Revista Sísifo. N° 14, Julho/Dezembro 2021. ISSN 2359-3121. www.revistasisifo.com
Diálogo
entre a sociedade disciplinar de Michel Foucault e a sociedade do desempenho de
Byung-Chul Han
Estela Maria de Carvalho
Mestre em Filosofia,
PPGFIL, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Resumo: O presente texto abordará a concepção teórica de
Michel Foucault articulada aos estudos do filósofo contemporâneo Byung-Chul
Han, partindo da premissa de que conceitos como disciplina, vigilância e
punição mostram-se insuficientes para analisar a complexidade das relações de
poder e processos de subjetivação da atualidade. Inicialmente, a pesquisa
versará sobre as principais ideias do filósofo francês, que realizou uma
arqueologia e uma etiologia dos fenômenos que constituem as instituições
sociais, as dinâmicas que norteiam as relações de poder, os discursos e saberes
que se transformam em regimes de verdade, gerando efeitos de subjetivação. A
sequência do texto tratará dos elementos que configuram o cenário atual,
concebido pelo filósofo sul-coreano como sociedade do desempenho e do cansaço, em
que operam as dinâmicas das redes sociais e a erosão da alteridade nas relações
humanas. O desfecho da investigação demonstrará como as configurações que
caracterizam o cenário contemporâneo não substituem as tecnologias apresentadas
por Foucault, de maneira que ambos os mecanismos operam simultaneamente no
corpo social e nos processos de subjetivação.
Palavras
chaves:
Relações de poder; Subjetividade; Disciplina, Desempenho.
Abstract: This text will address the theoretical conception of Michel Foucault
articulated with the studies of the contemporary philosopher Byung-Chul Han,
starting from the premise that concepts such as discipline, surveillance and
punishment are insufficient to analyze the complexity of power relations and
processes of subjectivation of the present. Initially, the research will focus
on the main ideas of the French philosopher, who carried out an archeology and
an etiology of the phenomena that constitute social institutions, the dynamics
that guide power relations, the discourses and knowledge that are transformed
into regimes of truth, generating effects of subjectivation. The text will deal
with the elements that make up the current scenario, conceived by the South
Korean philosopher as a society of performance and fatigue, in which the
dynamics of social networks and the erosion of otherness in human relationships
operate. The outcome of the investigation will demonstrate how the
configurations that characterize the contemporary scenario do not replace the
technologies presented by Foucault, so that both mechanisms operate
simultaneously in the social body and in the subjectivation processes.
Keywords: Power relations; Subjectivity; Discipline, Performance.
Introdução
A presente pesquisa discorrerá sobre a concepção teórica de Michel Foucault articulada aos estudos do filósofo contemporâneo Byung-Chul Han.
Inicialmente
haverá uma reflexão acerca da sociedade a partir da perspectiva foucaultiana,
no que concerne às relações entre grupos os sociais de diferentes espaços
geográficos, os mecanismos de manutenção em nível coletivo e as estratégias
utilizadas no cenário político e socioeconômico.
Em seguida, o texto apresentará alguns
aspectos envolvendo as instituições sociais e as dinâmicas que operam nas
relações de poder no cenário atual, norteados pelas contribuições do filósofo sul
coreano.
Por fim, a reflexão articulada das perspectivas filosóficas mostrará que,
na atualidade, conceitos como disciplina, controle temporal, ordenação
espacial, produção de discursos continuam presentes, com maior ou menor
intensidade, produzindo padrões de comportamento considerados normativos e
corpos economicamente úteis e dóceis. Em paralelo com estas dinâmicas, e sob o
discurso de uma pseudoliberdade, também coexistem mecanismos que estimulam à
aceleração, a hiperatividade, a capacidade de
realizar múltiplas funções e a autossuperação.
A sociedade disciplinar de Michel Foucault
Michel Foucault foi um filósofo francês de
grande relevância para o pensamento filosófico ocidental, em virtude de seus
desdobramentos acerca de conceitos como: poder, produção de saberes e
mecanismos de subjetivação. Toda a sua pesquisa segue uma perspectiva
diferenciada, que permite aplicá-la nas análises realizadas pelas múltiplas
áreas do conhecimento, como por exemplo: o Direito, a Psicologia, a Educação, a
Política, entre outros.
Segundo os estudos de Foucault (1984), o poder
é exercido em diferentes instâncias e assimetricamente, numa espécie de rede
por todo o corpo social, com diferentes níveis de intensidade e formas de
organização espaço-temporal. Todavia, é importante destacar que ele não exclui
a influência dos mecanismos econômicos na atuação do poder e nos processos de
subjetivação; o que ocorre é que seu exercício “também” abrange estes dispositivos,
mas não de maneira “predominante”.
