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Dialética da Ferida: uma abertura para outra relação com o mundo

 

Revista Sísifo. N° 14, Julho/Dezembro 2021. ISSN 2359-3121. www.revistasisifo.com


Word can heal, word can wound - Pintura de Rodrigue Semabia
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Eder Aleixo

Eder Aleixo é mestrando em filosofia na UFABC, desenvolve uma dissertação na área de teoria do conhecimento, sobre as implicações das imagens digitais na formação das subjetividades contemporâneas, pautada, principalmente, na obra de Byung-Chul Han, e orientado pela Professora Dr. Paula Braga. É formado em artes visuais pela UNICAMP, e tem experiência nas áreas de história da arte, curadoria e crítica de arte.

 

Resumo: A intenção do artigo é expor o que pode ser lido como um projeto de sujeito na obra de Byung-Chul Han. A partir da bibliografia analisada, entende-se que o autor se preocupa com o modo segundo o qual os indivíduos relacionam-se com o mundo e que em suas reflexões sugere outros modos de relação. O texto é uma tentativa de acompanhar os desdobramentos de sua proposta de sujeito, bem como pontuar quais as diferenças e aproximações entre os modos de relação discutidos no percurso da obra, que possui uma mudança de foco a partir de 2010. Portanto, para a melhor compreensão da trajetória de pensamento do filósofo, a análise foi desenvolvida em dois momentos: um que analisa sua obra do início até a publicação do livro “Sociedade do cansaço”; o segundo momento que parte desta até a atualidade. No primeiro aborda o excesso de fechamento e faz a crítica da relação com negatividade, momento em que Han antagoniza a tradição eurocêntrica do sujeito moderno-monádico e a contrapõe a tradição zen-budista do sujeito como abertura radical; no segundo momento aborda o excesso de positividade e de abertura presentes na contemporaneidade digital e neoliberal, que faz emergir o sujeito da abertura-narcísica ao qual contrapõe seu próprio projeto de sujeito. Em ambos os momentos, discute-se a relação sujeito-mundo. Neles se encontra, com as distinções cabíveis, a continuidade de uma dialética da ferida, que fala da necessidade de um sujeito aberto a se expor a alteridade atópica como tal.

Palavras-chave: Dialética da ferida; Abertura ao outro; Eu narcísico; Alteridade Atópica.

 

Abstract: This article aims to expose what can be read as a project of subject in Byung-Chul Han’s work. Based on the analyzed bibliography, it is understood that he is concerned with the way in which individuals relate themselves to the world, and that his reflections suggest other ways of relating. The text is an attempt to follow the unfolding of his proposal of subject, as well as to point out the differences and similarities between the relationship modes suggested by him. Therefore, for a better understanding of the philosopher's thought trajectory, the analysis was carried out in two stages: one that confronts his work prior to the book “Burnout Society”; and another that faces it from that one to the present. In the first one, it addresses the excess of closure and criticizes the relationship with negativity when Han antagonizes the Eurocentric tradition of the modern-monadic subject and opposes it to the Zen-Buddhist tradition of the subject as a radical opening; in the second, the approach deals with the excess of positivity and openness present in digital and neoliberal contemporaneity, which makes the subject of the narcissistic opening emerge, to which he opposes his own project of subject, both applied in the subject-world relationship. From the analyses it is possible to assume, with the appropriate distinctions, that there is a continuity of a wound dialectic that speaks of the need for an open subject to expose himself to atopic otherness as such.

Keywords: Wound dialectics; Openness to the other; I narcissistic; Atopic Otherness.

 

Uma Abertura: o deslocamento temático

 

Para apresentar o projeto de sujeito presente na obra de Byung-Chul Han, necessariamente, deve-se primeiro estabelecer uma abertura que exponha a interioridade e alteridade de seu percurso filosófico. As linhas que seguem introduzem sua obra, e evidenciam as razões do método de exposição escolhido para a temática central: uma abertura para outra relação com o mundo.

Aqui, pretende-se demonstrar que, apesar das notáveis transformações nos temas abordados por Han, há uma reflexão sobre a constituição de um outro sujeito que se manteve no decorrer das obras. Han tem diagnosticado, desde livros como “Filosofia do zen-budismo” e “Morte e alteridade”, publicados em 2002, a existência de um Eu da autorreferência constituído isolado do mundo. Em oposição, tem, com sua escrita telegráfica, dado indícios de que, para superar esse Eu, é necessário o desabrochar de um outro sujeito, um capaz de se abrir e que, se expondo ao mundo, saiba recebê-lo com hospitalidade, mesmo que, com isso, negue a si próprio. O diagnóstico do eu da autorreferencialidade se mantém, mas passa por alterações quanto às causas que levam a ele, quando o autor passa a analisar a estruturação das subjetividades não pelas formas epistemológicas da tradição filosófica ocidental, e sim a partir dos fenômenos contemporâneos. Há, portanto, uma virada temática que ocorre em “Sociedade do cansaço”(2010).

Nesse panorama, o artigo apresenta os modos de abertura que aparecem durante a análise de dois conceitos de sujeitos constitutivamente distintos: o moderno-monádico na obra pré sociedade do cansaço; e o contemporâneo-narcísico a partir desta. Os modos de abertura, por sua vez, aparecem na forma de outros dois sujeitos opostos, respectivamente, aos primeiros: o sujeito zen-budista da abertura radical; e o sujeito proposto por Han, que aqui será chamado de sujeito da distância. Os últimos descrevem indivíduos que se permitem ser penetrados e feridos pelo mundo.

Um leitor desavisado que confronte, superficialmente, obras de Han nas quais ele analisa diferentes sujeitos, como “Hiperculturalidade: cultura e globalização” e “No Enxame: perspectivas do digital”, publicadas respectivamente em 2005 e 2013, pode se espantar, tamanha a diferença na abordagem de temas como a internet e o meio digital. Para além de razões históricas, isto é, a primeira obra publicada num momento mais otimista em relação às redes e a segunda já pós Primavera Árabe, com sua sabida manipulação midiática e vislumbrando os efeitos das redes sociais, a diferença se dá pela mudança do sujeito foco de sua análise; no primeiro momento, quando analisa o sujeito moderno-monádico, o autor discute uma tradição e indivíduos que padecem do excesso de limites excludentes que definem e afastam a negatividade que produzem, ou seja, o outro do eu rígido fixado pelos limites, enquanto que, após a virada temática, quando analisa o sujeito contemporâneo-narcisista, o filósofo discute o excesso de positividade  dado pela atual ausência de limites que fariam o outro aparecer como tal.

Portanto, existem dois momentos de reflexão na obra de Byung-Chul Han. No primeiro deles, pré “Sociedade do cansaço” (2010), destacam-se duas características: 1 – a crítica da tradição de pensamento filosófico ocidental e da abordagem da negatividade produzida por seus modelos; e, 2 – a crítica dos sujeitos constituídos nessa estrutura de pensamento: o sujeito moderno-monádico.

No início de sua filosofia, pautando-se nas traduções para o português, cabe pontuar que Han se levanta, especialmente, contra a interioridade excludente das mônadas e substâncias que fecham o sujeito em si. (HAN, 2019c [2002]) E ainda depõe contra a existência heroica do sujeito que, mesmo diante da morte, retorna enfaticamente para si e para seus limites. (HAN, 2020 [2002]) Nesta fase, a escrita do autor aponta para como os sujeitos, presos nos limites que formam a interioridade do Si, perdem a relação com o mundo e vivem a autorreferencialidade. Criticando as bases do pensamento ocidental, como a razão e a concepção de Deus, Han entende que o ocidente busca constituir o Si em torno de categorias como absoluto, o puro, o eterno e a infinitude. Um movimento que permite ao Si afundar-se no puro pensamento, no qual “o ser humano está inteiramente consigo mesmo, se relaciona apenas consigo mesmo, se apoia apenas em si mesmo. Nenhuma exterioridade atrapalha a sua contemplação autorreferencial.” (HAN, 2019c [2002], p.18) Uma utopia racional que faz o Si livre da relação com o outro; “[...] um eterno ouvir-a-si-mesmo-falar, no qual nenhuma voz do outro penetra. A razão promete essa autorreferência pura, autoerótica.” (HAN, 2020[2002], p.46) Por conseguinte, nessa fase, Han acredita que é do excesso de limites que busca sempre perpetuar o Si em si, fechado para o mundo, que os sujeitos padecem. E, por isso, urge que eles se abram afavelmente ao mundo.

