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Controle Psicopolítico e a Ascensão de Dados: uma análise a partir de Byung-Chul Han

Revista Sísifo. N° 14, Julho/Dezembro 2021. ISSN 2359-3121. www.revistasisifo.com



Augusto Jobim do Amaral

Professor dos Programas de Pós-Graduação em Filosofia e em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

 

Mauricio Dal Castel

Mestre em Filosofia e Especialista em Ciências Penais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Advogado.

 

Resumo: A ascensão dos dados na sociedade contemporânea surge como um fator impactante em diversas dimensões da vida social. Tendo como pano de fundo o conceito de psicopolítica na obra de Byung-Chul Han – desde seus fundamentos, evolução e consequências como novo paradigma do poder –, neste recorte, o ensaio propõe realizar uma análise sobre um dos principais modos de exercício deste poder psicopolítico: o big data. Ao possibilitar o processamento massivo de dados, em uma velocidade até então inimaginável, ele funciona como ferramenta ideal para o desenvolvimento de novas formas de controle, provendo a eficiência, agilidade e precisão necessárias para o uso indiscriminado dos dados produzidos para fins de acúmulo de capital. Deve-se ainda refletir sobre a dinâmica que lhe confere legitimação, ou seja, uma espécie de “dataísmo” em que os dados e seu processamento por algoritmos e tecnologias de big data produzem uma forma de razão mais elevada que desencadeia seu uso desenfreado na direção de uma razão algorítmica. Assim, os dataísmos colaboram intensamente com o psicopoder ao delegarem o máximo de atividades e informações a tecnologias de processamento de dados, depositando sua crença na tecnologia como forma de aprimoramento da vida humana.

Palavras-Chave: Psicopolítica. Byung-Chul Han. Controle social. Big data.

 

Abstract: The rise of data in contemporary society emerges as an impacting factor in several dimensions of social life. Having as a background the concept of psychopolitics in the work of Byung-Chul Han – from its foundations, evolution and consequences as a new paradigm of power –, in this clipping, the essay proposes to carry out an analysis of one of the main ways of exercising this psychopolitical power: the big data. By enabling massive data processing, at a speed hitherto unimaginable, it works as an ideal tool for the development of new forms of control, providing the efficiency, agility and precision necessary for the indiscriminate use of the data produced for the purpose of capital accumulation. It is also necessary to reflect on the dynamics that give it legitimacy, that is, a kind of “dataism” in which data and its processing by big data algorithms and technologies produce a higher form of reason that triggers its unbridled use in the direction of an algorithmic reason. Thus, dataisms collaborate intensely with psychopower by delegating the maximum of activities and information to data processing technologies, depositing their belief in technology as a way of improving human life.

Keywords: Psychopolitics. Byung-Chul Han. Social control. Big data.

 

 

Introdução

 

O capital de outrora, como fora observado por Marx na sua principal obra[1], funcionava a partir de um modelo caracterizado, primordialmente, pelo surgimento das primeiras máquinas mecânicas de produção de bens de consumo de massa e de alimentos processados e industrializados. No entanto, contemporaneamente, pode-se dizer que o capital teria assumido uma forma mais orgânica. Para Yuk Hui (2020, p. 116), essa nova faceta do capital é levada a cabo por máquinas informacionais equipadas com algoritmos complexos, cujo combustível, que outrora, na produção industrial identificada por Marx, era o carvão, agora é a informação, cuja fonte são os dados. Esta capacidade de processamento de dados e sua transformação em informação é que confere a capacidade destes modelos recursivos estarem em todo lugar e serem eficientes. A função orgânica do capital refere-se, sobretudo, a suas capacidades autorreferencial e retroalimentar: quanto maior a capacidade de processamento de dados, maior a capacidade de obtenção de dados e, portanto, maior o acúmulo de capital.[2] Além disso, através de técnicas de machine learning, os algoritmos aperfeiçoam-se de forma autônoma, imitando organismos biológicos. A tendência antevista por Marx permanece, alteram-se, por assim dizer, as formas de funcionamento e de acumulação do capital.

Byung-Chul Han, por sua vez, identifica, na crescente “euforia dos dados”, uma das razões que possibilitam sua ascensão vertiginosa e a expansão onipresente no cotidiano. Para o autor, não somente a tendência autorreferencial e retroalimentar do capital sustenta a ascensão dos dados, mas também a própria subjetividade do sujeito neoliberal é peça fundamental deste fenômeno. Os viciados em dados, como denomina o autor, fornecem o material humano e, simultaneamente, a rede de consumo necessários e aptos a possibilitar a existência e persistência da situação. Segundo o filósofo sul-coreano:

 

Hoje se coleta dados para toda e qualquer finalidade. Não são somente a Agência de Segurança Nacional estadunidense, a Acxiom, o Google ou o Facebook que possuem uma fome desenfreada por dados. Os adeptos do Quantified Self também são viciados em dados. Equipam seus corpos com sensores que registram automaticamente todos os parâmetros corporais. Mede-se tudo, da temperatura do corpo, ciclos do sono, entrada e perda de calorias, perfil de atividade e até mesmo ondas cerebrais. Até durante a meditação os batimentos cardíacos são protocolados. Mesmo o que acontece durante o descanso conta, portanto, para o desempenho e eficiência, o que na verdade é um paradoxo (HAN, 2021a, pp. 72-73).

