Revista Sísifo. N° 14, Julho/Dezembro 2021. ISSN 2359-3121. www.revistasisifo.com
Lucas Nascimento
Machado
Professor
Substituto de História da Filosofia pela UFRJ, Doutor em Filosofia pela USP e
atual Diretor da Associação Latino-Americana de Filosofia Intercultural
(ALAFI). Tradutor de obras, entre outros, de Byung-Chul Han e Markus Gabriel
para a Editora Vozes.
Resumo: Em nosso artigo,
faremos uma breve introdução crítica à filosofia de Byung-Chul Han. Em primeiro
lugar, argumentaremos que, para compreender o pensamento do filósofo, é
fundamental reconhecer a existência de duas fases distintas de seu pensamento:
uma fase pré Sociedade do Cansaço e uma fase a partir da mesma obra.
Tendo isso em mente, apontaremos, em primeiro lugar, quais perecem ser algumas
das ideias e interesses fundamentais que permanecem ao longo de todo o
pensamento do autor, particularmente sua oposição entre existência econômica e
existência afável, a fim de compreender como o que se altera na passagem de uma
fase para outra seria o modo com que ele articula essas ideias centrais com
outros conceitos fundamentais de sua filosofia, como os de negatividade e
positividade. Em segundo lugar, buscaremos expor algumas das principais
características do modo com que a existência econômica, de um lado, e a
existência afável, de outro, são expostos e compreendidos por Han nas
diferentes fases de sua filosofia, apontando também para os elementos latentes
de seu pensamento que levariam a essa passagem de uma fase para outra. Por fim,
concluiremos levantando algumas críticas ao modo com que Han operaria
unilateralmente com os conceitos de positividade e de negatividade para pensar
uma existência para além do capitalismo, uma existência afável, e
sugerindo outros caminhos por meio dos quais ela poderia ser pensada.
Palavras-chave: Existência Econômica,
Existência Afável, Afabilidade, Afabilidade, Negatividade e Positividade.
Abstract: In our paper,
we shall give a brief critical introduction to Byung-Chul Han's philosophy.
First, we will argue that in order to understand the philosopher's thought, it
is essential to recognize the existence of two distinct phases of his thought:
a pre Burnout Society phase and a phase from the same work onwards. With
this in mind, we will first point out what seem to be some of the central ideas
and interests that remain throughout the author's thought. In particular, we
will expose his opposition between economic and affable existence, in order to
understand how what changes in the passage from one phase to another is the way
in which he articulates these central ideas with other fundamental concepts of
his philosophy, such as those of negativity and positivity. Second, we will try
to expose some of the main characteristics of the way in which economic
existence, on the one hand, and affable existence, on the other, are exposed
and understood by Han in the different phases of his philosophy, pointing also
to the latent elements of his thought that would lead to this passage from one
phase to another. Finally, we will conclude by raising some criticisms to the
way Han would operate unilaterally with the concepts of positivity and
negativity to think an existence beyond capitalism, an affable existence, and
suggesting other paths through which it could be thought.
Keywords: Economic
Existence, Affable Existence, Affability, Negativity and Positivity.
Introdução
O filósofo sul-coreano radicado na Alemanha,
Byung-Chul Han, se tornou um dos pensadores mais discutidos da
contemporaneidade. Conhecido sobretudo pelo seu livro Sociedade do Cansaço,
as reflexões trazidas pelo filósofo acerca de nossa sociedade contemporânea têm
sido amplamente debatidas e difundidas, sobretudo no que diz respeito ao seu
modo de caracterizar a nossa sociedade como uma sociedade do desempenho,
onde o excesso de positividade levaria o indivíduo a explorar
irrestritamente a sua força produtiva e, ao mesmo tempo, ter a ilusão de, desse
modo, ser livre. Nesse contexto, a ideia de um excesso de positividade desempenha
um papel central, uma vez que é o que permite a Han analisar a sociedade
contemporânea em suas diversas dimensões como uma sociedade caracteriza pela expulsão
do outro, ou seja, pela eliminação de toda alteridade que possa fazer
frente à autoafirmação do sujeito narcísico voltado a perpetrar sua própria
existência. É essa ideia, com efeito, que permite Han estender sua crítica a
nossa sociedade às mais diversas esferas: estética, política, ética, sexualidade
ou tecnologia, para mencionar apenas alguns dos principais temas.
Nesse contexto, porém, e diante da ampla
difusão das ideias do filósofo, cujo pensamento, apesar de ter tido ampla
repercussão, ainda só começa a ser estudado e discutido, é muito fácil fazer
leituras “guarda-chuva” que, focando nas suas ideias de maior repercussão e
formulando uma interpretação genérica das mesmas, enxergam, em toda e qualquer
obra do autor, um mesmo pensamento, uma mesma crítica e uma mesma maneira de
diagnosticar problemas de nossa sociedade. Desse modo, porém, tais leituras
parecem-nos projetar uma “unidade sistemática” no pensamento do autor, que, a
nosso ver, não apenas simplificam sua filosofia, mas também a empobrecem.
Afinal, não é apenas a compreensão do autor e de suas ideias, nos diferentes
momentos de seu percurso intelectual, que correm o risco, assim, de serem
falsificados, mas também a prolificidade de suas próprias ideias, de suas
potencialidades e desdobramentos possíveis, para além daquilo que o próprio
autor consegue abarcar, só podem ser exploradas a partir do momento que
reconhecemos como um núcleo central ao seu pensamento é, ao mesmo tempo,
constantemente reformulado e rearticulado a partir de novas reflexões, novas
experiências e novos confrontos com a própria realidade histórica e social
sobre a qual o autor se debruça e a qual se propõe a pensar.
É por isso que, neste artigo, nos propomos a
fazer uma introdução crítica ao pensamento de Byung-Chul Han, onde sejam
expostas, de maneira introdutora e acessível, não apenas as principais ideias e
conceitos do autor, mas como essas ideias e conceitos se desenvolvem ao longo
do tempo, de modo que se possa falar, inclusive, de fases distintas de seu
pensamento. Com efeito, acreditamos que o percurso intelectual e filosófico
de Han pode ser dividido, pelo menos, em duas fases distintas: uma fase pré
Sociedade do Cansaço e uma fase pós Sociedade do Cansaço. A
principal diferença que caracteriza essas fases, está, argumentaremos, no registro
de crítica à sociedade capitalista feita por Han em cada uma delas, onde a
primeira fase seria caracterizada por uma crítica da negatividade, enquanto
a segunda fase, inversamente, por uma crítica da positividade. Ambas as
fases têm em comum um núcleo crítico, a saber: ambas têm por objetivo criticar
o modo de existência econômico, entendido como a forma de vida
organizada em torno da economia capitalista que têm por objetivo suprimir a
morte, propondo, em contraposição a essa forma de vida, uma forma de vida
anti-econômica, que se apresenta com sendo a exata contrafigura da primeira.
Como veremos, porém, cada fase descreve o modo
de vida econômico por meio de ferramentas conceituais muito distintas, muitas
vezes até mesmo praticamente inversas, de modo que também a maneira de descrever
a forma de vida que representaria o seu contramodelo também passa por inversões
fundamentais. Isso não nos parece ser fortuito, uma vez que, como argumentaremos
ao final do artigo, tais inversões nos parecem se dever, em larga medida, à
incapacidade de Han integrar dialeticamente as diferentes dimensões da sua
análise do modo de vida capitalista, concebendo essas diferentes dimensões não
como partes integrantes de um todo articulado, mas sim como configurações
inteiramente distintas, opostas e mesmo excludentes desse modo de vida. É aqui,
portanto, que se apresentará a dimensão “crítica” de nossa introdução: após
expormos o que nos parecem ser as principais ideias de Han e a maneira com que
elas se desenvolvem em suas duas fases distintas de pensamento, desenvolveremos
alguns apontamentos críticos que visam a indicar as lacunas, tensões e mesmos
contradições no pensamento de Han, assim como apontar alguns caminhos por meio
dos quais seria possível tanto aproveitar a riqueza de seu pensamento quanto
desenvolvê-lo mais profundamente para além daquilo que permite o uso que Han
faz de suas ferramentas conceituais.