Para o filósofo francês (1984), o poder é
dinâmico, intencional e dotado de racionalidade. Ele afeta os sujeitos
continuamente e de diferentes formas. Os indivíduos sofrem e exercem
simultaneamente sua ação, em todas as esferas sociais e através das relações
estabelecidas. Além disso, na maioria das vezes, são processos extremamente
sutis, chegando a proporcionar um falso naturalismo.
Esses fenômenos estão interligados, como se fossem forças atuando com e
contra as outras, funcionando como uma espécie de campo de forças. O exercício
do poder opera dentro da dinâmica das possibilidades, ações sobre ações, mas
não necessariamente de maneira repressiva. Assim, o poder é produtivo e,
conforme as palavras do filósofo:
(...) “incita, induz, desvia, facilita
ou torna mais difícil, amplia ou limita, torna mais ou menos provável; no
limite ele coage ou impede absolutamente, mas é sempre uma maneira de agir
sobre um ou vários sujeitos ativos, e o quanto eles são suscetíveis de agir”.
(FOUCAULT, 1984, p. 243)
Baseado nos estudos de Foucault, a dinâmica de construção do conhecimento
opera da seguinte forma: a partir das relações historicamente estabelecidas,
determinados discursos são legitimados ou não e reconhecidos naquele período e
espaço geográfico como regimes de verdade. Eles, por sua vez, produzem saberes
que serão transformados em conhecimentos a serem perpassados pelo tecido
social. Em síntese, o conhecimento é uma construção social resultante da
ligação entre discurso e relação de poder.
Desta forma, o reconhecimento de um determinado discurso como legítimo ou
não se dá, além da produção dos saberes, por meio de sua materialização nos
comportamentos considerados como aceitáveis e aqueles que necessitam de
correção ou punição. Como exemplo, destaca-se os costumes e hábitos praticados
com base na moralidade. Embora grande parte das pessoas não consigam explicar a
origem ou justificar tais condutas, acabam por reproduzi-las ou evitá-las, sob
o argumento superficial de serem corretas ou reprováveis.
Em suas investigações sobre as dinâmicas
que operavam em determinadas instituições sociais, Foucault observou que,
historicamente, os mecanismos de poder, articulados aos regimes de verdade,
envolviam tecnologias distintas. Contudo, apesar das diferenças, também
produziam discursos, saberes e normatizavam comportamentos. Alguns se
perpetuaram, outros, que antes eram aceitáveis, sofreram rejeição durante o
período de transição, como, por exemplo, as torturas públicas. Estas
tecnologias foram denominadas como poder soberano, poder disciplinar e biopoder,
O controle, para ser eficaz, deve atuar sobre cada
corpo individualmente, não em massa, para assim trabalhá-lo em todos os seus
detalhes. Atuar sobre o corpo de uma forma contínua para determinar seus
movimentos, seus gestos, sua forma e sua velocidade. Não se quer controlar o
comportamento, mas a eficácia e economia de seus movimentos. O controle quer
tornar o corpo dócil e útil (SOUZA, MACHADO e BIANCO, 2011, p. 06)
Os constantes embates entre as relações de poder e os processos de
resistência são materializados nas escolhas que os sujeitos, individualmente ou
coletivamente, fazem e possibilitam a produção de novas relações, discursos,
saberes e regimes de verdade. Para melhor compreensão, pode-se exemplificar as
mudanças ao longo do tempo do que é considerado como “moda” ou “cafona”, certo
ou errado, moderno ou antiquado, a concepção do modelo familiar que outrora era
constituído apenas de pai, mãe e filhos, e, hoje em dia, há múltiplos modelos
familiares; os relacionamentos amorosos e matrimoniais, as mudanças no conceito
de beleza e os padrões corporais estéticos, entre outros.
No que tange às tecnologias de poder, o direito de deixar viver da
tecnologia do poder soberano foi, através da dinâmica do biopoder (1999),
substituído pela dinâmica de produzir a vida. Para dar conta dessa
função, o Estado deveria gerir a vida de toda a população por meio de dois
fenômenos interligados continuamente: disciplina e biopolítica.
A biopolítica, segundo Foucault (1999), consiste no controle pelo Estado
nos grupos populacionais. Ela administra o índice de natalidade e mortalidade,
longevidade, qualidade de vida, nível de saúde e de instrução, entre outros
fenômenos que envolvem o coletivo.
