Revista Sísifo. N° 14, Julho/Dezembro 2021. ISSN 2359-3121. www.revistasisifo.com
Antonio Vitor Favero
Bacharel em Serviço Social
pela Universidade Federal do Espírito Santo (2016) e Bacharel em Filosofia pelo
Centro Universitário Salesiano de Vitória – UNISALES (2020). E-mail: antoniovitorfavero@hotmail.com
Suderlan Tozo Binda
Graduado em Filosofia pela
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (1997), Pós-graduação em
Filosofia Clínica pela Faculdade Bagozzi (2002) e Mestrado em Filosofia pela
Pontifícia Universitas Gregoriana – Roma (2006). Professor no Centro
Universitário Salesiano de Vitória (UNISALES). E-mail: sbinda@ucv.edu.br
RESUMO
Este artigo pretendeu analisar o
paradigma de homem expresso na famosa obra de Shakespeare “Hamlet” a partir da
teoria da Cisão do Eu de Sigmund Freud. Ainda, objetivou demonstrar a
importância da referida obra para a literatura; explicar o pensamento de Freud
sobre a Ichspaltung (cisão do eu); relacionar o personagem Hamlet com a
teoria da Cisão do Eu; e apresentar a teoria de Sigmund Freud como caminho
filosófico possível para a compreensão do homem. No que se refere ao método,
utilizou-se o método dedutivo e o método auxiliar comparativo, bem como a
técnica de pesquisa documental e bibliográfica. O paradigma de homem expresso
em “Hamlet” é o paradigma do homem cindido no conflito entre seus impulsos e
instintos e sua moralidade ideal. A atitude resultante dessa cisão inibe a ação
vingadora do personagem que, perdido em suas melancólicas reflexões, perde a
oportunidade de agir e as consequências de tal inércia serão nefastas na
história do Príncipe Dinamarquês e dos personagens principais.
Palavras-chave: Hamlet. Sigmund Freud. Psicanálise. Cisão do Eu.
ABSTRACT
This article intended to analyze the paradigm of
man expressed in Shakespeare's famous work “Hamlet” based on Sigmund Freud's
theory of the Splitting of the Ego. Also, it aimed to demonstrate the
importance of this work for literature; explain Freud's thinking on Ichspaltung (Splitting of the Ego); relate
the character Hamlet with the theory of the Splitting of the Ego; and present
Sigmund Freud's theory as a possible philosophical path for understanding man. Regarding
the method, both deductive and comparative auxiliary methods were used, as well
as the documentary and bibliographic research technique. The paradigm of man
expressed in “Hamlet” is the paradigm of man split in the conflict between his
impulses and instincts and his ideal morality. The attitude resulting from this
split inhibits the avenging action of the character who, lost in his melancholy
reflections, loses the opportunity to act and the consequences of such inertia
will be harmful in the story of the Danish Prince and the main characters.
Keywords: Hamlet. Sigmund Freud. Psychoanalysis. Splitting
of the Ego.
1 INTRODUÇÃO
A temática que essa
pesquisa propôs encontra-se numa reflexão sobre o homem, enquadrando-se de
maneira geral dentro de uma Antropologia Filosófica, ou seja, dentro de uma
concepção conceitual de homem e sua estrutura subjetiva constituinte do seu
ser. Tal estrutura psíquica a ser estudada encontra-se num horizonte
noológico-filosófico, ou seja, o fato psíquico e o aparelho subjetivo que
constitui o homem em si dentro de uma visão filosófica do ser (SANTOS, 1956).
Sendo assim, ao pensar
sobre o ser do homem e sua dúvida existencial, salta à mente o célebre monólogo
shakespeariano de “Hamlet” em que o melancólico príncipe se
pergunta: “To be or not to be? That is
the question” [Ser ou não ser? Eis a questão] (SHAKESPEARE, 2019, p. 71). O
príncipe lamenta a morte abrupta do seu pai, o Rei da Dinamarca, que foi
calculadamente assassinado por seu irmão. O tio assassino de Hamlet, ao se
casar com a Rainha (viúva de seu irmão), usurpa o trono da Dinamarca. Ao tomar
conhecimento do crime cometido por seu tio, Hamlet se sente impelido a
vingar-se, o que inicia o trágico drama existencial da mais famosa e importante
peça de língua inglesa (SHAKESPEARE, 2019).
Para refletir, então,
sobre o ser do homem a partir de uma filosofia antropológica/noológica,
utilizou-se a teoria de Sigmund Freud da Cisão do Eu (Ichspaltung) enquanto perspectiva teórica para compreensão do homem
e aquilo que constitui o seu ser, ou seja, seu aparelho psíquico-subjetivo que,
defende Freud, é divido em pelo menos dois grandes sistemas: o consciente e o inconsciente
(FREUD, 1996a).
A partir disso,
analisaram-se as atitudes do personagem Hamlet frente aos acontecimentos
trágicos em sua vida sob a ótica da estrutura cindida do eu de Sigmund Freud
que, como ele mesmo resume, o eu não é mais senhor em sua própria casa (FREUD,
1996e). O próprio Freud faz alusão à Hamlet e às suas inquietações como
expressão do Complexo de Édipo (FREUD, 1996d); no entanto, esta pesquisa
pretendeu uma reflexão mais profunda sobre a constituição subjetiva a partir de
uma compreensão filosófico-noológica da teoria da Cisão do Eu, tendo como pano
de fundo a trágica história do príncipe dinamarquês.
A pesquisa orientou-se
pela seguinte pergunta/problema: como compreender o paradigma
de homem expresso na obra “Hamlet” a partir da teoria da Cisão do Eu de Sigmund
Freud? Assim, de maneira geral, objetivou-se analisar o personagem Hamlet a
partir da teoria freudiana da Cisão do Eu em vista de compreender o paradigma
de homem. Especificadamente, procurou-se demonstrar a importância da obra
“Hamlet” para a literatura; explicar o pensamento freudiano acerca da estrutura
cindida do sujeito humano (Ichspaltung); relacionar o personagem Hamlet com a
teoria da cisão do eu de Freud; e, por fim, apresentar a teoria de Sigmund
Freud enquanto caminho filosófico possível para compreensão do homem.
Em termos de hipóteses, esta pesquisa tentou
elucidar a teoria da Cisão do Eu de Sigmund Freud enquanto caminho filosófico
possível para compreensão do paradigma de homem, atingindo uma compreensão dos
acontecimentos trágicos da vida de Hamlet, expressos na famosa obra de William
Shakespeare. E, tendo feito isso, sugerir a filosofia enquanto matéria
interdisciplinar possível para a compreensão de obras literárias.
A relevância desta pesquisa justifica-se pela escassez de produções
filosóficas acerca da obra de Sigmund Freud, bem como por promover o diálogo
interdisciplinar com a teoria da literatura ao analisar também a importante
obra de William Shakespeare. Se apropriar da inédita teoria do médico austríaco
faz-se importante para compreender o homem e suas inquietações, bem como coloca
o inconsciente, dentro da estrutura psíquica proposta por Freud, como lócus privilegiado para a reflexão
filosófica, campo cuja reflexão filosófica ainda é incipiente. Essa pesquisa
ainda procurou promover um diálogo interdisciplinar ao lançar mão de conceitos
e obras da literatura clássico-moderna e da psicanálise freudiana.
