Revista Sísifo. N° 14, Julho/Dezembro 2021. ISSN 2359-3121. www.revistasisifo.com
Edson Kretle dos Santos
Doutorando em Filosofia pela Universidade
Federal do Espírito Santo (UFES) e professor do Instituto Federal do Espírito
Santo (IFES) - Campus Venda Nova do Imigrante. e-mail: edson.santos@ifes.edu.br
Resumo: Este artigo pretende analisar
a barbárie vivenciada nos regimes totalitários do século XX. Diante das
experiências do mais generalizado terror, buscamos mostrar algumas reflexões de
Hannah Arendt que nos possibilitam repensar os significados da política e
alguns dos seus principais conceitos, tais como a violência, o poder e, principalmente,
a liberdade. Focados nesse último, explicitaremos as características opressivas
do totalitarismo e as ponderações da
autora que nos permitem esperar pela realização da Promessa da Política, a qual nos foi transmitida pelo pensamento
arendtiano.
Palavras chaves: Terror. Política.
Totalitarismo. Liberdade. Arendt.
Abstract: This article intends to analyze the barbarism experienced in
the totalitarian regimes of the 20th century. Given the experiences of the most
widespread terror, we seek to show some reflections by Hannah Arendt that allow
us to rethink the meanings of politics and some of its main concepts, such as
violence, power and, mainly, freedom. Focused on the latter, we will explain
the oppressive characteristics of totalitarianism and the author's
considerations that allow us to wait for the fulfillment of the Promise of
Politics, which was transmitted to us by Arendtian thought
Keywords:
Terror. Politics. Totalitarianism. Freedom.
Arendt.
A
filosofia política dos séculos XX e XXI teve e continua tendo como um dos seus
grandes desafios pensar a experiência da barbárie oriunda das grandes
ideologias totalitárias, tais como o fascismo italiano, o nacional socialismo
alemão e o comunismo russo. O século passado foi marcado por duas grandes
guerras mundiais que tiveram proporções avassaladoras até então nunca
presenciadas pela espécie humana. O paradigma político do século passado foi
corretamente descrito por Mao Tsé-tung na célebre frase: “o poder brota do cano
da arma”. O progresso, filho tardio da modernidade, possibilitou o uso da tecnologia
em prol da morte e por isso “alguns dados diferenciam a última guerra, nossa
guerra, o maior acontecimento deste tempo e o de mais amplo efeito, de outras
guerras cuja história nos foi legada” (JÜNGUER, 2002, p.190).
Os
regimes totalitários se intitularam com a missão de concretização de um grande
projeto. Desse modo, o nazismo, o fascismo e o comunismo acreditavam que a
consolidação do regime seria necessária para estabelecer uma paz justa e
eliminar futuras guerras, deixando nítido o projeto messiânico que se
concretizaria mediante uma mobilização total, que visava à unificação do mundo
sob uma única ideologia e único governante.
No século passado, a guerra foi o cerne da política; como já observara Clausewitz,
“a guerra não é outra coisa senão a continuação da política por outros meios”
(CLAUSEWITZ, 1996, p. 27).
Tais
visões de mundo fizeram com que nos deparássemos com um novo paradigma na
manifestação do poder. Abandonamos as concepções filosóficas do humanismo estóico,
do cristianismo e das éticas racionais que compreendem a guerra como a ultima ratio. O totalitarismo ignorou os
benefícios da vida tranquila e fez do terror e da violência as molas mestras e
normas de sua existência. Diante disso, nos resta o desespero e a consciência de
que não existe nenhum mecanismo político e jurídico que assegure que nossos
atuais e tão defendidos regimes democráticos não se transformem nos estados
totalitários deste tempo que vivemos. Esses acontecimentos exigem a necessidade
de uma nova filosofia política que se posicione e interprete a barbárie
contemporânea.