O Núcleo Crítico: O
Capitalismo como Supressão da Morte e a Liberdade Como Relação ao Outro
Antes de passarmos, porém, à análise do
primeiro registro crítico de Han, parece-nos de suma importância apresentarmos,
em primeiro lugar, algumas das que aparentam ser, para nós, as suas principais
ideias e conceitos, aos quais ele sempre recorrerá para responder o que pode
ser visto como a questão central que mobiliza o seu pensamento filosófico: como
superar a existência econômica, enquanto forma de vida que encontra sua
expressão máxima no capitalismo contemporâneo?
Responder a essa pergunta exige, antes de
qualquer coisa, que se tenha um conceito, afinal, do que seja essa existência
econômica. E, embora a compreensão da mesma passe por deslocamentos importantes
ao longo da filosofia de Han e na transição entre seus registros distintos, um
núcleo central parece permanecer constante ao longo desses desenvolvimentos, a
saber: a concepção de que a existência econômica é uma existência voltada à
supressão da morte, a fim de preservar a si mesma e sua identidade consigo mesma.
O modo de existência econômico é, nesse sentido, um modo de existência centrado
em sua autopreservação e que, para se preservar, corta todo o vínculo
com o Outro, com a alteridade que, se estivesse disposto a acolher em si
mesmo, o levaria necessariamente à transformação de si e, em última instância,
à morte como o ponto último e o limite superior da transformação. Daí uma das
formulações mais centrais, senão a mais central, de Han sobre o capitalismo: a
de que o capitalismo “é nutrido pela crença inconsciente de que mais capital significa
menos morte” (HAN, 2021c, p. 37).[1]
Com isso, também, vemos o tipo de armação
conceitual que permanecerá central ao longo de todo o pensamento de Han em seu
recurso ao conceito de Outro e de alteridade como forma de crítica à existência
econômica e como condição de possibilidade para uma verdadeira liberdade: a
existência econômica é aquela que, para preservar a si mesma e preservar-se
idêntica a si mesma, suprime todo vínculo de sua identidade, de seu ser, com um
outro, com algo que não se encaixe e não pertença à sua identidade consigo
mesmo. É por isso que essa existência econômica precisa lutar contra a morte,
uma vez que a morte nada mais é do que aquela abertura a um outro que faria
cessar inteiramente a minha existência e a sua identidade consigo própria,
fazendo eu me tornar o outro de mim mesmo.[2] Essa luta com a morte,
porém, leva a existência econômica a banir o outro de sua relação consigo
mesma, o que, em vez de torná-la verdadeiramente livre, faz dela, ao contrário,
refém de si mesma, uma vez que Han entende, profundamente influenciado pela sua
compreensão dos conceitos de dasein, de mundo e de disposição heideggerianos
(mas, certamente, e não de modo menos importante, também por sua interpretação
do Zen Budismo[3]),
que o ser humano só é verdadeiramente livre na medida em que se relaciona com
algo outro do que si próprio, e só essa relação lhe permite, primeiramente, ser
aquilo que ele verdadeiramente é e usufruir de uma existência verdadeiramente
humana, caracterizada, fundamentalmente, por sua abertura originária ao outro. Tal
como Han formula emblematicamente em Psicopolítica:
[S]er livre significa originalmente estar
com amigos. Liberdade (Freiheit) e amigo (Freund) possuem a
mesma raiz indo-europeia. Fundamentalmente, a liberdade é uma palavra relacional.
Só nos sentimos realmente livres em um relacionamento bem-sucedido, em um feliz
“estar junto”. (HAN, 2014, p. 11)
É por isso que, para responder aquela pergunta
que colocamos inicialmente como a pergunta central do pensamento haniano –
afinal, como superar a existência econômica? – Han visará sempre
contrapor, a esse modo de existência, uma existência que seria o exato contramodelo
e a exata contrafigura da existência econômica, e que ele concebe – ao menos a
princípio – por meio do conceito de afabilidade[4].
Exata contrafigura porque, se a existência econômica era caracterizada por uma
recusa radical da morte, visando a levar um modo de existência em que se
relaciona apenas consigo própria, a existência afável (ou, no limite – uma vez
que é questionável o quanto o conceito de afável ainda será adequado para
descrever esse modo de existência no segundo registro da filosofia de Han -, anti-econômica)
será aquela que, inversamente, será caracterizada por uma abertura radical
ao outro, o que faz com que essa existência seja, de um modo
especificamente haniano, um ser-para-a-morte, no sentido de um ser que
só se realiza por meio de sua relação ao outro e, por isso, fundamentalmente,
por sua abertura e aceitação da cessação de sua própria existência, pelo
tornar-se o outro de si próprio em seu ponto de culminação[5]. A existência afável, como
uma existência que só se realiza por meio do outro, seria o contramodelo
da existência econômica, precisamente porque caracterizaria um modo de vida
em que não se faz de tudo que existe mero recurso para perpetrar e preservar a
sua própria existência, mas, pelo contrário, se experimenta a existência
como sendo nada mais do que fruir da relação ao outro que é constitutiva de mim
mesmo – uma fruição que, justamente por não visar à preservação da identidade
consigo mesmo, não demanda nenhum acúmulo de recursos, nenhum trabalho nem
nenhuma produção a fim de gerar capital que eu possa utilizar com essa
finalidade.
Acreditamos que essa descrição do núcleo de
conceitos centrais para a filosofia do Han – o de existência econômica e o de
existência afável (ou anti-econômica) e de suas relações com os conceitos de
morte, transformação e alteridade – seja válida e possa ser aplicada ao longo
de todo o percurso intelectual de Han, mesmo após a transição da primeira para
segunda fase do seu pensamento. De fato, embora as associações desses conceitos
nucleares de existência econômica e de existência afável/anti-econômica com
outros conceitos importantes da filosofia de Han passem por deslocamentos
importantes ao longo de seu pensamento – como poderemos ver a seguir -,
parece-nos que a associação entre existência econômica e supressão da morte, da
transformação e da alteridade, por um lado, e existência afável e abertura à
morte, à transformação e à alteridade, de outro, permanecerá notavelmente
constante ao longo de suas obras. O que tende a sugerir que é sobretudo nessa
articulação entre esses conceitos que Han vê o que é essencial ao modo de vida
capitalista, por um lado, e ao modo de vida que se oporia a ele como sua
superação, por outro.
Se é assim, então, o que se alteraria nesses
diferentes registros, se algo se altera, como propomos aqui? A nosso ver, o que
se altera no pensamento de Han não é tanto o núcleo central do que caracteriza
o modo de existência econômico e o modo de existência a ele oposto, mas,
sobretudo, quais seriam os modos de operação próprios à existência econômica
para dar continuidade a si própria, assim como da existência afável para romper
com esse modo de existência. Assim, para introduzirmos os diferentes
registros da filosofia de Han, temos de compreender como, em cada um deles, se
toma como paradigma conceitual que permite descrever o modo de operação da
existência econômica, de um lado, e da existência afável, de outro, conceitos
não apenas distintos, mas sobretudo inversos; no primeiro registro, se
associando a existência econômica com a negatividade e a existência
afável com a positividade,
enquanto, no segundo registro, se faz a associação inversa, ou seja, da
existência econômica com a positividade e da existência afável/anti-econômica
com a negatividade. É essa diferença notável nos modelos descritivos desses
modos de existência, e as possíveis razões para essa transição de um modelo a
outro, que pretendemos expor nas próximas sessões.