No que se refere à
metodologia, utilizamos o método dedutivo e como método auxiliar, o
método comparativo. Enquanto técnica de pesquisa, tomamos como ponto de partida
a pesquisa documental e bibliográfica. Os documentos primários que utilizamos
são propriamente os textos de Sigmund Freud e a famosa tragédia de Shakespeare
“Hamlet” (2019, tradução de Millôr Fernandes). Já no que se refere à pesquisa bibliográfica, lançamos
mão de teses, dissertações, artigos publicados em revistas sobre o tema da
teoria de Freud, bem como sobre a obra “Hamlet”.
2 WILLIAM
SHAKESPEARE E “HAMLET”
No que se refere obra
de Shakespeare, Marin (2011, p. 57) destaca que nos anos 1590 “[...] com talvez a
primeira peça A Comédia dos Erros e a
segunda década do século dezessete com seu último trabalho completo A Tempestade escrita em 1611,
Shakespeare compôs a mais extraordinária obra da história mundial do teatro”. Percebe-se, portanto, que a obra de William Shakespeare
marcou profundamente a história do teatro e da literatura em todo mundo. Mas
não só no teatro,
Existe, em sua obra, a possibilidade de
estabelecermos tantas ligações de naturezas diferentes, como tantos giros que
podemos dar ao seu engenho. As diferentes possibilidades de associação que
Shakespeare nos oferece são extraordinárias e, provavelmente por isso, é que se
escreveu mais acerca desse autor do que sobre nenhum outro (SAAVEDRA, 2014, p.
128).
Ao encontro do que
afirma Saavedra (2014), pode-se afirmar que devido à complexidade e profundeza
da obra de Shakespeare, dela se pode inferir variadas associações com outras
áreas do saber além da literatura, nomeadamente a Filosofia, Psicologia e
Antropologia.
2.1 “HAMLET”: ENREDO
A data específica em
que a obra “Hamlet” foi
elaborada permanece desconhecida. Segundo Cordeiro (2018), a obra foi escrita
entre 1598 e 1601. Afirma ainda o autor que “Hamlet é considerada, por parte da crítica especializada, a obra
prima de Shakespeare; é nela que vemos o escritor no auge da sua genialidade
criativa, e que vemos também diversas facetas do arsenal artístico do autor”
(CORDEIRO, 2018, p. 52). “Hamlet” chega aos
nossos dias aclamada por todas as gerações anteriores, sendo um patrimônio
artístico-cultural não só da história do teatro, mas da cultura de modo geral,
cuja importância e atualidade se mantém vivas na contemporaneidade.
Nesta linha, ainda
expõe Cordeiro (2018, p. 53) que
Apesar de possuir mais de 400 anos, o
texto impressiona pela combinação de uma alta relevância nos temas que
concernem ao surgimento do pensamento moderno e suas implicações, presentes
principalmente nos solilóquios de Hamlet. Também representa com maestria os
conflitos da conjuntura política e religiosa de seu tempo, conflitos esses que,
em parte, permanecem vivos e atuantes na contemporaneidade [...].
Assim sendo, em
“Hamlet” de Shakespeare desponta na literatura a aurora das questões da
modernidade. O Príncipe dinamarquês, protagonista da obra, expressa em seu
pensar e agir questões emergentes na Filosofia da época em que seu autor vive,
sintetizando em seu personagem ao mesmo tempo questões de ordem religiosa,
política, psicológica, ética e filosófica, o que caracteriza a complexidade do
enredo escrito por Shakespeare. Pelo prisma de Hamlet, a luz do humano é
refratada em um arco-íris de problemáticas, pensamentos, teorias, maneiras de
agir, das quais aqui será analisado, pelas lentes de Sigmund Freud, o fator
psíquico-subjetivo a partir da compreensão da cisão do eu.
Como bem expressa o
personagem Marcelo, um dos guardas do palácio, “Há algo de podre no Estado da
Dinamarca” (SHAKESPEARE, 2019, p. 34). O
enredo se inicia com a aparição do fantasma do falecido pai de Hamlet, o Rei da
Dinamarca. Ele revela a Hamlet que não havia falecido de causas naturais ou
misteriosas; mas, vítima de um assassinato planejado à sangue frio. O irmão do
pai de Hamlet, Cláudio, o havia assassinado para se casar com a mãe do
protagonista, a Rainha Gertrudes, e assumir o trono do país. É neste clima fantasmagórico que Hamlet
pronuncia a famosa frase: “Há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que
sonha a tua filosofia” (SHAKESPEARE, 2019, p. 41).
Ao tomar conhecimento
do assassinato de seu pai, Hamlet enfrenta a maior crise existencial de sua
vida. Entretanto, não a atravessaria passivamente. O personagem afirma: “Nosso
tempo está desnorteado. Maldita a sina que me fez nascer um dia pra consertá-lo!”
(SHAKESPEARE, 2019, p. 41).
Claramente, Hamlet toma para si a tarefa
de reestabelecer a verdade e a moral em sua pátria, que havia se comprometido
seriamente com o assassinato do Rei e o casamento incestuoso do assassino com a
Rainha Gertrudes, mãe de Hamlet. Ao
levar a cabo sua missão, Hamlet planeja vingar a morte do pai, tramando assassinar
seu tio impostor.
Não obstante, Hamlet
também se encontra interessado amorosamente em Ofélia. Como destaca Cordeiro
(2018, p. 55), “ainda anteriormente à fala com o fantasma, o
texto nos mostra que existe uma tensão amorosa entre Hamlet e Ofélia, que é
filha de Polônio e irmã de Laertes”.
Entretanto, Hamlet demonstra grande perturbação, se tornando muito confuso.
Extremamente melancólico, deixa de corresponder aos afetos de Ofélia que, com o
passar do tempo, fica louca após seu pai ser assinado por Hamlet e acaba se
suicidando.
Nesse contexto, o pano
de fundo que perpassará todo o drama do Príncipe dinamarquês é precisamente a
dúvida existencial enunciada por ele no mais interpretado e famoso monólogo da
história da dramaturgia: “Ser ou não ser - eis a questão” (SHAKESPEARE,
2019, p. 71). Nesse monólogo, Shakespeare
parece antecipar uma importante questão que será levantada pelo filósofo René
Descartes, pai da modernidade. Para Shakespeare, o ser está profundamente
atrelado ao fazer, ou seja, aquilo que faço me faz ser quem eu sou. Ao
contrário do que defenderia Descartes anos mais tarde, ao afirmar que o ser
está atrelado ao pensar com a descoberta do cogito: “Cogito, ergo sum!” [Penso, logo existo] (DESCARTES, 1962, p. 23).
Pela boca de Hamlet,
Shakespeare já se antecipa nesta questão que abrirá a discussão filosófica da
modernidade ao defender que são os atos que fazem o ser do sujeito. No entanto,
um ato sem pensamento seria inconsequência. Hamlet, ao contrário, peca ao
pensar demais deixando de fazer aquilo que deveria fazer na hora que deveria
fazer. É no mesmo monólogo que o próprio Hamlet afirma: “e assim a reflexão faz
todos nós covardes” (SHAKESPEARE, 2019, p. 72). Durante toda a história, o personagem tem várias
oportunidades para vingar o pai e assassinar seu tio impostor; mas, ao
mergulhar em suas melancólicas reflexões e lamentações, torna-se imóvel não
podendo evitar a enorme tragédia final.