É importante destacar que a biopolítica foi construída a partir da
necessidade de correção dos desvios e inadequações sociais em nível macro, que
afetavam diretamente as práticas políticas e o desenvolvimento econômico. Ainda
que a tecnologia do poder disciplinar atuasse em cada indivíduo almejando que
os resultados se espalhassem por todo tecido social,
seria necessário ampliar os mecanismos de ordenação, classificação e
esquadrinhamento para grupos populacionais, aprimorando os processos econômicos
de uma sociedade capitalista. No que concerne à relação capitalismo e biopoder,
Foucault afirma que:
Se o desenvolvimento dos aparelhos de Estado garantiu
a manutenção das relações de produção, os rudimentos de anátomo e de
biopolítica agiram no nível dos processos econômicos, do seu desenrolar, das
forças que estão em ação em tais processos e o sustentam; operam, também, como
fatores de segregação e hierarquização social, agindo sobre as forças
respectivas tanto de uns como de outros, garantindo relações de dominação e
efeitos de hegemonia; o ajustamento da acumulação dos homens à expansão das forças
produtivas e a repartição diferencial do lucro foram, em parte, tornados
possíveis pelo exercício do biopoder com suas forças e procedimentos múltiplos
(FOUCAULT, 1999, p. 154)
Assim, pode-se afirmar que o gerenciamento do corpo biológico foi
fundamental para o aprimoramento do corpo político, de maneira que esta
dinâmica opera inclusive, no tecido social atual. Cada vez mais, Estados
analisam os diversos setores populacionais e os controlam através da produção
de dados estatísticos e desenvolvimento de políticas públicas, gerenciando os
dados com o intuito de otimizá-los.
Atualmente, surgem novas formas de organização espaço-temporal e
estratégias de controle da vida, discursos, regimes de verdades e saberes, que
asseguram a contínua produção de corpos úteis e dóceis. Para isso, se apropriam
de avanços tecnológicos, como por exemplo: técnicas de reprodução assistida,
controle de genoma e seleção de espécies, redes de comunicação, que através de
cálculos, projeções e estimativas, conseguem determinar gostos e preferências,
acompanhamento dos fluxos migratórios voltados para melhoria da economia em
âmbito internacional, estimativas de padrão comportamental por meio de dados
demográficos, entre outros.
A biopolítica regula a sociedade por meio dos mecanismos do, agindo
diretamente no coletivo, analisando, acompanhando, classificando e, quando
necessário, também reorganizando. Nas palavras de Hardt e Negri (2012, p. 43)
“(...) se refere a uma situação na qual o que está em jogo no poder é a
produção e a reprodução da própria vida”.
Segundo Rabinow (2006), para que a dinâmica do biopoder atue
diretamente nas características vitais do sujeito, são necessários: um discurso
envolvendo elementos biológicos e dados estatísticos, legitimado por
“especialistas” no assunto e espalhado pelo corpo populacional sob a forma de
saberes e regimes de verdade; estratégias de intervenção norteadas no discurso
de preocupação com a vida e a morte de determinados grupos; e que esses mecanismos
sejam internalizados por todos, de maneira que cada membro da sociedade queira
reproduzi-las “espontaneamente”, a fim de assegurar o bem- estar de seu grupo,
seja família, amigos, da nação, entre outros.
Além disso, assim como em nível micro o poder disciplinar produz o
louco, o delinquente, o marginal; o biopoder e a biopolítica também produzem os
marginalizados e disseminam discursos preconceituosos e excludentes para que os
indivíduos ditos “corretos”, “saudáveis” e possuidores dos demais adjetivos apreciáveis
possam mantê-los à parte de seu convívio.
Como exemplos atuais dessas ações, é possível ressaltar os
discursos e tratamentos xenofóbicos, os inúmeros casos de intensa violência
física proporcionada aos imigrantes ilegais, as falas e comportamentos
homofóbicos, alguns inclusive gerando agressões e até mesmo assassinatos, os
elevados índices de feminicídio, os embates a respeito das doenças emergentes
como a COVID-19 e os avanços sobre a vacina de prevenção, bem como o racismo
presente na sociedade.
Nesse caso, o Estado intervém nos hábitos de higiene, de locomoção nos
espaços públicos, nas práticas sexuais, nas relações humanas, entre outros.
Sempre com o discurso de assegurar a manutenção e qualidade de vida da
população. Segundo Foucault (1999, p. 158) “de um lado, da parte das
disciplinas do corpo: adestramento, intensificação e distribuição das forças,
ajustamento e economia de energias. Do outro, o sexo pertence à regulação das
populações, por todos os efeitos globais que induz”.
No que tange ao sexo, o gerenciamento destas práticas pelo Estado
possibilita o controle de inúmeros fenômenos como: a reprodução, o perfil
genético do indivíduo e seus descendentes, a saúde fisiológica e psicológica, a
definição das práticas ditas como “aceitáveis” ou “inadequadas”, entre outros.
