Revista Sísifo. N° 14, Julho/Dezembro 2021. ISSN 2359-3121. www.revistasisifo.com
Carlos Daniel de Souza Martins
Graduado em Filosofia pelo Centro
Universitário Salesiano de Vitória (ES). E-mail: carlosdanielsm99@gmail.com.
Talita Cristina Garcia
Graduada em Filosofia pela
Universidade São Judas Tadeu; Doutora em História Social pela Universidade de
São Paulo. E-mail: talitacgarcia@yahoo.com.br
Resumo: É notável na
sociedade contemporânea uma diversidade de crises que assolam a humanidade em
seus diferentes campos de relação. Fala-se muito em crise econômica, crise
política, crise cultural, crise moral e ainda muitas outras formas específicas
de conflito. Nota-se, porém, que o ser humano está na base dessas manifestações
fragmentárias, pois ele se encontra no centro das diversas formas de expressão
cultural. Isso nos permite dizer que o cerne das diferentes crises encontradas
na contemporaneidade é a própria crise humana que, tendo rompido sua unidade
estrutural, encontra-se fragmentada e sem sentido. Diante disso, este artigo
teve por objetivo compreender a fragmentação humana, dentro das rupturas
ocorridas no contexto moderno-contemporâneo, a partir dos conceitos
fundamentais da antropologia filosófica de Henrique Claudio de Lima Vaz. Esta
pesquisa utilizou metodologia de revisão bibliográfica, e ao final do artigo,
pretendeu evidenciar a necessidade de autorrealização do ser humano na unidade
de suas categorias, reafirmando a dignidade da pessoa humana.
Abstract: It is notable in
contemporary society a diversity of crises that plague humanity in its
different fields of relationship. There is much talk of economic crisis,
political crisis, cultural crisis, moral crisis and many other specific forms
of conflict. It is noted, however, that man is at the base of these fragmentary
manifestations, as he is at the center of the various forms of expression of
culture. This allows us to say that the heart of the different crises found in
contemporary times is the very crisis of man who, having broken his structural
unity, is fragmented and bewildered. With this, the objective is to understand
human fragmentation, within the ruptures that occurred in the
modern-contemporary context, from the fundamental concepts of philosophical
anthropology by Henrique Claudio de Lima Vaz. For this, an exploratory
methodology was used, which is based on a bibliographic research. Thus, at the
end of the article, the need for self-realization of man in the unity of his
categories is evident, reaffirming the dignity of the human person.
Keywords:
Philosophical Anthropology. Lima Vaz. Human Fragmentation.
1 INTRODUÇÃO
Henrique
Claudio de Lima Vaz (1921 – 2002), padre jesuíta e filósofo brasileiro, é
considerado com grande destaque entre as mentes intelectuais das últimas
décadas no Brasil. Com uma escrita fortemente sistematizada, Lima Vaz procura,
através da dialética hegeliana, esclarecer o ser humano, a ética, o mundo, a
cultura, a história e a transcendência numa análise filosófica da realidade
sociocultural. Seu processo metodológico, em vista de um desenvolvimento
filosófico, está ligado diretamente à rememoração da discussão conceitual ao
longo da história (FERREIRA, 2009, p. 26).
A
intenção de responder à pergunta sobre “o que é o homem?” é a principal
motivação para os estudos antropológicos de Lima Vaz. O caminho para essa
resposta se dará ao longo do resgate e da reflexão acerca das diversas imagens
de ser humano, elaboradas no itinerário filosófico dos períodos clássico,
medieval, moderno e contemporâneo.
Para
Vaz (2014, p. 159), a integração entre a tradição clássica (greco-romana) e a
tradição bíblico-cristã oferece duas contribuições fundamentais para ideia de
ser humano: o homem como portador de uma razão universal (animal rationale)
e dotado da liberdade de escolha (liberum arbitrium). Essas duas
características colocam a antropologia filosófica na interseção entre a
Metafísica e a Ética.
Entretanto,
a partir do século XVIII, a ideia de ser humano, herdada pela tradição
filosófica ocidental, é dissolvida em meio as novas ciências do homem e da
natureza, como a Psicologia e a Biologia. O desequilíbrio entre as dimensões
material e espiritual no avançar da modernidade provoca rupturas que afetam e
fragmentam a própria unidade ontológica do ser humano e descaracterizam o seu
modo de vida propriamente humano (VAZ, 2014, p. 14).
Por
conseguinte, entendemos que a reflexão sobre o ser humano se encontra no cerne
das diversas formas de interpretação do homem, como a Antropologia, a
Psicologia, a Filosofia e a Cultura. Além disso, uma vida fragmentada, sem a
unidade de suas estruturas, apresenta sintomas que prejudicam a ela mesma:
vícios, consumismo, banalização do sexo, violência, depressão e suicídio. Tais
sintomas se estendem do indivíduo à relação social da família, da educação, do
trabalho, da cultura e da arte, da forma de governar e, principalmente, da
ética (FRANCA, 2019).
Nesse
contexto, encontramos a possibilidade de elaborar uma reflexão sobre o problema
que orienta este artigo: como compreender a fragmentação humana a partir das
categorias propostas pela Antropologia de Lima Vaz?
Assim,
desenvolvemos este trabalho, numa metodologia de cunho exploratório e de
pesquisa bibliográfica, a fim de: conceituar as categorias fundamentais do ser
humano em Lima Vaz; refletir sobre a categoria Espírito como “modo de vida
propriamente humano”; definir o contexto em que se insere a fragmentação humana
e, por fim, abordar suas consequências existenciais e sociais.
2
A UNIDADE CATEGORIAL DO SER HUMANO
A obra de Vaz
(2014), “Antropologia Filosófica”, é composta por duas partes. Na primeira,
o filósofo apresenta os conceitos antropológicos elaborados pela
tradição filosófica e inicia a sistematização de seu pensamento.
Nele, o ser humano é reconhecido como ser constituído de
categorias: o corpo próprio, a psique e o espírito. Na
segunda parte, Vaz (1992) continua apresentando a constituição humana
nas relações de objetividade, intersubjetividade e transcendência.
Ao desenvolver esses conceitos, Lima Vaz indica a unidade
ontológica entre essas categorias como processo de realização do homem
enquanto pessoa humana, ao que ele denominará categoria da realização
e categoria da pessoa.
Para tal fim,
Vaz (2014) distingue a compreensão do ser humano em três momentos, ou domínios,
fundamentais de seu procedimento metodológico: a pré-compreensão, a compreensão
explicativa e a compreensão filosófica ou transcendental. Nesses estágios se pode
identificar a evolução da percepção do homem sobre si mesmo, desde uma análise
exterior de si a uma visão global e transcendente da realidade.
Por
conseguinte, o filósofo articula o seu pensamento e o desenvolvimento das
categorias antropológicas através de um movimento dialético chamado
suprassunção. Nele, o ser humano afirma-se enquanto sujeito (S) que passa do
mundo da natureza (N) ao mundo da forma (F) ou da significação:
Esse movimento dialético, que se pode
representar com o esquema (N) – (S) – (F), aparece como constitutivo do
ser-homem em todos os momentos de sua autocompreensão [...], pois exprime
a lógica do seu ser [...] estruturada como movimento de
suprassunção (Aufhebung) da Natureza na Forma pela mediação do Sujeito
no sentido estrito de sua subjetividade ou de sua egoidade [...]
(VAZ, 2014, p. 166 – grifos do autor).
Assim, neste
primeiro momento, desejamos expor as categorias e as relações humanas propostas
por Lima Vaz, no intento de demonstrar a necessidade de sua integração frente
aos desafios impostos por uma sociedade dirigida pela lógica do consumo e da
satisfação pessoal.