O príncipe dinamarquês
mergulha em suas lucubrações psicológicas, perdendo a oportunidade de executar
aquilo que ele mesmo se propusera: vingar a morte do pai. O Rei assassino ao
perceber que Hamlet descobrira a verdadeira história da morte do pai, se
antecipa e arquiteta também a morte de seu sobrinho. Resume Cordeiro (2018, p.
57) que
O rei planeja com Laertes a morte de
Hamlet, que seria em uma disputa de floretes, sendo que a arma de Laertes
estaria envenenada. O convite para o desafio seria a ferramenta para uma
suposta tentativa de reconciliação entre Hamlet e Laertes. O príncipe aceita o
desafio sem oferecer resistência, acrescentando-se que o plano do monarca ainda
contava com uma taça de vinho envenenada que seria oferecida para Hamlet se
refrescar durante o duelo, caso Laertes não encontrasse êxito na tarefa de
afligir o príncipe com algum golpe.
Assim, a célebre
tragédia shakespeariana caminha para seu fim. Hamlet, sem saber, caminha para a
emboscada de seu tio. Parece caminhar para sua destruição ao deixar-se
preencher por sua melancolia paranoica. Faz de si mesmo aquilo que fizeram
dele: um ser alheio, débil, incapaz de restaurar a moralidade e vingar o sangue
de seu pai.
Durante a disputa com
Laertes, Hamlet é atingido pelo florete envenenado. Ao recusar a taça de vinho
envenenado, a taça retorna à mesa e a Rainha Gertrudes a bebe por engano. O Rei
Cláudio tenta impedir; mas, já é tarde demais. Nesse mesmo instante, em um
golpe Hamlet e Laertes trocam de floretes e Hamlet desfere o que será um golpe
mortal com o florete envenenado em Laertes.
Ferido, Laertes
confessa o plano do Rei, que tenta fugir, mas é alcançado e morto envenenado
por Hamlet que, logo em seguida, desfalecendo pelo efeito do veneno, suplica à
Horácio que conte sua história. É quando chega Fortinbrás, Príncipe da Noruega,
vitorioso da luta na Polônia para tomar o trono da Dinamarca que, em sua
chegada, já se encontrava vago, não havendo mais necessidade de lutar
(SHAKESPEARE, 2019).
3
SIGMUND FREUD E A TEORIA DA CISÃO DO EU
Sobre o patrimônio teórico de Sigmund Freud, afirmam Endo e Sousa (2011,
p. 3) que ele fundou uma nova forma de produzir ciência, modificando o
entendimento sobre a alma humana e “[...] instaurando uma ruptura com
toda a tradição do pensamento ocidental, a partir de uma obra em que o
pensamento racional, consciente e cartesiano perde seu lugar exclusivo e
egrégio”. Explica Garcia-Roza (2009, p. 197) que “[...]
enquanto Descartes pensava o eu como uma entidade original, Freud o pensa como
engendrado; enquanto Descartes nos falava do sujeito da ciência, Freud nos fala
do sujeito do desejo”. Dessa forma, prossegue o autor, “[...] a
partir de Freud temos de nos perguntar por esse sujeito do inconsciente e por
sua articulação com o sujeito consciente” (GARCIA-ROZA, 2009, p. 197).
A partir do exposto, não
resta dúvida que a abordagem do inconsciente e suas categorias, como propusera
Freud, inaugura uma nova forma de compreensão do homem colocando em evidência
uma instância até então desconsiderada para o processo de conhecimento: o
inconsciente, propriamente. A influência de seu pensamento encontra eco nos
mais variados campos do saber, como a filosofia, as artes, a literatura, a
teoria política e as neurociências (ENDO; SOUZA, 2011).
3.1 A TEORIA PSICANALÍTICA
Pontua Carloni (2011,
p. 2) que o pensamento de Freud está atrelado a sua época, visto que “[...] as
explicações teológicas já não satisfaziam e a ciência era o novo modo de
entender a realidade. Ele [Freud] desenvolve uma teoria científica, mesmo que
os positivistas critiquem a Psicanálise como sendo filosofia e não ciência”. Percebe-se que Freud, em sua obra, pretendia
lançar as bases de um novo perfil epistemológico para entender a dimensão
psíquica humana e suas perturbações. Nesse ínterim, nasce então a psicanálise
tendo como marco inaugural a publicação de “A Interpretação dos Sonhos” (FREUD,
1996b e 1996c). Sobre “A Interpretação dos Sonhos”, dissertam Endo e Souza
(2011, p. 6), “[...] é hoje um dos mais relevantes textos
escritos no referido século [XX], ao lado de A ética protestante e o “espírito” do capitalismo, de Max Weber, Tractatus
Logico-Philosophicus, de Ludwig Wittgenstein, e Origens do totalitarismo, de Hannah Arendt”.
Dessa forma, a referida
obra de Freud consolidou-se não só como marco inaugural da psicanálise; mas,
como uma importante obra do século XX, cuja importância para o pensamento chega
aos nossos dias. Representou uma análise pioneira do inconsciente através dos
sonhos, constituindo-se o estrado pelo qual se assentará todo edifício teórico
freudiano (ENDO E SOUZA, 2011).
Através de seus estudos clínicos, Freud descobriu que havia outra lógica
atuante no psiquismo humano a não ser a consciência: o inconsciente, instância
cujo conteúdo não se apresentava completamente ao sujeito, daí derivando o
esquecimento e atos falhos, por exemplo. Freud (1996h, p. 9) explica ainda que
“a psicanálise não pode situar a essência do psíquico na consciência, mas é
obrigada a encarar esta como uma qualidade do psíquico, que pode achar-se presente
em acréscimo a outras qualidades, ou estar ausente”.
As outras qualidades do
psíquico, somadas à qualidade da consciência as quais se refere Freud,
constituem a base de seu primeiro sistema psicanalítico: inconsciente,
pré-consciente e consciente. Sobre o inconsciente, resume Freud (1996h, p. 10)
que “o estado em que as idéias existiam antes de se tornarem conscientes é
chamado por nós de repressão [...]”, e é justamente “o reprimido [...], o
protótipo do inconsciente” (FREUD 1996h, p. 10). No entanto, o autor esclarece que “temos dois
tipos de inconsciente: um que é latente, mas capaz de tornar-se consciente, e
outro que é reprimido e não é, em si próprio e sem mais trabalho, capaz de
tornar-se consciente” (FREUD, 1996h, p. 10). Explica ainda que
Ao latente, que é inconsciente apenas
descritivamente, não no sentido dinâmico, chamamos de pré-consciente;
restringimos o termo inconsciente ao reprimido dinamicamente inconsciente, de
maneira que temos agora três termos, consciente (Cs.), pré-consciente (Pcs.) e
inconsciente (Ics.), cujo sentido não é mais puramente descritivo (FREUD,
1996h, p. 10).
Essa é a primeira estrutura triádica proposta
por Freud em seus estudos. No entanto, cabe ressaltar que a distinção Pcs.
e Ics. só se faz num sentindo
descritivo, mas em um sentido dinâmico pode-se adotar apenas um: Ics (FREUD, 1996h). Posteriormente, Freud reformula a sua teoria
em sua obra O Ego e o Id (1996h) e
propõe um novo sistema psíquico também triádico, composto pelas instâncias Id,
Ego, Superego. É precisamente nessa obra
que surge primeiramente o conceito de Superego. Começa-se assim, a delinear-se
o que será chamado por Freud de cisão do eu, ou seja, cisão da estrutura
psíquica.