Entre
tantos pensadores que se dedicaram a pensar essa barbárie, Hannah Arendt
(1906-1975) merece destaque pelo fato de conseguir decodificar como poucos a
tragédia do século passado, o que a tornou uma referência importante da Filosofia
Política Contemporânea. A atualidade e a complexidade dessa pensadora está no
fato de que para os liberais ela foi vista como uma conservadora e para os
conservadores foi interpretada como uma liberal. Por outro lado, há aqueles que
a criticam por sua nostalgia irrealista do passado ou por ser uma
revolucionária utópica. Vale ressaltar que a concepção arendtiana de política
envolve uma ampla gama de conceitos que foram abordados na sua vasta e rica obra
filosófica, e, portanto, nesse texto, não temos a pretensão de esgotar os muitos
horizontes do pensamento político dessa célebre autora.
Os
regimes totalitários, para a autora, fizeram do terror um mecanismo de
dominação das pessoas pelo medo. Tal artifício está ligado de várias formas aos
mais diversos sistemas políticos no decorrer da história. No transcorrer do
tempo, em vários modos e nos mais diferentes governos, o medo e o terror, como
instrumentos de dominação, foram utilizados como intimidadores. Sabemos que o
terror se fez presente na Antiguidade, nas revoluções e contrarrevoluções, nas
democracias e nos regimes totalitários. Para Arendt, todavia, a simples relação
entre medo, terror e intimidação não lançaria novos olhares sobre as
especificidades dos regimes de terror. Nesse sentido, para a autora,
a ciência política não
pode se contentar em simplesmente estabelecer o fato de que o terror é usado
para intimidar as pessoas. Deve separar e elucidar as diferenças entre todas
essas formas de regimes de terror, as quais atribuem ao terror funções muito
diferentes em cada regime específico (ARENDT, 2009, p. 328).
Ao
longo de sua argumentação, Arendt difere o terror totalitário dos outros
modelos de terror. Não apenas na escala quantitativa, mas principalmente no
crescimento da indiferença dos outros cidadãos em relação às atrocidades cometidas
por e com seus pares. Em Eichmann em
Jerusalém (1999), Arendt relata como os fatos ocorreram e como pessoas
“aparentemente normais” agiram não por um impulso perverso, ou ainda por alguma
patologia, mas por sua incapacidade de julgamento.
A experiência
concentracional aniquilou milhões de pessoas e garantiu a terrível e aberrante
experiência que, sob condições cientificamente rigorosas e planejadas,
possibilitou a destruição da espontaneidade e de toda singularidade do
comportamento humano. Dito de outro modo, podemos transformar sujeitos de
direitos em menos que animais ou um simples feixes de reações que, dadas as
mesmas condições, sempre reagirão de maneira idêntica (ARENDT, 2008). Em Origens do Totalitarismo, Arendt
salienta que “o estabelecimento de um regime totalitário requer a apresentação
do terror como instrumento necessário para a realização de uma ideologia
específica, e essa ideologia deve obter a adesão de muitos” (ARENDT, 1990, p. 17).
Esse
processo de destruição do sujeito inicia-se com a implantação de um estado de
exceção que acaba com a pessoa jurídica dos indivíduos. Na sequência, o regime
aniquila a individualidade e a espontaneidade dos sujeitos, transformando as
pessoas em coisas. De acordo com esse procedimento, os seres humanos tornam-se
incapazes de pensar por si mesmos e se comportam obedientes ao regime a ponto
de cometerem atrocidades, o que Arendt nomeou como sendo a banalidade do mal (ARENDT, 1999). Usando a terminologia kantiana,
podemos dizer que toda ação humana no totalitarismo não exige a autonomia da
vontade, mas apenas a heteronomia, pois esse é o único meio de agir nos tempos
de terror.
Arendt
observa que o terror tirânico terminava quando se eliminava a vida pública, o
que levava todo cidadão a abandonar os interesses públicos e preocupar-se apenas
com os interesses privados. Já o terror proveniente da revolução aparece com a
tomada do poder, o surgimento de um novo código jurídico, e desaparece quando
toda e qualquer oposição é aniquilada. Porém, o terror no totalitarismo difere
dos outros modelos supracitados porque o “terror genuinamente totalitário
aparece apenas quando o regime não tem mais inimigos a prender e torturar até a
morte, e quando as várias classes de suspeitos foram eliminadas e não podem
mais ficar sob “prisão preventiva.” (ARENDT, 2008, p. 321). Portanto, o
objetivo imediato é abater o adversário a fim de torná-lo incapaz de toda e
qualquer resistência.