 

          A partir da percepção de que os dados e sua coleta massiva subjugam o sujeito ao imperativo da transparência que afeta virtualmente todos os âmbitos da vida, voluntariamente ou não, Han define este fenômeno como “protocolamento total da vida”, categoria estreitamente vinculada e até convergente com a do Quantified Self[3]. O protocolamento total da vida consiste na catalogação virtual de todas as atividades desenvolvidas por determinado indivíduo, da construção de perfis psicológicos, da aferição de preferências como restaurantes favoritos, artistas prediletos, roupas e acessórios favoritos e até mesmo dados sensíveis como religião, orientação sexual e etnia, que são perfilados e acessíveis aos detentores destas informações. “Todo clique que eu faço é salvo. Todo passo que eu faço é rastreável. Deixamos rastros em todo lugar”, alerta Han (2017a, 121-122).

          Segundo Vicente Ordóñez Roig (2018, 759-771), vivemos em um momento de superprodução incessante, em que objetos de todas as espécies invadem constantemente nossas realidades física e virtual; alguns destes objetos são tangíveis, ocupam um espaço determinado e limitado, outros, contudo, são intangíveis, armazenam-se em uma rede informática interconectada que se distribui através de praticamente todos os computadores e dispositivos eletrônicos, de smartphones a videogames, até a geladeiras “inteligentes”, dispersados pelo planeta, em um protocolo de comunicação digital. Este material aglutina-se e forma uma espiral gigantesca e fantasmagórica de informação que, apesar de sua intangibilidade, consiste na forma hegemônica de transmissão de informações em âmbito global. Os objetos intangíveis, digitais e portadores de informação assim são justamente os dados.

A ascensão dos dados na sociedade contemporânea surge como um fator impactante em diversas dimensões da vida social. Tendo como pano de fundo o conceito de psicopolítica na obra de Byung-Chul Han – desde seus fundamentos, evolução e consequências como novo paradigma do poder –, neste recorte, o ensaio propõe realizar uma análise sobre um dos principais modos de exercício deste poder psicopolítico: o big data. Ao possibilitar o processamento massivo de dados, em uma velocidade até então inimaginável, ele funciona como ferramenta ideal para o desenvolvimento de novas formas de controle, provendo a eficiência, agilidade e precisão necessárias para o uso indiscriminado dos dados produzidos para fins de acúmulo de capital. Deve-se ainda refletir sobre a dinâmica que lhe confere legitimação, ou seja, uma espécie de “dataísmo” em que os dados e seu processamento por algoritmos e tecnologias de big data produzem uma forma de razão mais elevada que desencadeia seu uso desenfreado na direção de uma razão algorítmica. Assim, os dataísmos colaboram intensamente com o psicopoder ao delegarem o máximo de atividades e informações a tecnologias de processamento de dados, depositando sua crença na tecnologia como forma de aprimoramento da vida humana.

 

O big data e o protocolamento total da vida

 

O termo “big data” surgiu no ano de 2001, quando o analista Doug Laney assim o cunhou para definir as novas tecnologias de armazenamento e processamento de dados, diferentes das tecnologias de processamento existentes até então, incapazes de processar uma quantidade massiva de dados. Para definir e delimitar as características que concederiam o status de “new data technology” a determinado software ou algoritmo de processamento de dados, Laney criou a técnica dos “3 Vs do big data”. Os 3 Vs do big data, características essenciais para a definição desta tecnologia, consistem na capacidade de processo em alto volume (high volume), em alta velocidade (high velocity) e de alta variedade (high variety) de informações (RIVEIRA, 2020).

Segundo o glossário de informação da tecnologia Gartner Glossary (2021), onde Doug Laney introduziu o conceito, o big data consiste em:

 

[...] ativos de informação de alto volume, alta velocidade e/ou alta variedade que exigem formas inovadoras e econômicas de processamento de informações que permitem visão aprimorada, tomada de decisão e automação de processos.[4]

 

Nos últimos anos, além dos tradicionais 3 Vs de Doug Laney, mais dois Vs foram incorporados ao rol de características definidoras do big data: valor (value) e veracidade (veracity). Para a companhia Oracle Corporation (2021), multinacional que atua na área de computação e informática, com desenvolvimento de bancos de dados e softwares corporativos, além de serviços de armazenamento de dados em nuvem, na sua definição oficial da tecnologia, o big data consiste em:

 

[...] conjuntos de dados maiores e mais complexos, especialmente de novas fontes de dados. Esses conjuntos de dados são tão volumosos que o software de processamento de dados tradicional simplesmente não consegue gerenciá-los. Mas esses enormes volumes de dados podem ser usados ​​para resolver problemas de negócios que você não seria capaz de resolver antes.[5]

 

Não obstante o conceito de big data oferecido pela companhia vir carregado de seus interesses comerciais (“esses enormes volumes de dados podem ser usados para resolver problemas de negócios que vocês não seriam capazes de resolver antes”), a conceituação da Oracle oferece a perspectiva de suas finalidades técnicas e empresariais possibilitadas pelo big data.