3.2 A TEORIA DA CISÃO DO EU (ICHSPALTUNG)
Freud percebeu que a
teoria anteriormente apregoada por ele acerca do aparelho psíquico não era
suficiente para explicar o psiquismo em sua complexidade (CARLONI, 2011). Nesse
contexto, Freud propõe a nova e famosa estrutura psíquica divida em Id, Ego e
Superego — ou, em outras traduções, Isso, Eu, Supereu —
(FREUD, 1996h). Essa nova estrutura
psíquica é qualificada a partir do sistema Ics., Pcs. e Cs. Ou seja, o Id é Ics.,
o Ego é em parte Cs. e em parte Ics. Já o Superego é predominantemente Ics. e uma pequena parte Cs. (CARLONI, 2011).
Acerca
do Id, pontua Freud (1996g, p. 92) que
Ele contém tudo o que é herdado, que se
acha presente no nascimento, que está assente na constituição - acima de tudo,
portanto, os instintos, que se originam da organização somática e que aqui [no
id] encontram uma primeira expressão psíquica, sob formas que nos são
desconhecidas.
Depreende-se, portanto,
que o Id é a parte mais primitiva do aparelho psíquico. Está assentado nos
instintos, constituindo-se daquilo que é disforme. Dessa estrutura primitiva
surge outra estrutura a partir da influência do mundo externo: o Ego,
constituindo-se como estrutura intermediária entre o Id e a realidade (FREUD,
1996g). No que se refere à função do Ego em relação ao Id, explica Freud
(1996h, p. 16) que o Ego
[...] é como um cavaleiro que tem de
manter controlada a força superior do cavalo, com a diferença de que o
cavaleiro tenta fazê-lo com a sua própria força, enquanto que o ego utiliza
forças tomadas de empréstimo. [...] Com freqüência um cavaleiro, se não deseja
ver-se separado do cavalo, é obrigado a conduzi-lo onde este quer ir; da mesma
maneira, o ego tem o hábito de transformar em ação a vontade do id, como se
fosse sua própria.
Desse modo, o Ego possibilita ao homem
tornar-se civilizado (CARLONI, 2011), ao passo em que é capaz de mediar às
exigências instintivas do Id, guiando-se pelo princípio da realidade, ou seja,
do mundo externo buscando sua autopreservação. Possui a tarefa de armazenar
memórias dos estímulos sensoriais, evitando estímulos exagerados e produz
modificações a seu favor de acordo com o mundo externo (FREUD, 1996g).
No que concerne ao
Superego, este possui sua origem no prolongado período do desenvolvimento que
as crianças passam com os pais, criando assim uma espécie de “precipitado” a
que Freud chamou precisamente de Superego. Mas não se limita somente a
convivência com os pais; ao contrário, seus eventuais substitutos lhe reforçam
sua constituição como, por exemplo, os professores e os ideais sociais
admirados (FREUD, 1996g).
Em outro texto, o autor
afirma que
O superego aplica o mais rígido padrão
de moral ao ego indefeso que lhe fica à mercê; representa, em geral, as
exigências da moralidade, e compreendemos imediatamente que nosso sentimento
moral de culpa é expressão da tensão entre o ego e o superego (FREUD, 1996f, p.
43).
Nessa perspectiva, o
Superego é a instância moral que jaz no aparelho psíquico, fruto da convivência
parental da criança e com outras instâncias de transmissão de valores ideais
que, por sua vez, possibilitam a criação de um Ego ideal. As ações do Ego,
portanto, devem necessariamente levar em consideração as exigências instintivas
do Id, as severas exigências morais ideais do Superego e, ainda, as exigências
da realidade concreta (FREUD, 1996g). Como o próprio Freud (1996g) destaca, o
Id é influenciado por um passado hereditário e o Superego também por um
passado, mas de coisas retiradas de outras pessoas, sendo somente o Ego
determinado pela experiência do sujeito que se constrói de acordo com a
realidade presente, levando em conta, é claro, as duas outras estruturas constituintes
do aparelho psíquico.
A partir do que foi
exposto, nota-se que o aparelho psíquico que Freud propõe representa uma
divisão da psique, ou seja,
representa uma estrutura psíquica que é divida em três instâncias. Entretanto,
destaca Carloni (2011, p. 5), que o “Id, ego e superego são diferentes, mas não
são separados. Há uma relação dialética entre eles. Desse modo, possuem a mesma
natureza e atuam em conjunto, produzindo, na estrutura psíquica, uma síntese
que compõem a subjetividade”.
No que tange, então, a
esse processo de Cisão do Eu (Ichspaltung,
no original em alemão), Freud escreveu especificadamente sobre ele em seu
artigo “A Divisão do Ego no Processo de Defesa” (1996a) e nas páginas finais do
“Esboço de Psicanálise” (1996g). Freud
(1996a) começa a explicar o processo de Cisão do Eu a partir de uma situação
que toma como exemplo: supõe-no que uma criança está submetida a uma exigência
instintual muito poderosa e a ela acostumou-se satisfazer. Entretanto, vivencia
um episódio assustador ao qual infere que o resultado dessa satisfação
representará um perigo real para si mesma. Sendo assim, explica Freud (1996a,
p. 177) que
O ego deve então decidir reconhecer o perigo
real, ceder-lhe passagem e renunciar à satisfação instintual, ou rejeitar a
realidade e convencer-se de que não há razão para medo, de maneira a poder
conservar a satisfação. Existe assim um conflito entre a exigência por parte do
instinto e a proibição por parte da realidade. Na verdade, porém, a criança não
toma nenhum desses cursos, ou melhor, toma ambos simultaneamente, o que
equivale à mesma coisa.
Ou seja, a criança
responderá ao seu conflito rejeitando a realidade e rejeitando a proibição, mas
também reconhecerá o perigo da realidade, assumindo-o como um medo patológico,
tentando desfazer-se dele. Conclui, então, Freud (1996a, p. 177) que
Ambas as partes na disputa obtêm sua
cota: permite-se que o instinto conserve sua satisfação e mostra-se um respeito
apropriado pela realidade. Mas tudo tem de ser pago de uma maneira ou de outra,
e esse sucesso é alcançado ao preço de uma fenda no ego, a qual nunca se cura,
mas aumenta à medida que o tempo passa. As duas reações contrárias ao conflito
persistem como ponto central de uma divisão [...] do ego.
Desse modo, no Capítulo
VIII do “Esboço de Psicanálise” (1996g), intitulado “O Aparelho Psíquico e o
Mundo Externo”, Freud associa as neuroses e psicoses a uma cisão ocorrida no
Ego, fruto das exigências instintivas do Id e da realidade do mundo externo.
Explica Freud (1996g, p. 133) que “seja o que for que o ego faça
em seus esforços de defesa, procure ele negar uma parte do mundo externo real
ou busque rejeitar uma exigência instintiva oriunda do mundo interno, o seu
sucesso nunca é completo e irrestrito”.