O
ineditismo nos regimes totalitários é que, mesmo com a aniquilação da oposição
política, o terror continua sendo utilizado em um contínuo estado de exceção. A
lei, quando existe, torna-se mera ilusão, pois a única legislação vigente para
as pessoas é a certeza de sua nulidade. A paz e a tranquilidade são impossíveis
num país cujo governo é totalitário. Portanto, essa é a “lógica devastadora dos
regimes totalitários cujo aparato de violência não está sujeito às restrições
da realidade” (ARENDT, 2009, p.123). O fim da oposição política e o aumento das
vítimas inocentes potencializam os governos totalitários. Essa prática terrível
resulta numa moderna forma de dominação mental. Como mostra Celso Lafer, um dos
pioneiros nos estudos sobre Arendt no Brasil,
o totalitarismo não se esgota na mentira
e na propaganda, pois a obsessão com a unanimidade em torno da verdade oficial
exige o terror que, pelo emprego da coerção e pela atuação da polícia secreta,
obtém a conformidade dos comportamentos (LAFER, 2003. p. 44).
A
“novidade radical” do evento totalitário nos alerta que estamos diante de algo
extremamente diferente e não apenas de uma forma distinta da tirania ou do
despotismo. Após um cataclisma do mais tenebroso terror, o totalitarismo
realmente assegura a impossibilidade de qualquer tipo de oposição, seja
partidária, jurídica ou social. Ninguém, exceto o Duce ou Fürher, está
livre do terror. Até o mais desumano dos carrascos poderia ser a vítima no dia
seguinte. Neste sentido, a dominação pela ideologia do terror transforma executores
– funcionários da polícia e do partido – em vítimas do regime. “Assim, o terror
totalitário já não é um meio para algum fim; é a própria essência desse governo”
(ARENDT, 2008, p. 328). Segundo Arendt, o êxito ou o fracasso do governo
totalitário consiste na capacidade de transformar seres humanos em animais
pervertidos. E segue,
as guerras do século XX não são
‘tempestades de aço’ (Jünger) que purgam a atmosfera política, tampouco ‘a
continuação da política por outros meios’ (Clausewitz); são catástrofes que
podem transformar o mundo num deserto e o planeta em matéria sem vida” (ARENDT,
2009, p. 255).
Em Origens do Totalitarismo (1990), Arendt afirma
que o nazismo interpreta o mundo a partir da ideologia de raça pura, utilizando
o antissemitismo e o racismo como suas bases teóricas. Já o comunismo tem por
fundamento a economia política inglesa, o socialismo francês e a filosofia
alemã; partindo desses princípios, sua “locomotiva ideológica” é a ideia de
classe, conduzida pelo proletariado, que detém os rumos da história.
Ressaltadas as diversidades entre os regimes, a semelhança é que um líder e
único partido conseguem proliferar e solidificar as ideologias supracitadas em
todos os espaços públicos e privados. Como imagem ilustrativa do governo
totalitário, Arendt usa a figura da cebola, dada a estrutura burocrática desses
regimes, que é imensa e possui uma infinidade de órgãos, os quais encobrem, em
camadas sucessivas, o poder real que se ramifica pela polícia secreta. Indagando-se
sobre a natureza desse aparato burocrático, Arendt apresenta a possibilidade de
que objetivo seja desumanização. O ápice dessa dominação são os campos de
concentração. “Talvez a natureza de toda burocracia, seja transformar homens em
funcionários e meras engrenagens, assim os desumanizando” (ARENDT, 1999, p.
313).