Por outro lado, estabelecido o conceito técnico de big data, aquele criado e empregado pela comunidade de profissionais da informática, torna-se necessário o retorno ao pensamento crítico sobre esta tecnologia na obra de Byung-Chul Han.

Se aludimos antes ao “protocolamento total da vida”[6] – categoria segundo a qual a quantidade massiva de informações e dados hoje disponíveis e disponibilizados através, principalmente, da internet, proporcionaria uma abrangência tamanha de seu escopo que seria, e de fato é, capaz de alcançar virtualmente todos os aspectos da vida –, não paremos por aí. A quantidade de dados de toda natureza imaginável tem o potencial de realizar um protocolamento generalizado do mundo. Toda sorte de informação é coletada e armazenada, 24 horas por dia, 7 dias por semana, no mundo inteiro, seja por Estados-nações, empresas privadas ou indivíduos privados.

Para Han, o protocolamento total da vida humana através da extração ininterrupta de dados, proporcionada até mesmo pelas atividades mais banais, é característica central da sociedade da transparência, servindo de instrumento para sua consumação. Han afirma que:

 

A internet das coisas realiza e conclui simultaneamente a sociedade da transparência, que se tornou indistinguível de uma sociedade de controle total. Observamos as coisas que nos cercam e elas nos observam. Enviam informações sem parar sobre o que fazemos e o que deixamos de fazer. A geladeira, por exemplo, conhece e avisa sobre nossos hábitos alimentares. A escova de dentes conectada, sobre nossa higiene dentária. As coisas operam conjunta e ativamente no registro total da vida. A sociedade do controle digital também transforma os óculos de dados em uma câmera de vigilância, e o smartphone em um grampo de escuta secreta. [...]

No lugar do Big Brother, aparece o big data. O registro total e ininterrupto da vida realiza e executa a sociedade da transparência (HAN, 2021a, pp. 52-53).

 

          O big data tentará significar, ao fim e ao cabo, a completa manipulação e previsibilidade do futuro, através da possibilidade de previsão e do prognóstico do comportamento humano a partir de sua instrumentalização como ferramenta de predição[7]. O big data, diz Han, funciona como instrumento psicopolítico capaz de manipular as pessoas como marionetes ao intervir na psique humana e influenciá-la sem que elas saibam, indicando o fim da vontade livre[8] como a conhecemos (HAN, 2021a, p. 40).

          Não faltarão os arautos da inevitabilidade da ascensão do big data como ferramenta de governo da população[9]. Klaus Schwab (2016, pp. 133-134) sustenta que a tecnologia permite tomada de decisão de forma mais rápida e eficiente[10], além de prover uma abrangência de aplicações industriais cada vez maior e proporcionar inovadoras formas de prover serviços, públicos e privados a cidadãos e consumidores. Segundo ele, a utilização do big data pelo setor público proporcionaria efeitos benéficos indiretos, além daqueles descritos pelos 3 Vs de Laney, como maior confiabilidade das decisões políticas, redução da burocracia, diminuição da complexidade para resolução de problemas inerentes ao exercício da vida civil, diminuição de custos e maior disponibilidade de dados, quantitativa e qualitativamente, para a inovação tecnológica. Assim, quanto maior o emprego do big data, maior será a capacidade de compreensão e gerenciamento de informações e dados através desta tecnologia, gerando, consequente, seu aprimoramento exponencial.

          Maior lucidez nos impõe, contudo, como lembra Han (2018a, pp. 36-37), que hoje não somos mais “destinatários e consumidores passivos de informação”, informação essa essencialmente diversa das formas tradicionais de informação midiática ou transmitidas pela cultura e pela educação formal. Pelo contrário, hoje somos, ao mesmo tempo, consumidores e produtores da informação. A participação do sujeito tornou-se ativa e necessária para a produção de informação, agora constituída sob o signo do dado. A informação transformada em dado é passível de processamento e reaproveitamento para outros fins que não aqueles aos quais inicialmente se propunha. A participação ativa, mas não necessariamente voluntária, na produção de informação encontra finalidades, divulgadas ou não, as mais diversas o possível. Aplicativos de e-mail podem rastrear o itinerário diário do sujeito e recomendar-lhe restaurantes na vizinhança ou servir para a comprovação de sua participação ou não em um crime. A simultaneidade do papel do sujeito como produtor e consumidor aumenta exponencialmente a quantidade de informação disponível. Diante dessa crescente disponibilidade de informações e dados, somente tecnologias praticamente autônomas, com capacidade de processamento de dados altíssima, têm capacidade de dar conta de tamanho volume informacional. Esta capacidade de armazenamento e processamento de dados, no entanto, não significa mais liberdade, mas pelo contrário, em um cerceamento absoluto da vontade livre. Para Yuval Harari (2016, p. 387), no mesmo sentido de diversos outros pensadores da tecnologia, a demanda por dados retroalimenta-se partindo do plano individual. O indivíduo é instigado a todo momento a produzir e consumir quantidades cada vez maiores. Por decorrência, seus pares também o são, já que o indivíduo, buscando compartilhar, acaba inundando as pessoas à sua volta com mais informações e, de igual forma, sendo inundado também com informações dos demais, faz surgir um ciclo perpétuo de produção e consumo de dados. Segundo Han (2018b, pp. 83-85):