Deste insucesso, pode-se dizer, ocorre uma
divisão do Ego e surgem duas forças, ou ainda, resultam em duas atitudes, como explicita
o autor (FREUD, 1996g, p. 131):
Duas atitudes psíquicas formaram-se, em
vez de uma só - uma delas, a normal, que leva em conta a realidade, e outra
que, sob a influência dos instintos, desliga o ego da realidade. As duas
coexistem lado a lado. O resultado depende da sua
força relativa. Se a segunda é ou se torna a mais forte, a pré-condição
necessária para uma psicose acha-se presente. Se a relação é invertida, há
então uma cura aparente do distúrbio delirante. Na realidade, ele apenas se
retira para o inconsciente [...].
Nesse contexto,
verifica-se que a Cisão do Eu se dá na discrepância entre os instintos do Id e
as exigências da realidade, que também são expressas, condensadas, no arsenal
moral do que se constituirá como Superego. A própria divisão do aparelho
psíquico em Id, Ego, e Superego surge dessa interpolação instinto versus realidade. Em suma, a dimensão
inconsciente instintiva necessita de um intermediário entre si e o real,
desenvolvendo-se o Ego que, neste processo de mediação, levará em conta a
realidade, surgindo a partir de ambos a introjeção dos valores morais e ideais
no qual se constituirá o Superego (FREUD, 1996a; 1996g).
Como é sabido, o
pensamento de Freud com sua inédita teoria sobre o aparelho psíquico e suas
perturbações encontrou grande resistência nos mais variados campos do saber. O
próprio Freud (1996e) atribuiu essa resistência ao “ingênuo amor-próprio”
humano que até então já havia sofrido dois golpes.
O primeiro golpe foi a
descoberta de que a terra não era o centro do universo, “[...] mas o diminuto
fragmento de um sistema cósmico de uma vastidão que mal se pode imaginar”
(FREUD, 1996e, p. 32). O segundo foi a descoberta da biologia de que o homem
descende do reino animal, como propôs Darwin e seus predecessores, o que
destruiu o suposto lugar privilegiado do homem na Criação. Mas é a psicanálise
que desfere o terceiro golpe ao provar ao “[...] ego que ele não é senhor nem
mesmo em sua própria casa, devendo, porém, contentar-se com escassas
informações acerca do que acontece inconscientemente em sua mente” (FREUD,
1996e, p. 32).
4
ANÁLISE DO PERSONAGEM HAMLET A PARTIR DA TEORIA DA CISÃO DO EU
Neste tópico, propõe-se
analisar o famoso personagem de Shakespeare, Hamlet da Dinamarca, a partir da
compreensão anteriormente exposta do aparelho psíquico conceitualmente
estruturado por Sigmund Freud, dentro da concepção de Ichspaltung (Cisão do Eu). Para tanto, esse será divido em quatro
partes, onde trata-se especificadamente de cada instância do aparelho psíquico,
de acordo com o processo de cisão do Eu, destacando como tudo isso comparece na
trágica história shakespeariana. Ressalta-se que, apesar da maior parte dos
textos apresentarem a ordem Id, Ego e Superego, aqui utilizaremos a ordem
Superego, Id e Ego para proporcionar maior coerência e entendimento à nossa
análise.
4.1 SUPEREGO
Como exposto
anteriormente, Freud chamou de Superego o precipitado moral e ideal absorvido
pelo aparelho psíquico no longo período em que a criança passa com os pais, e
seus eventuais substitutos, quer sejam pessoas ou instituições da sociedade
(FREUD, 1996g). Destacam ainda Alberti, Santos e Beteille (2019, p. 788) que
[...] Freud aponta três funções que
concernem ao supereu: 1) a consciência moral, que poderia se aproximar do que
comumente chamamos de voz da consciência; 2) ser portador do Ideal do eu: com
relação a esse ideal o eu se mede, aspirando alcançá-lo. [...] O Ideal do eu
encontra-se profundamente relacionado à identificação, e sua formação está no
campo do simbólico. Outra função do supereu é 3) a observação de si [...]
Afinal, a observação de si permite ao supereu estabelecer uma comparação entre
o eu e o Ideal do eu, para que então a consciência moral possa dar o seu
veredito.
Não obstante, é
necessário destacar a história pregressa do Príncipe Hamlet, a qual podemos
inferir ao compararmos com a história das famílias reais do mundo real. A obra
de Shakespeare não nos traz informações da infância do Príncipe; mas, podemos
imaginá-la ao pensarmos no papel das famílias reais para seus países e a
sociedade em geral. Dessa forma, sabe-se que o papel de um Rei para seu país é,
antes de tudo, de guardião da moral, tradição e costumes de seu povo de maneira
que a figura do Rei representa a personificação da moral e o espelho da virtude
para seus súditos. Sendo assim, um príncipe herdeiro deve ser criado segundo o
mais rígido padrão moral e tradicional para dar continuidade ao papel do Rei o
qual sucederá.
É de se supor que assim
aconteceu com Hamlet da Dinamarca: sua criação girou em torno do seu futuro
papel de líder do país, espelho para todos seus súditos daquilo que é o
correto, justo e ideal. É o que afirma Ofélia ao constatar a loucura de Hamlet
e entoar um verdadeiro hino à sua pessoa: “Ó, ver tão nobre espírito assim tão
transtornado! O olho, a língua, a espada do cortesão, soldado, sábio, rosa e
esperança deste belo reino, espelho do gosto e modelo dos costumes, admirado
pelos admiráveis [...]” (SHAKESPEARE, 2019, p. 74).
O texto de Shakespeare
indica que, criado nessa atmosfera, Hamlet acredita em uma moralidade ideal e
que a mesma é real, sendo seus pais e demais membros da corte real produtores e
reprodutores desse arsenal moral do país dinamarquês. Pode-se dizer ainda que
Hamlet desde sua tenra infância desenvolveu um Superego exagerado, fruto da
absorção e consolidação da moral da qual ele deverá ser representante e
guardião. Isso fica bem claro no comentário que Laertes faz, em conversa com
Ofélia, sobre o príncipe:
Mas você deve temer, dada a grandeza
dele, o fato de não ter vontade própria: é um vassalo do seu nascimento. Não
pode, como as pessoas sem importância, escolher a quem deseja, pois disso depende
a segurança e o bem-estar do Estado. Portanto, a escolha dele está subordinada
à voz e à vontade desse outro corpo do qual ele é a cabeça. Então, quando diz
que te ama, convém à tua prudência só acreditar nisso até onde seu desejo
pessoal pode transformar o que ele diz em fato: ou seja, até onde permitir a
vontade universal da Dinamarca (SHAKESPEARE, 2019, p. 26-27).
Fica claro pela fala de
Laertes que a pessoa do Chefe de Estado se confunde com o próprio Estado: o Rei
é seu país. Hamlet é, portanto, vassalo de seu nascimento, ou seja, deve
cumprir o destino a que seu nascimento o reservara: encabeçar um corpo civil, dotado
de tradições e costumes, bem como de uma moralidade do qual ele próprio é
guardião e promotor.
Todavia, o Príncipe
Hamlet desde as cenas iniciais da peça percebe que, de certa forma, a
moralidade ideal a qual ele aprendeu e incorporou não se dá totalmente na
realidade, mesmo entre aqueles que deveriam ser modelo de tais virtudes. É o
que se verifica no monólogo pronunciado por Hamlet após as cenas do casamento
de Cláudio, agora Rei da Dinamarca e o irmão do Rei falecido, com a Rainha
Gertrudes:
[...] ela casou com meu tio, o irmão de
meu pai, mas tão parecido com ele como eu com Hércules! Antes de um mês! Antes
que o sal daquelas lágrimas hipócritas deixasse de abrasar seus olhos
inflamados, ela casou. Que pressa infame, correr assim, com tal sofreguidão, ao
leito incestuoso! (SHAKESPEARE, 2019, p. 21).