Há um discurso que determina tempo e espaço para as práticas sexuais, de modo a
não afetar a produtividade do sujeito. Aplicação de estratégias de biopolítica na
sexualidade são embasadas no discurso de controle de doenças sexualmente
transmissíveis (DSTs) e na reprodução excessiva, sobretudo nas famílias de
menor poder aquisitivo. Todavia, também há os discursos morais como a redução
da promiscuidade, a prática em locais e horários “apropriados”, determinadas
condutas são consideradas aceitáveis e outras vulgares, praticadas somente com
pessoas marginalizadas pelos “bons costumes”: prostitutas, entre outros.
Atualmente sob o discurso da “globalização” e “avanços tecnológicos”
ampliam-se os instrumentos e os discursos de necessidade de controle e
monitoração do indivíduo.
A sociedade de controle é a prisão de
grades invisíveis que Adorno descreveu, é um suplantar silencioso dos direitos
e da democracia de modo que o Estado detém um poder que não pode ser medido em
seu começo e seu fim, ou em sua proporção, e “para que o poder tenha liberdade
de fluir, o mundo deve estar livre de cercas, barreiras, fronteiras
fortificadas e barricadas” (BAUMAN, 2001, p.23).
O monitoramento está cada vez mais intrínseco à vida humana: o uso de
câmeras de segurança e babá eletrônica nos quartos dos bebês para observar a
ocorrência de algum incidente, instalação de câmeras em escolas interligadas
por meio de aplicativos aos celulares de pais a fim de, onde estiverem, saberem
em tempo real o que fazem, quando e na companhia de quem; rastreadores instalados em veículos e/ou
celulares para controlar cada lugar e quanto tempo permaneceu sob o discurso de
prevenção de roubos, além das inúmeras câmeras instaladas por quase todo
território.
A partir do enfoque da perspectiva foucaultiana, é correto afirmar
que as relações estabelecidas nas escolas, hospitais, presídios, repartições
militares e outras instituições operam com essa forma de controle, vigilância,
construção e reprodução de comportamentos pré-estabelecidos. As instituições
disciplinares utilizam técnicas de exame, e, quando verificado algum desvio
desse padrão, aplicam sanções normalizadoras e punições destinadas à “correção”
dos infratores. No entanto, por mais que estes elementos ainda se façam
presentes no século XXI, a sociedade vivencia a cada dia com maior intensidade
transformações socioculturais, principalmente no setor tecnológico, que
interferem consideravelmente nas relações sociais estabelecidas.
A sociedade do desempenho de
Byung-Chul Han
Os grupos sociais vêm constantemente desenvolvendo novas formas de
produção, exploração, consumo, conhecimento, bem como outras maneiras de se
relacionar que, segundo Han (2017a), não podem ser adequadamente explicadas por
meio do conceito filosófico de “sociedade disciplinar”.
O cenário contemporâneo é caracterizado pela presença de espaços como
academias, centros estéticos, sites de relacionamento social, entre outros. Somado
a estes elementos, também se verificam comportamentos que merecem destaque, são
eles: a preocupação exacerbada com a divulgação da autoimagem expressando algo
previamente estipulado, estilo de vida acelerado e falsa sensação de liberdade
que, por sua vez, transmite a ideia de que o sujeito consegue “fazer tudo”. O
conjunto destes aspectos sugere uma análise do cenário atual a partir de um
novo caminho.
De acordo com Han (2017a), a sociedade do século XXI é
caracterizada pelas novas formas de exploração que envolvem: valorização do
individualismo, agilidade, hipercomunicação, multitasking,
hipervalorização da imagem, articulados a um avanço tecnológico imensurável que
se expressa em diversos setores sociais.
A conjuntura econômica da sociedade do desempenho e sua liberdade
coercitiva fazem com que o dualismo de conceitos como proletariado e burguês,
opressor e oprimido apresente-se como inadequado para explicar toda a
complexidade do cenário atual. Nesse contexto, Han afirma que:
A distinção entre proletariado e burguesia já não se
sustenta. Literalmente, o proletário é aquele que tem como única propriedade a
própria prole. A sua autoprodução se restringe à reprodução biológica. Hoje, no
entanto, é disseminada a ilusão de que qualquer um, enquanto projeto que se
esboça livremente, é capaz de uma autoprodução ilimitada. A <ditadura
do proletariado> é, nos dias que correm, estruturalmente impossível. Somos
todos dominados por uma ditadura do capital (HAN, 2018b, p. 15)
Hoje em dia, o sistema é regulado pelo capital, autoprodução,
maximização da produtividade e autogerenciamento. Estas características
colaboram para o desenvolvimento de uma sociedade permissiva, pois o sujeito
tudo pode e tudo se permite, influenciado pelo discurso de que é exclusivamente
sua a responsabilidade de atingir êxito.