2.1
O corpo próprio e o psiquismo
O primeiro
problema que se apresenta na discussão conceitual de
Vaz (2014, p. 177) é a presença imediata do ser humano no
mundo através de seu corpo. O processo de autocompreensão humano encontra
seu início no entendimento dessa condição corporal. Porém, o autor não se
refere ao corpo meramente físico-biológico. Lima Vaz aborda essa temática
numa categoria específica denominada corpo próprio, com uma dimensão
intencional singular do sujeito, que o difere dos demais entes
corpóreos.
Dessa forma, o
início da pré-compreensão do corpo próprio, ou seja, da imagem de corpo
formada pela experiência que o indivíduo faz de si mesmo, dá-se na distinção
entre a presença natural do ser humano no mundo e sua intencionalidade.
Enquanto
presença natural, o homem se encontra sujeito às leis da natureza. É
um estar-no-mundo passivo às circunstâncias e às determinações de sua estrutura
físico-biológica. Enquanto presença intencional, o homem fundamenta sua
atividade como sujeito. É o ser-no-mundo que possibilita o domínio e a
organização de sua vida numa dimensão propriamente humana (VAZ, 2014, p. 179).
Porém,
para Andrade (2016, p. 36), a
pré-compreensão dessa estrutura não constitui, de fato, uma explicação, antes é
um tipo de conhecimento advindo do senso comum, que necessita ser
esclarecido.
Segundo Vaz
(2014), é na compreensão explicativa que se pode descrever e entender a
estrutura humana cientificamente, com procedimentos e normas próprias
do conhecimento empírico-formal. Na intenção de explicar o que é o
corpo, o sujeito capaz de abstrair apoia-se em observações e
experiências para submetê-lo às ciências da natureza, particularmente
à Biologia.
Entretanto,
ainda que o corpo possa ser objeto científico tal como dado na natureza,
não há como reduzi-lo na supressão de sua referência humana e de sua integração
na totalidade da vida, pois existe uma “impossibilidade de uma descrição
estritamente objetiva do corpo humano [...]” (VAZ, 2014, p. 181).
Assim, o que
desejamos ressaltar nessa categoria é expresso com maior profundidade
na compreensão filosófica da corporeidade. Segundo Vaz (2014, p. 186), é nesse
plano que se percebe a tensão entre o corpo-objeto e o estabelecimento do
sujeito como corpo próprio. Se, por um lado o ser
humano é apresentado na objetividade das coisas e se
submete às leis da natureza, por outro, ele denuncia a presença de uma interioridade
intencional.
Por
consequência, embora o corpo próprio seja constitutivo do ser humano,
ele não é capaz de definir o homem em sua totalidade. Conforme ensina Vaz
(2014, p. 187):
[...] o princípio de totalização impele esse
discurso para além dos limites da presença imediata do homem no mundo pelo
corpo. Essa presença não é, portanto, a presença total do homem a si mesmo, ou
ela não implica a plena relação de identidade do homem consigo mesmo que
exprime o seu ser.
Dessa forma, a
presença intencional do ser humano ao corpo próprio indica a direção de um
caminho além da fronteira material e de sua
dimensão físico-biológica. Segundo
Ferreira (2009, p. 49), “[...] a corporeidade própria do ser humano aponta para
a existência de uma vida interior, que anima e dirige o seu corpo, tornando-o
capaz de tomá-lo como instrumento de expressão, ação e de intervenção na
realidade”.
Esse caminho
interior é organizado na categoria do psiquismo como primeiro estágio
de interiorização da realidade natural. A psique, consoante Vaz
(2014), exerce uma posição mediadora entre o corpo próprio (somático), como
exterioridade do ser humano no mundo, e o espírito (noético-pneumático), como
interioridade absoluta.
Na
pré-compreensão do psiquismo, o ser humano plasma sua expressão na constituição
de um mundo interior através do imaginário (representação) e do afetivo
(pulsão), de modo que o espaço-tempo do mundo é submetido à interiorização. Por
consequência, a temporalização do espaço em sucessivos estados da memória
configura um ritmo próprio do Eu que surge como centro do mundo interior e
possibilita o início de uma delineação da consciência individual (ANDRADE,
2016).
Durante a
compreensão explicativa do psiquismo, Vaz (2014) aponta a busca do ser humano
para compreender o seu interior através dos métodos das ciências
empírico-formais. Embora o principal modelo epistemológico dessa categoria seja
a Psicologia, seu significado como ciência da alma não indica coerentemente o
alvo de seus estudos, pois é próprio desse modelo a investigação daquilo que
pode ser experimentado.
Dessa forma, o
psiquismo pode ser observado pelas “psicologias” através de sua expressão
comportamental ou dos estímulos que lhe são oferecidos. Entretanto, Vaz (2014)
aponta nessa relação uma impossibilidade de eliminar o sujeito interior e de se
objetivar completamente a manifestação dessa realidade.
Assim, o
filósofo avança com maior profundidade na compreensão filosófica da psique humana
e reforça a tensão entre o psíquico e o somático, que é destacada em
consonância com a tensão entre o psíquico e o noético. Como foi dito, a
categoria do psiquismo é marcada por sua posição mediadora entre o corpo e o
espírito. Além disso, a oposição entre a unidade da consciência e a diversidade
de suas formas psicológicas apresenta o próprio Eu como sujeito unificador da
vida psíquica, favorecendo a unidade ontológica do ser do homem (VAZ, 2014, p. 197).
Da mesma forma,
como vimos no corpo próprio, ao afirmar-se enquanto psiquismo o homem nega essa
categoria como realidade máxima de seu ser. A totalidade de sua
constituição não pode ser reduzida apenas ao somático ou, nesse caso, ao
psíquico.
Por
conseguinte, tendo em vista o perigo de fechar a subjetividade do sujeito
dentro de um egocentrismo, Pozzo (2014, p. 38) afirma que:
[...] apesar do homem ser constituído de
apetites e desejos, memórias e emoções, o seu ser não se limita ao psiquismo
[...]. O psiquismo é parte constitutiva do ser do homem e não sua totalidade.
Há outra dimensão que transcende a própria interioridade do homem, que o lança
para além, na busca de algo mais profundo [...].
É na tentativa
de superar o reducionismo ao corpo, ou ao psiquismo, que Vaz (2014) destaca
uma forma superior de objetividade: na categoria espiritual, o ser humano
encontra uma verdadeira unidade ontológica entre suas estruturas, de forma que
nela se configura a vida como propriamente humana.
2.2
O espírito como modo de vida propriamente humano
O discurso
conceitual sobre o ser do homem chega ao seu ápice com a categoria do espírito,
que é o nível mais profundo de sua estrutura ontológica. Segundo Vaz (2014, p.
203), sem a categoria do espírito não seria possível iniciar um discurso sobre
o ser do homem, pois é a partir dela que se pode questionar: o que é o homem?
Para Vaz
(2014), o ser humano é constituído de corpo próprio, psiquismo e
espírito, mas este não se reduz a estrutura biopsíquica, que
está ligada à contingência e à finitude:
O espírito é, segundo a terminologia clássica, uma perfectio
simplex: em si mesmo, atualidade infinita de ser. Por isso mesmo, é
pelo espírito que o homem participa do Infinito ou tem
indelevelmente gravada em seu ser a marca do Infinito (VAZ. 2014, p. 205 –
grifos do autor).