Tendo em vista a
concepção de matrimônio, quando o Rei Hamlet casou com Gertrudes, Cláudio
também se tornara irmão de Gertrudes, visto que o matrimônio, na concepção
cristã, transforma os cônjuges em uma só carne. Assim, o Príncipe Hamlet
considera o novo casamento de sua mãe como incestuoso, o que certamente abala
sua concepção de uma possível moral ideal real, já que aqueles que deveriam ser
tidos como exemplos praticam atos imorais.
Nesse contexto, em
cenas posteriores, surge o fantasma do falecido Rei que revelará à Hamlet a
real causa de sua morte. O que era tido como uma morte natural, o fantasma
revela que foi um assassinato cometido por seu próprio irmão: “[...] a serpente
cuja mordida tirou a vida de teu pai agora usa nossa coroa” (SHAKESPEARE, 2019,
p. 36). E exorta Hamlet: “Se você tem sentimentos naturais não deve tolerar;
não deve tolerar que o leito real da Dinamarca sirva de palco à devassidão e ao
incesto” (SHAKESPEARE, 2019, p. 37). O fantasma do pai, poderíamos dizer,
também é imagem de um Superego ressentido, já que, como o fantasma mesmo
afirma, sua morte se deu de forma muito cruel, no auge dos seus pecados, pois
não houve tempo para confessar-se, comungar e receber a extrema-unção
(SHAKESPEARE, 2019). Destaca-se que os valores religiosos também constituem o
Superego, a instância moral do aparelho psíquico (FREUD, 1996g).
Exortado pelo fantasma
do pai, Hamlet toma para si a missão de vingar o assassinato de seu pai. Mas,
aos “olhos” do Superego, não é apenas vingar a morte do pai, mas sim
restabelecer a moralidade no reino da Dinamarca, ou seja, cumprir a missão de
guardião e promotor moral que lhe atribui o berço nobre de seu nascimento:
“Nosso tempo está desnorteado. Maldita a sina que me fez nascer um dia pra
consertá-lo!” (SHAKESPEARE, 2019, p. 41). Assim, o personagem Hamlet generaliza
a “queda moral” de que sua família foi artífice, atribuindo tal degradação à
época em que vive.
Mas, será no famoso
monólogo “Ser ou Não Ser” que poderemos contemplar de forma nítida o papel do
Superego na história do príncipe dinamarquês. De maneira poética, as máximas
morais consolidadas no aparelho psíquico demonstram seu impacto na vida de
Hamlet e do homem:
Ser ou não ser – eis a questão. Será
mais nobre sofrer na alma pedradas e flechadas do destino feroz ou pegar em
armas contra o mar de angústias – e, combatendo-o, dar-lhe fim? Morrer; dormir;
só isso. E com o sono – dizem – extinguir dores do coração e as mil mazelas
naturais a que a carne é sujeita; eis uma consumação ardentemente desejável.
Morrer – dormir – Dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo! Os sonhos que hão
de vir no sono da morte quando tivermos escapado ao tumulto vital nos obrigam a
hesitar: e é essa reflexão que dá à desventura uma vida tão longa. Pois quem
suportaria o açoite e os insultos do mundo, a afronta do opressor, o desdém do
orgulhoso, as pontadas do amor humilhado, as delongas da lei, a prepotência do
mando, e o achincalhe que o mérito paciente recebe dos inúteis, podendo, ele
próprio, encontrar seu repouso com um simples punhal?
Quem aguentaria fardos, gemendo e suando numa vida servil, senão porque o
terror de alguma coisa após a morte – o país não descoberto, de cujos confins
jamais voltou nenhum viajante – nos confunde a vontade, nos faz preferir e
suportar os males que já temos, a fugirmos para outros que desconhecemos? E
assim a reflexão faz todos nós covardes. E assim o matiz natural da decisão se
transforma no doentio e pálido pensamento. E empreitadas de vigor e coragem,
refletidas demais, saem de seu caminho, perdem o nome de ação [...]
(SHAKESPEARE, 2019, p. 71-72).
Nota-se, portanto, que
a dúvida do que há após a morte exerce um papel coercitivo e regulador da ordem
da vida em sua cotidianidade de sofrimentos, impedindo que o homem, o próprio
Hamlet nesse caso, resolva suas dores e seus problemas abraçando a morte.
Destarte, pode-se dizer que a religião contribui em grande medida para que o
homem se preocupe com a vida pós-morte, já que ela mesma é quem postula e
teoriza sobre o “país não descoberto”, com suas noções de paraíso, purgatório e
inferno (no caso do cristianismo/catolicismo), impondo um padrão moral ideal
para o êxito na vida além-túmulo. Desse modo, a noção de que nossas ações são
contabilizadas e julgadas por um Deus, tolhe em grande parte o agir humano, que
deve seguir as normas morais às quais o Superego lhe impõe. Deus, nesse sentido, pode ser concebido como
projeção do Superego, instância que aplica o mais rígido padrão moral (FREUD,
1996f).
É a partir desse
“critério moral”, a vida após a morte com o julgamento de Deus, que Hamlet
perde a oportunidade de matar seu tio e cumprir com o seu desejo de vingança.
Em um momento a sós com seu tio, escondido, Hamlet tem a oportunidade de matá-lo;
no entanto, nota que o tio está arrependido de seu ato sórdido e se pergunta
pelo perdão de Deus. Sendo assim, Hamlet hesita: “[...] um monstro mata meu pai
e, por isso, eu, seu único filho, envio esse canalha ao céu. Oh ele pagaria por
isso recompensa – isso não é vingança” (SHAKESPEARE, 2019, p. 93). Ou seja, ao
imaginar que seu tio seria absolvido por estar arrependido e ganharia o céu,
Hamlet deixa de agir, perdendo a oportunidade.
Para Hamlet, a moralidade, sobretudo religiosa, é de suma importância. Nota-se
isso quando ele confronta sua mãe à respeito de seu casamento incestuoso: “[...]
oh, esse ato arranca a própria alma do corpo de um juramento e transforma a
santa religião em rapsódia de palavras; a face do céu se torna púrpura, sim, e esta
terra sólida e compacta, como sentindo aproximar-se o Dia do Juízo” [...]
(SHAKESPEARE, 2019, p. 96).
4.2 ID
No que se refere ao Id,
como já exposto, trata-se da dimensão mais primitiva do aparelho psíquico,
constituindo-se de todo o aparato instintual do indivíduo e que possui certa
carga hereditária, sendo puramente inconsciente (CARLONI, 2011; FREUD, 1996g). Afirma Marcuse
(1975, p. 46) que
O id está isento das formas e princípios
que constituem o indivíduo consciente e social. Não é afetado pelo tempo nem
perturbado por contradições; ignora valores, bem e mal, moralidade. Não visa à
autopreservação: esforça-se unicamente pela satisfação de suas necessidades
instintivas, de acordo com o princípio de prazer.
Percebe-se, portanto,
que essa instância do aparelho psíquico, ao não levar em consideração qualquer
moralidade, deseja a qualquer custo satisfazer seus desejos, sua necessidade de
prazer, não levando em consideração o próprio risco de morte ou prejuízo.