Esta talvez seja uma das formas mais eficientes de controle do
sujeito, pois, conforme Han (2018b, p. 16), “quem fracassa na sociedade liberal
de desempenho, em vez de questionar a sociedade ou o sistema, considera a si
mesmo como responsável e se envergonha por isso”.
Para controlar o sujeito não são mais tão necessárias proibições,
tortura ou vigilância; o discurso motivador, proativo e que estimula a
iniciativa já é suficiente para que o indivíduo autorregule.
O sujeito de desempenho está livre da instância externa de domínio
que o obriga a trabalhar ou que poderia explorá-lo. É senhor e soberano de si
mesmo. Assim, não está submisso a ninguém ou está submisso apenas a si mesmo. É
nisso que ele se distingue do sujeito de obediência. A queda da instância
dominadora não leva à liberdade. Ao contrário, faz com liberdade e coação
coincidam (...) (HAN, 2017a, p. 29)
Percebe-se que a organização social contemporânea, ao unir liberdade
e coerção, desenvolve uma forma bem mais sofisticada e eficiente de controlar,
condicionar e explorar os sujeitos. A livre coerção é uma estratégia do sistema
capitalista que a cada dia ganha mais força, principalmente com auxílio das
ferramentas digitais.
Hoje em dia, espalha-se pelo tecido social uma falsa ideia do
princípio autonomia, que disfarça técnicas mais refinadas de controle. O
indivíduo acredita ser livre para buscar o autoaperfeiçoamento, expondo
“voluntariamente” suas habilidades como demonstração de êxito — o que pode ser
representado pela afirmação “Yes, we can!”, que tem se tornado
dominante.
Esta dinâmica é uma forma de liberdade paradoxal, pois as pessoas
deixam de ser “sujeitos da obediência” para se tornarem “empresários de si
mesmo”. Além disso, devido à ilusão de terem capacidade e poder ilimitados,
torna-se necessário ocupar todo o tempo mostrando resultados. Neste caso,
pode-se afirmar que a autocoerção praticada nesta liberdade paradoxal também é
uma forma de violência, uma vez que o indivíduo não consegue oferecer
resistência contra si mesmo, adoecendo.
Ainda segundo o filósofo (2017a), enquanto a palavra-chave da
sociedade disciplinar era dever, o cenário do desempenho migra para o verbo
poder. Isto é de grande relevância, pois, ao enfatizar que o sujeito pode
superar metas e aumentar a produtividade, consequentemente, a autoexploração, a
autocoerção e a autofiscalização também se intensificam. Com isso, percebe-se
que, sob o discurso do “sujeito livre e empreendedor de si mesmo”, escondem-se
formas mais sutis e bem mais eficientes do que os mecanismos de coerção e exploração
disciplinares anteriormente empregados.
Durante a autoexploração, o sujeito está iludido acreditando que
sua ação é sinônimo de eficiência e proatividade. Ele tem a falsa sensação de
que o faz porque quer, sem cobranças e, principalmente, sem pressões
exteriores. No entanto, assume a posição de senhor e escravo simultaneamente,
inspecionando e exigindo de si o máximo de desempenho.
A extinção dos processos dialéticos transforma a sociedade no inferno
do igual, o que colabora para a manutenção da condição social. As pessoas
buscam “voluntariamente” se enquadrar no que é bem-visto pelo grupo. Outro
ponto que se faz necessário destacar consiste no processo planejado de inibição
da diferença. Para isso, são utilizados mecanismos sutis que atuam diretamente
na psique do sujeito, fazendo com que o indivíduo deseje ser, ao mesmo tempo em
que queira demostrar, que é igual aos demais.
Segundo Han (2017a, p. 8), as técnicas imunológicas da sociedade
disciplinar agem contra o que é estranho ao corpo, porém, as patologias
oriundas do cenário do desempenho são marcadas pelo excesso do igual e
aniquilação de tudo que difere.
Estas técnicas disciplinares tornam-se insuficientes contra ações
baseadas no slogan “Yes, we can!” (ou também a famosa propaganda da Nike
“Just do it!”), exemplos de representações midiáticas deste excesso de
positividade, uma vez que reforçam a falsa ideia de que todas as metas são alcançáveis.
Em resposta, o indivíduo se obriga a mostrar que pode produzir cada vez mais,
bem como acredita que sua capacidade ou incapacidade é responsável por
inseri-lo num padrão de vida proposto, com uma intensidade tamanha que se
transforma numa forma de agressão. A violência da positividade ou violência
neuronal é exaustiva e imanente ao sistema. Ela extingue a alteridade por meio
da igualdade e neutralização da diferença, transformando-a em algo exótico.