Segundo Vaz (2014),
essa noção do espírito como participante do Ser, somente é possível segundo uma
analogia de atribuição:
[...] Deus é dito sábio não somente porque
produz a sabedoria, mas também porque, enquanto somos sábios, de certo modo
imitamos a sua virtude, mediante a qual nos faz sábios. Contudo não se diz que
é pedra, embora tenha feito as pedras, porque por este nome entende-se um
determinado modo de ser, segundo o qual a pedra distingue-se de Deus. A pedra,
no entanto, imita Deus, como sua causa, quanto ao ser, à bondade e a
outras perfeições, o que acontece também com as demais criaturas (TOMÁS DE
AQUINO, Suma Contra os Gentios, I, XXXI, 1; 1990, p. 73-74).
O Aquinate
apresenta o ser como termo análogo, ou seja, como aquilo que se aplica tanto a
Deus quanto à pedra, pois Deus e pedra são, isto é, possuem ser. Entretanto, Deus não
possui causa, mas é causa da pedra, de forma que, ao existir por si mesmo,
oferece subsistência à pedra criada, como participante de seu Ser. Assim
asseveram Reale e Antiseri (1990, p. 561):
O fundamento metafísico da analogia está no fato
de que causando a causa transmite-se a si mesma, de certo modo. A
semelhança não é uma qualidade adicional, mas sim coessencial à natureza do
efeito, do qual nada mais é do que o sinal externo.
Da mesma
forma, podemos atribuir essa analogia ao homem, pois, assim como o ser, a noção
de espírito enquanto categoria constitutiva do homem, também é um termo
análogo, que possibilita a participação do espírito do homem, enquanto analogatum
inferius, no Espírito Absoluto, enquanto Princeps Analogatum.
Assim, a categoria espiritual é ponte para o Absoluto, e revela o ser humano
como ser de fronteira entre suas dimensões material e espiritual (VAZ, 2014, p.
205).
Por
conseguinte, a experiência da pré-compreensão espiritual manifesta o momento
singular em que o homem está presente a si mesmo e está presente no mundo. Pelo
espírito, somático e psíquico são suprassumidos como participantes da
manifestação do ser, tirando o homem de sua condição natural para ser-no-mundo.
Conforme entende Vaz (2014, p. 208 – grifos do autor): “[...] as
pré-compreensões do somático e do psíquico [...] só são possíveis como esboço
ou primeiro passo da pré-compreensão do espírito ou da experiência
espiritual”.
Ainda segundo
Vaz (2014), a pré-compreensão do espírito caracteriza o surgimento da
consciência racional. Nela, o ser humano se opõe dialeticamente ao mundo como
presença reflexiva, na qual o mundo se torna para ele compreendido e
significado através de representações e linguagens. Assim, podemos dizer que o
ser do homem, pela expressão do espírito, é um ser de linguagem.
Na compreensão
explicativa, diferentemente do que dissemos sobre o corpo, existe uma
impossibilidade de se objetivar o espírito segundo os princípios e métodos
empírico-formais, pois a própria ciência é uma manifestação operativa do
espírito. Conforme Vaz (2014), o que pode ser explicado nessa compreensão são
as atividades manifestadas pela experiência espiritual em sua estrutura, forma
e condição, como o conhecimento intelectual na lógica, o ato livre na
psicologia da vontade e a linguagem nas ciências que a
estudam.
Assim,
consoante Vaz (2014), todas as ciências são, na verdade, ciências do espírito,
pois é somente através dele que “[...] o homem opera humanamente e produz obras
propriamente humanas” (VAZ, 2014, p. 213). Dessa forma, os estudos do somático
e das manifestações do psíquico, em suas compreensões explicativas, são também
um estudo da manifestação espiritual.
Na sequência,
a compreensão filosófica dessa categoria aponta uma tensão entre o categorial e
o transcendental, ou seja, entre o espírito que constitui e afirma o ser do
homem e a transcendência que ultrapassa os limites conceituais da
antropologia:
No sentido categorial é a condição intrínseca
de possibilidade do espírito que pertence a estrutura transcendental do ser do
homem, ou seja, uma categoria ontológica interior do discurso, no qual se
afirma o ser do homem. No sentido transcendental, que é o clássico, o espírito
é entendido em correlação à noção analógica de ser, que ultrapassa o homem e
vai na direção do Espírito absoluto e infinito como princeps analogatum (ANDRADE,
2016, p. 65).
Dessa forma,
segundo Vaz, o homem existe em sua abertura transcendental à universalidade do
ser, com capacidade de exercer a contemplação da verdade, e liberdade para ir
em direção ao amor desinteressado do bem. A partir dessas características, o
homem se afirma como ser racional e livre, propriamente
dito: ser-para-a-verdade e ser-para-o-bem (VAZ, 2014).
A vida,
segundo o espírito, é a fonte original da qual flui o ser do homem enquanto
presença e unidade. Conforme Vaz (2014), só o espírito é presente a si mesmo.
Com efeito, só pelo espírito o homem está presente a si, no autoconhecimento e
na autodeterminação. Por conseguinte, corpo e psiquismo são integrados pelo
espírito ao existir total do homem:
[...] sendo somática e psiquicamente
determinada, a vida humana não pode ser denominada com propriedade “a vida
segundo o corpo” ou “vida segundo o psiquismo”. É vivendo segundo o espírito
que o homem vive humanamente a vida corporal e a vida
psíquica. Todos os saberes normativos sobre a vida humana (a Religião, a Ética,
a Política...) pressupõem essa primazia determinante do espírito na definição
da vida humana enquanto humana (VAZ, 2014, p. 240 – grifo do autor).
Assim,
enquanto constituído de corpo-próprio, o homem se insere intencionalmente no
mundo; enquanto constituído de psiquismo, ele esboça sua consciência através
dos sentimentos e da emoção; e, por fim, enquanto constituído de espírito, o
ser humano se afirma como ser-no-mundo, dotado de inteligência e liberdade, de
forma que Vaz (2014) atesta a vida propriamente humana como a vida segundo o
espírito, e encerra nele o discurso sobre as estruturas que constituem o ser do
homem.
2.3
Objetividade, intersubjetividade e transcendência
Partindo das estruturas
ontológicas necessárias para constituição do ser do homem, Vaz apresenta as
relações fundamentais do ser humano. Nelas se encontram a possibilidade de
relacionamento com o mundo, com o outro e com o Absoluto. Assim, a
relação de objetividade designa, segundo Vaz (1992), o primeiro contato do ser
uno, ou seja, do ser enquanto unidade entre corpo, alma e espírito, com a realidade exterior. Com
esta categoria:
[...] o mundo se apresenta
como mundo dos objetos, homólogo ao nosso corpo na localização
espácio-temporal, como mundo das representações e desejos no
espaço-tempo da interioridade psíquica, e como mundo das significações e dos
fins no domínio do espírito (VAZ, 1992, p. 21 – grifos do autor).
Por
conseguinte, Vaz (1992) expõe o ser humano como animal symbolicum,
ou seja, como ser capaz de explicar o mundo através de significações, tendo a
natureza como lugar do fazer produtivo (poiética) e da contemplação
(theoria).
Tendo visto o
ser humano como ser-para-o-mundo, Vaz (1992) demonstra ainda, a
necessidade de uma relação recíproca através de uma exigência da linguagem.
Sendo o mundo-natureza incapaz de corresponder a essa necessidade, suscita-se
assim, o aparecimento de um outro sujeito no horizonte do mundo.