Hitler,
Mussoline e Stálin encarnam a imortalidade do corpo político, corpo único e
metafísico, e o resultado desse processo é o fim dos sindicatos e da
pluralidade partidária. Com o fim da vida associativa, o totalitarismo impera,
logo, a sociedade civil é devorada pelo Estado. Assim sendo, esses fenômenos
ideológicos descobriram os meios políticos de agregar a população, de modo que
eles estejam totalmente absolvidos e apaixonados pela ideia de raça ou pela
ideia de história. As massas são transformadas no motor desse processo. Num
determinado momento, esses sistemas também precisam de um “inimigo objetivo” que
necessariamente deve ser punido, discriminado e aniquilado. O nazismo
constituiu como “inimigo objetivo” o povo judeu. Já o bolchevismo fez do
liberalismo o inimigo a ser vencido.
Diante
das experiências desumanizantes dos regimes totalitários, Arendt propõe uma original
análise dos principais conceitos que até então orientavam a tradição política no
Ocidente. Seu pensamento questiona um dos conceitos mais caros da Ciência
Política – o próprio significado de política. Essa tarefa, a seu ver, era
fundamental devido aos desastres que a própria política causou no século
passado. O terror, que foi “irmão gêmeo” de Arendt, continua nos acompanhando
porque a política habita o cenário da contingência; sempre existirá a
possibilidade de surgirem formas de governo que transformem a vida humana em
algo tão politizado que mais uma vez elimine a liberdade. Além disso, os atuais
meios de destruição que são monopólio do Estado ameaçam toda a vida humana.
Consciente ou inconsciente, o instinto de sobrevivência fez com que as pessoas
a cada dia tenham mais aversão à política antes que a política elimine a
espécie sapiens e grande parte da
vida orgânica do planeta. Tais fatos nos amedrontam porque somos uma geração
sem garantia alguma de que existirá um Estado Democrático de Direito no amanhã.
Os modernos meios de violência poderá nos conduzir ao suicídio democrático.
Portanto,
o totalitarismo e a bomba atômica –
suscitam a pergunta sobre o significado da política em nossa época. Trata-se de
experiências fundamentais de nossa época. Ignorá-las é como nunca ter vivido no
mundo que é o nosso mundo (ARENDT, 2009, p. 163).
Mediante
ao questionamento supracitado, Arendt, como possibilidade de resposta, retoma o
exemplo da pólis grega para ilustrar
sua visão política e os elementos que podemos retirar desse fenômeno. Acreditamos
que o retorno da autora à Grécia objetiva demonstrar que a identidade entre
liberdade e política foi destruída com as teorias sociais e políticas da Idade
Moderna. A pensadora em questão é muito mais decisiva ao afirmar que existe a
impossibilidade de encontrar na tradição filosófica do ocidente fundamentação
para compreensão do problema da liberdade. A Antiguidade associou liberdade ao
pensamento, nesse aspecto, o homem livre é aquele que pode discordar do mundo.
Pensadores como Parmênides e Platão defendem a vida do filósofo como uma vida
dedicada apenas à reflexão. A vida teorética é explicitamente oposta à vida
política (bíos polítikos).
Para Arendt,
no que se refere à tradição cristã, com Paulo de Tarso, e posteriormente,
Agostinho, o problema da liberdade se instala na arena da filosofia. Essa
compreensão associa livre-arbítrio à liberdade; a partir da tradição cristã,
começamos a interpretar a liberdade como sendo uma experiência de solidão, ou
seja, o relacionamento entre mim e mim mesmo. Baseados nessas duas vertentes, “fomos
habituados a compreender que a liberdade não pode ser vivida na ação coletiva,
mas apenas no encontro com meu próprio eu” (ARENDT, 2014a, p. 204).
Arendt,
ao retomar a experiência da pólis, nos diz que nela a liberdade, a igualdade e
a ação tiveram seu verdadeiro advento. A vida pública grega somente era
possível na ágora, onde o indivíduo
era visto e ouvido por outros. Nesse espaço cada homem mostrava sua
singularidade e somente mediante esse ato era livre. Liberdade é possível num
espaço relacional. “A liberdade, no campo da política, é um problema central,
para não dizer um axioma, a partir do qual agimos” (LAFER, Introdução. In.:
AREDNT, 2014a, p. 20).