No segundo momento de suas reflexões, isto é, a partir de “Sociedade do Cansaço”, o autor desloca suas análises da tradição do pensamento filosófico ocidental para os produtos, modelos e discursos culturais da contemporaneidade. É uma fase em que o filósofo não fala mais dos limites como um problema, mas sim dos danos causados pela ausência deles. Não há limites porque só se considera mundo aquilo que reflete o indivíduo, que é igual a ele. Han diagnostica uma mudança de paradigma que ocorre com a substituição da sociedade da disciplina pela sociedade do desempenho; essa última sustentada pela “continuidade de um nível” de produção a partir de “esquemas positivos de poder” (HAN, 2017b[2010], p.25). A mudança consiste na saída de uma estrutura pautada na proibição e controle físico dos corpos e a entrada numa estrutura que opera pela positividade e pela positivação do mundo.

As análises iniciadas em “Sociedade do desempenho”, em certa medida, não podem separar-se da análise dos meios digitais e de seus desdobramentos sobre o sujeito, pois são elas que levam Han a diagnosticar o surgimento de um novo sujeito, o contemporâneo-narcísico, o “homo digitalis” (HAN, 2018[2013]), que “graças à digitalização total do ser” alcançou “uma humanização total, uma subjetividade absoluta, na qual o sujeito humano se depara apenas consigo mesmo.” (HAN, 2019a[2015]. p. 41) Assim, na nova fase, tomando o desempenho neoliberal e a digitalização da vida como fios condutores, o filósofo depara-se com uma nova ordem dos limites, da qual resulta o conceito de inferno do igual que delineia a uniformização e a des-limitação contemporâneas.

A partir desse fio condutor, Han entende que é possível falar de uma era pós-imunológica que não lida com a “alteridade e a estranheza”, que são substituídas por diferenças “que não provoca[m] nenhuma reação imunológica.” (HAN, 2017b[2010], p.10) Nesse sentido, a nova ordem de limites provoca “a erosão do Outro” (HAN, 2017a[2012], p.7) e a “narcisificação do si mesmo” (HAN, 2017a[2012], p.8) que apenas lida consigo e com os seus no inferno do igual. O Eu contemporâneo se insere numa sociedade que sequer reconhece o Outro, diferente do Si fechado da tradição que levantaria limites excludentes contra o Outro. Hoje se está em uma ordem social que impede a relação com o outro atópico, – sem lugar –, na qual constantemente “[...] nivelamos tudo ao igual, porque perdemos de vista justamente a experiência de atopia do outro”; na atualidade a tendência é “eliminar a alteridade atópica em prol de diferenças consumíveis, sim, heterotópicas.” (HAN, 2017a[2012], p.9)

Nessa sociedade, visto que “a alteridade não é uma diferença consumível” (HAN, 2017a[2012], p.34-35), o outro como limite e como sem lugar no Eu não aparece, pois apenas aparece o que é consumível. Nela surge um retorno ao momento da indistinção do narcisismo infantil, tudo nutre a majestade-Eu[1] que tem fome, que tudo mastiga até a uniformização que permite o engolir. As subjetividades absolutas constituídas sob o paradigma do desempenho, como não reconhecem limites, não têm a oportunidade de se abrir ao mundo. Em outras palavras, reconhecendo-se como totais, não há limite que precise ser aberto. Aqui, Han urge que o Eu se distinga do mundo para vê-lo e para experimentá-lo, pois a distinção faz o outro aparecer.

Além de ser referente aos objetos de suas reflexões, pode-se dizer que a virada do filósofo, também, é tributária do conceito de poder que desenvolve, durante as análises da sociedade composta pelos sujeitos da tradição moderna ocidental, na obra “O que é poder?”(2005). Nela Han observa que o sujeito contemporâneo considera o poder como fenômeno negativo (no sentido de julgamento de valor), atando-o sempre destruição e repressão, mas o autor explora-o como um fenômeno positivo investigando as faces do poder que “também atua[m] de maneira produtiva” (HAN, 2019e [2005], p.20). Esse conceito de poder positivado está estruturado como a continuidade da vontade de um ego sobre um alter, no qual “o poder do ego alcança seu máximo justamente quando o alter obedece a sua vontade a partir de sua própria vontade.” (HAN, 2019e [2005], p. 16) Nesta formula o “poder deve transformar o ‘não’ sempre [que] possível em um ‘sim’. Ao contrário da concepção negativa de poder, que sempre diz ‘não’, a função do poder do meio de comunicação consiste em elevar a probabilidade do sim.” (HAN, 2019e [2005], p.21) Dedica-se a esta faceta do poder porque lhe interessa o poder que é rico em mediação, que não age a partir da violência direta e que passa despercebido. Para Han

 

“a impressão de que o poder é destrutivo ou inibidor surge por se atentar, apenas no interior da constelação pobre de mediação da coerção, para o poder que oprime. Onde o poder, ao contrário, não aparece como coerção, ele acaba quase passando desapercebido. No consentimento, é como se desaparecesse. O juízo negativo sobre o poder surge, portanto, de uma percepção seletiva” (HAN, 2019e [2005], p.21)  

 

A abordagem do poder, delineada na obra de 2005, faz com que Han traga luz para um arranjo do poder que faz liberdade coincidir com opressão (HAN, 2019e [2005], p.72), o que faz com que poderes, como vontades externas, não sejam percebidos como tais. Nesse sentido, a sociedade de desempenho, que faz das vítimas seus próprios agressores (HAN, 2017b[2010], p.28), é uma sociedade do poder positivado que opera pela continuidade sem limites da vontade daquilo que propomos aqui chamar de Ego incógnito.

          Entretanto, a mudança de paradigma, diagnosticada por Han, não pode ser entendida como uma realização do sujeito afável da abertura sem limites, descrita em “Filosofia do zen-budismo”.  A abertura do afável sem limites difere-se da des-limitação do sujeito contemporâneo porque ela é tributária da “Grande morte” zen-budista; logo “ela não anula, todavia, o Si. Antes, ela o ilumina no aberto. O Si se esvazia ao se preencher com uma amplidão do mundo”, faz “um si sem si.” (HAN, 2019c[2002], p.150) O Eu edificado na contemporaneidade não possui a oportunidade de se abrir para o mundo, libertando-se de seus limites, e experimentar a “penetração reciproca” (HAN, 2019c[2002], p.64); antes, sua constituição já se dá na des-limitação que não forma um Si, mas sim um Eu do igual. Ele é estruturado sem negatividade.  Pelo excesso de destituição dos limites, o sujeito recusa-se a produzir a negatividade e recorre à identificação com o mundo em um processo de narcisificação, ambos centrados na dominação para a produção. Todavia, nos dois modelos de sujeito da tradição ocidental – tanto na mônada da utopia da razão quanto no sujeito do inferno do igual – faltam abertura e relação com o mundo, um pelo excesso de limites que afasta o mundo e o outro pela ausência de limites que impede o mundo de aparecer como distinto e atópico; o primeiro não permite frestas para que o Si conheça o lado de fora, o segundo não permite reconhecer nenhum outro nem nenhum fora, pois reduz e compara tudo como iguais. Ambos os arranjos não permitem a ambiguidade e “simultaneidade de não e sim [que] produz um Si aberto e afável.” (HAN, 2019c[2002], p.160)

O Si, e mesmo o afável, gradativamente, são deixados de lado no desenvolvimento da obra de Byung-Chul Han. O vocabulário se transforma, entretanto, a necessidade de abertura ainda ocupa o autor. É preciso deixar o mundo entrar como ele é: atópico. Seja rachando e criando janelas nas mônadas da tradição ocidental e suas substâncias; seja rasgando o sujeito recorrendo a negatividade que faz o mundo aparecer. Isso porque interessam ao filósofo quais relações os sujeitos são capazes de estabelecer com o mundo no que lhe é mais próprio, isto é, a negatividade de sua alteridade, aquilo que faz do mundo “sem-lugar” (atopos) na estrutura do Eu e que permite a experiência erótica em sentido enfático (HAN, 2017a[2012], p.8).

          Por conseguinte, escolheu-se debater os modos de abertura descritos por Han em duas sessões relativas aos temas e sujeitos distintos que aborda pré e pós-sociedade do cansaço. Na primeira, debate-se a abertura afável tendo sujeito zen-budista como baliza, e o momento em que Han fala contra a tradição ocidental e insiste em propor o modo de ser da afabilidade, que reflete e afirma o mundo em seu ser-assim, como alternativa ao sujeito moderno-monádico do Si fechado. Na segunda, discute-se a necessidade de distinção e de distância entre o Eu e o mundo e a abertura que surge destas  permitindo, então, que o mundo seja aceito em sua alteridade atópica, ou seja, como negatividade que não pode ser reduzida e assimilada pela estrutura do eu na forma de “diferenças consumíveis” (HAN, 2017a[2012], p.9); desse modo, o mundo pode transformar o Eu pois “revela-lhe a atopia do totalmente outro, na medida em que, de repente, interrompe o igual” (HAN, 2017a[2012], p.17). Para ambos os modelos de subjetividade formados por excessos distintos parece faltar mundo. Assim, aqui, a proposta é apontar o que o filósofo elabora sobre os modos de se-abrir para o mundo e de se relacionar com ele em seu ser-assim.