Dessa forma, a
relação recíproca entre os sujeitos terá lugar na coexistência com o outro, ou
como define Vaz (1992), a intersubjetividade constituirá o ser humano
como ser-com-o-outro, ou ainda como ser-em-comum, de
forma que o mundo se torna para nós a possibilidade de encontro do sujeito com
seu semelhante, ou seja, com um outro sujeito constituído da mesma unidade
entre corpo, alma e espírito, ou ainda como define Vaz (1992, p. 65), “[...] um
reconhecimento, expresso na identidade dialética do Eu com o não-Eu como Eu (alter
ego)”.
Embora o homem
se apresente, a partir de sua intersubjetividade, numa comunidade de sujeitos,
Vaz (1992, p. 76) expõe que não é possível torná-la horizonte último
da relação humana pois, pelo espírito, ele está aberto a uma interioridade mais
profunda, que impede a consideração do Eu como um nós.
Com a
transcendência, essa nova forma de relação está intimamente ligada ao espírito
e à unidade que ele confere. Através dela o sujeito se difere da realidade
imediata, de forma que o conceito de transcendência se opõe ao conceito de
imanência:
O imanente designaria, nesse caso, o âmbito do
mundo como horizonte englobante das experiências imediatas do homem, ao passo
que o transcendente se referiria às realidades supostamente existentes para
além das fronteiras do mundo e postuladas como causa, fundamento ou modelo
ideal das realidades mundanas (VAZ, 1992, p.99).
Assim, Vaz
(1992) define a categoria da transcendência como solo onde se encontram, nas
profundezas de suas raízes, todas as experiências humanas. Por consequência,
existe uma impossibilidade de reduzi-las a contingência e ao efêmero sem antes
passar pela relação propriamente transcendente em torno da verdade, da bondade,
da beleza e, principalmente, da unidade.
3
O ABANDONO DO HOMEM ESPIRITUAL
Tendo
explanado as definições estruturais e as relações fundamentais do ser humano,
recorda-se aqui a questão existencial própria do homem ao perguntar-se quem ele
é. Vaz (1992, p. 227) apresenta a realização da unidade entre essas categorias
como uma resposta adequada ao questionamento
“o que é o homem?” na síntese admirável: “[...] dos níveis de ser, em si
mesmos irredutíveis, que nele se unem, sem se confundir, [...] enunciada nessa
única proposição: o homem é pessoa.”
Dada a conceituação antropológica de Lima Vaz, na qual o ser
humano se caracteriza como constituição ontológica entre as estruturas do corpo
próprio, do psiquismo e do espírito, e que se expressa através de suas relações
de objetividade, intersubjetividade e transcendência, busca-se aqui, delinear o
caminho proposto pelo autor para entender a fragmentação humana ao longo da Modernidade.
O período que desejamos analisar brevemente:
[...] pretende designar especificamente o terreno da
urdidura das ideias que vão, de alguma maneira, anunciando, manifestando ou
justificando a emergência de novos padrões e paradigmas da vida vivida (VAZ,
2002, p. 12).
Consoante Vaz (2002), a aurora da Modernidade é anunciada ao
apagar das últimas luzes que iluminavam a Idade Média. Os séculos XIII e XIV
serão períodos de profundas mudanças nas estruturas sociais, econômicas,
políticas, e, principalmente, intelectuais. O arborescer de um novo fluxo
cultural, novas ideias, novos métodos e novos problemas darão origem às
rupturas e inversões que desenvolverão o pensamento moderno.
Todavia, não iremos à profundidade dessas raízes complexas e
vastas, mas caracterizaremos alguns princípios teóricos que levam a discussão
central de nossa argumentação, isto é, o abandono do homem espiritual.
3.1 Ruptura da estrutura analógica
da razão
Ao traçar um caminho para compreender o desenvolvimento da
racionalidade moderna, Vaz (1995) recorre à tradição clássica-medieval, que
define a Razão pela sua abertura transcendental ao Ser e sua total
reflexividade consigo mesma.
Conforme o entendimento de Aristóteles, adotado pelo
pensamento medieval, o saber é divido em três formas da razão: a) razão
teórica, relacionada a verdade e voltada para a transcendência e contemplação
do cosmos; b) razão prática, relacionada ao bem e direcionada ao agir
virtuoso; c) razão poiética, relacionada à técnica e situada no domínio
operacional do objeto pelo homem (OLIVEIRA, 2013).
Essa diversidade de racionalidades encontra uma unidade
através da razão teórica, ou filosófica. No conhecimento clássico, a
contemplação corresponde à dignidade mais elevada da Razão, que ordena e
orienta os demais saberes. Segundo Vaz (1995), o cosmos aristotélico é
tão perfeito que o ser humano não pode adicionar nenhum outro elemento a ele,
devendo sobretudo contemplar a harmonia já existente, de forma que a teoria
estabelece uma primazia ao polo metafísico da razão.
A unidade dessa distinção só pode ser entendida
coerentemente na noção de analogia, conceito fundamental no pensamento de Lima
Vaz. Como visto na categoria do espírito, essa noção é compreendida, na esteira
de Tomás de Aquino, como uma identidade na diferença[1],
de forma que, mesmo diferentes, os termos análogos possuem uma parcial
semelhança. Explica Andrade (2016, p. 103):
Tomás [...] compreende que o Ser tem múltiplos sentidos
[...]: ele distingue, com mais precisão, o ser das criaturas, separável da sua
essência e, portanto, criado, do ser de Deus, idêntico à essência e, portanto,
necessário. Os dois significados de ser não são unívocos, ou seja, idênticos, nem
equívocos, isto é, simplesmente diferentes, entretanto são análogos, quer
dizer, semelhantes, mas em proporções diversas.
Assim, embora se possa dizer a Razão em múltiplos sentidos,
pela analogia pode-se remetê-los a uma ideia mais perfeita de Razão, constituída
pelo saber filosófico, no seu exercício metafísico, como centro da estrutura
analógica da razão, ou melhor, como seu analogado principal (VAZ, 1995).
Entretanto, Lima Vaz destaca o progressivo abandono dessa
estrutura como a ruptura mais profunda e importante na constituição da
modernidade filosófica. A racionalidade moderna, tendo por base a visão
empírico-formal da realidade, afastou-se da distinção aristotélica de razão e
da analogia tomista (OLIVEIRA, 2013).
Vaz (1995, p. 65) afirma que essa estrutura começa a se
desfazer ainda no século XIV, quando são manifestadas as primeiras ideias de
uma nova razão, anunciada pela substituição da noção analógica pelo conceito
unívoco de ser. O principal nome dessa ruptura é Duns Escoto, que renuncia à analogia e iguala o Ser infinito,
que subsiste por si mesmo, aos seres finitos, que existem por outro (ANDRADE,
2016).
Aplicada ao intelecto, essa mesma noção unívoca dissolve a
diferença entre os conhecimentos teórico, prático e poiético, de forma que a nova
racionalidade, antes entendida como razão contemplativa do cosmos, se
transforma numa razão artífice que constrói o seu próprio universo. Destaca
Oliveira (2013, p. 38):
Se, por um lado, a diferenciação clássica da razão, tanto em
Platão quanto em Aristóteles, aponta para a filosofia, saber teorético,
contemplativo, como coroa de todos os saberes, por outro lado a Modernidade
nasce, segundo Lima Vaz, com o projeto de reinscrever plenamente o universo, a
vida, o ser humano e o agir nos códigos da razão científica.