Isso comparece no
personagem Hamlet desde o princípio da trama. É o próprio fantasma do pai de
Hamlet que, invocando a moralidade manchada pelo seu assassinato, insta o
príncipe a vingar-se. Se anteriormente atribuímos tal ensejo ao desejo do
Superego de que a vingança poderia restaurar a moralidade no país dinamarquês,
podemos também relacioná-lo ao desejo instintual e passional do Id de aniquilar
aquele que de certa forma o feriu. Pois Hamlet poderia recorrer aos tribunais,
usar de sua popularidade e nobreza para instigar desconfianças em torno do
atual Rei e, assim, provar sua culpa. Entretanto, caberá ao Id essa função
vingativa ao desejar a morte do tio assassino a partir de suas próprias mãos e
será nisso que residirá seu gozo prazeroso (SHAKESPEARE, 2019).
Em uma fala de Hamlet,
numa cena posterior, pode-se constatar, por assim dizer, a voz do Id que
reclama vingança, insatisfeito com a morosidade do próprio príncipe: “Eu, filho
querido de um pai assassinado, intimado à vingança pelo céu e o inferno, [...]
desafogando minha alma com palavras, me satisfazendo com insultos [...]”
(SHAKESPEARE, 2019, p. 67). Céu e inferno podem aqui ser considerados como
representações morais do bem e do mal, representando a ação do Superego sobre o
Id.
Assim, adiante na
história, podemos encontrar traços da ação do Id também no monólogo “Ser ou Não
Ser”, anteriormente citado. Nele, o ilustre dinamarquês pergunta-se o porquê de
não findar seus sofrimentos abraçando a morte que, como exposto, esbarra-se nos
princípios morais sobre a vida após a morte. Não obstante, podemos enxergar
nesse monólogo um Id cansado do que podemos chamar de sofrimento, ou desprazer.
Como anteriormente ilustrado por Marcuse (1975), o Id se guia pelo princípio de
prazer não levando em consideração a autopreservação, e agora, se deparando com
tanto desprazer, anseia sua destruição com vistas à “[...] extinguir dores do
coração e as mil mazelas naturais a que a carne é sujeita [...]” (SHAKESPEARE,
2019, p. 71). Continua Hamlet: “[...] e assim o matiz natural da decisão se
transforma no doentio pálido do pensamento” (SHAKESPEARE, 2019, p. 72). Há nesta cena, portanto, uma interpolação
entre Id versus Superego, Instinto versus Moralidade e ainda Ação versus Pensamento.
Continuando a trama, quando
Hamlet confronta a sós a Rainha, o Fantasma do falecido Rei reaparece.
Interessante que, se antes tal fantasma poderia ser associado a uma imagem do
Superego ressentido, agora parece ser a representação do Id que busca reacender
o instinto vingativo do príncipe: “Não esqueça; esta visita é para aguçar tua
resolução já quase cega” (SHAKESPEARE, 2019, p. 98). E Hamlet, então, reacende
seus sentimentos passionais instituais de vingança e afirmará mais tarde: “[...]
meus pensamentos sejam só sangrentos; ou não sejam nada!” (SHAKESPEARE, 2019,
p. 111).
Entretanto, não é
somente em relação à vingança da morte do pai que podemos delinear a ação do Id
no personagem analisado. Quando ele toma ciência da morte de Ofélia, deixa
escapar sua grande paixão amorosa, anteriormente conspurcada por sua raiva e
rancor. Ao redor da sepultura de Ofélia, no momento do sepultamento, Hamlet
confronta o sofrimento de Laertes (irmão de Ofélia) ao demonstrar os seus: “Eu
amava Ofélia. Quarenta mil irmãos não poderiam, somando seu amor, equipará-lo
ao meu. Que farás tu por ela?” (SHAKESPEARE, 2019, p. 138).
4.3 EGO
No tocante ao Ego, como já dito, trata-se da
instância psíquica mediadora entre as duas outras instâncias psíquicas e a
realidade, sendo através do Ego que elas se relacionam com a mesma (FREUD,
1996g). Nas palavras de Freud (1996g, p. 11), é ao
[...] ego que a consciência se acha
ligada: o ego controla as abordagens à motilidade - isto é, à descarga de
excitações para o mundo externo. Ele é a instância mental que supervisiona
todos os seus próprios processos constituintes e que vai dormir à noite, embora
ainda exerça a censura sobre os sonhos.
Destaca-se que o Ego é em parte consciente e em
parte inconsciente, ao contrário do Id que é inconsciente e do Superego que é,
na maior parte inconsciente, e uma pequena parte consciente (CARLONI, 2011). Pontua Marcuse (1975, p. 46) que
“[...] o ego preserva a sua existência, observando e testando a realidade,
recebendo e conservando uma imagem verdadeira da mesma, ajustando-se à
realidade e alterando-a no seu próprio interesse”.
Nesse sentido, percebe-se no decorrer de toda
peça que Hamlet da Dinamarca encontra dificuldades no que concerne a
conciliação de seus impulsos e sua moralidade, uma moralidade que barra por
vezes suas ações. O Ego parece não saber o que fazer e é atormentado por aquilo
que acontece consciente e inconscientemente em sua mente. É o que pode se
verificar na fala do Rei sobre Hamlet: “Sobre a metamorfose de Hamlet.
Metamorfose é a palavra certa, pois nem exterior, nem interiormente ele é mais
o que foi. Não sei que coisa o poderá ter afastado tanto do entendimento de si
mesmo, além da morte do pai” (SHAKESPEARE, 2019, p. 47). O Rei parece
constatar, então, uma mudança na personalidade de Hamlet ou ainda uma perda de sua
identidade.
Em outra cena, é perceptível que o que outrora
era o refúgio do príncipe, agora se torna uma prisão. O próprio Hamlet afirma:
“A Dinamarca é uma prisão!” (SHAKESPEARE, 2019, p. 56). Aqui se pode inferir
uma massiva repressão do Superego ao Ego, ao ponto de o que deveria ser o berço
da moral e de toda idealidade, a Dinamarca, se torna uma prisão, algo que
afugenta e tortura o Ego. Como mostrado nos tópicos anteriores, o Superego
aplica o mais rígido padrão moral no Ego que lhe fica à mercê (FREUD, 1996f).
Nesse contexto, o
monólogo “Ser ou Não Ser” torna-se um desabafo doído do próprio Ego indefeso
que se vê contrariado por seus instintos e moralidade, bem como pela realidade
que se apresenta a ele. Nesse monólogo, as instâncias mentais Id, Ego e
Superego parecem confundir-se e a síntese de sua relação e dinamicidade compõe
a subjetividade do melancólico príncipe (CARLONI, 2011). Outro exemplo da ação
da avaliação do Superego sobre o Ego encontra-se logo em seguida à fala do
príncipe à Ofélia: “Sou arrogante, vingativo, ambicioso; com mais crimes na
consciência do que pensamentos para concebê-los, imaginação para
desenvolvê-los, tempo para executá-los” (SHAKESPEARE, 2019, p. 73). Ao mesmo
tempo em que o príncipe se atribui adjetivos negativos, lamenta-se por sua
inércia em vingar a morte do pai: um eu, Ego, que não consegue agir.
