na confrontação comparativa entre
filosofias “ocidentais” “modernas” e “pós-modernas” e filosofias “orientais”, o que BCH tem de potente é também sua fraqueza.
Pois, de um lado,
pode-se entrever, desde sua posição lateral no interior do domínio filosófico
alemão na Alemanha, que seus exercícios de comparativismo filosóficos
fazem desarticular e desprogramar os sistemas e os pensamentos por demais
europeus, por demais colonizadores. Nesse sentido, o pensamento “ocidental” e a sua técnica a ele vinculada estão baseados no poder positivo, no se
continuar em si mesmo no outro, como aquilo do que não se pode escapar – esse,
afinal, também o diagnóstico do honconguês Yuk Hui (2021), que propõe a noção de tecnodiversidade
como uma forma de se contrapor à positividade do framing ou programa técnico-epistemológico europeu e colonial.
Os livrinhos de BCH podem ser compreendidos, nesse aspecto, como exercícios
tentativos de provincializar a Europa, sua filosofia e seu pensamento. Por
outro lado, contudo, também deve-se distinguir nesse mesmo gesto desterritorializante, de
uma filosofia e língua menores (um coreano escrevendo em alemão sobre filosofia
alemã) ou lateral dentro de uma tradição maior, um movimento de territorialização
que lhe é inerente, no próprio sentido de sua afirmação de que seria um patriota alemão em sua
condição de estrangeiro naturalizado.
Seria possível dizer que a própria comparação de filosofias
não se furta da lógica do
poder, das relações de subalternidade do conhecimento e da escritura filosófica e que
– justamente este o xis da questão – essas relações não são, elas mesmas,
postas em questão nessas operações, nesses exercícios comparativísticos da
tarefa da filosofia. De certo modo, Han nunca deixa de ter em vista uma
escritura filosófica que não tenha algo de patriota alemão, de bom
europeu, de herdeiro da Europa, como diria Nietzsche,
que não seja, no limite, um expoente da filosofia alemã. Sua abordagem
de aspectos da filosofia oriental se dá desde essa perspectiva. Nesse sentido,
reproduzindo sua formação filosófica acadêmica alemã,
sem pô-la em questão quanto à sua própria técnica e aos modos de
operação, se mostra um efeito do seu sistema de notação. É desde esse lugar que
pode falar de uma nova era do poder positivo, em que relações de violência
do poder já não seriam mais a regra. Fora preciso antes, além disso, também borrar as relações
de subalternidade no interior da própria filosofia “oriental” – ou, pior,
“não-europeia”. Pois a gente pode apenas
imaginar, por exemplo, como seria a abordagem de BCH de propostas como as de
Viveiros de Castro (2015) de uma “metafísica selvagem”, ou de reflexões como as de
Mbembe sobre a “necropolítica”.
Ao criticar a posição
daqueles que consideram que as tecnoimagens transformam a realidade num
espetáculo, Susan Sontag (2003, p. 92), em Diante da dor dos outros,
tece uma crítica às generalizações que partem das “regiões de países
abastados” muito pertinente também à abordagem de BCH, já que, sem muitas perdas, “espetáculo” pode
ser traduzido ou trocado de modo equívoco por “poder positivo” ou
positividade na expressão “sociedade do espetáculo”/”da
positividade”:
Dizer
que a realidade se transforma num espetáculo é um provincialismo assombroso.
Universaliza o modo de ver habitual de uma pequena população instruída que vive
na parte rica do mundo, onde as notícias precisam ser transformadas em
entretenimento [...]. Supõe que todos sejam espectadores. De modo impertinente
e sem seriedade, sugere que não existe sofrimento verdadeiro no mundo. Mas é
absurdo identificar o mundo a essas regiões de países abastados onde as pessoas
gozam o dúbio privilégio de ser espectadores ou furtar-se a ser espectadores da
dor de um outro povo.
Reproduzindo esse “assombroso provincialismo” universalizante que sugere que não haveria “sofrimento verdadeiro
no mundo”, BCH pode ser surpreendido como sendo a atualização do complexo do
homem célebre, explorado
por Machado de Assis (1994 [1888]) no conto “Um homem célebre”. Convivendo, como um “oriental” na Alemanha, com os clássicos da tradição “ocidental”, tal como Pestana, personagem central do conto, o faz desde
o Rio de Janeiro, produz seus livrinhos, suas polcas, que se tornam muito
populares. O desejo do homem célebre, no entanto, seria publicar algo grandioso, digno da
imortalidade. Algo universal, não marcado pela diferença colonial, pelo
provincial, pela moda. Seu sucesso só pode ser seu insucesso: “Essa lua-de-mel durou
apenas um quarto de lua. Como das outras vezes, e mais depressa ainda, os velhos
mestres retratados o fizeram sangrar de remorsos” (ASSIS, 1994, p. 1261). Nesse
desencontro que é possível entrever a
potência e a fraqueza da atividade desse homem. Nele, se vê capturado e
desenvolve, hesitante, suas aventuras filosóficas, suas polcas,
seus livrinhos, suas fugas, analisando as implicações do poder positivo nas
mídias e nas patologias psíquicas.