 

 

 

 

Ferir-se de morte para se transformar

 

          Como elucidado, o início da trajetória de Byung-Chul Han conta com uma crítica da tradição ocidental e do que essa oferece à constituição dos sujeitos. Grosso modo, o filósofo realiza uma campanha contra o Si enfático voltado à interioridade, contra o Si heroico que mesmo diante da morte se volta para si. Para Han interessa propor uma abertura que faça do si um espaço da afabilidade arcaica que não sustente uma interioridade rígida e centralizada, nem uma identidade estável que é sempre ela mesma. Interessa, portanto, o “Eu” que é aberto a se transformar ao experimentar o mundo.

No “Filosofia do zen-budismo”, que talvez seja o livro com uma proposição mais aparente, Han dedica-se à crítica dos moldes ocidentais. Tendo o zen-budismo como padrão, elucida o modo de ser afável que vê como base possível para um outro sujeito, e o faz junto da crítica de modelos consagrados: as mônadas e o Deus leibinizianos; as substâncias, o absoluto e o Deus hegelianos; o lugar como ponta da lança heideggeriano. O autor fala da centralização e da hostilidade que existem nesses conceitos, e indica que, como modos de constituição, produzem um sujeito fechado. No lugar desses conceitos, que preenchem e fecham o sujeito em si, na própria interioridade, o filósofo argumenta que se deveria visar um modo de ser afável que é possível quando o indivíduo se constitui pela matriz de pensamento zen-budista. Exemplificando: contra a fixidez da substância que é sempre igual a ela mesma e que faz com que o indivíduo “se aferre a si mesmo”, pode-se opor o vazio, pois “ele desfaz a rigidez substancial” (HAN, 2019c[2002], p.68); contra o mundo das mônadas, porque “falta a ele uma abertura”, o que faz das almas “indivíduos sem janelas” que não olham “umas às outras”, opõe-se a concepção de mundo zen-budista no qual “inere ao ente uma abertura ou hospitalidade sem limites, como se ele consistisse apenas de janelas.” (HAN, 2019c[2002], p.88)

A tradição produtora do si fechado é ranzinza, monocromática, não possui o riso que abre. O indivíduo produzido em seu viés excluiu o outro, e está isolado, como “eu heroico [que] não ri”; contrariamente, aquele que possui a afabilidade arcaica tem o riso que “faz estremecer toda separação e demarcação, cria o aberto” (HAN, 2019c[2002], p.165). Nesse momento, Han quer a desconstrução do sujeito da rigidez, que, sem janelas, segue aferrado a si, fechado em sua alma que não o permite olhar o outro. O filósofo quer o sujeito que é rasgado, fissurado e aberto pelo riso; quer o riso que faz o rosto ser mundo, o riso que faz o

 

rosto de flor es-vaziado, des-interiorizado, sem Si, que respira, acolhe ou espelha montanhas e rios, terra, sol e lua, vento e chuva, humanos, animais, gramas e árvores [que] poderia ser descrito como o lugar da afabilidade arcaica. O riso arcaico, essa expressão profunda da afabilidade, despertada lá, onde o rosto quebra a sua fixidez, se torna sem-limites, onde ele se transforma como que em um rosto de ninguém. (HAN, 2019c[2002], p.189)

 

 

O sujeito fixo é o da interioridade, e ele está cheio de si e, consequentemente, não há espaço para o outro. Assim, para propor o Si aberto, Han concentra-se no vazio zen-budista: “Na esfera do vazio, a montanha não permanece substancialmente em si. Antes ela flui no rio. Assim, se desdobra uma paisagem fluente.” E da paisagem fluente surge a afabilidade arcaica. Nela não há substâncias como ordens absolutas. “O vazio des-limitador suspende toda oposição estática” (HAN, 2019c[2002], p.62), sua i-limitação faz surgir uma outra visão, por ela “busca-se por uma visão que ocorra antes da separação entre ‘sujeito’ e ‘objeto’.” (HAN, 2019c[2002], p.63) Uma postura tomada porque, para o autor, “nenhum ‘sujeito’ deve se intrometer na coisa. Uma coisa tem de ser vista tal como ela mesma é. [...] O vazio esvazia aquele que vê no visto.” (HAN, 2019c[2002], p.63) O filósofo se interessa pelo poder da simultaneidade, na qual “o pássaro é também a flor; a flor é também o pássaro.” Uma simultaneidade que ocorre porque “o vazio é o aberto que permite a penetração recíproca. Ele estimula a afabilidade. O um ente espelha o todo em si. E o todo mora no um ente. Nada se recolhe em um para si isolado.” (HAN, 2019c[2002], p.64)

Entretanto, apesar de Han se apropriar do vazio para escrever uma ode à mistura e às coisas que fluem umas nas outras, sua intenção não é que o Si se desfaça até a inexistência. Efetivamente, deseja uma outra percepção que, reconhecendo a impermanência, está aberta a deixar “a si mesmo passar.” (HAN, 2019c[2002], p.149). É aquela percepção da Grande morte zen-budista que constitui o Si esvaziado de si e preenchido com amplidão de mundo; o si que tem abertura para o não que mata o Si, anterior ao sim que o revive transformado pois naquela “simultaneidade de não e sim produz o Si aberto e afável.” (HAN, 2019c[2002], p.160)

A grande morte é a abertura na qual surge o “Eu-não-sou”, nela despede-se do “Si ‘egoísta’” e da “interioridade egoica e almal” (HAN, 2019c[2002], p.150), “ela nega toda subjetividade ou egoidade” (HAN, 2019c[2002], p.151), fundamenta-se na “des-interiorização” (HAN, 2019c[2002], p.151). Morto pelo não e reavivado pelo sim, o indivíduo ressurge outro, um fora do Si que deixou passar. O Si aberto tem permissão para transformar-se. Entretanto, como a “transformação [...] ameaça o eu” produzido pela matriz do pensamento ocidental voltado ao Si egoico, insiste-se na mesmidade que dá o “sentimento de segurança e poder” (HAN, 2020[2002], p.345), investe-se no Si que é sempre o mesmo fechado para o mundo, conhecido em sua identidade.

Han elucida que a fixidez da mesmidade é de suma importância na produção corrente de conhecimento. Consequentemente, pelo viés da estabilidade, o conhecimento está voltado à autopreservação, e seu sucesso “se instala ali, onde toda possibilidade de transformação é tomada do outro” (HAN, 2020[2002], p.346). O modelo de conhecimento estabelecido é, como resultado, apropriador e dominador, e deve manter cada coisa presa em sua substância para que possa ser conhecida sempre como ela mesma. Esse modelo é reconhecível na constituição do Si, pois “a proibição da transformação não afeta apenas o objeto da apropriação, mas também o sujeito apropriador. [...] O eu também proíbe a si mesmo a transformação para se apoderar de si mesmo.” (HAN, 2020[2002], p.346) Assim, a mesmidade e a identidade da substância surgem, também, na constituição do Si como estratégia de poder que autopreserva as coisas como elas mesmas.

O Si fechado orienta-se como uma estrutura de poder, é uma existência que digere o outro para se afirmar como o mesmo, busca sua continuidade em detrimento do outro. Ele cobiça, segundo Han, “uma interioridade absoluta, na qual não ocorre nenhuma afecção-estranha, nenhum contato.” (HAN, 2020[2002], p.355) Sua estrutura não deseja a simultaneidade e o fluxo da abertura afável que depende da serenidade para a “grande morte”. Para o Si fechado “a morte é percebida como o inteiramente outro, então o poder trabalha, em última instância, contra a morte. O desejo por mais poder, que proíbe a si e ao mundo toda transformação, representa aquela recusa a morrer.” (HAN, 2020[2002], p.356) Para subjetividade que deseja poder, e a partir dele perpetuar-se, a morte é corte, é interrupção, é o Outro, que interrompe a continuidade sólida do Si: “mais poder é experimentado com menos morte” (HAN, 2020[2002], p.335). No afável há abertura para a morte, pois não há sujeito que se intrometa nas coisas, que queira se continuar nelas.

Aqui, Han se opõe ao fechamento ocidental que busca reproduzir a identidade do Eu; e oferece como saída um si voltado a amplidão, que não reduza o espaço. Ele parece querer, assim como julga que Elias Canetti quer, “permitir rupturas e rasgos, a fim de escapar ao enrijecimento e à mutilação.” (HAN, 2020[2002], p.356) Talvez seja possível afirmar que Han esperava o surgimento de um indivíduo capaz de afirmar: “quero me quebrar até ser inteiro.” (CANETTI apud HAN, 2020 [2002], p.346) Um sujeito que não se proteja em mônadas sem janelas.