Na pólis desaparece também a separação
entre governantes e governados. Essa narrativa não pode ser compreendida como
se Arendt fizesse uma apologia nostálgica do que “foi” experiência entre os
gregos. Ela também não pretende determinar categoricamente modelos morais ou
jurídicos como deveria ser a política nos tempos contemporâneos. Arendt, à luz
do passado, almeja refletir sobre o que “é” a política e principalmente o que
ela ainda pode ser hoje e no futuro, diante de tantos fatos que eliminaram a
“verdadeira” política da vida humana. A autora pretende explicitar na
experiência grega que o poder somente acontece quando os homens juntos decidem
agir entre si. O elemento predominante nesse encontro de homens livres e iguais
faz da pluralidade e do conflito o germe do poder.
Algo totalmente
diferente acontece nos regimes totalitários que ancoram seu poder na violência.
A profecia de Marx se cumprira, pois, no século XX, “a violência é a parteira de
toda velha sociedade e prenhe de uma nova” (MARX, 2013, p.841). Para a “judia
errante”, a violência concebida como uma “locomotiva da história” apenas nos
mostrou que nosso trem da história correu cada vez mais veloz na direção do
abismo da calamidade. Através da propaganda, os regimes totalitários inventaram
uma verdade oficial ancorada numa ideologia, potencializada na atomização dos
indivíduos diante da distribuição do terror e instrumentalizada com a atividade
incessante da polícia secreta. Com todos esses mecanismos, evidentemente a
coerção nos regimes de Hitler, Mussoline e Stálin conseguiu impedir o povo de
falar, reunir-se e agir livremente. Por isso, na concepção arendtiana, o poder
desaparece quando a diversidade de opiniões e de ideias contrastantes é
aniquilada. Os encontros e os debates públicos garantem a existência e a
sobrevivência do próprio espaço público. Vimos anteriormente que nos regimes
totalitários a dominação total só era possível alicerçada na violência, no
entanto, a experiência grega mostra justamente o contrário: o poder não é
violência.
Resumidamente,
o poder corresponde à habilidade humana
não apenas para agir, mas também para agir em concerto. O poder nunca é
propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e permanece em existência
apenas enquanto o grupo se conserva unido. Quando dizemos que alguém está “no
poder”, na realidade nos referimos de que ele foi empossado por um certo número
de pessoas para agir em seu nome. A partir do momento em que o grupo do qual se
origina o poder desde o começo (potestas
in populo: sem um povo não há poder) desaparece, “seu poder” também se
esvanece. (ARENDT, 2014b, p. 60-61).
Na
compreensão e na prática do totalitarismo, a liberdade não se encontra na ação
e no discurso entre os humanos. A liberdade nesse regime é entendida muito
distante da arena pública e afigura-se no isolamento do mundo privado. Sobre
isso, Celso Lafer diz, “o campo da política é o diálogo no plural que surge no
espaço da palavra e da ação – o mundo público – cuja existência permite o
aparecimento da liberdade” (LAFER. Introdução. In.: AREDNT, 2014a, p. 21). Por
conseguinte, as ideias de política e liberdade são inseparáveis; por tal
motivo, a tirania e o totalitarismo são os piores regimes políticos. Este
último, ancorado no terror, conseguiu aniquilar a liberdade humana. O que há de
mais inédito e aterrorizante no totalitarismo é que ele nega a liberdade e
defende que ela não é um valor e nem é necessária para os humanos. Para esses
regimes, a única certeza é “de que a liberdade humana deve ser sacrificada ao
desenvolvimento histórico, processo que pode ser obstaculizado quando os seres
humanos agem e interagem em liberdade” (ARENDT, 2009. p. 175).