De modo contínuo, a metafísica do ser analógico em Tomás de
Aquino e a noção unívoca de Escoto se deparam com um conhecimento de caráter
experimental, preocupado com a verificação empírica da realidade (ANDRADE,
2016). A corrente nominalista, desenvolvida ainda no século XII, recusa-se a
admitir os conceitos universais, entendendo-os apenas como meros nomes, sem a
possibilidade de encontrar correspondência numa realidade semelhantemente
universal. Mais tarde, no século XIV, Ockham, com proximidade na discussão
nominalista, entende a realidade a partir dos elementos puramente individuais,
enunciados por nomes próprios e sem uma essência comum que os identifique:
[...] antes de mais nada, em contraste com as concepções
aristotélicas e tomistas, segundo as quais o verdadeiro saber tem como objeto o
universal, Ockham considera que o objeto próprio da ciência é constituído pelo
objeto individual; [...] todo o sistema de causas necessárias e ordenadas, que
constituíam a estrutura do cosmos platônico e aristotélico, cede seu lugar a um
universo fragmentado em inúmeros indivíduos isolados, absolutamente
contingentes [...] (REALE; ANTISERI, 1990, p. 617).
Não obstante, o desenvolvimento desses princípios teóricos
impulsiona uma inversão no modo de conhecer. Conforme a tradição clássica e
medieval, a primazia do ser sobre o objeto conhecido estabelece uma relação
ontológica entre a representação subjetiva e sua referência objetiva. Por
conseguinte, a racionalidade moderna, já presente no pensamento medieval,
inverte a relação entre a representação do objeto e o ser. A face objetiva do
objeto conhecido é submetida à primazia da representação como mera forma
simbólica do conhecimento (VAZ, 1997).
É precisamente nesses termos que a modernidade se
caracteriza pela intenção do homem moderno em refazer a morada simbólica de sua
existência a partir das perspectivas da representação (VAZ, 1997). De acordo
com Andrade (2016, p. 106), a fundamentação da racionalidade moderna não
acompanha o Ser transcendente, mas se reduz à imanência do pensamento (cogitatio)
no próprio sujeito.
A forma de conhecimento poiética, que se dirige aos objetos segundo a sua utilidade no campo da técnica,
domina os saberes teorético e prático, de forma que a verdade e a bondade
tornam-se um produto da atividade do próprio sujeito, caracterizado por um
construtivismo em que o ser humano se torna o demiurgo da realidade:
[...] a submissão desses saberes à primazia da representação
sobre o ser, teve como consequência a reordenação radical das linhas de
inteligibilidade com que o homem pensa e interpreta a realidade: ele passa a
estatuir normas, valores e fins de acordo com os princípios axiológicos por ele
mesmo estabelecidos e que atendem sobretudo à satisfação das suas necessidades
naturais ou artificialmente suscitadas. E ainda, ele opera uma inversão
completa da direção do vetor metafísico do conhecimento, orientando-o para a
imanência do próprio sujeito, ali onde se desenrola a laboriosa produção do
objeto, escrevendo, assim, o primeiro capítulo da chamada metafísica da
subjetividade (VAZ, 1997, p. 164 – grifos do autor).
Dessa forma, a Modernidade se desenvolve como um período
fortemente dominado pela ótica utilitarista e instrumental da razão. Sua
racionalidade fabricadora, consoante Vaz, desconhece o mistério da existência,
de forma que seu procedimento metodológico pode “[...] representar, explicar,
transformar, modificar, organizar, projetar [...]”, mas não pode elaborar um
sentido que realize plenamente a existência humana, pois “[...] a existência,
no seu simples ato de existir, é irredutível aos procedimentos operacionais da
razão humana” (VAZ, 2002, p. 102).
Essa relação é expressa com maior nitidez a partir do século
XVII, na aceleração do processo de transformação do mundo natural num mundo
técnico, instrumental. Segundo Vaz (2002), essa racionalidade operacional
constitui o polo lógico da razão.
É na inversão entre o polo metafísico e o polo lógico da racionalidade moderna
que se fragmenta o ser do homem e se permite a primazia do conhecimento
técnico-científico (FERNANDES, 2015). Nesse sentido:
Estamos diante [...] de uma inversão que opõem
diametralmente duas direções do vetor ontológico da razão, se assim é permitido
falar. Uma primeira direção aponta para a transcendência absoluta do Esse,
e foi seguida coerentemente por Tomás de Aquino. A segunda direção aponta para
a imanência da representação, e por ela caminha a razão moderna (VAZ,
2002, p. 102 – grifos do autor).
Ao destacar esse aspecto imanentista da relação de
objetividade do homem com o mundo, consideramos, portanto, o período da Modernidade
como afirmação da realidade fechada à transcendência e à abertura ao infinito,
causas diretas do abandono da dimensão espiritual que constitui o ser do homem
(POZZO, 2014).
3.2 A fragmentação humana
Ao delinearmos o caminho intelectual que anuncia as bases da
fragmentação humana ao longo da modernidade, não nos esqueçamos da complexa
rede de acontecimentos que destacam esse período. Muito além de um
desenvolvimento gnosiológico, o período que acabamos de abordar é marcado por
outros diversos fatores no campo da cultura, da economia e da política.
Sabemos, assim como Vaz (2002) e Franca (2019), que a modernidade se constitui
de um extenso caminho de rupturas, reformas e revoluções que caracterizam a
formação do mundo ocidental.
Entretanto, na medida em que a modernidade se envolve numa
nova teia de complexidades, desejamos destacar, conforme Vaz (2014, p. 79), que
“[...] as concepções do homem [...] tornam-se também mais complexas e passam a
enfrentar o difícil problema da chamada ‘pluralidade antropológica’ [...]
aparentemente, desagregadora de sua unidade”.
Como vimos, a racionalidade moderna se afasta do saber
contemplativo e passa a estabelecer na imanência do sujeito a própria
fundamentação do conhecimento. Pode-se dizer que a perspectiva antropológica
deixa de ter uma referência cosmocêntrica ou teocêntrica, e passa a pensar o
ser humano a partir de si mesmo, imanentizando sua relação de transcendência e
estabelecendo-o como ponto de partida e campo próprio da investigação
científica. Aponta Andrade (2016, p.107):
[...] com Descartes, a concepção de inteligência (noûs)
e intuição do inteligível (noéton) desaparece, não havendo mais a
possibilidade de uma subida da mente ao inteligível, ou seja, não há
contemplação do ser porque é na imanência do sujeito pensante que se formula
tudo e, assim, desaparece a possibilidade de se estabelecer uma relação
analógica do conhecimento. Nesse sentido, por exemplo, tanto a liberdade humana
quanto a divina se tornam uma coisa só pelo pensamento unívoco.
Andrade (2016), assim como Vaz (2014), ainda destaca que o
desaparecimento dessa ideia de “inteligência espiritual”, como forma mais
elevada do conhecimento filosófico, provoca o que aqui chamamos de abandono do
homem espiritual, ou seja, a perda do centro de sua unidade, tendo a imagem do
homem fragmentada pelos diversos reducionismos propostos pelas ciências humanas
e da natureza.
A tentativa de elaborar uma resposta ao problema “o que é o
homem?”, e de reorganizar sua estrutura ontológica a partir das ciências
humanas, ganha diversos modelos epistemológicos que tentam atingir aquela ideia
unitária de ser humano conforme os procedimentos metodológicos julgados capazes
de explicar completamente a sua constituição (VAZ, 2014, p. 160).
Andrade (2016) explica que as diversas ciências que se
comprometem com esse objetivo correm o eminente risco de deixarem-se cair no reducionismo, tomando um
aspecto particular da manifestação visível do homem como única possibilidade de
interpretá-lo. Destaca-se, entre essas tendências, a corrente naturalista, que
reduz o homem a uma natureza estritamente material; a corrente culturalista,
que impõem a originalidade da cultura como única explicação coerente do ser
humano; e a corrente idealista, que prioriza a dimensão intencional do sujeito.