O Primeiro Registro: A Crítica da Negatividade do Si Mesmo
e Sua Superação por Meio da Afabilidade
Para compreender como Han concebe a existência
econômica e seu modo de operação na primeira fase de seu pensamento, a análise
que faz do termo economia – elemento recorrente em seus livros – pode servir
como um primeiro ponto de partida, a partir do qual se pode desdobrar os
principais elementos do pensamento de Han nesse momento de sua filosofia sobre
esse tema. A esse respeito, Han nos lembra que a casa a que o termo oikos,
do qual deriva o termo economia como “manutenção da casa”,
não é um mero espaço protegido. Ela é o
lugar da alma e da interioridade, no qual eu me aprazo, me arrolo, um espaço de
meu poder [Könnens] e conseguir [Vermögens], na qual possuo a
mim e a meu mundo. O Eu depende da possibilidade da posse e do
recolhimento. Oikos (casa) é o lugar da existência econômica. (HAN, 2019c,
p. 119)
Em outras palavras: a existência econômica é o
modo de existência preocupado com a manutenção da casa, entendido, aqui,
como a preservação do espaço no qual ela se relaciona apenas consigo própria
e com suas propriedades[6].
Ora, como podemos ver, que a existência econômica vise preservar a si mesma por
meio da manutenção da casa implica, justamente, que ela visa a estabelecer e preservar
um determinado espaço, um lugar no qual ela possa relacionar-se
apenas consigo mesma. Para que isso seja possível, porém, é preciso excluir
desse espaço tudo aquilo que pudesse levar tal existência a se confrontar
com algo distinto de si mesma e, portanto, prejudicar a sua autopreservação, a
preservação de sua identidade consigo mesma. É por meio, precisamente, da exclusão
do outro, de toda forma de alteridade desse espaço, que a existência
econômica visa a existir de modo a relacionar-se apenas consigo mesma, demarcando
e delimitando claramente aquilo que pertence ao espaço de sua relação
consigo mesma e aquilo que deve ser colocado fora e banido desse espaço de
autorrelação. É por essa razão que, no primeiro registro de crítica à
existência econômica, Han conceberá o modo de operação dessa como se dando,
fundamentalmente, pela negatividade, entendida aqui como essa operação
que estabelece limites, criando uma separação entre interior e exterior
e, assim, constituindo espaços distintos e mutuamente excludentes, a fim
de, desse modo, ser capaz de constituir um espaço do interior do qual é expulso
tudo o que é o outro de si mesma, tudo que poderia comprometer a preservação de
si e de sua própria identidade substancial (HAN, 2019c, p. 58).
Por meio dessa operação de negatividade, a
existência econômica se constitui como um Selbst, um Si,
entendido aqui, por Han, justamente, como esse modo de existência caracterizado
pela pura relação a si mesmo, da qual estaria excluída toda a relação com
qualquer forma de alteridade. A operação que a existência econômica realiza por
meio da negatividade, se estabelecendo nesse espaço de relação a si mesma e
configurando-se como um Si, (HAN, 2019c, p. 35) é, ao mesmo tempo, e de
maneira completamente indissociável disso, a operação por meio da qual se
estabelece uma distinção entre interioridade e exterioridade.
Mais especificamente, a distinção entre a interioridade do Si, como esse
espaço no qual ele se constitui como sujeito que se relaciona apenas consigo
mesmo, e a exterioridade do mundo, como o espaço no qual se encontram
todas as outras coisas, todas as outras existências que não são idênticas com
aquela que habita nesse espaço do Si e que são banidos dele para não
interferirem em sua relação consigo mesmo. O mundo é, assim, o lugar em
que se encontra, por definição, o outro por excelência (HAN, 2019c, p.
69). De fato, uma vez que o mundo é entendido como o “mundo lá fora”, sendo o lugar
em que eu me relaciono com o outro de mim mesmo, podemos dizer que, nesse
momento de sua filosofia, Han praticamente considera o mundo como o outro
por excelência, já que é nele que encontro todas as formas de alteridade -
não apenas as formas intersubjetivas, por exemplo, mas tudo que pode se colocar
como um outro para mim, desde outros seres humanos a outros animais e, por fim
às próprias coisas simplesmente (HAN, 2019c, p. 32).
É por isso que há mais um par de conceitos que
devemos entender por meio dessa concepção de Han da existência econômica por
meio de um proceder negativo, que constitui e demarca o espaço do si mesmo,
da interioridade do sujeito, do Eu, em oposição ao espaço do outro,
do mundo: o par transcendência-imanência. Ao constituir o espaço próprio
à sua existência por meio da operação da negatividade e, assim, configurar-se
como Si, a existência econômica se orientar pela busca de um espaço de
transcendência, uma vez que a transcendência, dentro dessa compreensão,
nada mais seria do que o estado do puro ser que se relaciona apenas consigo
mesmo e que, por isso mesmo, não se encontra no mundo e nas relações
mundanas. Imanência, inversamente, deve ser entendido, não como
talvez se pudesse esperar, como um outro espaço, no qual a existência
econômica se veria obrigada a se confrontar pelo outro; que esse outro espaço
exista, e que a existência econômica tenha de se confrontar com ele, não é
descartado pelo fato dela constituir um espaço de transcendência, no qual, apesar
do mundo lá fora, ela possa relacionar-se apenas consigo mesmo. Antes, e de
modo mais radical, a imanência deve ser compreendida, aqui, como a ausência
radical de demarcações que permitam a constituição de espaços que
separariam o Eu do outro, o ser do outro de si próprio, de tal maneira que,
em um regime de imanência, não resta ao sujeito nenhum espaço transcendente ao
mundo em que se relacione apenas consigo próprio, mas, pelo contrário, ele
existe desde sempre apenas no mundo, ou seja, apenas na sua relação
com o outro (HAN, 2019c, p. 22 e p. 40).
Com isso, podemos esboçar uma primeira definição
sintética da existência econômica, tal como concebida como Han nesse primeiro
registro (o registro negativo), a que pretendemos acrescentar mais camadas a
seguir, com definições cada vez mais completas, extraídas a partir da reflexão
acerca de elementos contidos nas definições anteriores: a existência
econômica é aquela que, para preservar a si mesma e para preservar sua
identidade consigo mesma, opera de modo eminentemente negativo, demarcando o
espaço de sua relação a si mesma como um espaço à parte do mundo, à parte de
tudo que seja distinto dela mesma, um espaço transcendente, no qual ela busca
se manter tanto quanto possível e o qual ela busca preservar com todos os seus
meios.
“Com todos os seus meios” – com isso, podemos
nos perguntar: mas afinal, quais são os meios pelos quais a existência
econômica poderia preservar esse seu espaço de si mesma? Eis aqui a resposta
que permite compreender, afinal, como a crítica da existência econômica, entendida
no sentido “ontológico” de que falamos, articula-se como uma crítica do
capitalismo: por meio do trabalho, como modo de proceder eminentemente
negativo em que converto o outro em capital, em recurso para a
manutenção do espaço do meu Si, para a preservação da minha identidade
consigo mesma e de suas propriedades (HAN, 2020, p.22). O trabalho é a
ferramenta fundamental por meio da qual a existência econômica pode converter a
sua relação ao outro em uma relação a si mesma, na medida em
trabalhando sobre o outro e negando-o em sua alteridade, converte-o em
capital, em recurso para a preservação de sua identidade, de seu Si,
em vez de ameaça a essa mesma identidade, que a abriria à transformação e mesmo
à morte.
Assim, podemos esboçar uma segunda definição,
mais elaborada, da existência econômica nessa primeira fase da filosofia de
Han: a existência econômica é aquela que, para preservar a si mesma e sua
identidade consigo mesma, opera de modo eminentemente negativo, em primeiro
lugar, demarcando o espaço de sua relação a si mesma como um espaço à parte do
mundo, e, em segundo lugar, trabalhando de modo a converter o que se encontra
no mundo lá fora e que poderia ameaçar a preservação de sua identidade consigo
mesma em recurso, em capital que, pelo contrário, contribui para tal
preservação. O outro, convertido em capital, se converte em um recurso para
a potencialização do Si, para o aumento do seu poder.