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[1] Na entrevista “O
Eros vence a depressão” contida em Capitalismo e impulso de morte, BCH
(2021, p. 148) alude a uma mudança no sistema de notação sul-coreano entre a
época em que estudou e os dias de hoje: “nos tempos que eu ia para a escola
havia nas salas de aula máximas enquadradas contendo conceitos como paciência,
aplicação, e assim por diante: os slogans clássicos de uma sociedade da
disciplina. Hoje, contudo, o país se transformou em uma sociedade do
desempenho, e essa transformação foi realizada de maneira mais rápida e brutal
do que em qualquer outro lugar. Ninguém teve tempo para se preparar para a mais
dura variante de todas do neoliberalismo. De repente, tratava-se de poder e não
mais de dever ou ter quê. As salas de aula hoje estão repletas de frases como:
‘sim, você pode!’”
[2] Tradução equívoca,
pois em mais de um lugar BCH (2017b, p.
242-3) reitera que “classes” seria um conceito ultrapassado para pensar o mundo
atual, em que a lógica do poder teria sido introjetada dentro de nós mesmos, em
que somos os “senhores” de nós mesmos, nos “[autoexploramos]”. Para ele,
caminhamos, se é que já não estamos, em uma sociedade sem classes, em que “ninguém
domina”. Essa frase vem seguida de uma crítica a “Hardt e Negri [que]
praticamente não levam em consideração as realidades político-econômicas”. A
“multidão é praticamente a única classe existente na globalização.
Pertencem a ela todos os que participam do sistema capitalista. Ela não
tem, pois, uma classe dominante à qual deva se contrapor e combater. No império,
cada um está submetido ao imperativo da economia capitalista; ele não é
uma classe dominante que explora a multidão como proletariado. Ao contrário,
ela explora a si mesma. Hardt e Negri não percebem essa autoexploração”.
Com efeito, não percebem essa autoexploração, e talvez ela, como forma
de atuação do poder positivo do “império”, seja a contribuição de BCH à tarefa
da filosofia. Mas é também BCH que, ao tentar trabalhar ao máximo com a noção
de poder positivo, deixa de lado as “realidades político-econômicas, edificando
seu modelo teórico” não sobre “categorias ultrapassadas”, sem perceber nem o
quanto deve a elas, nem levar em conta o aumento da concentração de renda e da
desigualdade sócio-econômica inéditos desde o fim da 2ª Guerra Mundial.
[3] Seria possível,
nesse sentido, ver no livrinho destinado às “massas” O que é
ideologia de Marilena Chauí, cuja primeira edição data de 1980, um
antecessor do corpus de BCH. Lá, ela diz, por exemplo: “se a dominação e
a exploração de uma classe forem perceptíveis como violência, isto é, como
poder injusto e ilegítimo, os explorados e dominados sentem-se no justo e
legítimo direito de recusá-la, revoltando-se. Por esse motivo, o papel
específico da ideologia como instrumento da luta de classes é impedir que a dominação
e a exploração sejam percebidas em sua realidade concreta” (CHAUÍ, 2008, p.
93). Ou ainda: “a ideologia não é um ‘reflexo’ do real na cabeça dos homens,
mas o modo ilusório [...] pelo qual representam o aparecer social como se tal
aparecer fosse a realidade social” (CHAUÍ, 2008, p. 95). A seguir, passa a
analisar, no quinto e último capítulo, a “Ideologia da competência” quase uma
antessala ao Sociedade do cansaço de BCH, já que se trata aqui de,
pensando as mudanças do capitalismo nos últimos tempos, encontrar nele o
surgimento de uma “ideologia invisível”, termo cunhado por Lefort, ideias sem pais,
que “parecem emanar diretamente do funcionamento da Organização e das chamadas
‘leis do mercado’” (CHAUÍ, 2008, p, 104). Chauí (2008, p. 105), no entanto,
critica essa noção, preferindo chamá-la de “ideologia da competência”, por
considerar que a divisão de classes, “hoje”, seria resumida “entre os que
possuem poder porque possuem saber e os que não possuem poder porque não
possuem saber”.
[4] “Não há, pois,
caminho de volta para lá, nas sombras,/ onde habita o amor e a lembrança dos
tempos? Aonde se dirige, em poeira, o caminho?”
[5] Segundo a
categorização de seus próprios textos (FLUSSER, 1974, PORT_BR_ART 31_2013-01-25
(4)) em carta a Mira Schendel.
[6] Quem apontou o
orientalismo do “oriental” foi Santiago Villa (2020) no artigo “El orientalista
de Oriente: las fracturas en el texto viral de Byung-Chul Han”. Conclui seu
artigo em que analisa o texto intervencionista do coreano sobre a COVID-19,
assim: “Han no es un asiático posmoderno: es un filósofo del romanticismo
alemán”. Embora suas críticas sejam pertinentes, vale ressaltar que o frenesi
que este artigo causou em certa intelectualidade alemã mal dissimula as
circunstâncias de trabalho de BCH, um “oriental” ou “asiático”, às margens das
universidades alemãs. Chama a atenção, assim, que Villa afirma de início não
ter lido nenhum livro de BCH. Neste artigo ensaístico que escrevo, a partir de
algumas entradas em determinados temas do corpus de BCH, queremos tornar
esse juízo mais complexo, distinguindo suas linhas de fuga e traços desejantes.
Para o texto de BCH sobre a pandemia, ver HAN, 2020b.
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