A vida do ser humano pode ser entendida sob essas
perspectivas, mas não se reduz somente a elas, o ser humano é muito mais do que
elas se limitam a descrever. Reduzir sua complexidade às suas manifestações
visíveis, é enxergar apenas a superficialidade do homem. Acusa Boff (2014, p. 43):
[...] tal visão favorece a ideologia sensual-materialista na
medida em que considera a vida como coisa dos biólogos e dos médicos, quando se
trata de vida individual; como coisa dos economistas e políticos, quando se
trata da vida coletiva; como coisa dos ecologistas em geral, quando se trata da
vida planetária; e como coisa dos psicoterapeutas, quando se trata da vida
emocional.
Dessa forma, o ser humano é despersonalizado; ele deixa de
ser “alguém” e passa a ser “algo” simplesmente biológico, ou meramente
psicológico, descaracterizado de sua singularidade e dignidade mais profunda.
Boff (2014) indica que, sem a unidade de suas categorias, promovida pelo
espírito, e sem a integridade de suas relações, na abertura ao outro e ao
transcendente, o homem não vive uma vida propriamente humana, antes ele vive uma
vida bestial, ou mecânica, destituída de sentido.
3.3 O avanço material da sociedade
É inegável que as modificações econômicas, políticas e
sociais da modernidade trouxeram grandes satisfações aos nossos dias. O
extraordinário desenvolvimento material das civilizações, como nos lembra
Martins (2008, p. 91), desde as grandes navegações, trouxe inúmeras
oportunidades de expansão, não somente ao território, mas também ao
conhecimento, a produção e a técnica.
Na Modernidade, o artesanal dá lugar ao industrial. A
fabricação de objetos é acelerada como nunca visto antes, passando a ser a
motivação da vida individual e coletiva. Concomitantemente, como afirma Martins
(2008), o ter passou a ser exageradamente valorizado e desejado, visto que a
posse do progresso material resulta na aparente criação de uma vida mais cômoda
e luxuosa, que não só garante a sobrevivência humana, mas a envolve num manto
de bem-estar.
Entretanto, tendo se afastado de sua abertura ao
Transcendente, o ser humano não se contenta somente com a produção e o consumo
de bens econômicos. Há, no seu interior mais íntimo, conforme Franca (2019, p.
18 – grifos do autor):
uma fonte perene de nobres inquietudes que nenhum progresso
da civilização logrará um dia estancar. Ante a caducidade dos bens terrenos e o
insaciável dos seus anseios, ante a atração irresistível de um ideal nunca
realizado nas estreitezas e misérias da vida, ante o mistério insondável do
infinito (tremendum e fascinosum) o homem sofre torturas indizíveis,
angústias dum ser em anelos de realização da sua plenitude.
Diferentemente dos animais, o ser humano deseja a
eternidade. A sua constituição ontológica como espírito o faz ser aberto ao
Infinito, inteligente e livre, cuja vida é dom e vocação, vivida, em ótica
maior, em vista de sua realização (BOFF, 2014).
Entretanto, o processo da Modernidade, como vimos, desvia o
olhar humano das alturas e o aprisiona no horizonte da objetividade, da
técnica, da produção, do consumo e do prazer. A força que domina a sociedade
não se encontra mais na ordem espiritual. Na verdade, as grandes forças que
movimentam e dominam a sociedade passaram a ser de ordem material. Boff (2014)
aponta essa realidade como uma supervalorização do mundo material em detrimento
da desvalorização do mundo humano. A ótica sensual-materialista propõe à
sociedade valores absolutos como o dinheiro, o sexo, o conforto, a mídia e a
fama.
Por mais que haja uma larga escala de produção, como nos
nossos dias, e os objetos se multipliquem aos montes, eles não são portadores
de fins e valores em si mesmos, na verdade eles estão inscritos sob a
perspectiva da utilidade (VAZ, 1997).
À existência, conforme Martins (2008), associa-se o ter,
como princípio de felicidade e sentido para a vida. Na verdade, cria-se uma
ilusão de que a satisfação material consegue oferecer alívio aos anseios
humanos. O caminho para o qual a modernidade nos leva é o da crise em meio a abundância, que se forma com o
aumento da produção, da valorização do material e do quase total
desaparecimento da contemplação. Como denuncia Vaz (1997, p.117):
Nosso século termina, pois, fazendo a experiência - uma
experiência crítica no sentido literal do termo – de que nem a práxis produtora
ou econômica nem a práxis histórica ou política, nem o retorno à natureza nem,
evidentemente, a anomia generalizada apresentam-se como aptas para resolver o
problema dos fins da cultura.
As diversas crises que vivenciamos hoje, sejam elas
culturais, políticas ou econômicas, são constituídas por uma base muito maior e
mais complexa em torno do ser humano. A fundante crise antropológica transpassa
todas as manifestações que fazem parte da vida humana. Longe de ser um caminho
de alienação, a reflexão sobre a transcendência nos faz mergulhar às raízes do
ser humano, onde o próprio Absoluto está presente (VAZ, 1997).
Segundo Franca (2019), a crise que demonstramos aqui
perpassa toda a realidade humana, uma crise da alma, mas também uma crise das
instituições. Tanto o ser humano individual, quanto social – família, economia,
política, Estado – é afetado por esse caminho de rupturas e fortemente marcado
pelo vazio existencial. É o que nos ensina Franca (2019, p. 262):
Não sofremos só de um desequilíbrio econômico ou de uma
organização política como em outras eras. Desorienta-nos uma crise espiritual
que atinge os fundamentos da própria vida humana, pessoal e coletiva. Trata-se
das razões supremas da existência. Debate-se uma visão da vida e do universo.
Dessa forma, conforme Pozzo (2014), Vaz demonstra uma
desarmoniosa relação entre o desenvolvimento tecnocientífico e a ausência de um
caminho espiritual que corresponda a necessidade ontológica do ser pelo
Absoluto. Na medida em que a civilização constrói seu destino ao redor de
mecanismos, instrumentos e recursos materiais para garantir sua sobrevivência e
progresso, ela assiste dolorosamente o abandono de seu universo simbólico e de
suas próprias razões de ser (VAZ, 1994, p. 12), de forma que avança sobre a
contemporaneidade um vazio de sentido que clama por ser preenchido:
[...] nossa civilização mostra um corpo muito grande para
uma alma muito pequena, parece evidente que esse grande corpo é formado,
sobretudo pela enorme acumulação de meios e recursos materiais postos à
disposição do homem, ao passo que a pequena alma permanece obstinadamente presa
à razão puramente instrumental e incapaz de definir fins e valores adequados às
dimensões e à audácia da aventura humana nesse mundo prodigiosamente dilatado
(VAZ, 2011, p. 11).
Nesse sentido, o curso da Modernidade é alterado. Segundo
Boff (2014), em vez de desaguar no oceano do Ser (Absoluto)[2],
a humanidade foi parar no abismo do Não-ser (Nada), de forma que o fim da
modernidade não pode ser se não a eliminação da reflexão sincera e radical em
torno do sentido da existência (VAZ, 2002).
Assim,
o niilismo parece-nos ser a marca que assinala o caso da Modernidade. Esse dinamismo materialista em detrimento da
dimensão espiritual do ser humano, coloca em risco valores, crenças, normas,
saberes e a própria filosofia, levando-nos a questionar:
O que sobreviverá e terá vigência no próximo século desse
acervo simbólico da nossa cultura em meio às fantásticas realizações que a
técnica nos promete, e o que será recolhido definitivamente aos arquivos da
memória histórica da humanidade? (VAZ, 2002, p. 240).