Com isso, acabamos chegando a ainda mais um
conceito central para Han, e para o seu modo de compreender a existência
econômica neste primeiro registro: por meio do capital, a existência
econômica visa a aumentar o seu poder, que nada mais é do que a sua capacidade
de transformar o outro em recurso para a preservação e potencialização de sua
própria existência, e, portanto, para a satisfação de sua própria vontade (HAN,
2019e, pp. 39-41). No que, pode-se entrever, há uma circularidade proposital:
com o trabalho, consigo recursos, que me dão mais poder, que, por sua vez, me
permitem ter mais capacidade de transformar o outro em recurso, em capital para
perpetuar minha existência e que, assim, aumentam ainda mais o meu poder...
Daqui, justamente, o caráter fundamentalmente acumulativo da existência
econômica e de seu trabalho, que visa à geração e ao acúmulo de capital.
O capital é aquilo que permite à existência econômica realizar a sua vontade
– vontade que nada mais é do que, fundamental e ontologicamente, vontade de
si mesma (HAN, 2019c, p.87), vontade de perpetuar a si e de potencializar e
sua própria existência e relação consigo mesma.
Com isso, podemos esboçar uma última definição,
bastante completa, da existência econômica: a existência econômica é aquela
que, para preservar a si mesma e sua identidade consigo mesma, opera de modo
eminentemente negativo, demarcando, em primeiro lugar, o espaço de sua relação
a si mesma como um espaço à parte do mundo, e, em segundo lugar, trabalhando de
modo a converter o que se encontra no mundo lá fora e que poderia ameaçar a
preservação de sua identidade consigo mesma em recurso, em capital que
contribui para tal preservação e aumenta o seu poder, ou seja, a sua
capacidade, justamente, de fazer do outro ferramenta de satisfação de sua
própria vontade.
É importante notar como essa definição nos
permite compreender muito do que está contido nas críticas de Han à existência
econômica nesse primeiro registro de crítica (como crítica da negatividade), e
que nem sempre é imediatamente claro diretamente da exposição do próprio autor:
o modo como, para Han, criticar a existência econômica não é apenas criticar o
acúmulo literal de recursos financeiros, por exemplo, mas sobretudo a forma
de vida subjacente a ele nas suas diversas formas de buscar preservar a si
mesma. E isso, quer no trabalho de luto (HAN, 2020). no qual tenta
converter a morte, como o que nega o Si, em uma afirmação ainda mais radical
dele; quer na crítica radical a toda forma de sujeito caracterizada pela
vontade (uma vez que, em última instância, toda vontade seria vontade de si (HAN,
2019c, Cap. 3.)); quer na crítica à arte ocidental como uma arte da paixão e da
dor, que trabalha em busca da experiência do transcendente e recusa
formas de arte voltadas para o aqui e agora, o entretenimento e o prazer
que se dá no mundo e como meio de socialização (HAN, 2019b); quer,
ainda, na crítica radical a toda forma de separação entre uma cultura e outra,
que se apegue a noções de originalidade ou de demarcações culturais (HAN, 2019d).
Sendo assim, podemos, então, finalmente nos
perguntar: como se pode caracterizar, nesse primeiro registro da filosofia de
Han, o modo de existência que representa a contrafigura por excelência
da existência econômica, o modo de existência afável, ou simplesmente, a afabilidade
como condição existencial fundamental e originária? Responder a essa
pergunta, tendo já respondido à pergunta sobre a caracterização da existência
econômica, prova-se uma tarefa relativamente fácil, uma vez que basta, em larga
medida, simplesmente “alterar os sinais”, invertendo a definição da existência
econômica. Desse modo, temos uma primeira caracterização da existência afável
ou da afabilidade, em termos de sua oposição à existência econômica, como a
condição existencial em que não há nenhuma preocupação em preservar-se idêntico
a si mesmo, demarcando o espaço de sua própria existência em relação ao outro,
de modo que tal existência é caracterizada, fundamentalmente, pela abertura ao
outro, abertura que faz dela um modo de existência e uma forma de vida que só
se realiza por meio da transformação e, em última instância, da morte como
decorrência necessária de um modo de existência que não se coloca como centro e
que, por isso mesmo, aceita e abraça a sua própria impermanência, em vez de
buscar se preservar (HAN, 2019c, pp. 149-150).
Dada essa primeira caracterização da existência
afável, em termos do modo de existência a que ela se opõe, podemos nos
perguntar, então, sobre como caracterizá-la, não simplesmente por meio daquilo
a que ela se opõe, mas pelo modo por meio do qual ela procede, a fim de se
realizar como o modo de existência e a forma de vida que ela é, ou seja, como
modo de vida aberto ao outro, à transformação e à morte. A esse respeito, Han
indica, em diversos momentos nessa primeira fase de sua filosofia, a ideia de
que o modo fundamental de proceder da existência é por meio de um Sim
radical ao mundo, à imanência. “Sim” que Han, sem dúvida, atrela a
um momento de negação do Si – o que não poderia ser diferente, dado o modo
como concebe a existência afável, precisamente, em oposição à existência
econômica - mas que deve ser convertido – como enfatizado no Filosofia do
Zen Budismo – em uma afirmação radical do mundo e das coisas em seu
“ser-assim” (HAN, 2019c, p.129 e p.160) o que Han caracteriza, nessa fase de
sua filosofia, como uma espécie particular de “sim”, de “aditivo”, como um “E”
afável (HAN, 2020, p. 316). Nesse contexto, podemos definir então,
“positivamente”, a existência afável como a existência que afirma o ser das
coisas tal como elas são, aceitando-as em sua alteridade em relação à sua
própria existência e acolhendo-as, ao mesmo tempo, como constitutivas de seu
próprio ser, de modo que, aqui, não há a criação, demarcação e delimitação de
nenhum espaço distinto, de nenhum lugar de transcendência.
Ora, uma vez que não há, aqui, a criação e
demarcação de espaços distintos e de um lugar de transcendência, de uma casa
para a manutenção da qual seria necessário trabalhar e
acumular capital, não há, nessa forma de vida, nenhuma vontade de
preservar-se idêntica a si mesma e, por isso mesmo, não há nenhuma forma de
trabalho ou de acúmulo de capital, nenhum esforço para transformar as coisas em
recursos para a manutenção de um lugar de transcendência da pura relação
consigo mesmo. Por isso, podemos, como no caso da existência econômica,
fornecer uma última definição consideravelmente completa da existência afável: a
existência afável é a existência que afirma o ser das coisas tal como elas são,
aceitando-as em sua alteridade em relação à sua própria existência e
acolhendo-as, ao mesmo tempo, como constitutivas de seu próprio ser, de modo
que, aqui, dado que não há a criação, demarcação e delimitação de nenhum espaço
distinto, de nenhum lugar de transcendência, também não há trabalho, uma vez
que não é necessário acumular capital que me conceda o poder de transformar o
outro em recurso de preservação de meu si mesmo e satisfaça a minha vontade de autopreservação
em uma identidade comigo mesmo da qual o outro estaria excluído.
Por meio dessa definição, conseguimos entender,
mais uma vez, muitos dos diversos enunciados que Han faz sobre a afabilidade em
oposição à existência econômica nessa primeira fase de sua filosofia, e mesmo
aqueles que parecem profundamente enigmáticos, se não entendemos a relação que
Han traça e difere entre os diversos conceitos que aparecem, aqui, tanto na
definição da existência econômica quanto na definição da existência afável: a
afirmação de que o sujeito afável é um sujeito inteiramente desprovido de
vontade (já que vontade é, segundo Han, sempre, em última instância, vontade de
si mesmo), de modo que lhe permite simplesmente experimentar as coisas
em uma condição de In-Diferença [In-Differenz](HAN, 2019c,
pp.123-125); sua afirmação de que aquele que se relaciona à morte do modo
oposto ao da existência econômica não se enluta, ou, ao menos, não chora
com a morte do outro, uma vez que o choro seria um trabalho de luto, que
visa restaurar a sensação de si mesmo, mesmo perante à morte (HAN, 2020, Cap.