 

A crença na mensurabilidade e na quantificabilidade da vida domina toda a era digital. O quantified self também reverencia essa crença. O corpo é equipado com sensores que registram dados automaticamente. São medidos a temperatura corporal, os níveis de glicose no sangue, a ingestão e o consumo de calorias, os deslocamentos ou os níveis de gordura corporal. Durante a meditação os batimentos cardíacos são medidos. Até mesmo nos momentos de repouso o desempenho e a eficiência têm importância. Estados de ânimo, sensações e atividades cotidianas também são registrados. O desempenho corporal e mental deve ser melhorado através da autoaferição e do autocontrole. [...]

O lema do quantified self é: Self knowledge through numbers («autoconhecimento através de números»). [...]

O sujeito autoexplorador traz consigo um campo de trabalhos forçados, no qual é ao mesmo tempo carrasco e vítima. Como sujeito que expõe e supervisiona a si próprio, ele carrega consigo um pan-óptico no qual é, de uma só vez, o guarda e o interno. O sujeito digitalizado e conectado é um pan-óptico de si mesmo. Dessa maneira, o monitoramento é delegado a todos os indivíduos.

 

 

          Se tudo é previsível e controlável, todas as possibilidades futuras encontram-se inacessíveis aos seres humanos, uma vez que a sua liberdade criadora do futuro desaparece. O big data é incapaz, contudo, de perceber e distinguir aquilo que é especificamente humano, singular, único, permeado de nuances, pois é estatístico e probabilístico, alimentado por dados que utiliza para interpretar o mundo. Ao humano, porém, a realidade apresenta-se e é por ele construída de forma diversa, imprevisível em grande medida, naquilo que é estatisticamente improvável, singular, característico de seu ímpeto criador. Justamente por isso, anuncia-se o fim da vontade livre humana: quando tudo é controlado e conhecido de antemão, a liberdade e espontaneidade do agir humano são fulminados (GALPARSO, 2017, pp. 25-43).

          O big data é capaz, inclusive, de prever desejos dos quais o sujeito sequer tem consciência. Indo além da previsibilidade do comportamento, o big data ostenta a capacidade de moldá-lo de forma despercebida pelo indivíduo manipulado. Isso é possível, primeiramente, em decorrência da estratificação massiva de dados privados, fartos o suficiente a proporcionar aos algoritmos responsáveis pelo seu processamento um acesso a detalhes particulares da vida de determinada pessoa, uma análise minuciosa de sua personalidade, de suas necessidades e de seus desejos. Assim, comportamentos possíveis tornam-se prováveis (e desejáveis na medida em que servem ao capital), servindo o big data como ferramenta que, devidamente instrumentalizada, pode ser convertida para fins alheios à vontade humana. Toda esta capacidade proporciona a possibilidade e concretização de exploração da vontade e do desejo humanos, teoricamente livres, mas condicionados pelo big data (HAN, 2018b, p. 88). Segundo Han, a quantidade de dados angariada pelas tecnologias de big data atualmente contempla uma gama de informações sobre o indivíduo maior do que todo o autoconhecimento que ele julga ter de si mesmo. Aduz o autor:

 

Hoje, cada clique que damos e cada termo que pesquisamos ficam salvos. Cada passo na rede é observado e registrado. Nossa vida é completamente reproduzida na rede digital. Os nossos hábitos digitais proporcionam uma representação muito mais exata do nosso caráter, e nossa alma, talvez até mais precisa ou mais completa do que a imagem que fazemos de nós mesmos.

Hoje, o número de endereços na web é praticamente ilimitado. Assim, é possível fornecer a cada objeto de uso um endereço internet. As próprias coisas se tornam emissoras ativas de informações: sobre a nossa vida, nosso fazer, nossos costumes. A expansão da internet das pessoas (web 2.0) para a internet das coisas (web 3.0) completa a sociedade do controle digital. A web 3.0 torna possível um registro total da vida. Agora também somos monitorados pelas coisas que utilizamos cotidianamente (HAN, 2018b, pp. 85-86).

 

A expansão do big data sobre todos os âmbitos da vida privada não se deve mais, contudo, apenas à voluntariedade humana de fornecer informações e dados gratuitamente, expondo-se e comunicando-se a partir da internet, como primeiramente descrito por Byung-Chul Han. A exposição voluntária serviu e ainda serve de fonte inesgotável de obtenção de dados, ou de superávit comportamental para Zuboff, porém não consiste mais na única e principal fonte de extração de dados. Na citação anterior, Han já adverte sobre a sobreposição da internet das coisas (web 3.0) sobre a precedente internet das pessoas (web 2.0). Hoje, com a expansão da internet para além do ambiente computacional, a vigilância e a extração de dados foram expandidas para níveis até então impensáveis, recaindo sobre aspectos da vida humana inimagináveis.