Posteriormente, em
conversa com Horácio, seu amigo, Hamlet expressa o desejo de uma conciliação
entre paixão e razão ao afirmar “[...] felizes esses nos quais paixão e razão
vivem em harmonia” (SHAKESPEARE, 2019, p. 78). Ou seja, a felicidade para
Hamlet parece consistir no equilíbrio da paixão (Id) e da razão que é expressão
do Ego, mas de um Ego que a todo o momento é avaliado por um Superego, de maneira
que a ação fica condicionada à reflexão, como bem demonstra o monólogo “Ser ou
Não Ser” quando Hamlet afirma “[...] e assim o matiz natural da decisão se
transforma no doentio e pálido pensamento. E empreitadas de vigor e coragem,
refletidas demais, saem de seu caminho, perdem o nome de ação [...]”
(SHAKESPEARE, 2019, p. 72).
Adiante na peça, em um acesso de raiva, Hamlet
discutia com sua mãe e ao ouvir um ruído atrás das cortinas assassina
impulsivamente, e sem saber, Polônio, pai de Ofélia, que estava escondido para
ouvir a conversa do príncipe com sua mãe e relatar a mesma ao atual Rei. É
nesta cena que encontramos um exemplo bastante eloquente da ação do impulso
descontrolado do Id e de um Ego enfraquecido. Logo após se dar conta de que matara
Polônio, Hamlet retira de si a única e exclusiva responsabilidade pelo
assassinato: “[...] eu me arrependendo; mas Deus quis assim; que eu fosse o
castigo dele, e ele o meu [...]” (SHAKESPEARE, 2019, p. 101). A transferência
da responsabilidade do assassinato para um possível destino delineado por Deus
denota a tentativa do Ego de se eximir da culpa por ter falhado, já que é o Ego
quem medeia as pulsões e impulsos, dosando o que vem a consciência ou o que se
torna ação (FREUD, 1996g; MARCUSE, 1975).
Em cena posterior, ao se encaminhar para sua
viagem para a Inglaterra à pedido do Rei para tentar recuperar-se de sua
melancolia raivosa, Hamlet depara-se com o exército de Fortinbrás, Príncipe da
Noruega, que ia em direção à Polônia guerrear por um insignificante território.
Deparando-se com isso, exclama Hamlet:
Como é que eu fico, então, eu que com um
pai assassinado e uma mãe conspurcada, excitações do meu sangue e da minha
razão, deixo tudo dormir? E, pra minha vergonha, vejo a morte iminente de vinte
mil homens que, por um capricho, uma ilusão de glória, caminham para a cova
como quem vai pro leito, combatendo por um terreno no qual não há espaço para
lutarem todos; nem dá tumba suficiente para esconder os mortos? (SHAKESPEARE,
2019, p. 111).
Tal exclamação reforça a incapacidade do Ego de
agir, ao preferir lamentar-se e mergulhar na melancolia. E, posteriormente, o
próprio Hamlet exalta a impulsividade com sua imprudência e imediaticidade:
“mas louvada seja a impulsividade, pois a imprudência às vezes nos ajuda onde
fracassam as nossas tramas muito planejadas” (SHAKESPEARE, 2019, p. 140).
Como visto na trágica história do Príncipe
Dinamarquês, seu Ego parece ser enfraquecido pela realidade e pelas outras
instâncias psíquicas que compõe seu aparato subjetivo. Como já demonstrado, a
própria divisão da psique em Id, Ego
e Superego ocorre de uma cisão psíquica fruto da interpolação instinto versus realidade. No entanto, enquanto
instância mediadora entre o sujeito e a realidade, bem como entre o Id e
Superego, o Ego adota uma postura que em si mesma provoca sua própria divisão
(FREUD, 1996a; 1996g). É o que se percebe nas atitudes do Príncipe que procura
satisfazer ao desejo e impulso de vingança do Id ao passo que tenta
corresponder a uma moralidade ideal e a um eu ideal que lhe impõe o Superego. Superego
este ferido, já que percebe que a moralidade ideal a qual o Ego acreditava
existir desmorona com o assassinato do Rei Hamlet por seu próprio irmão,
Cláudio, e o posterior casamento incestuoso da Rainha com o mesmo.
5
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo, propusemos realizar uma análise do
personagem Hamlet da famosa tragédia de Shakespeare a partir da teoria da Cisão
do Eu, postulada por Sigmund Freud, com vistas a compreender o paradigma de
homem na referida obra shakespeariana.
Diante do exposto nos tópicos anteriores, a partir
da análise do personagem Hamlet, consideramos que o paradigma de homem que
comparece em tal obra é o paradigma do homem cindido, o qual nos revelou a
teoria de Freud. A cisão da qual falamos encontra-se no campo noológico, ou
seja, no campo do aparelho psíquico que compõe a subjetividade e o ser do
homem. Como chamado por Freud, a Ichspaltung
denota a cisão da psique humana
gerada pela interpolação instinto versus realidade,
a qual o sujeito está submetido desde o início de sua vida. Dessa forma, o eu
consciente (Ego) deve mediar os instintos mais primitivos de que seu ser
herdara (Id) com as proibições da realidade a qual lhe irá impor uma moralidade
e um ideal de eu que se condensará no aparelho psíquico (Superego).
De forma alguma este artigo esgota as reflexões
sobre a teoria da cisão do eu, bem como sobre a obra “Hamlet”. Apontamos assim,
a necessidade inclusive de, em futuras pesquisas, ampliar a análise para além
do personagem Hamlet, abarcando a totalidade dos personagens principais da
famosa obra shakespeariana. Mas não só sugerimos como fontes de pesquisa e
reflexão as demais tragédias de Shakespeare, nomeadamente “Otelo” e “Romeu e
Julieta”.
Com as lentes de Freud, pudemos ler “Hamlet” de
Shakespeare e compreender que grande parte da melancolia e sofrimento do
príncipe se originou do desequilíbrio entre suas instâncias psíquicas do qual o
Ego é mediador. A trágica história do nobre dinamarquês mostrou-nos que o
conflito entre os ideais morais e nossos instintos pode gerar complicações
nefastas ao passo que inibem nossas ações. Tanto Freud quanto Shakespeare, ao
escrever Hamlet, nos mostram que o ser do homem está intimamente ligado à sua
capacidade de agir, um contraponto importante em relação à concepção cartesiana
onde a razão ocupa um espaço egrégio.
Dessa forma, contribuímos com a reflexão acerca do
paradigma de homem atual, que muito pensa e pouco age. Muito se fala, muito se
estuda, muito se raciocina e pouco se faz em nossa cotidianidade. Deixamo-nos
conduzir por uma suposta moralidade ideal que tolhe em grande medida o agir
humano. Os grandes paradigmas morais acabam por falhar em dar respostas aos
mais variados instintos humanos, tornando-se uma lista de proibições, às vezes
irracionais, que podem dificultar a vida de quem não se enquadra nessa suposta
moralidade ideal ou, ainda, em um suposto ideal de eu o qual o Superego
introjeta.
Hamlet, perdido em suas reflexões melancólicas
deixa de agir quando deveria, deixando de levar à cabo a vingança a que se
propusera, e será, portanto, o acaso quem decidirá o final da história quando
uma sucessão de erros e mal entendidos levam à morte a maioria dos personagens
principais deixando o trono dinamarquês vago. Tal trono será ocupado pelo Príncipe
Fortinbrás da Noruega, representação daquele que decidiu agir quando a ocasião
lhe permitiu, sem grandes reflexões morais acerca desse seu ato.
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