IV, Seção C); sua afirmação, ainda, de que, entre um sujeito afável e o mundo,
não há separação alguma, de modo que não se pode falar nem sequer da intersecção
de ambos (pois isso ainda pressuporia que ambos ocupam, em alguma medida,
espaços diferentes), mas, antes, é preciso falar de uma completa sobreposição
do sujeito com o mundo, do sujeito com o outro, em que tudo está contido
inteiramente em tudo (HAN, 2019c, p. 69); por fim, a sua afirmação,
profundamente ligada à anterior, de que o fenômeno da globalização só poderia
ser entendido por um fenômeno de hiper, e não interculturalidade,
como a completa ausência de demarcação de espaços culturais distintos e
completa sobreposição de todas as culturas umas com as outras (HAN, 2019d,
p. 102), de modo que o sujeito dessa hiperculturalidade seria como um “turista hipercultural”
(HAN, 2019d, pp. 73-81). Todas essas afirmações, por mais estranhas e mesmo
radicais que possam parecer em um primeiro momento, tornam-se compreensíveis a partir
da definição da existência afável que fornecemos acima: a existência afável é
concebida aqui como aquela que não estabelece nenhum limite que separe ela
do outro e, por isso mesmo, acolhe inteiramente o outro em si
própria. É por isso que ela deve ser compreendida não pelo regime da negatividade,
da operação de demarcação de limites realizada pela existência econômica
a fim de se constituir como um Si, mas sim por um regime de afirmação
radical do mundo e acolhimento dele em si mesmo, e, portanto,
poderíamos dizer, de positividade.
A Transição Entre Registros: Poder
X Afabilidade
Como podemos ver, na primeira fase de sua
filosofia, Han parece ter uma concepção da existência econômica e do modo de
sua superação que muito contrasta com aquela apresentada em Sociedade do
Cansaço (HAN, 2017a). O que poderia levar a uma mudança tão radical de
perspectiva, que parece às vezes até mesmo com uma inversão completa?
Certamente, poder-se-ia explorar muitas razões contextuais, históricas ou
biográficas para explicar essa transição; afinal, Han escreve Sociedade do
Cansaço em um momento em que, com a consolidação de nossa sociedade
digital, outras perspectivas se abrem sobre o modo com que o capitalismo, e a
forma de vida que lhe é peculiar, dão continuidade à sua existência e
intensificam a sua própria produção e reprodução. Aqui, porém, gostaríamos de
apontar que, de algum modo, o germe dessa transformação também pode ser lido e
compreendido através de uma perspectiva conceitual, ou seja, por meio do
desenvolvimento do que já se sugere conceitualmente nos modos com que Han
pensa, antes de Sociedade do Cansaço, a relação entre negatividade,
positividade, Si e outro.
De fato, de uma perspectiva conceitual, tal
transição já parece se esboçar especialmente em O que é poder?, onde Han
insiste que o verdadeiro poder não é aquele que opera negativamente, por meio
da repressão ou da violência, mas sim aquele que faz com que o alter afirme
a vontade do ego por conta própria, sem ter de ser forçado a isso (HAN, 2019e,
p. 39). De acordo com Han, e diferentemente do que se costumava compreender
(arriscamos dizer: de como ele costumava compreender), o verdadeiro
poder não opera por meio de uma mera repressão, impondo limites claros que
devem assegurar a satisfação de sua vontade pela força, mas, pelo contrário, expande
o espaço de sua influência e, assim expande o seu próprio ego para
poder fazer com que o alter se conforme a ele (HAN 2019e, pp. 95-96).
Aqui, há um movimento de potencialização da própria identidade e preservação da
mesma que se dá, precisamente, pela expansão de seu campo de influência, de tal
modo que tudo aquilo que se encontra nesse campo não é forçado a servir
de recurso para satisfação da vontade do ego, mas, pelo contrário, o faz
voluntariamente, pois, inserido no espaço dessa influência, identifica a
vontade do poder com a sua própria.
Se é assim, uma pergunta perturbadora surge:
afinal, seria o poder idêntico à afabilidade, que deveria nos levar para além
da existência econômica, uma vez, que, aqui, o poder não opera de modo
puramente negativo, mas age por meio de uma expansão positiva de seus limites?
Certamente, não é esse o caso para Han, que, no mesmo livro, insiste em
distinguir entre o poder, que é caracterizado, justamente, pelo fato de, de uma
forma ou de outra, operar instituindo o lugar do si mesmo, ainda que o
faça por meio de uma expansão incessante das fronteiras que demarcam esse
lugar (HAN, 2019e, p. 173). A afabilidade, pelo contrário, de acordo com
Han, é inteiramente deslimitadora, ou seja, sua operação não é a de expandir
os limites do lugar do si mesmo (uma expansão que preserva, no centro desse
local, o Si que deve ser potencializado e realizado em sua vontade por
meio dessa expansão). Pelo contrário, sua operação fundamental é a de desfazer
inteiramente todos os limites, possibilitando, assim, uma abertura
radical ao outro, e não meramente estratégica, que constitui um tipo
de lugar e um tipo de local inteiramente diferente do local do poder (HAN, 2019e,
p.203).
O poder, por mais que opere positivamente,
afirmando a liberdade do outro, o faz de maneira estratégica, visando a,
com isso, expandir o espaço de seu Si no qual ele é o centro, e no qual
tudo existe em função da preservação e satisfação desse centro. Por isso, ele
continua, apesar de sua positividade, a operar de modo fundamentalmente
negativo, pois ainda é imprescindível, para esse poder, que ele sirva para
a preservação do lugar do seu Si e que, por isso, expulse para fora
desse lugar tudo aquilo que não se conforme (ainda que voluntariamente) à
sua vontade. A expansão dos limites não é, em outras palavras, a dissolução
dos mesmos; pelo contrário, é a maneira mais eficaz de preservar e
fortalecer essa demarcação do lugar do Si como lugar em que a existência
econômica só se relaciona verdadeiramente consigo mesma, ou seja, só se
relaciona com aquilo que satisfaz a sua vontade. O lugar do poder não é um
lugar em que há alguma verdadeira relação ao outro, pois o outro só habita esse
lugar, só “tem lugar” nele, como modo de relação do Si consigo mesmo, de
satisfação de sua própria vontade. A relação autêntica com o outro, como aquilo
que não gira em torno da minha própria existência, continua
fundamentalmente excluída desse lugar e, portanto, esse poder ainda
opera de modo fundamentalmente negativo, isso é, por meio da separação
estrita entre o lugar do poder como o lugar do Si mesmo, da relação da
existência econômica apenas consigo própria, e o mundo enquanto o outro,
isso é, enquanto o lugar e aquilo que colocaria o si em uma relação com algo
distinto de si próprio capaz de comprometer sua identidade consigo
mesmo, transformando-a ou mesmo fazendo ela cessar inteiramente (por meio da
morte)[7].
É por isso, então, que Han não identifica esse
poder com a afabilidade, pois a afabilidade, ela sim, é concebida, aqui, como a
afirmação irrestrita do outro e, portanto, como a dissolução integral
de todos os limites que separam o si do outro, o sujeito do mundo. É por
isso que Han insiste – não apenas em O que é poder?, mas também, por
exemplo, em Hiperculturalidade – que a afabilidade é caracterizada por
essa sobreposição ou justaposição absoluta do eu com o outro, por uma inteira
ausência de limites que pudessem constituir um Si como um lugar interior de
pura relação a si mesmo da existência econômica[8]. A afabilidade é, com
efeito, pensada aqui como essa condição da In-Diferença, In-Differenz,
trocadilho que Han faz com a palavra para indicar, justamente, que aquele que
existe na condição de afabilidade, existe em meio daquilo que é
diferente dele próprio – de seu outro -, ao mesmo tempo em que é indiferente
a isso, ou seja, que não é perturbado por sua existência em meio ao seu outro,
de modo que tenha que fazer qualquer coisa a esse respeito no sentido de negar
ou de se separar do outro de si mesmo[9].