A proibição da transformação, em Han, pode ser descrita como a proibição da grande morte, é a proibição do que conclui e abre para o novo. É a partir dela que “a auto-preservação cega leva a rigidez mórbida. Ter-se-á, então, de se entregar à morte, de se abrir à morte, a fim de escapar a essa rigidez mórbida. Ter-se-á que morrer de si mesmo, a fim de permanecer vívido.” (HAN, 2020[2002], p.356) Em outras palavras, é preciso ser aberto pela morte, aceitando-a junto da impermanência do si para, assim, vivificar o mundo como o Outro. Ter-se-á que matar a proibição da transformação para se-abrir.

Han evidencia o sujeito aberto que se expõe às feridas, mesmo que essas o conduzam a grande morte. “O ser exposto às feridas representa uma contra figura à interioridade e intimidade da casa (oikos). O interior da casa resguarda o eu, o protege da invasão do outro.” (HAN, 2020[2002], p.396) O filósofo rejeita o arranjo do qual surgem os que se mantêm em sua casa e em si. Ele ocupa-se de desnudar o arranjo que se realiza no ditado zen: “nem dono nem hóspede. Aberto a dono e a hóspede.” (HAN, 2019c[2002], p.162). Desse último surgiria o “eu” afável que sustenta a abertura para acolher em si o mundo, aquele que é hospitaleiro com o mundo. O autor fala do indivíduo aberto a hospitalidade originária que “surge daquele lugar onde não há distinção, nenhuma diferença fixa entre o dono e hóspede, onde o dono não está em casa consigo mesmo, mas sim é hóspede.” (HAN, 2019c[2002], p.162) O eu ferido está em oposição àqueles do Si da casa que por estes serem “uma existência caseira, econômica, [... que] se fecham ao outro, tocam ainda apenas a si mesmos.” (HAN, 2020[2002], p.396) Quem é aberto ao ferimento causado pelo mundo em sua alteridade é afável.

Aqui, a imagem da ferida serve para Han como ilustração da abertura à penetração recíproca entre indivíduo e mundo. “Essa abertura é a ferida que escancara, que vira como uma porta por meio da qual o outro é recebido ou penetra na minha interioridade. É preciso, então, estar saturado de feridas a fim de ser para o outro.” (HAN, 2020[2002], p.397) “Essa ferida seria a única abertura por meio da qual se poderia receber o outro. Apenas a consciência saturada de feridas abriria a ‘sensibilidade’ para o outro.” (HAN, 2020[2002], p.296) O movimento dialético do ferir-se retira o Si “para fora da interioridade autoerótica e da satisfação consigo mesmo, o expõem ao lá fora, ao outro.” (HAN, 2020[2002], p.397) O autor, apoiado em Lévinas, quer que as feridas sirvam como exposição radical que evita o ressurgimento do “coágulo do Eu” (HAN, 2020[2002], p.297). As feridas ocorrem ali onde o Outro atravessa a superfície do Eu e o arrancam para fora da casa, do conhecido.

O coágulo do Eu impede o fluir da simultaneidade que constitui a penetração recíproca. O coágulo do Eu representa o excesso de interioridade que surge da tradição de pensamento europeia, e é formado pelas barreiras excessivas que separam todas as existências em suas substâncias fixas. O autor vê um exemplo dessa interioridade fechada expressa na própria cultura: “Tanto a cultura europeia como também o conceito europeu de cultura apresentam muita interioridade. A cultura do Extremo Oriente é, em oposição, pobre de interioridade. Isso faz como que ela seja permeável e aberta.” (HAN, 2019d[2005], p.99-100) Portanto, as subjetividades que emergem da cultura europeia espelham a mesma saturação de interioridade e a mesma separação entre interioridades fixas que não fluem diretamente umas nas outra; para essas faltam conexões, que, em suas estruturas prenhes de interioridade, só poderiam ser inter-conexões. Han extrai da cultura do Extremo Oriente o modelo que indica à sua superação, isto é, aquela subjetividade que “devido à abertura intensiva, não se coloca especificamente a questão por tal inter que poderia mediar entre as essências fixas.” (HAN, 2019d[2005], p.100) A cultura que o autor nomeia de oriental não se pergunta sobre como estabelecer interrelações, porque não se pergunta sobre o substancial que difere ou sobre o que é essencial de cada coisa em si mesma, toda coisa é aberta intensivamente a não ser o que é. Portanto, os indivíduos que dela emergem não representam algo fixo e fechado que precisa de pontes para inter-conectar interioridades distintas; antes suas estruturas permitem o multi, pois são abertas a simultaneidade. A montanha flui no rio e o rio na montanha numa paisagem fluente.

Neste viés, é aceitável acrescentar um comentário descolonial à obra de Han. Continuando a reflexão, com o autor e para além dele, pode-se afirmar que o modo de ser baseado na tradição eurocêntrica possui um excesso de centro. A cultura fechada em sua interioridade é pouco hospitaleira. Efetivamente, a partir de sua leitura de “Lições de história da filosofia I”, de Hegel, o filósofo conclui que a cultura euro-cêntrica moderna marca uma ruptura com a estranheza; para ele, em Hegel, o estrangeiro, que primeiro aparece como elemento formador do “espiritual” para os gregos, desaparece quando se fala da formação do espírito europeu na qual “o estrangeiro é degradado em mera ‘matéria’” (HAN, 2019d[2005], p.13). “A humanidade europeia passou a se sentir em casa estando em si” (HEGEL apud HAN, 2019d[2005], p.13). Postura centralizada que isola e impede o contato externo, ela cria uma topologia para a alegria: alegre “é estar-em-casa-em-si”. (HAN, 2019d[2005], p.14)

Assim, estabelece-se um corte muito estrito, um limite que encurta também a abertura para a felicidade: “como na vida comum, ficamos bem junto aos nossos, famílias e pessoas que são pátria em si, satisfação em si, não além, nem acima disso, esse é o caso também quando estamos junto aos gregos [vistos como iguais, não estrangeiros]” (HEGEL apud HAN, 2019d[2005], p.14). Esse modelo excludente centra e determina os limites: casa, famílias, pátria – em si –. Recortes que isolam, e produzem uma cultura da “autossatisfação” (HAN, 2019d[2005], p.15). O sujeito centralizado não se relaciona com a periferia gerada a partir dos seus limites, pois está preso numa força centrípeta que o arrasta para o centro prendendo-o lá. Contrariamente, para o sujeito que emergiria do zen-budismo de Han, que tem o vazio como meio da afabilidade, “nada permanece isolado para si, [nada] persiste em si mesmo” (HAN, 2019c[2002], p.159). O outro, como estranheza, aparece fora da zona euro-centrada, na zona do vazio afável, porque “falta à afabilidade arcaica que vem do vazio justamente esse ‘centro’. Como falta o centro, não há também nenhuma periferia e nenhum raio. A afabilidade arcaica formula um ser com outros sem o centro centrador ou centrípeta.” (HAN, 2019c[2002], p.185) O autossuficiente euro-cêntrico não é aberto ao outro, se esconde atrás de barreiras.

A autossuficiência, certamente, conduz a um ser inteiriço, duro, que não se abre nem para a morte. Ela conduz ao Si autorreferente, que olha apenas para si e para sua interioridade. Han quer romper com esse modelo, para ele interessa o indivíduo que olha ao redor, que olha em liberdade. Dessa maneira, pode-se aproximar o olhar afável do olhar sem telos e teo do andarilho nietzschiano evocado por Han. Assim o olhar afável

 

[...] andarilha em um mundo des-teleologizado, des-teologizado, ou seja, des-localizado. Porque não está a caminho de ‘uma meta final’, pode pela primeira vez olhar ao redor. É, nessa medida, um homo liber, ao não ser refém do último sentido. Etimologicamente, o sentido aponta para um caminho, uma direção ou viagem. A nova viagem não tem uma meta definitiva. Essa ausência de telo e de teo liberta, contudo, a vista do andarilho. Sim, ele aprende, pela primeira vez a ver. (HAN, 2019d[2005], p.15)

 

O sujeito aberto se aproxima do andarilho porque ele “faz o horizonte único desaparecer”, perder sua autorreferencialidade, “mas essa perda abre-lhe novas visibilidades a serem exploradas” (HAN, 2019d[2005], p.132). O modo de ser da afabilidade sem limites abre o olhar, abre-o para a relação com o outro.