          A partir deste poder silencioso[11], que atravessa os sujeitos, característica do poder identificada por Deleuze nos primórdios da sociedade de controle[12], que será possível a solidificação daquilo que Byung-Chul Han denominou de psicopolítica.[13] O big data consiste na ferramenta que tornou possível o acesso virtualmente irrestrito a aspectos não só da vida humana, mas da própria mente humana, servindo de instrumento para a predição de comportamentos, o condicionamento de condutas desejáveis (aos detentores do superávit comportamental), e o controle praticamente absoluto e despercebido, confundido com a própria noção de liberdade, do ser humano.

 

Dataísmo: a religião do culto aos dados

 

          O termo “dataísmo” surgiu no ano de 2013, mais precisamente em 4 de fevereiro, quando o comentarista político do The New York Times, David Brooks, pioneiramente o utilizou em seu artigo para o periódico intitulado The Philosophy of Data. No texto, Brooks (2013) apresenta uma perspectiva otimista sobre a ascensão do big data em atividades profissionais como as análises política, esportiva e educacional, nas quais a leitura estatística obtida através de uma quantidade massiva de dados sobre essas atividades e processada por tecnologias de big data possibilitariam a tomada de decisões de forma melhor informada e, portanto, melhor orientada, privilegiando escolhas racionais em detrimento de escolhas emocionais ou intuitivas. No artigo, o autor apresenta o dataísmo como a filosofia ascendente da atualidade. Aduz Brooks (2013):

 

Se você me pedisse para descrever a filosofia crescente da época, eu diria que é o data-ísmo. Agora temos a capacidade de coletar grandes quantidades de dados. Essa habilidade parece carregar consigo certas suposições culturais – que tudo o que pode ser medido deve ser medido; que os dados são lentes transparentes e confiáveis que nos permitem filtrar o emocionalismo e a ideologia; esses dados nos ajudarão a fazer coisas notáveis – como prever o futuro.[14]

 

          Yuval Harari acabou por definir o dataísmo como uma religião voltada ao culto dos dados, ou seja, não como uma filosofia supostamente racionalista, nos termos defendido por David Brooks. O dataísmo é voltado ao culto, principalmente, dos dados em sua versão mais extrema, o big data. O historiador israelense conceitua o dataísmo da seguinte forma:

 

Segundo o dataísmo, o Universo consiste num fluxo de dados e o valor de qualquer fenômeno ou entidade é determinado por sua contribuição ao processamento de dados. Isso pode soar como uma noção excêntrica e marginal, mas o fato é que ela já conquistou a maioria do estamento científico. O dataísmo nasceu da confluência explosiva de duas marés científicas. Nos 150 anos que transcorreram desde que Darwin publicou A origem das espécies, as ciências biológicas passaram a ver os organismos como algoritmos bioquímicos. Simultaneamente, nas oito décadas desde que Alan Turing formulou a ideia da máquina que leva seu nome, cientistas da computação aprenderam a projetar e fazer funcionar algoritmos eletrônicos cada vez mais sofisticados. O dataísmo reúne os dois, assinalando que exatamente as mesmas leis matemáticas se aplicam tanto aos algoritmos bioquímicos como aos eletrônicos. O dataísmo, portanto, faz ruir a barreira entre animais e máquinas com a expectativa de que, eventualmente, os algoritmos eletrônicos decifrem e superem os algoritmos bioquímicos (HARARI, 2016, p. 370).

 

Para Byung-Chul Han (2018b, pp. 82-83), o dataísmo, seja visto como religião, como filosofia ou como ideologia, faz emergir um “segundo Iluminismo”, não mais movido pela razão, mas por dados, pelo “puro conhecimento movido a dados”. Em nome dessa (pretensa) razão, foram suprimidos “a imaginação, a corporalidade e o desejo”. O dataísmo, inserido no contexto de uma sociedade da transparência que o sustenta, fulmina as formas narrativas da linguagem, essencialmente humanas. Os dados, agora imensuráveis e incognoscíveis aos seres humanos sem o auxílio das tecnologias de big data, são aditivos, numéricos, estatísticos, não narrativos. Dessa forma, ao soterrar a linguagem como chave interpretativa da realidade, o dataísmo converte-se em niilismo, retirando o fator humano, até mesmo fenomenológico, da interpretação da realidade, pois agora tudo – o universo inteiro e a própria realidade como a conhecemos ou pretendemos conhecer – é descrito a partir de dados. Os dataístas, como Han denomina os adeptos do dataísmo, assim o são em decorrência de, atualmente, os números e os dados serem, além de absolutizados, sexualizados e fetichizados. A fetichização dos dados manifesta-se através do fenômeno do quantified self, intimamente relacionado com a subjetividade voltada ao desempenho característica da sociedade neoliberal do século XXI. Os dataístas e adeptos ao autoconhecimento a partir dos dados, “datassexuais” como ironicamente referido pelo autor, movem-se pelo desejo de obtenção e concessão de informações, desejo este, segundo Han, que desenvolve características libidinais e, ao extremo, traços pornográficos.