Podemos ver como a concepção que Han tem da
existência econômica em O que é poder? ainda não é a mesma que ele terá
a partir do Sociedade do Cansaço – uma vez que, no primeiro, a
existência econômica ainda tem em sua base a operação fundamentalmente negativa
de demarcação de limites. Não apenas isso: aqui, a existência que se contrapõe
à econômica, a existência afável, ainda é pensada fundamentalmente pela chave
de uma afirmação radical e, portanto, de uma positividade radical,
entendida como dissolução de todos os limites que separam o eu do
outro – algo que Han passará a identificar, a partir do Sociedade do Cansaço,
não mais como a condição existencial oposta à econômica, mas, pelo contrário,
como o modo específico com que essa existência se realizaria no capitalismo
contemporâneo, sob a condição de excesso do igual (HAN, 2017a, p. 16)
ou, na sua formulação mais emblemática, de inferno do igual (HAN, 2021c,
p. 61).
Ao mesmo tempo, podemos ver como, aqui, já está
presente o germe conceitual que possibilitará, de algum modo, a
transição conceitual da primeira para a segunda fase do filósofo, que começaria
com o Sociedade do Cansaço. Afinal, por meio de sua concepção de poder
apresentada em O que é poder?, Han já abre conceitualmente a
possibilidade de conceber uma existência econômica que preserva a si própria não
apenas por meio de uma operação exclusivamente negativa, mas, igualmente,
por meio de uma operação de caráter positivo; não apenas pelo estabelecimento
de limites, mas também – ainda que apenas de modo pontual e estratégico -, por
meio de sua dissolução (mesmo que apenas para reestabelecer o limite,
agora com um alcance e jurisdição maior). É a partir desse passo conceitual na
compreensão da existência econômica que podemos melhor compreender o próximo
passo fundamental que Han dá em sua concepção, que será aquele que levará,
fundamentalmente, à transição para a segunda fase de sua filosofia, com o Sociedade
do Cansaço: o passo no qual essa existência se realizará não apenas por uma
dissolução parcial dos limites, mas, pelo contrário, pela sua
dissolução integral e, precisamente, por isso, por meio do excesso de positividade.
O Segundo Registro: O Inferno
do Igual e o Resgate da Negatividade
Com Sociedade do Cansaço, Han dá um
passo decisivo em sua filosofia: ele compreende que a existência econômica,
como modo de existência próprio à forma de vida capitalista, que visa a preservar-se
a todo custo contra a morte e contra a transformação, não operaria mais,
atualmente, por meio de mecanismos de negatividade, e, portanto, por
meio do estabelecimento de limites que separariam o eu do outro. Antes o
que se dará será exatamente o contrário: para preservar a si mesmo, tal modo de
vida dissolverá inteiramente os limites que separam a si mesmo do outro,
não para, desse modo, abrir-se a algo que possa transformá-lo em sua identidade
consigo mesmo, mas, pelo contrário, para que essa identidade se espelhe sem
limites e narcisicamente em todas as coisas (HAN, 2017a, p. 84).
Isso, porém, revela algo de fundamental para
nossa compreensão da filosofia de Han a partir de agora, e do modo com que ele
passa a conceber a relação entre eu e outro: a dissolução total de limites
não é aquilo que possibilita uma verdadeira relação ao outro, porque me
impediria de me relacionar a mim mesmo em um espaço do qual esse outro estaria
excluído. Pelo contrário: a dissolução total de limites é aquilo que
erradica, muito mais do que a operação negativa do Si, a possibilidade de toda
relação autêntica com o outro, pois faz com que, em todo o lugar, só
seja possível encontrar o igual. Se não há limites entre o eu e o outro,
então, não importa aonde se vá, não se encontrará nunca algo distinto daquilo
que já se conhecia, pois não há nenhum ponto onde o eu acabe e o outro comece;
em outras palavras, se não defino um limite a partir do qual a minha identidade
acaba e o outro começa, então, em todo lugar, encontrarei apenas
aquilo que é idêntico, que é igual a mim mesmo (HAN, 2019a, p.41). Por
isso, aqui, a positividade irrestrita, entendida como completa dissolução dos
limites que separam a minha identidade da identidade do outro, não será mais
compreendida como a positividade radical que leva à condição da afabilidade,
mas, pelo contrário, como o excesso de positividade que desemboca no inferno
do igual.
É por isso que, a partir de sua nova
compreensão do papel que a positividade – e, portanto, também a negatividade –
desempenham na relação com o outro, Han passará a conceber a existência
econômica, no modo com que ela se configura sob a égide do capitalismo
neoliberal, não mais como a existência que preserva a si mesma por meio de
operações negativas de demarcação de limites que separariam ela mesma de
seu outro, mas, pelo contrário, por meio de operações excessivamente
positivas de dissolução integral desses mesmos limites, de modo que sua identidade
não seja negada mas, pelo contrário, seja confirmada e perpetuada no outro.
A dissolução de limites serve, então, não para abraçar ao outro, mas sim para encontrar
de novo em todo lugar apenas a si mesmo. Assim, em vez de criar um campo
aberto de afabilidade, essa dissolução radical de todos os limites faz com
que tudo se torne idêntico a tudo, tudo obedeça apenas ao mesmo
imperativo de estar inteiramente e igualmente em todo o lugar e, por isso, não
encontrar, em lugar nenhum algo de verdadeiramente outro, algo que pudesse
transformar essa identidade de tudo com tudo.
Munido dessa nova compreensão da existência
econômica em sua mais nova forma, Han poderá afirmar, com base nela, que essa
forma de se perpetuar da existência econômica é extremamente mais eficaz do que
as formas anteriores, baseadas em modos negativos de autorrealização. Afinal, o
sujeito que segue o imperativo do poder (Können), e não do dever
(Sollen), não vê mais nenhum limite à sua ação, e não trabalha para
preservar-se por imposição externa, em função de um poder exterior que o
comandaria a tanto (HAN, 2017a, pp. 24-25). Pelo contrário, ele considera que o
modo de realizar aquilo que ele é, de ser verdadeiramente livre,
de realizar-se em sua existência é, justamente, afirmando
irrestritamente a sua capacidade de produzir, que ele só pode ser quem ele é se
nada nem ninguém, inclusive nem ele próprio, impuser um limite para sua
capacidade de realização de sua vontade por meio do trabalho, da
produtividade. E, assim, ele vê o imperativo de trabalhar não como
algo que lhe é imposto a partir de fora, por algum poder negativo ou repressivo
que queira forçá-lo a trabalhar para que esse poder perpetue a si
próprio, mas, pelo contrário, vê esse imperativo partir de si mesmo,
pois pensa que esse é o modo não dele realizar a vontade de um poder externo,
mas sim sua própria vontade de ser tudo que ele pode ser (HAN, 2017a,
pp. 29-30). Em outras palavras, passa-se, assim, a uma forma de vida que
perpetua, em todos os seus aspectos e dimensões, um modo de existência
econômico, pois não há mais nenhuma esfera da existência na qual eu possa ser
colocado diante de algo mais do que daquilo que é idêntico a mim mesmo e que
possa ser voltado a algo mais, portanto, do que à mera preservação dessa
identidade. O trabalho, como modo de preservação da identidade consigo mesmo,
é, assim, totalizado, e passa a determinar todas as esferas da vida
(HAN, 2017a, pp. 43-47).
Com isso em mente, podemos compreender por que,
diante da sua nova compreensão das consequências de uma dissolução total de
limites, Han buscará realizar uma recuperação radical do conceito de
negatividade, colocando-o não apenas como uma condição necessária, mas
mesmo como a condição fundamental de possibilidade de uma relação autêntica
ao outro. Afinal, deriva dessa nova compreensão da dissolução de limites
que onde não há limites, só há aquilo que é idêntico comigo mesmo e,
portanto, só o eu, não o outro. Assim, para que seja possível qualquer
relação a um outro que não seja, em última instância, idêntico a mim mesmo – a
um outro, nas palavras de Han, que seja de fato diferente, e não
meramente diverso em relação a mim mesmo –, é indispensável o
estabelecimento de limites, o processo de exclusão, de demarcação, de
ordenação, mesmo de estabelecimento de hierarquias – todos elementos
característicos, justamente, do modo lógico de proceder da negatividade. Apenas
onde há um outro fora de mim, posso me relacionar, de fato, com algo que não
seja apenas eu mesmo, que não seja idêntico a mim e, por isso, me possibilite
de fato levar uma existência que não gire em torno meramente da minha própria
identidade e de sua preservação. Nas palavras de Han: “Uma virada real para
o outro pressupõe a negatividade da interrupção” (HAN, 2017a, p. 53), ou seja,
do limite onde cessa a minha relação comigo mesmo e começa a minha relação
com o outro.