4
A NECESSIDADE DE
AUTORREZALIÇÃO DO SER HUMANO
Como vimos, a vida segundo o espírito é, para Vaz (2014), a
vida propriamente humana, na qual o homem se abre para a transcendência do ser
e se ordena enquanto inteligência e liberdade, e a partir da contingência de
sua existência se insere na história, com a missão de realizar-se enquanto
pessoa.
Entretanto, surge no horizonte das problemáticas acima
anunciadas, um questionamento próprio sobre o modo de vida humano: como pode o
homem viver plenamente a vida segundo o espírito diante do largo
desenvolvimento técnico, e do crescente protesto contra a categoria espiritual,
que se espalha por todos os espaços da reflexão filosófica moderna e
contemporânea? (VAZ, 2014).
De acordo com Oliveira (1989, p. 16), a crise anunciada pela
modernidade desemboca, nos dias de hoje, numa crise de sentido. O homem não se
vê mais inserido num todo maior, que lhe direciona o caminho, mas se encontra
sozinho, condenado a ser e produzir a sua própria fonte de sentido.
Vaz
(1995) expõe que essa crise encontra sua profundeza, não no terreno da produção
dos bens materiais, mas no terreno da finalidade e das razões de viver. O tema
do sentido ocupa um lugar de destaque na reflexão contemporânea, sendo de cunho
existencial e, por conseguinte, caracteristicamente humano, pois o homem
naturalmente se pergunta pelo sentido de sua vida, visto que:
Descobrir o sentido na floresta dos sentidos
possíveis é, pois, a tarefa por excelência do ser humano enquanto portador do lógos,
pois só a ele, aberto constitutivamente ao ser e à verdade, é
oferecido o supremo risco de enunciar o sentido verdadeiro e, assim, de
interpretar as razões do ser em razões do seu próprio viver (VAZ,
1997, p. 167 – grifos do autor).
Para Frankl (2015), o problema que enfrentamos hoje é o
sentimento abismal da falta de sentido, associado a um vazio interior. A
tradição e o referencial de sentido são excluídos da vida humana contemporânea
e seu afastamento do passado dissolve todo fundamento. Não há certezas, não há
mais finalidade, não há um Absoluto. O espírito é desconsiderado juntamente com
sua relação de transcendência.
De acordo com Oliveira (2015), a não existência de um
fundamento metafísico, que dê sentido à existência é resultado daquela inversão,
apresentada anteriormente, do polo metafísico para o polo lógico da razão e,
consequentemente, da transcendência para a imanência do sujeito. As
consequências da delineação da metafísica da subjetividade na aurora da
Modernidade conduzem ao niilismo da contemporaneidade.
Não obstante, sabemos que este fenômeno não é claro o
suficiente para que possamos expressá-lo em conceitos definitivos. Sua
complexidade filosófica e cultural nos impele a não o definir, mas
caracterizá-lo conforme as suas manifestações. Associa-se, portanto, ao que
chamamos de niilismo, a dissolução de todo fundamento e finalidade humana; a
redução do sujeito a mera função; e, principalmente, ao relativismo, que iguala
a validade de todos os valores e juízos (OLIVEIRA, 2015).
Por consequência, resta ao ser humano um espaço como que
vazio, ansioso por ser preenchido. Resta, ao mesmo tempo, uma diversidade de
caminhos em meio a sociedade que o faz se perder e vagar em busca de não se
sabe o quê. Afirma Oliveira (2015, p. 818): “A ruptura com os valores
tradicionais coloca o ser humano numa situação de desorientação. Não há mais
fins últimos capazes de justificar nosso agir e orientar o nosso caminhar”.
A possibilidade de não nos realizarmos, ou o risco
permanente de ser ou não-ser, apresenta-se como uma tarefa constante, um
desafio nunca acabado (VAZ, 1992). Como o homem pode viver plenamente sem um
horizonte, uma estrela que o guie em sua aventura humana de autorrealizar-se,
sem um eixo que explique a sua existência e a existência do cosmos, sem
uma unidade interior que integre sua vida? Diremos assim como o gato de
Cheshire disse à Alice: para quem não sabe onde ir, qualquer caminho serve
(CARROLL, 2009).
Para Vaz (1992) não existe nenhuma outra frustração maior e
mais penosa do que perder-se no caminho. A sensação de uma vida não realizada e
da perda de tempo gera angústia, medo e desespero. Por consequência, na
ausência de um caminho espiritual, o indivíduo elege ídolos que satisfaçam suas
necessidades e indiquem uma suposta direção. Conforme Vaz (1997, p.83):
Experiências como as do prazer, da satisfação, da utilidade,
dos ensinamentos da ciência, são assumidas como fontes de normas no campo da
racionalidade ética à medida que o sujeito se mostra capaz de integrá-las no sistema
de valores fundado sobre a sua decisão autônoma.
Dessa forma, a principal proposta que se apresenta para
amenizar as angústias do ser humano está relacionada à satisfação dos sentidos.
Quando os valores que regem a vida ficam entregues ao sujeito, já fragmentado e
marcado pelo subjetivismo, ele tende a buscar aquilo que lhe for mais cômodo
(OLIVEIRA, 2015).
A
procura pela estimada felicidade, no mundo contemporâneo, encontra no hedonismo
a mais fugaz realidade: o prazer, que deveria ser consequência e não meta das
aspirações. Assim diz Frankl (2019, p. 97):
Se realmente víssemos no prazer todo o sentido da vida em
última análise a vida parecer-nos-ia sem sentido. Se o prazer fosse o sentido
da vida, a vida não teria propriamente sentido algum. Porque, afinal, o que é
prazer? Um estado. O materialista – e o hedonismo costuma andar à mistura com o
materialismo – poderia dizer inclusivamente: o prazer não é mais do que um
processo qualquer que se opera nas células ganglionares do cérebro. E eu pergunto:
só por causa desse processo valerá a pena viver, experimentar, sofrer, ou fazer
o que ser que seja?
Diante da proposta sensual-materialista, o homem tenta
preencher a lacuna deixada pelo abandono de sua dimensão espiritual. Sem um
Absoluto verdadeiramente capaz de auxiliá-lo em sua jornada, o homem, centro do
mundo, elege ídolos, dando a produção material do mercado um espaço inflado em
seu coração (MARTINS, 2008).
Não obstante, a cultura do ter é incapaz de dar sentido à
vida humana. Esses ídolos não passam de pseudo-absolutos, que carecem da
densidade ontológica necessária para dar sentido a existência humana e
satisfazer as inquietudes de seu espírito. De acordo com Vaz (1997) os bens
materiais mascaram uma pobreza - per defectum - incapaz de atender à
urgência do ser humano pela infinita riqueza ontológica - per excessum - do
verdadeiro Absoluto.
Dessa forma, o vazio existencial é preenchido
instantaneamente e somente oferece um prazer momentâneo, pois os produtos vão
se remodelando conforme as necessidades do consumidor. Ao tentar buscar sua
realização num objeto da linha X, o indivíduo se sente frustrado e ao mesmo
tempo impelido a adquirir o novo objeto da linha Y, potencializado com um novo design
e novas utilidades (MARTINS, 2008).