A transparência, ode da sociedade neoliberal digitalizada, fomenta a exposição pornográfica, completa, absoluta, livre de nuances e de espaços desconhecidos. A exposição, ou hiperexposição como cunhado por Han, não se restringe apenas à imagem, mas a âmbitos outros da vida até então privada, como desempenho esportivo e laboral, saúde física e hábitos alimentares, dentre outros.         O dataísmo, através do big data, reifica o pensamento e o comportamento humanos, tornando-os cognoscíveis de formas incognoscíveis ao próprio sujeito, transformando-os em números, probabilidades, expectativas, possibilidades e instrumentos de manipulação. A voluntariedade, extensamente apresentada como elementar para este cenário, transforma a exploração dataísta em (pretensa) liberdade, subvertendo a vida à funcionalidade, a funções, padrões de desempenho, em corpos úteis e anestesiados pela sensação de liberdade, de livre-arbítrio. Para Han (2018b, p. 21), o princípio do desempenho aproxima o ser humano da máquina. A vida passa a ser regida pelos ditames da eficiência e da utilidade.

          Assim, estes procedimentos de expansão da disponibilidade e da disponibilização de dados levam à algoritmização da vida social, remetendo todos os indivíduos a uma espécie de era de “barbárie dos dados”, na qual a crença na mensurabilidade e na quantificação da vida domina toda o mundo digital. A simplificação da vida, dos processos sociais e políticos, e da própria realidade sob a ótica dos dados, cuja expansão assume a forma de máxima ética, reduz a sociedade, as pessoas e o mundo a números, estatísticas, gráficos e modelos computacionais, transformando tudo em objeto de verificação e cálculo, cujo manejo é restrito a programadores, via de regra vinculados a grandes corporações tecnológicas e governos, que obtêm para si o poder de manipular e influenciar, direta ou indiretamente, a forma de pensar e de agir dos seres humanos. O dataísmo, orientado pelo mantra da transformação de tudo em dados e pela noção de exercer o seu poder a despeito de qualquer ideologia, de forma neutra e racional, contradiz-se justamente neste ponto, ao, através de sua forma de conceber o mundo[15], transformar-se em mais uma delas, pretensamente amparada pela razão tal como ocorrido com o “primeiro” Iluminismo (RAMÍREZ; JIMÉNEZ, 2020, pp. 15-27).

          Shoshana Zuboff descreve, ainda que de forma indireta, os efeitos e consequências da expansão dataísta sobre todos os aspectos da vida e do cotidiano na era por ela denominada de era do capitalismo de vigilância. Hoje, o poder totalizante dos dados e da renderização de pessoas através dos dados ultrapassaram o mundo virtual e expandiram-se, também, para o mundo real, através da internet das coisas, apta a concretizar a utopia dataísta como descrito por Han. Segundo a autora:

Hoje, a coisa real alimenta e inspira a retórica capitalista de vigilância conforme os líderes promovem as ferramentas e visão que darão vida às ideias do velho professor... ou melhor, trarão para a nossa vida. Os processos de normalização e habituação já começaram. Nós vimos que a busca de certeza pelo capitalismo de vigilância (o mandato do imperativo de predição) requer uma aproximação contínua da informação total como a condição ideal para a inteligência de máquina. Na trilha da totalidade, os capitalistas de vigilância ampliaram seu escopo do mundo virtual para o real. O negócio da realidade renderiza todas as pessoas, coisas e processos como objetos computacionais numa interminável fila de equivalência sem igualdade. Agora, à medida que o negócio da realidade se intensifica, a busca da totalidade necessariamente leva à anexação de “sociedade”, “relações sociais” e processos sociais básicos como novos terrenos para renderização, cálculo, modificação e predição.

A ubiquidade do Grande Outro é reverenciada como inevitável, mas este não é o objetivo final. Nessa nova fase, a meta é alcançar abrangente visibilidade, coordenação, confluência, controle e harmonização dos processos sociais na busca de escala, escopo e ação. Embora instrumentarianismo e totalitarismo sejam espécies distintas, cada uma anseia pela totalidade, por mais que as formas desta sejam muito distintas. O totalitarismo a busca como condição política e se apoia na violência para abrir seu caminho. Já o instrumentarianismo busca a totalidade como condição de dominação do mercado, e se apoia no controle dela sobre a divisão da aprendizagem na sociedade, possibilitada e aplicada pelo Grande Outro, para abrir caminho. O resultado é a aplicação do poder instrumentário à otimização da sociedade em nome de objetivos de mercado: a utopia da certeza (ZUBOFF, 2020, p. 452).

          O “Grande Outro” referido pela autora trata-se do “fantoche perceptível, computacional, conectado que renderiza, monitora, computa e modifica o comportamento humano”, em alusão ao Grande Irmão orwelliano[16], que, agora, em sua versão aprimorada, não serve mais somente para monitorar e vigiar a população, mas serve instrumento de engenharia comportamental capaz de prever e moldar o comportamento humano. O Grande Outro impõe a todos uma indiferença radical, uma equivalência sem igualdade, transformando pessoas e também objetos em informações legíveis ao sistema computacional, passíveis de processamento, predição e modelagem (ZUBOFF, 2020, pp. 427-428), concretizando a diferenciação deleuzeana do indivíduo para o divíduo caracterizado pela identificação através de uma cifra, de uma senha, e pela divisibilidade de suas particularidades em informações cognoscíveis ao sistema, característico da sociedade de controle (DELEUZE, 2013, p. 226).