No modo de ser da tradição o Si tem apenas um olhar, o autorreferente, que lhe concede uma “visão normal de mundo”. Por estar vinculado à autopreservação, que pelo desejo de poder refuta a morte, o Si apoia-se nas estruturas do poder, e depende delas, para continuar-se. Está instaurado nos limites que formam o Si, uma legitimidade para seu modo de ser, a visão normal de mundo “funciona, assim, como uma continuidade de sentido ou como um horizonte de sentido que influi em como as coisas e ações são compreendidas deste modo e não de outro” (HAN, 2019e[2005], p.84). O Si está enlaçado pela “visão de mundo orientante” que não fere e que “‘alivia’ o ser-aí por este não precisar ele mesmo interpretar ou conceber novamente o mundo” (HAN, 2019e[2005], p.85), portanto, seu olhar não andarilha, tem horizonte único, tem telos e teo.

Uma maneira de ler a “visão normal de mundo” na constituição do Si é voltando-se para outra aparição da expressão, em “Bom entretenimento”, onde aparece como aquilo que dita de que modo os “modelos de entendimento e de interpretação são interiorizados física e psiquicamente por canais do prazer” (HAN, 2019b[2007], p.141). Para o Si pode-se falar em canais autoeróticos, autorreferentes, a tradição e seus limites são como um treinamento para o prazer da autossatisfação isolada e sem ferimentos. A tradição cultural, assim como o entretenimento que dela emerge, “estabiliza a sociedade existente; preserva [erhält] a si mesmo ao se entreter [unterhält]” (HAN, 2019b[2007], p.141). A estabilidade se dá no Si fechado que não inventa, apenas lida com o dado, pré-formado; sua visão não o permite experimentar o mundo como alteridade. “A invenção de um mundo, sim, do outro como um todo, seria essencialmente mais custosa e difícil do que encontrar um mundo já interpretado” (HAN, 2019b[2007], p.141). O Si fechado tem a sensibilidade voltada para sentidos dados.

Cabe pontuar que o poder da tradição que forma o Si dotando o mundo de sentido, embora seja um fechamento ainda permite alguma abertura. Afinal, segundo a letra de Han, o sentido “é um fenômeno da relação e do relacionar-se” (HAN, 2019e[2005], p.52). Mas constituindo-se como uma “continuidade ou horizonte de sentido que o ultrapassa e que precede a doação a um objeto ou acontecimento, sem que, contudo, surja o olhar como tal” (HAN, 2019e[2005], p.52), essa relação não consiste na abertura desejada pelo autor, ainda é muito limitada, pois permite o olhar apenas em harmonia com um grupo de referências que já interpretam o mundo e que constituem o Si, ou seja, são suas autorreferências. Han quer o olhar como tal, sem a intromissão do sujeito. “Sentido é poder” (HAN, 2019e[2005], p.53), portanto, conserva resíduos de soberania da vontade de quem significou e decidiu o que devia continuar-se. O filósofo imagina o sujeito do nada zen-budista, do qual “não parte nenhuma ‘soberania’, nenhum ‘poder’” (HAN, 2019c[2002], p.14); o do vazio ao qual não inere “nenhum ‘poder substancial’ do qual partiria um ‘efeito’” (HAN, 2019c[2002], p.59).

Ademais, com Han, pode-se afirmar que o Si fechado está em um estado de dominação, isto é, “um estado no qual a relação de poder alcança uma estabilidade” (HAN, 2019e[2005], p.183). E, uma vez que, “o poder tende justamente para reduzir a abertura” a estabilidade do Si fechado é a sua continuação no isolamento. Isso porque “possivelmente, o medo da abertura e a instabilidade da cobiça leva a mais poder.” (HAN, 2019e[2005], p.183) O Si fundado na visão normal de mundo opera como o poder e “procura se consolidar, se estabilizar, na medida em que erradica os espaços de jogo abertos ou espaços imprevisíveis.” (HAN, 2019e[2005], p.183) O Si do excesso de limites está isolado, e repete o poder, por isso “carece da abertura para a alteridade. Ele tende para a repetição do mesmo e do self” (HAN, 2019e[2005], p.177-178). Han espera que possa haver um outro sujeito que não se feche para a alteridade, um que não se repita, mas que sempre se abra à transformação.

Por fim, interessa para Han a abertura ao aqui e agora, destacado, em “Filosofia do zen-budismo”, como uma crítica à transcendência guardada pelo sujeito da tradição moderno-monádico. O autor acredita que falta ao ocidente uma abertura à imanência do cotidiano, o que funda um indivíduo que vive em busca do extraordinário , que pode ser superado pela “confiança originária [Urvertrauen] no Aqui” (HAN, 2019c[2002], p.43). O é a manifestação da busca pelo absoluto que move a alma monádica. Mas o filósofo aponta que “o lugar da iluminação é a cotidianidade [Alltäglichkeit], o aqui e agora cotidianos, o mundo impermanente, pois não há nenhum outro mundo, nenhum lá fora, nenhum , nenhuma transcendência” (HAN, 2019b[2007], p.94). Ocupa-se de evidenciar quais as condições de possibilidade para que surja aquele que, aberto ao cotidiano, será capaz da “[..] visão cotidiana do vazio, na qual ocorre uma penetração recíproca das coisas”. (HAN, 2019c[2002], p.65)

A busca de outro olhar lança Han nos modos de olhar, e pode-se afirmar que isso leva-o a indicar um outro tempo do olhar, um tempo que promoverá a abertura. Nos modos de olhar, o autor vê abertura naquele que “se demora na visão do habitual”, no Aqui do mundo como ele é. “Toda busca por um extraordinário faz com que se desvie do caminho” (HAN, 2019c[2002], p.54). Buscas não permitem o olhar que se demora e insiste no insignificante e no insignificado. Elas não permitem “uma visão demorada, que recebe ao outro amavelmente” (HAN, 2020[2002], p.186). O sujeito da abertura afável sem limites é o do “olhar longo” sem telos, que vaga, ele é poético. O sujeito aberto, como o poeta, “se exercita naquele olhar lento, que se demora longamente no que jaz aí do lado, que se volta para o múltiplo [...]”. Han se inspira no poético porque “o poético se coloca contra a estrutura de poder e de coação da identidade e da totalidade.”(HAN, 2020[2002], p.354) Pode-se dizer que o autor quer fazer aparecer o ser que, de tão afável, tenha a sensibilidade aberta como uma ferida, e que por isso viva como poeta morrendo e transformando-se a cada encontro com o mundo, afirmando-o como tal sem buscar nada deste.

 

 

Sobre distinguir-se do mundo para vê-lo

 

          Na virada temática da obra em processo de Byung-Chul Han, evidencia-se que, ao direcionar sua produção teórica aos estudos de cultura, referente à cadeira que o autor ocupa na Universidade de Artes de Berlim desde 2012, suas reflexões o aproximam do campo da estética. Passa a interessar-se enfaticamente pelos modos de perceber o mundo, especificamente, pelo processo a partir do qual o Eu contemporâneo constrói suas relações com o mundo como alteridade, e pelas ligações de tais modos com a economia. Neoliberalismo, cultura digital, consumo e seus respectivos discursos são indissociáveis das obras pós Sociedade do Cansaço, tal qual, também o são, os sujeitos que formam suas subjetividades adicionando esses discursos uns aos outros e em si.

          Quando Han passa a enfrentar a nova ordem dos limites da contemporaneidade e o excesso de positividade, depara-se com uma reorganização da percepção. Saindo do enfrentamento da tradição moderna e lidando com a cultura contemporânea, encontra-se com o que declara ser uma mudança do paradigma que organizava as relações indivíduo-mundo. O autor não vê mais a disciplina como principal fôrma do Eu, mas sim o desempenho neoliberal ocupando este lugar. Tem aí uma das bases de suas reflexões atuais: o sujeito do desempenho, filho do neoliberalismo, que, junto com a digitalidade, impregna o seu pensamento nesta fase. Outro ponto de destaque é que o seu pensamento a respeito dos limites se desloca da barreira, do limite físico, para os limites de tempo. Entretanto, não é como se o tema já não estivesse, quando não evidente, nas entrelinhas, mas a positividade lhe oferece o tempo como algo merecedor de atenção profunda. Aquele demorar que já estava presente na maneira de olhar o outro, na fase da afabilidade, faz-se urgente no cenário de reorganização da percepção.