Creio não ser possível enfatizar o bastante o
quanto essa mudança de perspectiva leva a profundas transformações, mesmo
inversões radicais na maneira com que o autor aborda muitos dos temas
recorrentes em suas obras: como muda o seu diagnóstico, por exemplo, sobre o
fenômeno denominado por ele próprio de hiperculturalidade e de sua
lógica rizomática, tão elogiada antes por Han em Hiperculturalidade e,
agora, diretamente criticada por ele em O Desaparecimento dos Rituais
(HAN, 2021a, pp. 56-57)[10]; sua compreensão da
relevância estética da dor, não mais como experiência de transcendência que
busca o si (HAN, 2019b, p. 97ss.) mas, pelo contrário, como o que me abre ao
outro e me tira da condição de uma autoerótica própria à estética do liso
(HAN, 2019a, p.51ss.); seu uso da figura do “turista”, antes vista como sujeito
hipercultural descentrador da existência econômica (HAN, 2019d, p.73ss) e,
agora, visto como o sujeito que habita por excelência o “inferno do igual”
(HAN, 2017a, p. 11ss.); por fim, e talvez mais importante, como termos que
antes utilizava para descrever a condição existencial para além da forma de
vida capitalista são usados, agora, para descrever exatamente essa forma sob a
égide da sociedade do desempenho, particularmente o termo – talvez o
caso mais notável dessa inversão! – In-Diferença, In-Differenz (HAN,
2021c, p. 63)[11].
De fato, essa alteração, mesmo inversão radical
em seu diagnóstico pode nos levar a nos perguntar: como Han compreenderia
então, nesta nova fase de sua filosofia, o modo de existência que deve se
contrapor ao modo de existência econômico – aquele que ele chamava antes de afabilidade?
Como é de se esperar, tudo indica que, também
aqui, há, em larga medida, algumas inversões fundamentais (embora, verdade seja
dita, também alguns elementos essenciais se preservem). Se antes, a existência
afável era aquela que dissolvida todos os limites que separavam ela própria
do seu outro e, assim, se relacionava com ele, agora, poderíamos dizer, a
existência afável (ou, em última instância, “anti-econômica”) é aquela que se
relaciona com o outro precisamente por meio dos limites que o separam dela –
e, portanto, precisamente por meio da negatividade constitutiva dessa
relação[12].
É isso que, ao mesmo tempo, faz com que, em alguns momentos, seja questionável
se tal modo de existência aberto ao outro pode ainda apropriadamente ser
chamado de “afável”. Afinal, aqui, essa experiência de abertura é inseparável
da experiência da dor, da falta e da transcendência do
outro, experiência que resulta, precisamente, do fato de que abrir-me a essa
relação é abrir-me à relação com aquilo que se encontra além do limite da
minha própria identidade, além de mim mesmo, e, por isso, pode me levar à
transformação e ao modo de ser característico à morte, uma vez que “a
morte significa que o ser humano está em relação com o inteiramente indisponível,
com o inteiramente outro que não vem dele” (HAN, 2021c, p. 89). Assim,
podemos concluir: para Han, a partir da nova fase de sua filosofia, inaugurada
pelo Sociedade do Cansaço, só se supera a existência econômica e se
relaciona autenticamente ao outro aquele que, para ir além dos seus limites e
encontrar o outro de si próprio, precisa, porém, que esses limites subsistam
– precisa, portanto, preservar a negatividade constitutiva de sua relação ao
outro.
Conclusão: A Liberdade Como
Transição - A Afabilidade Para Além da Positividade ou Negatividade
A princípio, o mero fato de que Han altera, por
assim dizer, o registro de sua crítica à existência econômica, passando
de uma crítica da negatividade de uma de suas formas para a crítica do excesso
de positividade de sua forma mais recente, não precisaria, por si mesmo,
apontar nenhuma inconsistência no pensamento do autor. Afinal, Han tem
consciência de que há uma transição história de uma forma da existência
econômica para outra, daquela que habita a sociedade disciplinar para
aquela que habita a sociedade do desempenho. Que ele critique, em
diferentes momentos, e de diferentes formas, cada um desses modelos de
existência econômica diferentemente, segundo suas características próprias, não
consistiria, por si mesmo, em nenhuma objeção ao autor.
Ocorre, porém, que, como esperamos ter ao menos
indicado de modo suficientemente claro, não é apenas o registro de crítica que
muda; muda também, fundamentalmente, a concepção do modo de existência que
se contraporia à existência econômica. Muda tanto que, como vimos, aquilo
que Han antes atribuía à existência afável passa a ser atribuído, agora, à
forma mais recente da existência econômica. Não apenas isso, porém; também as
críticas que ele fazia antes à negatividade, como se ela fosse inseparável do
modo de existência econômico e o seu mecanismo par excellence de
autopreservação, passam a ser, muitas vezes, praticamente invertidas, de modo
que não apenas se afirma que há uma outra forma de existência econômica que não
se pauta pela negatividade, mas pela positividade, mas se afirma, também, que
aquelas formas de negatividade (a dor, a transcendência, a limitação...),
criticadas antes como se fossem indissociáveis da existência econômica, como se
fossem o modo próprio de constituição de uma identidade rígida consigo mesmo, são
como que o único caminho por meio do qual é possível se abrir a uma
verdadeira relação, a uma relação transformadora com o outro. Não se trata,
portanto, de uma mera mudança de registro; se trata também, fundamentalmente,
de uma mudança de diagnóstico, em que se passa a considerar não a
positividade, mas a negatividade como constitutiva da relação ao outro e, por
isso, da verdadeira liberdade, que só pode se realizar por meio do outro.
É por isso que, a nosso ver, um dos principais
problemas e dificuldades conceituais no pensamento de Han está na
maneira, um tanto unilateral, com a qual pensa os conceitos de positividade e
de negatividade, e faz eles corresponderem ou bem à existência econômica, ou
bem à existência afável. Dessa maneira, Han parece ignorar, em primeiro lugar,
a possibilidade de haver uma dialética constitutiva entre positividade e
negatividade no seio da existência econômica. De fato, parece-nos ser isso
que o impede de ver como, ainda hoje, a negatividade de certas formas de poder é
fundamental, não apenas para a perpetuação da nossa sociedade capitalista
contemporânea, mas mesmo para que o poder se exerça nela também em seu
excesso de positividade (o que, embora não possamos explorar mais
detidamente aqui, podemos sintetizar pela lembrança de que a necropolítica
(MBEMBE, 2020) é a outra face da psicopolítica (HAN, 2018), como forma
de poder característica, segundo Han, da sociedade do desempenho e do excesso
de positividade). Em segundo lugar, ele parece ignorar o quanto uma outra
dialética entre positividade e negatividade talvez fosse central para poder
pensar a condição de afabilidade como modo de existência anti-econômico, uma
dialética que abriria a uma outra concepção de liberdade que não a
concepção que norteia a subjetividade neoliberal que é algo de suas
críticas. Nesse sentido, uma passagem em particular de Psicopolítica nos
parece particularmente significativa:
A liberdade terá sido episódica. Um
episódio no sentimento de entreato, de conexão entre partes. Esse sentimento de
liberdade se instaura na passagem de uma forma de vida à outra até que
esta também se mostre como um modo de coerção. Assim, uma nova forma de
submissão sucede à libertação. É esse o destino do sujeito, que literalmente
significa ‘estar submetido’. (HAN, 2018, p. 9, grifos nossos)
É curioso para nós que, ao escrever essas
linhas, Han não tenha pensado o quanto a ideia de passagem poderia ser
chave não apenas para pensar como ou por que a liberdade cessaria, mas,
sobretudo, de que modo ela poderia se realizar em uma condição efetiva de afabilidade.