Segundo
Newton Bignotto, a liberdade não deve ser considerada como uma forma de
oposição ao governo total. O conceito de liberdade na visão arendtiana deve ser
entendido como uma capacidade que temos de criar novas formas de vida. Situados
na imanência, apenas criamos realidades subsumidas no tempo e no espaço,
portanto, nada pode durar para sempre. Desse modo, a liberdade garante o fim do
terror; no entanto, “não se trata de dizer como os homens poderão agir no
interior dos regimes totalitários, mas nos lembrar que eles são produtos da
capacidade demiúrgica limitada dos mortais” (BIGNOTTO, 2001, p. 121). Vale
ressaltar que, para autora, o conceito de liberdade mais explicita as
características opressivas do totalitarismo do que aponta possibilidades de
resistência ou que a liberdade possa findar com esses regimes.
Arendt
afirma que a legitimidade do poder se encontra na persuasão pela palavra e nas
ações não violentas. Nas pegadas da tradição republicana, nossa autora
compreende que as leis não são imutáveis e que a constituição de um povo
orienta o agir das pessoas num determinado sistema de leis. As normas são
contingentes e, mediante a ação humana, propiciam e potencializam o surgimento
das novas relações entre os homens. Nos regimes totalitários a observância da
lei ganha outra dimensão, uma vez que nesses governos a obediência é alcançada
mediante violência, coerção e morte.
Diante
do vivido do totalitarismo e do ocaso da política, Arendt identifica política
com liberdade e afirma que “a resposta à questão do significado da política é
tão simples e conclusiva que se poderia pensar que todas as outras são
irrelevantes. A resposta é: o significado da política é a liberdade” (ARENDT,
2009, p. 161). Arendt diz isso porque ao eliminar a liberdade eliminamos também
a espontaneidade, e privados da espontaneidade não somos capazes de começar
algo novo. Os regimes totalitários estabeleceram seus domínios pela destruição
da espontaneidade humana, e sem a ação espontânea não existe a contingência;
todo processo histórico-político é conduzido e ordenado em parâmetros
determinísticos.
Entretanto,
apesar da propaganda e da ideologia dos regimes totalitários, essas formas de
governo não estão livres da contingência. Isso faz com que nenhum regime
político seja total; afinal, se o controle do Estado fosse total, seriam
praticamente impossíveis transformações e resistências internas, pois se assim
fosse, esses terríveis modelos ainda estariam imperando. Portanto, essas formas
de governo foram regimes totalitários o quanto possível. Os governos
totalitários tentaram um controle total da sociedade, mas não conseguiram;
porém, é indubitável que foram os regimes que mais se aproximaram disso.
Podemos
arriscar que o valor da liberdade no pensamento de Arendt deve-se ao fato de que,
diante dos tempos de terror e de sua experiência pessoal, ela tenha sido levada
a interpretar e acreditar que a liberdade é a faculdade que sempre permanece,
mesmo quando vivemos tempos políticos petrificados. A liberdade é “a pura
capacidade de começar que anima e inspira todas as atividades humanas e que
constitui a fonte oculta de todas as coisas grandes e belas” (ARENDT, 2014a,
p.218). Assim sendo, a duração do reich milenar,
a ditadura do proletariado e o fascismo italiano conseguiram a dominação das
massas porque se dedicaram a erradicar essa fonte oculta da existência humana, já
que com o fim da liberdade a ação política torna-se incapaz e toda a
diversidade das experiências humanas se transforma numa engrenagem automática e
petrificada.
Para
Arendt, o mundo contemporâneo é marcado pela destruição de tudo o que há entre
nós. Metaforicamente, ela usa o termo deserto. A crise da tradição, a barbárie
dos regimes totalitários e o mito da prosperidade através do ganho material
fizeram com que perdêssemos o “corrimão da história”, e como consequência nos
deparamos com a “expansão do deserto” a cada dia. Esse argumento poético nos
faz pensar a função da solidão nos regimes políticos. Arendt afirma que “precisamente
porque sofremos nas condições do deserto é que ainda somos humanos e ainda
estamos intactos; o perigo está em nos tornamos verdadeiros habitantes do
deserto e nele passarmos a nos sentir em casa” (ARENDT, 2009, p.267).