          Na positividade Han encara outro problema, não é mais o Si fechado, monádico e substancial, que lhe inquieta. Ele encontra o Eu narcísico. Não fala mais dos limites que produziam almas isoladas; na positividade o autor fala do indivíduo que não preserva distinções diante do outro, pois “no narcisismo, ao contrário, desaparecem os limites que separam do outro.” (HAN, 2017d[2011], p.63) O novo Eu, portanto, é aberto enquanto estrutura que não reconhece limites ou alteridades fora de sua economia. Fruto da sociedade do desempenho, surge da supressão dos “instintos limitativos”, que ocorre porque “hoje vivemos num mundo muito pobre de interrupções, pobre de entremeios e tempos intermediários.” (HAN, 2017b[2010], p. 53) Essa virada consiste num passo importante para seu pensamento, visto que, em 2012, já afirmava que “a sociedade positiva está em vias de reorganizar a alma humana de maneira totalmente nova.” (HAN, 2017c[2012], p.19) Reorganizado, o Eu agora não se relaciona com o fora, não porque o reconhece como um inimigo ou um outro invasivo que pode alterá-lo, transformá-lo, mas porque não reconhece um outro que constitua um fora; não porque se isola buscando a pureza e a continuidade do Si em sua identidade fixa, mas está isolado por não reconhecer nada como alteridade radical do eu. Sem limites não há nenhum fora. Incorporando o outro como parte uniforme de si mesmo, não há nenhum fora.

          O Eu da pura positividade é deformado, visto que “a total eliminação da negatividade tem um efeito deformativo e desestabilizador, pois, em virtude da falta de ‘localização’, a alma não pode se recolher; perde seu senso e não consegue descansar” (HAN, 2017d[2011], p.98), sem forma não tem limites para retornar. O Eu narcísico perde sua alma, porque essa “necessita naturalmente de esferas onde possa estar junto de si mesma, sem o olhar do outro”, pois “pertence a ela uma impermeabilidade.” (HAN, 2017c[2012], p.13) Como está no horizonte aberto, lhe “faltam as formas conclusivas que possuem um começo e um fim.” (HAN, 2017d[2011], p.62) Sem um espaço fechado, sem algo velado que resguarde a alteridade da própria alma, as distinções se retraem e o outro desaparece. Logo, os indivíduos configuram-se desestabilizados, porque “se a relação com o outro se perde totalmente, tampouco poderá se formar uma autoimagem estável.” (HAN, 2017d[2011], p.63) Assim, não há forma no sujeito do desempenho; em sua positividade sem alteridades, nenhum limite é reconhecido.

          Para Han, o Eu narcísico aberto é um mal social, e a sociedade nega a possibilidade de fechamento, pois, como aponta em nota, “as formas de conclusão geram inflexibilidade, que teria efeito impeditivo para a aceleração do processo de produção capitalista. O sujeito de desempenho explora a si mesmo de modo mais efetivo quando se mantém aberto a tudo, isto é, quando é flexível.” (HAN, 2017d[2011], p.75) Desse modo, “é precisamente a impossibilidade – condicionada pela sociedade – de formas objetivamente válidas e definitivas de conclusão que leva o indivíduo para dentro da repetição narcísica”, na qual, por conseguinte, “não consegue alcançar qualquer configuração, imagem estável de si mesmo nem caráter.” (HAN, 2017d[2011], p.65) O narcisista sofre da ausência de conclusão, porque, positivado na sociedade do desempenho, raramente se encontra com o “não-poder-poder” (HAN, 2017a[2012], p.26) da negatividade, do outro como limite.

          O Eu narcísico, mesmo sem a negatividade do outro, ainda mantém o desejo de perpetuar-se a si pela continuidade e mesmidade, como o Si fechado, mas por outros modos. O Eu narcísico opera pela sobrevivência, não é mais a transcendência para o Lá extraordinário que move o desejo de eternidade, mas, efetivamente, a “vida reduzida a um processo biológico que deve ser otimizado” (HAN, 2021c[2020], p.36); não é a eternidade para além, mas sim a eternidade aqui: “todas as forças da vida são usadas para prolongar a vida.” (HAN, 2021c[2020], p.33) O continuar narcísico é um eterno presente, não há um , tampouco um depois.

          Contudo, os esforços do sujeito narcísico para sobreviver o colocam em contradição consigo mesmo. Por ter tido suprimida de si suas formas conclusivas “tudo se esvai e se desfaz”, e ele “não adquire uma imagem própria estável, que é igualmente uma forma conclusiva”. (HAN, 2017a[2012], p.48). A sociedade tornada narcísica rejeita a forma, “o processo de internalização narcísico desenvolve uma hostilidade à forma” (HAN, 2021b[2019], p.17). Assim, pode-se afirmar que o Eu narcísico está sempre em voltas de sua própria dissolução, incapaz de chegar à conclusão “ele se perde no aberto” (HAN, 2017d[2011], p.65), hostil à forma ele não encontra nenhuma estabilidade para prolongar. Afinal como continuar aquilo que não tem forma pronta, nenhum estado final?

          O sobrevivente, inserido na “Sociedade da Transparência”, quando acessa imagens de si mesmo, são imagens transparentes de si, isto é, “despojadas de qualquer dramaturgia, coreografia e cenografia, de toda profundidade hermenêutica, de todo sentido, tornam-se pornográficas, que é o contato imediato entre imagem e olho.” (HAN, 2017c[2012], p.10) À autoimagem transparente, por ser sem sentido, só resta ver-se como mera vida biológica. Ver-se como vida “despida de toda narrativa promotora de sentido”. Uma vida que sequer se realiza em seu sentido enfático, mas que é obscena, “vida nua” (HAN, 2021c[2020], p.34) que se satisfaz no “mero viver”. Aqui está presente o medo da morte, que já aparecia nas reflexões sobre o sujeito da tradição moderna ocidental que não deixava o Si passar, mas para o Eu narcísico não há narrativa de transcendência coberta de negatividade que nega a vida no aqui, e sim a positivação da vida: antes a mera vida do que morrer. Para Han, vida e morte vinculam-se com a troca simbólica e, hoje, o Eu narcísico não pode “encerrar a vida de modo dotado de sentido.” (HAN, 2021c[2020], p.36) Assim, o indivíduo da vida sem sentido é incapaz da conclusão que forma sentido quando liga uma coisa à outra (HAN, 2021a[2013]), que daria sentido à vida e à morte. Mesmo no aberto, ainda não se relaciona com a alteridade.

          Também, na nova ordem da ausência de limites, surge uma nova forma de agressão. Sem reconhecer o outro como ameaça a um Si fechado, o Eu narcísico desestabilizado inverte a direção de sua agressividade. Na sociedade do desempenho há a autoagressão, do sujeito que é seu agressor e vítima, que se sente em liberdade na própria coerção; na hiperatividade positiva do aberto, o Eu não é passivo nem nas agressões que sofre: “[t]otalmente incapaz de sair de si, de estar lá fora, de abandonar-se ao outro, ao mundo, vai se remoendo interiormente, o que paradoxal e paulatinamente deixa-o oco e causa seu esvaziamento.” (2017d, p.71) Esvaziado e transparente o sujeito narcísico não tem interioridade, não à toa é incapaz de concluir-se, não há sobre o que se fechar.

          Configurado na hiperexposição, o Eu contemporâneo não constitui nenhum valor se se mantiver como o Si fechado atrás de barreiras e limites fixos, mas adquire “valor se for visto”, deve estar à “mercê da visibilidade.” (HAN, 2017c[2012], p.28). Condenado à hipervisibilidade e a ser imagem, na sociedade da informação o Eu narcísico se deforma em informação, seu modo de estar e perceber o mundo se reduz a capturar informações. Na sociedade da transparência o indivíduo é como a essência da informação: “algo que existe abertamente ou que deve existir abertamente. [...] tudo tem que estar aberto como [a] informação, acessível a todos.” (HAN, 2018[2013], p.74) Seus sujeitos como as informações são sem interioridade, e por isso “não podem se ocultar” (HAN, 2019a[2015], p.48). A iluminação total da sociedade da transparência carboniza a alma humana como interioridade. (HAN, 2017c[2012])

          Os moldes da informação também deformam a percepção do outro. Sem e sem depois, tudo se resume ao “presente imediato” das informações sem “mediação.” (HAN, 2018[2013], p.35) A informação “obriga os olhos a ingestão apressada”, o modo de ver que ela constitui “não permite lembrança demorada.” (HAN, 2018[2013], p.103) E é, propriamente, contra os olhos que se relacionam apressadamente com o mundo que Han se levanta ao fazer a crítica do sujeito contemporâneo e sua raiz neoliberal e digital. Ainda contra o Eu narcísico, mesmo com suas diferenças do Si fechado, atua o olhar lento e longo que se-demora no outro.