Com isso, pode-se afirmar que a violência, embora não deixe de
existir em sua forma física, atua muito mais no campo da subjetividade,
produzindo padrões de comportamento. Apesar da falsa impressão de estar
exercendo a liberdade, o sujeito do desempenho é, no fundo, tão prisioneiro
quanto o sujeito da obediência. Conforme Han (2017c, p. 10), a repressão
externa é substituída pela interna que oprime, agride e controla, num movimento
de dentro para fora do indivíduo.
Cumpre ressaltar, que o sujeito do
desempenho também é um consumidor e esse elemento engloba diferentes aspectos
do cotidiano. A postura consumista de olhar os produtos, comparar, observar o
mais vantajoso para então adquirir, é aplicada também em outros setores da vida
cotidiana: nos relacionamentos amorosos, nas amizades, nos posicionamentos
políticos etc. Esse tipo de análise é feito acriticamente, pois enxerga o outro
como mercadoria e não como sujeito em questão.
Como resultado desses processos, de acordo com Han (2017a),
carência e culpa acompanham as pessoas no trabalho, nas amizades, no cuidado
com a saúde, na manutenção da beleza, nos relacionamentos amorosos, entre
outros. É uma autoconcorrência sem fim, que acaba com o adoecimento do
indivíduo, “realizar-se e autodestruir-se, aqui, coincidem” (2017a, p 86).
O sujeito do desempenho é rodeado
por uma gama de opções, não tendo tempo hábil para estabelecer uma forte
ligação com nenhuma delas. A perda desse elo provoca um esvaziamento das
relações e uma constante insatisfação interior. Torna-se um círculo vicioso,
pois, com a continuidade da insatisfação, o indivíduo descarta o elemento
escolhido e realiza outra seleção, permanecendo nesta atitude incessantemente.
Neste caso, para Han (2018b, p. 11) o intenso isolamento das
pessoas corrobora a ausência da liberdade no cenário atual: “Só nos sentimos
realmente livres em um relacionamento bem-sucedido, em um feliz estar junto”. A
impossibilidade desta dinâmica produz pessoas frustradas, carentes e
insatisfeitas. Segundo o filósofo, exercer a liberdade corresponde à forma como
os sujeitos se relacionam. No entanto, o regime neoliberal favorece o
isolamento como possibilidade para a autoexploração, através do controle das
múltiplas formas de expressão da autonomia, sejam desejos, sentimentos ou
emoções.
Desta maneira, é possível afirmar que a dinâmica do poder opera de
modo mais articulado e produz um resultado mais intenso do que as estratégias
do dever. Tem-se um cenário de maior repressão, por meio do recurso à
iniciativa e à motivação, sem necessidade de proibição ou censura. No entanto, se,
como efeito colateral, a sociedade do dever produz marginalizados, criminosos e
delinquentes, a sociedade do desempenho constrói indivíduos angustiados,
depressivos e cansados.
No que tange especificamente ao multitasking, trata-se,
para o filósofo, de um retrocesso civilizatório:
A multitarefa não é uma capacidade para a qual só seria capaz o
homem na sociedade trabalhista e de informação pós-moderna. Trata-se antes de
um retrocesso. A multitarefa está amplamente disseminada entre os animais em
estado selvagem. Trata-se de uma técnica de atenção, indispensável para
sobreviver na vida selvagem. (...) A preocupação pelo bem viver, à qual faz
parte uma convivência bem-sucedida, cede lugar cada vez mais à preocupação por
sobreviver (HAN, 2017ª, p. 33)
Desta maneira, apesar da
hiperatenção e do multitasking parecerem qualidades apreciáveis, ambas
colaboram para produção de sujeitos depressivos e fracassados. Na verdade,
estes elementos contribuem para construção de relações superficiais, momentâneas
e que em nada contribuem na construção da subjetividade.
Han (2013ª) também demonstra que a
hipervalorização do desempenho na sociedade contemporânea provoca uma série de
efeitos colaterais, que marcam profundamente a subjetividade. São eles: uso
excessivo de medicamentos para potencializar as capacidades, aumento de doenças
neuronais, presença constante do narcisismo na subjetividade, sofrimento
psíquico e intrapsíquico, ausência de diálogo e reflexão crítica, falta de
atenção contemplativa, racionalização dos sentimentos, desaparecimento da
alteridade, construção de novas formas de exploração, não aceitação da
realidade, frustração doentia, entre outros.
Como resultado deste fenômeno, a sociedade do cansaço também se
torna a sociedade do dopping, conforme preconiza Han (2017ª). Nunca
houve tanto incentivo para o uso de medicamentos que fomentem as capacidades
cognitivas como hoje em dia, e a principal causa dessa mudança é o imperativo
do desempenho presente na sociedade. Atualmente, há uma “normalização” da
oferta e demanda de produtos para ampliar a memória, aumentar a capacidade de
aprendizagem e melhorar a resposta diante estímulos físicos e mentais, que
fazem com que o indivíduo permaneça continuamente insatisfeito com sua
performance e busque cada vez mais ferramentas que auxiliem na autossuperação.