          No entanto, o conhecimento gerado por meio do big data e cultuado pelo dataísmo, anunciado como um conhecimento absoluto, é, em verdade, um conhecimento bastante rudimentar. O data mining ou a mineração de dados, isto é, a obtenção massiva de dados privados e públicos, apenas descobre e realiza as correlações existentes entre determinadas informações. Segundo Han (2021b, p. 36), a correlação representa a forma mais precária de saber na lógica hegeliana, uma vez que a correlação não explica o porquê A sucede a B e vice-versa, apenas atesta esta sucessão. A correlação indica tão somente a probabilidade, não a necessidade, ou seja, não estabelece um conhecimento preditivo com precisão absoluta. O big data proporciona apenas possibilidades e probabilidades, consistindo, assim, em um conhecimento precário, ainda que cultuado e valorizado como o principal recurso tecnológico atualmente (HAN, 2021b, p. 36).

          Para Han, apenas o conceito é suficiente para estabelecer um conhecimento concreto, categoria inexistente para o big data, uma vez que possui a capacidade de sintetizar a relação existente entre diversas categorias, enquanto o processamento de dados se restringe a identificar correlações e padrões, sem, no entanto, estabelecer o vínculo essencial entre estes dados e informações. Sintetiza o autor:

Apenas o «conceito» captura a conexão entre A e B. É o C que conecta A e B. Por meio de C, se compreende a relação entre A e B. O conceito forma a estrutura, a totalidade, que reúne A e B e esclarece sua relação. A e B são apenas os «momentos de um terceiro superior». O conhecimento propriamente dito só é possível no nível do conceito: «O conceito é o que é inerente às próprias coisas, o que nos diz o que elas são e o que são e, portanto, compreender um objeto significa estar ciente de seu conceito». Somente a partir do conhecimento abrangente do conceito C é possível compreender a relação entre A e B. A própria realidade é transmitida ao saber quando é capturada pelo conceito.
O big data fornece conhecimento rudimentar. Restringe-se a correlações e reconhecimento de padrões, nos quais, no entanto, nada é compreendido. O conceito forma uma totalidade que inclui e compreende seus momentos em si. O todo é uma forma final. O conceito é uma conclusão. «Tudo é uma conclusão» significa «tudo é um conceito». A razão também é uma conclusão: «Tudo o que é racional é uma conclusão. » O big data é aditivo. O aditivo não forma uma totalidade, um fim. Falta o conceito, ou seja, o que une as partes em um todo. A inteligência artificial nunca atinge o nível conceitual de conhecimento. Você não entende os resultados de seus cálculos. O cálculo difere do pensamento porque não forma conceitos e não avança de uma conclusão para outra (HAN, 2021b, pp. 36-37).[17]

          No entanto, apesar da precariedade do conhecimento gerado a partir dos dados, a sua fetichização coloca as coisas (físicas, tais como os objetos) em segundo plano, fazendo com que os dados assumam o lugar da fetichização da mercadoria outrora identificada por Marx (2017a, pp. 146-148)[18]. A hiperinflação e a hiperprodução de coisas, ou mercadorias para Marx, que as torna excessivas em quantidades e, portanto, frívolas, faz crescer a indiferença quanto à sua existência e disponibilidade. A obsessão humana, portanto, é deslocada das coisas para a informação e para os dados. Hoje, o indivíduo é literalmente intoxicado por informações em demasia[19] e as energias libidinais são transpostas das coisas para aquilo que Han cunhou como “não-coisas”[20]. A consequência disto consiste naquilo que o autor cunhou de “infomania”[21], termo criado para conceituar a obsessão por informações e dados, tornando os sujeitos em “infômanos”[22], em seres datassexuais, dataístas, uma vez que o fetichismo das coisas, ou das mercadorias como antevisto por Marx, cedeu espaço para o fetichismo dos dados (HAN, 2021b, p. 09).

Ricardo Timm de Souza identificará com precisão neste ponto o fetichismo pela ciência e pela tecnologia como instrumento de idolatria e de idolatrização da técnica científica. Aduz o autor:

O “aparato lógico” que, com seu poder de abstração, permitiu o surgimento e o avanço da ciência moderna e da tecnologia tornou-se para si mesmo um fetiche, o primeiro passo para a aberta constituição em ídolo da idolatrização. De instância crítica da realidade, se converteu em instrumento legitimador de um reflexo da realidade que teria como constitutivo principal a pretensão de substituir, com vantagem, à realidade mesma. O mundo, assombrado por esse fetiche, procura a si mesmo, para falar com Rosenzweig, em algo totalmente diferente dele mesmo; o que ele realmente é permanece obscurecido por trás da falsa consciência que ele gera. Os dados que constam no disco rígido do computador são mais importantes do que as intenções de quem lá os colocou; a forma de como a máquina os organiza é mais importante do que saber o que pode significar, exame, “organização”. O mundo administrado – um grande Processo kafkiano – presta contas apenas a si mesmo de suas razões: o resto seria falsa consciência, ingenuidade ou pré-cientificidade (SOUZA, 2020, p. 246).