          Quanto a isso Han é explicito, em “Sociedade do cansaço”, numa análise com tons antropológicos que dedica um capítulo para a “Pedagogia do ver”. Ao tratar da vita contemplativa acompanha as reflexões de Nietzsche que, em “Crepúsculo dos ídolos”, trata do aprender a ver como parte das tarefas que necessitam dos educadores. Ainda apoiado em Nietzsche, o autor define que “aprender a ver significa ‘habituar o olho ao descanso, à paciência, ao deixar-aproximar-se-de-si’, isto é, capacitar o olho a uma atenção profunda e contemplativa, a um olhar demorado e lento.” (HAN, 2017b[2010], p.51) O aprendizado que o filósofo busca aqui está em oposição ao que ele esperava na fase da afabilidade. Quando tinha o sujeito do zen-budismo como baliza, Han defendia a afirmação do mundo como tal, uma abertura ao outro em seu ser-assim, agora, com o sujeito imerso na sociedade da informação e no seu hiperestimulo, a abertura ao mundo consiste em um olhar lento que deveria tornar-se soberano sobre os estímulos e não afirma-los. A vita contemplativa “não é um abrir-se passivo que diz sim a tudo que advém e acontece”, ela depende de um olhar que dirige os estímulos “soberanamente”, um olhar “que sabe dizer não.” (HAN, 2017b[2010], p.52)

          Este não é similar àquele sim para a morte que pode transformar os indivíduos, que faz aparecer a relação com a alteridade atópica e a possibilita. O não enfático para os estímulos é como um retorno aos “instintos limitativos”, é uma ruptura; o olhar hiperestimulado entregue “[à] atividade pura nada mais faz do que prolongar o que já existe” (HAN, 2017b[2010],  p.53), ele não transforma porque ele não sabe parar, ele está ocupado da ingestão apressada. Como Han ainda vê no Eu da abertura narcísica a ausência da relação com o mundo e ausência da relação com a alteridade atópica que interrompe o igual e que pode arrancar o Eu para fora de si (HAN, 2017a[2012], p.18), insiste no desenvolvimento de outro olhar, um que saiba dizer não para si, que interrompa o ego e demore-se no outro. Afinal, para o autor, “uma virada real para o outro pressupõe a negatividade da interrupção” (HAN, 2017b[2010], p.53) que é justamente do que carece o narcísico sem forma que não é interrompido por nenhum limite.

          A contemporaneidade informacional produz um olhar sem percepção, seus estímulos são afetos violentos, aqueles que são do contato imediato, afetos sem – pois não há mais nem o Lá da transcendência nem um Lá do fora-do-sujeito – e sem depois. Seus olhos são adaptados ao que é rápido e curto, para o fluxo sem começo e sem fim, são olhos permanentemente abertos; e Han defende o olhar lento e longo, que permite o fechar de olhos: “um demorar-se contemplativo é uma forma conclusiva. Fechar os olhos é como que um mostrar-se da conclusão. A percepção só pode ser concluída num repouso contemplativo.” (HAN, 2017a[2012], p.73)

          O Eu narcísico é incapaz do olhar contemplativo; preso na autorreferência totalizante, não sabe sair de si. “No estado contemplativo, de certo modo, saímos de nós mesmos, mergulhamos nas coisas” (HAN, 2017b[2010], p.36), assim, sem “recolhimento contemplativo, o olhar perambula inquieto de cá para lá e não traz nada a se manifestar.” (HAN, 2017b[2010], p.37) Pobre em interioridade o sujeito sequer tem onde se recolher; sem limites que o distingam do outro não mergulha em nada que não seja o si próprio.

          O demorar-se do olhar, de Han, pode ser visto como proposta de resistência e de superação do Eu narcísico. E, junto com o demorar-se, também aparece o pathos da distância, um conceito marcante nas análises da “Sociedade da transparência”. Contra o pathos da transparência, que iguala tudo com tudo e seu empuxo uniformizante, o autor defende o exercício do “pathos da distância” (HAN, 2017c[2012], p.15). Isso porque a “Sociedade da exposição”, filha da sociedade da transparência, opera a partir da eliminação da distância. Na sociedade em que as coisas, como mercadorias, “têm de ser expostas para ser” (HAN, 2017c[2012], p.27), “[...] toda e qualquer distância se mostra como negatividade, devendo ser eliminada, pois impõe um empecilho ao aceleramento do circuito da comunicação e do capital” (HAN, 2017c[2012], p.36) A distância é um limite que retarda os fluxos sem fechamento da contemporaneidade, e deve ser exercitada contra a sociedade positiva.

           De certa maneira, pode-se dizer que Han deseja o surgimento de um sujeito da distância que, relacionando-se com a negatividade, distancie-se e diferencie-se do mundo rompendo com o narcisismo contemporâneo. O demorar-se contemplativo defendido pelo autor, por exemplo, é indissociável da distância: “[p]or falta de distância, não há consideração ou contemplação estética, não sendo possível demorar-se junto à imagem” (HAN, 2017c[2012], p.37). Também, para o filósofo, apoiado em Baudrillard, a transparência, como a total promiscuidade do olhar e com a eliminação da distância, faz com que a percepção se torne “tátil e palpável”, e por sua vez: “[a] percepção tátil é o fim da distância estética, sim, o fim do olhar.” (HAN, 2017c[2012], p.37) Assim, pode-se inferir que o demorar-se do olhar longo e lento que contempla só é possível se há a manifestação de uma distância.

          A distância é um limite que expressa a distinção, faz o outro aparecer e a relação com ele ser possível. Entretanto, “hoje está se perdendo cada vez mais o decoro, a respeitosidade, a distância, isto é, a capacidade de experimentar o outro em sua alteridade” (HAN, 2017a[2012], p.28).  A incapacidade de experimentar o outro do olhar sem distância é, efetivamente, o olhar do Eu narcísico que sequer é capaz de distanciar-se de si, sofrendo de “falta de autodistância” (HAN, 2017c[2012], p.83). Para Han, “a narcisificação da percepção leva o olhar, o outro, ao desaparecimento” (HAN, 2018[2013], p.49). Aqui, pode-se continuar e afirmar que o narcisista tem uma percepção puramente tátil do mundo. Uma percepção desmistificadora que “torna tudo fruível e consumível” (HAN, 2019a[2015], p.12) e que, surgida da estética contemporânea do liso, é fundada na coerção tátil que “convida o observador a uma falta de distância patológica, ao touch.” (HAN, 2019a[2015], p.9-10) Seu toque desmistificador faz tudo esvaziar-se de sentido.

          A coerção por touch enquadra-se em um tópico frequente nas obras que discute o sujeito narcísico da contemporaneidade digital: a dialética da proximidade. Para Han, o desespero por superaproximação, uma necessidade de igualar, de fazer as coisas pertencerem ao inferno do igual, faz a proximidade desaparecer. A proximidade em si guarda uma lonjura “ampla e vasta”, aproximar-se não é ser a coisa da qual se aproxima, ainda resta uma distinção, uma distância limitante que separa. A percepção contemporânea embasada no tátil é obscena, fenômeno da transparência que “dis-tancia tudo num afastamento uniforme, que não é distante nem próximo.” (HAN, 2017c[2012], p.37) Não há mais a visão que “guarda distância” (HAN, 2019a[2015], p.12), a percepção deteriorou-se e como “diafragma aberto elimina a profundidade, a interioridade, o olhar” (HAN, 2019a[2015], p.25); sua obscenidade não permite olhar o outro.

          Subjetividades contemporâneas descritas por Han são indissociáveis da digitalidade. O empuxo do digital destaca seu apetite por “aproximar o outro o máximo possível”, mas como concretiza-se eliminando a distância necessária a distinção “já não temos mais o outro; antes, fazemo-lo desaparecer”. A falta de distância, como “positividade”, não produz proximidade que é uma “negatividade”, “ao contrário afasta-a.” (HAN, 2017a[2012], p.28). Assim, a superproximidade, como proximidade positivada, resulta em uniformização, faz tudo ser indistinto do Eu. Isso produz um excesso de positividade que “leva ao entupimento e à dispersão, à cauterização da percepção, tornando-a cega para coisas inaparentes, hesitantes, discretas e sutis” (HAN, 2017d[2011], p.225-226), isto é, a superproximidade atravanca a percepção da riqueza e das delicadezas agudas da alteridade.

          O homo digitalis, em sua cruzada pela eliminação da negatividade, trabalha intensamente contra a dor, e elimina a distância porque sua negatividade causa dor: “a ordem digital aplaina a proximidade em ausência de distanciamento, de modo que ela não doa.” (HAN, 2021c[2020], p.92-93) Porém, o modo de percepção que rejeita a dor provoca um isolamento no aberto da positividade, é um modelo autoerótico inibidor da relação com o mundo. A percepção que não acessa a negatividade da dor sequer acessa o belo natural que é uma alteridade, visto que “a dor é o rasgo pelo qual se anuncia o todo outro” (HAN, 2019a[2015], p.40). O Eu narcísico só percebe aquilo que, como o belo digital, teve “a negatividade do outro” anulada, o que “é todo liso” sem “rasgo” (HAN, 2019a[2015], p.40). É a percepção das positividades sem barreiras e distinções; a percepção cauterizada não deixa o Eu rasgar-se em feridas.