Para Han (2017c, p. 98), a capacidade de reconhecimento da
alteridade do outro e dos seus próprios limites constitui o caráter humano.
Todavia, a concepção de sujeito livre na sociedade do desempenho está ligada à
ausência deste processo. O homem do desempenho “não possui caráter”; ele pode
tudo e está pronto para qualquer coisa, o que a longo prazo provoca a exaustão
psíquica. O homem sem caráter também se torna depressivo devido a fatores como:
a ausência de descanso físico e mental, a falta de negatividade e seus efeitos deformadores
e desestabilizadores, a instabilidade psíquica e a inconclusividade de si
mesmo.
(...) Um outro fator que também origina a depressão – e que muitas
vezes desemboca no burnout – é principalmente a exagerada e excessiva
relação consigo mesmo, levando à adoção de traços destrutivos. O sujeito de
desempenho esgotado, depressivo está, de certo modo, enfastiado de si; cansado
e esgotado de brigar consigo. Totalmente incapaz de sair de si, de estar lá
fora, de abandonar ao outro, ao mundo, vai se remoendo
interiormente, o que paradoxal e paulatinamente deixa- o oco e causa
esvaziamento. Ele vai se fechando em uma “roda de hamster”, que gira
sempre mais veloz em torno de si mesma (HAN, 2017c, p. 71)
Desta maneira, percebe-se que a
ausência de repouso e da passividade diante dos estímulos externos resulta em
um mergulho contínuo em si mesmo através de fenômenos de autocobrança,
autovigilância e autoexploração que conduzem ao esgotamento. Como exemplo,
pode-se destacar o homeoffice que transforma a residência numa extensão
do trabalho e reduz ao máximo os espaços de lazer e descanso.
Outro aspecto importante no que tange aos mecanismos de controle
atuais diz respeito ao mecanismo da ultraexposição, do desvelamento intenso do
corpo e suas manifestações, reduzindo-o em meras imagens. De acordo com Han
(2017d) este fenômeno arruína o olhar, profana o sagrado, desmistifica o
mistério, a sexualidade, o desejo e a alteridade.
A eficiência dessa forma de controle se dá em virtude da
substituição da coerção pela autorrevelação e autoexposição na divulgação das
informações. É importante destacar que essa dinâmica também é uma forma de
violência que tem como base a garantia de transparência.
Quando o indivíduo expõe imagens,
sejam suas ou de terceiros, sua única preocupação é ser visto pelo maior número
de pessoas possíveis, não havendo nenhum compromisso com o respeito. Na
verdade, nos tempos atuais, a autoexposição se tornou mais que um desejo
impensado, ela é uma pulsão em ser visto. Hoje em dia não há mais segredos,
sigilos ou estranhamento. Tudo deve ser exposto, revelado e desnudado.
Com isso, as pessoas se expõem na ilusão de
acreditarem que as redes sociais são formas de manifestação da liberdade,
porém, tornam-se escravas das mesmas. Como exemplo, é possível citar o desejo
que alguns indivíduos possuem de revelar nas redes tudo que compram ou ganham,
mostrando assim seu poder aquisitivo ou o nível de consumismo como sinal de
status; ou quando comentam em notícias e imagens compartilhadas para demonstrar
“sapiência”.
Se o neoliberalismo produz cidadãos consumidores, é necessária a
existência de uma estratégia que assegure este fenômeno. Assim, a necessidade
de autoexposição ao máximo do que se consome funciona como um mecanismo eficaz,
pois além de verificar se este fenômeno ocorre, ainda faz com que o indivíduo
deseje continuar consumindo novos elementos para maximizar a divulgação de sua
imagem, em uma espécie de círculo vicioso.
A autoexposição engloba os múltiplos aspectos da vida cotidiana.
Assim, além da imagem de sujeito consumidor, o indivíduo também se preocupa em
provar que se enquadra nos padrões pré-estabelecidos e socialmente
desejados, como exemplo: as fotos de situações que confirmem a ideia de
pertencer a uma família feliz, de viagens incríveis, do corpo malhado ou
praticante de atividade física, do consumo de alimentos saudáveis, de
participar de festas ou eventos importantes, entre muitos outros.
Ainda de acordo com Han (2018a) vivemos numa sociedade com excesso
de positividade e ênfase na aparência, cuja preocupação principal é expor o
máximo possível sua imagem na busca do próprio reflexo.