Outro
perigo é que no deserto existem também tempestades de areia que mudam
constantemente a configuração do deserto. “Essas tempestades são os movimentos
totalitários cuja principal característica é serem extremamente bem ajustados
às condições do deserto” (ARENDT, 2009, p. 267). As “tempestades totalitárias”
ameaçam, praticamente eliminam quase todos os oásis que mantinham vivas as
esperanças e as lutas contra o processo de desertificação da raça humana. Os
oásis são fatores de extrema importância e sem os quais nenhum ser humano
poderia suportar a vida na imensidão do deserto. As experiências do terror e da
violência são possíveis porque conseguem minar os oásis, e, portanto, o
totalitarismo é a forma política mais apropriada para vida no deserto.
A
novidade das reflexões arendtianas nos possibilita acreditar que a promessa da
política sempre poderá acontecer entre nós porque a liberdade é a faculdade de
interromper com o automatismo burocrático do totalitarismo e de qualquer outra
forma de governo. Para essa capacidade que temos a autora em análise usa o
exemplo do milagre. A liberdade possibilita ao homem realizar milagres, pois “é
da própria natureza de todo novo início o irromper no mundo como uma ‘improbabilidade
infinita’, e é, contudo, justamente esse infinitamente improvável que constitui
de fato a verdadeira trama de tudo que denominamos real” (ARENDT, 2014a, p. 218).
Ela continua e observa que “não é, pois, nem um pouco supersticioso, e até
mesmo um aviso de realismo, procurar pelo imprevisível e impredizível, estar
preparado para quando vierem e esperar ‘milagres’ na dimensão da política”
(ARENDT, 2014a, p. 219).
Nesse
sentido, Arendt reforça a tese anterior e diz que somente a natalidade tem os
mecanismos necessários para findar um regime totalitário. O nascimento de novas
crianças estremece os alicerces ideológicos dos regimes, uma vez que não é
possível recontar a mesma história, seja ela a estúpida ideia de raça ou a ideologia
de mundo sem classes. A categoria ontológica de natalidade garante o fim do
terror e a possibilidade do cumprimento da promessa da política. Assim, “o que
se opõe a toda predeterminação e conhecimento do futuro é o fato de que o mundo
se renova diariamente pelo nascimento e é constantemente arrastado para o
imprevisivelmente novo pela espontaneidade de cada nova chegada.” (ARENDT,
2009. p. 183).
CONCLUSÃO
Nesse
texto procuramos mostrar que Arendt nos legou inúmeras possibilidades de
encarar regimes totalitários e, acima de tudo, seu pensamento nos indica que os
paradigmas históricos e políticos são criados e recriados constantemente por
nós, que, como seres livres, podemos agir e participar ativamente no debate
político atual. Que consigamos viver no deserto sem nos harmonizarmos com ele e
que o século XXI contribua decisivamente para expansão dos oásis e a diminuição
dos desertos.
A
história só tem, em português, o pretérito perfeito. Não podemos dizer o que
teria ocorrido e também não podemos o que teria acontecido se... O futuro do
pretérito e o futuro não fazem parte das reflexões históricas e filosóficas.
Portanto, infelizmente, a lição que podemos extrair do vivido dos regimes
totalitários e dos escritos de Hannah Arendt é a possibilidade de que essas
terríveis anomalias possam ser sementes de virtudes. A beleza do “jardim da política”
depende do solo na qual está fincada. Estercos (regimes de totalitarismo) são
realidades precárias, mas são eles que potencializam as plantações. Que essas terríveis
e desumanas experiências sejam algo que impulsione o crescimento das rosas da
liberdade, do perdão, da ação e da pluralidade. As escolhas humanas são como sementes,
e a qualidade dos frutos políticos do amanhã dependerão e será resultado do que
semeamos hoje. Por conseguinte, nos fica a certeza de que a promessa da
política consiste na consciência de que “com quanto mais força penderem os
pratos da balança em favor do desastre, mais miraculoso parecerá o ato que
resulta na liberdade” (ARENDT, 2014a, p.219).
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