Em certo sentido, parece-nos ser possível depreender, da exposição de Han da
existência econômica, que ela é caracterizada, não importa em qual registro,
por uma identidade rígida, ou seja, por uma rigidez da forma, que
a impede, justamente, de se transformar, de passar a uma nova forma de vida.
Importa à existência econômica preservar a sua identidade consigo mesma, ao
continuar existindo sempre da mesma forma.
Ora, mas, se isso é verdade, importa, para a
preservação dessa existência, não tanto que ela proceda de modo negativo ou de
modo positivo, mas que, ao fazê-lo, enrijeça-se em sua forma. Esse
enrijecimento, porém, ocorrerá sempre onde ela operar de modo unilateralmente
negativo ou unilateralmente positivo. No primeiro caso, ela se
constituirá em um Si enrijecido, a forma de um centro centrador que trabalha
para exercer seu poder sobre os outros; no segundo, em um inferno do igual
igualmente enrijecido, na forma rígida de uma completa ausência de formas
distintivas que trabalha para performar cada vez mais irrestritamente a sua
identidade consigo mesmo. O que nos mostra, em outras palavras, que quer a
positividade, quer a negatividade, como formas de proceder existenciais,
quando se realizam com a exclusão da forma oposta, se enrijecem, e,
nesse enrijecimento, perdem a relação ao outro, convertendo-se, assim,
em uma existência econômica, em um instrumento de perpetuação, portanto,
do modo de vida capitalista. É por isso que, para existir de modo
efetivamente afável, de modo efetivamente livre, é preciso existir na
transição. Um modo de vida afável seria, portanto, dentro dessa concepção,
aquele modo que só pode se relacionar verdadeiramente com o outro e ser, por
meio dessa relação, verdadeiramente livre, porque ele não toma uma forma
fixa. E isso, não no sentido de ser infinitamente flexível – o que seria
apenas o inferno do igual, que é, ele mesmo, a forma fixa da ausência de
formas distintivas -, mas no sentido de manter uma relação entre
negatividade e positividade, entre limites e dissolução dos mesmos, que permita
a transição entre diferentes modos de vida, entre diferentes atitudes
existenciais e, assim, não se identificar rigidamente com qualquer modo de
existência – identificação que levaria a buscar preservar esse modo de
existência a todo custo e se tornar, assim, uma existência econômica. No
que é difícil não ser levado a recordar as palavras de Marx e Engels, quando
afirmavam que
Logo que o trabalho começa a ser
distribuído, cada um passa a ter um campo de atividade exclusivo e determinado,
que lhe é imposto e ao qual não pode escapar; o indivíduo é caçador, pescador,
pastor ou crítico, e assim deve permanecer se não quiser perder seu meio de
vida – ao passo que, na sociedade comunista, onde cada um não tem um campo de
atividade exclusivo, mas pode aperfeiçoar-se em todos os ramos que lhe agradam,
a sociedade regula a produção geral e me confere, assim, a possibilidade de
hoje fazer isto, amanhã aquilo, de caçar pela manhã, pescar à tarde, à noite
dedicar-me à criação de gado, criticar após o jantar, exatamente de acordo com
a minha vontade, sem que eu jamais me torne caçador, pescador, pastor ou
crítico. (MARX e ENGELS, 2014, pp. 37-38, grifos nossos).
É, em
outras palavras, no livre jogo entre positividade e negatividade que se
abre o campo no qual se pode, efetivamente, existir afavelmente, jamais
se identificando inteiramente com uma única forma de existir e, por isso,
podendo efetivamente passar de uma forma a outra, e, nessa passagem,
encontrando a verdadeira liberdade. Em suma: se Han tem toda a razão de que, na
passagem de uma forma de vida a outra, a outra acaba se mostrando como um modo
de coerção, é porque a liberdade não deve ser encontrada na forma de vida,
mas, efetivamente, na possibilidade de transição entre formas de vida e,
por fim, na possibilidade de transição também da vida para a morte, como
condição indispensável – como Han compreendeu muito bem – para que a própria
vida não se enrijeça.
Referências
Bibliográficas:
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Ideologia Alemã. Tradução: Rubens Enderle, Nélio Schneider e
Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2014.
MBEMBE,
Achille. Necropolítica. Tradução: Renata Santini. São Paulo: n-1
edições, 2020.
[1] A esse respeito, cf. também HAN, 2020,
p. 335: “[m]ais de poder é experimentado como menos de morte. O sobrevivente
acumula o poder como um capital, a fim de escapar à própria morte, à finitude.
Morte, poder e capital estruturam a economia da sobrevivência: “A morte como
ameaça é a moeda do poder. É fácil colocar moeda em cima de moeda aqui e
coletar um capital enorme.”
[2] Cf. HAN, 2020, pp. 356-357, para uma
indicação disso na primeira fase do pensamento de Han, e HAN, 2021c, p. 37,
para uma indicação disso em sua segunda fase.
[3] HAN, 2019c.
[4] Optamos, aqui, por traduzir o conceito
de Han de Freundlichkeit por afabilidade, a tradução que
predomina na maior parte das obras do filósofo traduzidas por nós.
Momentaneamente, em Morte e Alteridade, arriscamos substituir essa
tradução pela tradução por “amabilidade”, que nos parecia, a princípio, mais
imediatamente clara. Porém, parece-nos que não apenas o termo afabilidade foi
mais bem-sucedido em se consolidar como tradução do termo, como também preserva
mais algo, justamente, do caráter “singular” que esse conceito tem para Han, de
modo que optamos, por fim, por voltar a essa tradução como nossa opção de
preferência.
[5] Cf. HAN, 2020, p. 355.
[6] Ou seja, com o que constitui a sua
identidade e que, precisamente por isso, ela visa a preservar, a fim de se
preservar idêntica a si mesma.
[7] Daí que Han afirme que o lugar da
“afabilidade” (traduzida por “bondade” na versão brasileira de O que é
poder?) é a localização em que “o poder nunca estará totalmente
seguro” (HAN, 2019e, p. 203).
[8] Nas palavras de Han: “Hipercultural é a
justaposição sem distância proxêmica de diferentes formas culturais” (HAN, 2019e,
p. 102)
[9] “O vazio é uma in-diferença amigável,
na qual aquele que vê é, ao mesmo tempo, o que é visto: “O burro vê no poço e o
poço no burro. O pássaro vê na flor e a flor vê no pássaro. Isso tudo é a
‘reunião [Sammlung] no despertar’. A uma criatura está presente em todas as
presenças e todas as presenças aparecem na uma criatura.” O pássaro é também a flor; a flor é também o
pássaro. O vazio é o aberto que permite uma penetração recíproca. Ele estimula
a afabilidade. O um ente espelha o todo em si. E o todo mora no um ente. Nada
se recolhe em um para-si isolado.” (HAN, 2019c, pp. 63-64).
[10]
Ainda a esse respeito, comparar, também, o elogio que Han faz da lógica
rizomática da hiperculturalidade no livro de mesmo nome (HAN, 2019d, p. 55) e a
crítica severa feita por ele a essa mesma lógica em HAN, 2017b, p. 219ss.
[11]
Algo semelhante ocorre com outro termo, de função semelhante ao termo
“In-Diferença”, a saber, o de Equi-valência [Gleich-Gültigkeit].
Comparar, a esse respeito, o uso que Han faz do termo em HAN, 2019c, p. 125, e
o uso que faz exatamente do mesmo termo – também com o mesmo hífen – em
HAN, 2021c, p. 64.
[12]
O que também é inseparável, por sua vez, da mudança e inversão cada vez mais
profunda do diagnóstico que Han faz da filosofia de Hegel. Comparar, a esse
respeito, particularmente o que Han diz sobre essa em Filosofia do Zen
Budismo (HAN, 2019c, Cap. 1), e o que diz sobre ela em Favor Fechar Os
Olhos (HAN, 2021b) – que poderia muito bem ser chamado de Apologia de
Hegel – ou ainda em A Salvação do Belo (HAN, 2019a, pp. 77-78).
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