O consumismo dita as regras de como os sujeitos devem se enxergar
e tratar uns aos outros. A Internet e os demais elementos da cultura midiática
romantizamos discursos que o associam a vivência de novas experiências. Desta
forma, os sujeitos do desempenho, sempre insatisfeitos, são estimulados a
consumir e descartar quando o objeto consumido não fornece a mesma intensidade
de prazer, devendo a posteriori, buscar novas experiências tão ou mais
prazerosas quanto as anteriores.
É possível compreender a articulação entre imaginação e consumismo
através do trecho abaixo:
(...) O si-mesmo moderno perceberia seus desejos (Wünsche)
e sentimentos em grande medida de maneira imaginativa através de mercadorias e
imagens midiáticas. Sua força da imaginação estaria determinada, sobretudo pelo
mercado de bens de consumo e pela cultura midiática (HAN, 2017d, p. 65)
A imaginação que outrora atuava como potencial criador, hoje em
dia é norteada pelo consumo e colabora para realização dos impulsos
consumistas. O sujeito observa as imagens e discursos envolventes, imagina as
possibilidades de sensações e experiências que ele pode experimentar (seja
consumindo os objetos ou as pessoas coisificadas) e anseia por obtê-las.
É importante destacar que nem sempre as expectativas criadas pelo
sujeito durante a observação de imagens correspondem às sensações diante da
experiência com a realidade, proporcionando frustrações. Todavia, para Han
(2017d, p. 64) não é o objeto em si que produz essa consequência, mas sim essa
nova relação entre sujeito — desejo — objeto que provoca as decepções.
Este cenário, segundo Han (2018a), contribui para que o sujeito
seja explorado por completo e para além de sua jornada de trabalho. Com a
atenção focada no desempenho, atitudes que possibilitam o descanso e a
contemplação estética perdem sua importância, sendo deixadas em segundo plano.
Como exemplo dessas atividades descartadas pode-se mencionar: ouvir música, ler
poesias, dançar, apreciar obras artísticas, entre outras.
Essas ações estimulam o olhar contemplativo e o tédio profundo.
Elementos que segundo o filósofo, contribuem para o resgate da experiência do
ser e do espanto, fundamental na construção da subjetividade. Para o filósofo,
a ausência destes é um caminhar da sociedade para a barbárie. Segundo
Han (2017d, p. 73) esse resgate ocorre através da construção de uma nova
relação com o tempo, que torne possível desconectar-se, desacelerar-se,
permanecer em repouso contemplativo, permitindo-se analisar para além do que
está na própria imagem.
Pode-se dizer que hoje em dia não são os sujeitos que dominam os
aparatos tecnológicos, mas estes que conduzem seus comportamentos e desejos. Há
quase que uma relação passional e de devoção entre o sujeito e o aparelho
tecnológico, este muita das vezes controlando seu tempo, determinando suas
ações e concentrando sua atenção.
Conclusão
Seja
para Han ou para Foucault, o poder só existe a partir das múltiplas relações
estabelecidas entre os sujeitos. Não há nenhuma dinâmica em que o poder esteja
ausente. Ele atua como uma relação de força juntamente com outros elementos:
são eles: os processos de resistência, os mecanismos de controle, os saberes, e
as técnicas de vigilância e punição.
Os dois filósofos descrevem criticamente a sociedade, enfatizam as
técnicas de controle, vigilância e punição além dos inúmeros mecanismos de
exploração. O filósofo sulcoreano é bem mais crítico em sua visão, porém ambos
têm um elemento em comum: apesar de mencionarem a necessidade de transformar o
corpo social, nenhum apresenta uma solução definida, nenhuma alternativa
soteriológica.
Segundo os dois estudiosos, a possibilidade de construção de uma
sociedade mais reflexiva se dá por meio dos sujeitos, em suas ações micropolíticas,
e não pelas instituições ou pelo governo instituído. O ponto de partida
ocorrerá quando as pessoas repensarem suas práticas, a partir de uma perspectiva
ética. Deste modo, é possível criar formas de se relacionar com os outros e
consigo mesmo, reavaliar os discursos dominantes, reconsiderar os regimes de
verdade e as práticas sociais.
Por fim, hoje em dia, as instituições sociais e demais elementos
que compõem o sistema, fazem uso de técnicas de controle, jogos de verdade,
discursos e outros dispositivos para atuar no corpo físico e na psiquê do
indivíduo, com o intuito de assujeitá-lo. Pode-se afirmar que a sociedade
contemporânea aperfeiçoou a positividade do poder, aprimorou os discursos,
intensificando a impressão de que a exacerbada autoexposição é natural,
desejável e que representa justamente a liberdade do sujeito, não havendo,
inclusive, nada para esconder.
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