Se elevarmos essa situação a um grau extremo de
exemplificação podemos encontrar algo semelhante no consumo de drogas: um
indivíduo, esteja ele com problemas pessoais ou querendo se sentir mais
“feliz”, a fim de preencher um vazio que nele existe, consome entorpecentes e
se sente momentaneamente aliviado, satisfeito e preenchido, mas ao passar do
efeito retorna à sua realidade e se entristece por não enxergar nela a alegria
que desejava, então torna a usar os entorpecentes mais um vez, e assim
sucessivamente (FERREIRA; MARX, 2017).
Esses aspectos apontados não são os únicos que afligem a
humanidade. O abandono do homem espiritual manifesta outras características,
como sugere Boff (2014): a depressão, o suicídio, a banalização do sexo, a
violência, e até mesmo a corrupção. Uma sociedade regida somente pela
concupiscência de seu apetite e pela subjetividade de seus indivíduos tende a
um caos de ódio e discórdia, de choques entre sujeitos egoístas, medíocres e
mesquinhos. Afirma Vaz (1994, p. 14):
O espetáculo que nos oferece a modernidade triunfante [...]
é o do desencadear-se aparentemente incontrolável do não sentido da violência e
da morte: violência brutal das armas e dos meios de destruição em massa,
violência sutil da propaganda e da manipulação da informação, violência cega do
terrorismo, violência silenciosa e universal da injustiça das relações
políticas, sociais e econômicas entre indivíduos, grupos e nações; e o esgar
insensato da “morte moderna” ao termo de todos esses caminhos de violência.
Assim, resignamo-nos, por ora, em demonstrar, através das
consequências apresentadas, a necessidade de pensar os atos humanos numa
unidade e, por conseguinte, apontar a possibilidade de realização e integração
do indivíduo para além da fragmentação, a fim de iluminar o caminho de
superação do subjetivismo e do reducionismo antropológico, da ausência de
sentido e da sensação de vazio existencial, do hedonismo e de tantas outras
manifestações inquietantes que atribulam nossa contemporaneidade.
Em acordo com Vaz (1992), desejamos ainda enfatizar que a
experiência mais profunda do ser humano é a de realização da própria vida, não
no simples ato de existir, mas na existência propriamente humana. Por
conseguinte, vemos a urgência pela defesa da dignidade da pessoa contra os
princípios teóricos apresentados que descaracterizam e reduzem a amplitude do
ser do homem. Ao contrário dos objetos, que possuem valor pela sua utilidade, o
ser humano, enquanto pessoa, é fim em si mesmo, tendo em vista que:
Cada pessoa é no universo uma obra prima que não se repete.
E toda tentativa de reduzi-la incondicionalmente ao simples mister de
instrumento a serviço de fins temporais – nação ou raça, partido ou Estado – é
um pecado que introduz na harmonia das coisas a desordem de uma ruína de que
nada nos poderá consolar (FRANCA 2014, p. 151).
O ser humano, portanto, não é um ser fracionário,
constituído apenas de partes, mas se compõe de uma ordem complexa e unitária
entre suas categorias ontológicas e sua relação com o mundo. Do corpo próprio
ao espírito, da objetividade à transcendência, é a unidade ontológica da marca
pessoal que caracteriza a autorrealização do sujeito numa significação de suas
categorias em uma vida propriamente humana (VAZ, 1992).
Se a categoria do espírito coroa o discurso ontológico sobre
o ser humano, a categoria da pessoa sintetiza suas estruturas e relações numa
unidade entre a essência e a existência humana, ou melhor, entre o ser que é e
o ser que se torna ele mesmo (VAZ, 1992). Melhor dizendo, a categoria da pessoa
é a expressão da unidade final entre o corpo próprio, o psiquismo e o espírito,
bem como sua relação de objetividade, intersubjetividade e transcendência, na
qual o homem se significa a si mesmo e cumpre efetivamente o designo de seu ser
no existir.
Dessa forma, Vaz direciona a resposta da pergunta
antropológica “o que é o homem?” para a noção de pessoa, síntese admirável dos
níveis de ser que se unem sem se confundir. Muito embora suas categorias o
permitam estar-no-mundo e ser-no-mundo, ele não se reduz a isso. A constituição
ontológica de suas estruturas e relações o impulsiona, assim, além da imanência
e além da própria morte, como um-ser-para-a-imortalidade (VAZ, 1992, p. 229).
5
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Ao término deste
artigo, tendo apresentado os conceitos fundamentais da antropologia filosófica
de Lima Vaz, delineamos um caminho para entender as bases da racionalidade
moderna, que afastam a compreensão do ser humano como um ser uno, ordenado e
dirigido pela categoria espiritual ao transcendente.
Desejando compreender essa realidade, que causa severas consequências aos dias de hoje, o
esforço de nosso trabalho nos levou a entender o ser humano como constituído
ontologicamente de corpo, alma e espírito e, ainda, aberto à relação com o
mundo, na objetividade; com o outro, na intersubjetividade; e com o Absoluto,
na relação com o transcendente. Vimos ainda que, somente através do espírito é
que o homem pode viver uma vida plenamente humana, caracterizada pela unidade
de suas categorias.
Entretanto, certos princípios teóricos, como a ruptura da
estrutura analógica do ser, a inversão do polo metafísico para o polo lógico da
razão, a primazia da representação sobre o ser, e a supervalorização do
desenvolvimento material, foram fatores que permitiram compreender a
fragmentação humana a partir das categorias antropológicas de Lima Vaz.
Dessa forma, o crescente pensamento técnico-científico e
utilitário, apoiados na imanência do subjetivismo, impele a compreensão do ser
humano através de esquemas que reduzem sua complexidade a um aspecto parcial de
sua totalidade, compreendendo-o por vezes como coisa meramente corporal ou
emocional, excluindo o espírito, núcleo de referência ontológica para a
constituição integral de seu ser.
Por consequência, diante de um mundo inquieto e atribulado
com uma diversidade de crises que afetam cada célula da sociedade, desde o indivíduo até
as instituições
sociais que ele cria e as quais pertence, o ser humano não conta se não com as
técnicas da ciência, a produção de bens de consumo e a satisfação de seus
sentidos, como suposto caminho para realização pessoal de sua existência.
Diante de sua eminente tarefa existencial de
autorrealizar-se e sem a integração das estruturas e relações, o ser humano
encontra-se perdido, de forma que somos levados a pensar na defesa da unidade
de sua estrutura ontológica, que aponta para a autorrealização plena e
verdadeira do homem enquanto pessoa, síntese metafísica da existência
propriamente humana.
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Acessado em: 28 ago. 2020.
[1] “O
espírito aparece, pois, em sua pré-compreensão, como uma estrutura dialética de
identidade na diferença: identidade do ser e do manifestar-se do
espírito [...]; diferença porque a manifestação implica para o
espírito-no-mundo (ou espírito finito) a alteridade do objeto que se
manifesta ao espírito e no qual o espírito se manifesta [...]” (VAZ, 2014, p.
211).
[2]
“O infinito desses filósofos
modernos será a ‘Substância’ para Spinoza, o ‘Eu absoluto’ para Fichte, a
‘Natureza’ para Schelling, o ‘Espírito absoluto’ para Hegel, a ‘Vontade de
vida’ para Schopenhauer, a ‘vontade de potência’ para Nietzsche, a ‘Matéria’
para os materialistas, o ‘Todo’ para os panteístas, o ‘Acaso’ para Monod e
cia., o ‘Abismo quântico’ para certos cientistas atuais e assim por diante. Mas
todos esses “absolutos”, ‘transcendentais’ ou ‘infinitos’ estão longe de
coincidir com o absoluto, a transcendência e o infinito que a philosophia
perennis (sem falar de fé) identificou com o Deus vivo e verdadeiro” (BOFF,
2018, p. 168).
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