          Em suma, a sociedade que luta contra a dor por causa de sua negatividade, mesmo que produza um Eu aberto, não produz a abertura enfática do sujeito zen-budista que Han defendia como baliza para seu projeto de sujeito no início de sua produção. Quando ele falava de abertura e de visão, era abertura e visão para o outro. A abertura era uma metáfora para a relação com o mundo em sua alteridade. Negar a dor e abrir-se pela positividade é o oposto disso: “a dor é o rasgo por meio do qual o inteiramente outro tem entrada.” (HAN, 2021c[2020], p.18) A abertura de que o autor falava pressupunha um limite, uma entrada para receber o mundo, que permitiria aquele “‘ser-tocado pelo outro’” mantendo viva a vida e retirando-a do inferno do igual. (HAN, 2021c[2020], p.19)

          Por consequência, ao analisar o sujeito contemporâneo-digital e para pensar saídas Han retoma a figura da ferida na forma de uma “Estética do ferimento”. Estética defensora da “visão em sentido enfático”, isto é, a “visão do outro”, necessária para o “experimentar”; para Han “não se pode ver o outro sem se expor a um ferimento.” Ver é ferir-se: “a vista pressupõe vulnerabilidade. Senão repetiria o igual. Sensibilidade é vulnerabilidade. O ferimento é, seria possível dizer, o momento da verdade da vista. Sem ferimento não há verdade nem percepção verdadeira. Não há verdade no inferno do igual.” (HAN, 2019a[2015], p.52) Cabe salientar que a visão que se expõe ao ferimento distingue-se da visão aprendida com os educadores, que aparece em “Sociedade do cansaço”, pois para o ferimento cabe a “passividade radical”, mais próxima da visão em “Filosofia do Zen”, enquanto que a pedagogia do ver propõe um olhar ativo que é soberano sobre os estímulos (HAN, 2017b[2010], p.52). Deixar-se ser ferido é “um deixar-acontecer ou se expor a um acontecer”, e como experiência “pertence necessariamente a negatividade do ser-impactado e tomado.” (HAN, 2019a[2015], p.52)

          Por fim, pode-se definir o que Han busca na segunda fase de seu pensamento com a reconstrução da relação com o outro, descrita em um sujeito que retome o trato com negatividade que o distingue do mundo. Ele quer fazer aparecer a possibilidade de deixar-se vulnerar, isto é, sentir o outro. E “a sensibilidade em relação ao outro pressupõe um ‘estar exposto [Ausgesetzheit]’ que ‘se expõe até a dor’. Ela é dor. Sem essa dor primordial, o Eu ergue novamente o seu centro, o seu para-si, e coisifica o outro em objeto.” (HAN, 2021c[2020], p.101) O Eu narcísico, sem uma imagem estável para expor, e receber o outro, “sente apenas reverberações de si mesmo” (HAN, 2018[2013], p.106), para ele o mundo aparece como “a sombra de Si” e “ele se afoga em si mesmo.” (HAN, 2018[2013], p.107) Ele é o sujeito do desempenho que, resiliente, não pode “ser ferido”. Sem um limite, sem uma pele formada que seja uma distinção entre ele o mundo torna-se impossível aquela “ferida dolorosa” que é “uma abertura primordial ao outro.” (HAN, 2021c[2020], p.102) Assim, na contemporaneidade falta ao Eu um limite que permita tomar a distância necessária para demorar-se sobre a alteridade do mundo que, por sua vez, quando vislumbrada em seu ser-assim, poderá rasgá-lo e relacionar-se com ele numa experiência dolorosa e por isso verdadeira.

 

Um fechamento

 

          Seria um contrassenso abandonar este percurso sem uma conclusão, assim faz-se necessário retomar o início e juntá-lo com o fim para produzir “uma unidade dotada de sentido.” (HAN, 2021a[2013], p.11-12) O disparador desta reflexão foi a tentativa de apresentar o que, na obra de Byung-Chul Han, pode ser lido com um projeto de sujeito: o sujeito da distância. Como visto, apesar de mudanças substanciais, há um entendimento de sujeito que guarda alguma consistência. Mais do que isso, pode-se dizer que há um empenho em superar tantos os modelos de sujeito da tradição como os da contemporaneidade.

          Han está preocupado com a maneira como as relações com o mundo ocorrem. Primeiramente, insistiu que as relações estavam atravancadas por um isolamento categórico gerado pelo excesso de barreiras; na atualidade, insiste que mesmo com a dissolução das barreiras a relação com o mundo ainda não acontece. E para ambos os modos de percepção aflorados das diferentes ordens de limites o autor indica o mesmo remédio: A abertura. Primeiro uma abertura que se assemelha a janelas que devem ser instaladas nas mônadas para que o mundo entre, mate o Si e transforme-o, e depois a abertura que aparece quando o Eu atinge alguma imagem estável e distinta o suficiente para ser ferida pelo outro. E para ambos modos de perceber e relacionar-se com o mundo, paradoxalmente, a cura se dá pelas feridas, pelos rasgos que deixam o mundo entrar.

          A ferida como abertura é uma escolha interessante de metáfora. Uma ferida infecciona, inflama, pode matar, e essa é sua potência. Han não desiste de refletir sobre a importância da morte como agente transformador. E, contra ambos os modos de ser, ele propõe a transformação. Entretanto, as feridas que o autor deseja não são um para-sempre-aberto. Como a maioria das feridas, elas urgem pela cicatrização, pela conclusão, pois sem conclusão pode-se morrer de hemorragia. Sua dialética da ferida é, tal qual sua descrição da dialética hegeliana, “um movimento de concluir, do abrir, e do voltar a concluir fechando.” (HAN, 2017a[2012], p.47) A ferida desejada é carregada de simultaneidade, surge quando o mundo se aproxima com sua alteridade aguda o suficiente para cortar o eu, coabitando-o por um momento de “vista poética” demorada e contemplativa da qual surgem “as ligações ocultas entre as coisas.” (HAN, 2019a[2015], p.106) É na ferida que surge o vínculo com o mundo, porque “dor é vínculo” (HAN, 2021c[2020], p.62)

           Assim, o sujeito da tradição de tanto tempo aferrado ao Si e negando a alteridade aflorou em um sujeito do desempenho que sequer é capaz de perceber o outro. Falta a eles a possibilidade de ser e ao mesmo tempo deixar-ser; falta a possibilidade do Eu e do Mundo serem simultaneamente um-no-outro e um-em-relação-com-o-outro sem que uma das partes seja subsumida na outra, ou desfeita pela outra. É necessário fazer as pazes com o outro em sua alteridade e, então, construir a abertura para outra relação com o mundo.

         

Referências Bibliográficas:

 

HAN, Byung-Chul. Agonia do Eros. Tradução: Enio Paulo Gianchini. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2017a. (2012)

HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Tradução: Enio Paulo Gianchini. Petrópolis,

RJ: Editora Vozes, 2017b. (2010)

HAN, Byung-Chul. Sociedade da transparência. Tradução: Enio Paulo Gianchini. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2017c. (2012)

HAN, Byung-Chul. Topologia da violência. Tradução: Enio Paulo Gianchini. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2017d. (2011)

HAN, Byung-Chul. No Enxame: Perspectivas do Digital. Tradução: Lucas Machado. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2018. (2013)

HAN, Byung-Chul. A Salvação do Belo. Tradução: Gabriel Salvi Philipson. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2019a. (2015)

HAN, Byung-Chul. Bom entretenimento: uma desconstrução da história da paixão ocidental. Tradução: Lucas Machado. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2019b. (2007)

HAN, Byung-Chul. Filosofia do zen-budismo. Tradução: Lucas Machado. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2019c. (2002)

HAN, Byung-Chul. Hiperculturalidade: Cultura e Globalização. Tradução Gabriel Salvi Philipson. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2019d. (2005)

HAN, Byung-Chul. O que é poder? Tradução: Gabriel Salvi Philipson. Editora Vozes. Petrópolis, RJ. 2019e. (2005)

HAN, Byung-Chul. Morte e Alteridade. Tradução: Lucas Machado. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2020. (2002)

HAN, Byung-Chul. Favor fechar os olhos: em busca de um outro tempo. Tradução: Lucas Machado. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2021a. (2013)

HAN, Byung-Chul. O desaparecimento dos rituais: uma topologia do presente. Tradução: Gabriel Salvi Philipson. Editora Vozes. Petrópolis, RJ. 2021b. (2019)

HAN, Byung-Chul. Sociedade Paliativa: A dor hoje. Tradução: Lucas Machado. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2021c. (2020)



[1] Freud, quando discute do narcisismo, refere-se à criança como “sua majestade – o bebê”. Aqui, faz-se um paralelo entre a majestade-bebê e a majestade-Eu dos indivíduos contemporâneos que não reconhecem limites que os diferenciem do mundo, tal qual o bebê freudiano. In.: Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

 

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