          O culto aos dados, extremamente lucrativo para as big techs, é incentivado através da hipercomunicação e da hiperexposição na internet, conforme amplamente demonstrando por Byung-Chul Han, mas não só. Todos estes fenômenos – sociedade positiva, demanda por transparência, fomento à comunicação e à exposição, big data e dataísmo – estão estreitamente conectados, convergindo em fonte de controle e lucro virtualmente ilimitados (LOVELUCK, 2018, p. 298.) Dessa forma, hoje, na sociedade de controle digitalizada tal como descrita por Han, as pessoas não são mais apenas recursos humanos como na sociedade disciplinar industrializada tal como descrita por Michel Foucault, são fonte de dados economicamente exploráveis e manipuláveis, fenômeno sedimentado através da fusão entre mercado e o survellaince, a vigilância, estatal e privado, que encontra no dataísmo seu instrumento mais potente de legitimação, responsável por revestir a verdadeira natureza do big data e transformá-la em algo simpático à opinião pública e lúdico aos sujeitos, potencializando seus efeitos e normalizando a sua expansão a áreas cada vez mais abrangentes do cotidiano, da vida privada, criando uma sociedade digital que inclui e exclui consumidores e cidadãos conforme a conveniência do sistema, isto é, dos detentores do capital acumulado através dos dados e do Estado (MALAMACCI, 2017, pp. 74-94).

          O dataísmo, portanto, caracteriza-se pela crença ideológica, apesar de negar-se como tal, na suposta virtude dos dados de substituir a razão humana, como um segundo Iluminismo, e funcionar como solução para toda sorte de problemas – políticos, sociais, econômicos, morais –, transformando-se, entretanto, em totalitarismo digital, uma ideologia que almeja a abrangência total, absoluta, de todos os aspectos da vida humana, sejam aqueles particulares, privados e íntimos ou sejam aqueles de caráter público, coletivo e social, reduzindo e equalizando tudo na opacidade dos dados (PIQUERAS, 2020, pp. 122-125).

 

A psicopolítica e as técnicas de controle no regime neoliberal

 

Partindo de Michel Foucault para introduzir sua teoria, Byung-Chul Han (2018a, pp. 129-130) assevera que, desde o século XVII, o poder não se manifesta mais como o poder do soberano sobre a morte. A partir de então, o filósofo francês cunhou de biopoder, ou poder biopolítico, o poder que é exercido através do estímulo, do fortalecimento, da vigilância, dos ajustes comportamentais sobre a população – a massa de sujeitos reunidos, característico da sociedade disciplinar. O biopoder, portanto, é exercido de forma mais refinada, discreta, inferindo nos processos e leis biológicas para guiar e conduzir a população. Entretanto, para Han, o controle biopolítico é adstrito apenas a fatores e comportamentos externos, como a reprodução, taxa de mortalidade, saúde pública, controle da criminalidade, não sendo apto a intervir nos processos psicológicos, na psyche, dos sujeitos por ele afetado, tampouco apto a conhecer e revelar os seus pensamentos. Exemplifica o autor com a analogia do panóptico benthamiano[23], amplamente trabalhada por Foucault, onde a vigilância exercida incidiria apenas no comportamento externos dos prisioneiros, enquanto os seus pensamentos permaneceriam disponíveis somente a eles. A biopolítica consiste na técnica de administração e governança da sociedade disciplinar, mas, segundo o autor sul-coreano, seria inadequada para o regime neoliberal que explora, principalmente, a psyche, uma vez que a biopolítica se restringe a estatísticas demográficas, a amostragens, e, assim, não detém acesso ao psíquico, não fornece um psicograma da população. Justamente neste ponto reside uma das principais diferenças entre a estatística e o big data, principal instrumento psicopolítico: a estatística não adentra na psyche do sujeito, enquanto o big data é capaz de extrair não apenas o psicograma individual do sujeito, mas também o psicograma coletivo da população (HAN, 2018b, pp. 33-36).

          Contudo, hoje, o poder seria exercido de forma ainda mais abrangente do que este poder biopolítico descrito. Agora, o poder é exercido não apenas sobre os corpos dos sujeitos e incidindo no seu comportamento externo enquanto sujeitos e no comportamento coletivo enquanto população. Agora, o poder de controle viabilizado pela tecnologia incidiria, também, sobre a psyche, sobre a mente dos sujeitos. Aduz Han (2018a, pp 130-131):

 

Hoje uma nova mudança de paradigma se realiza. O panóptico digital não é uma sociedade disciplinar biopolítica, mas sim uma sociedade da transparência psicopolítica. E, no lugar do biopoder, entra o psicopoder. A psicopolítica está em posição para, com ajuda da vigilância digital, ler e controlar pensamentos. A vigilância digital toma o lugar da ótica inconfiável, ineficiente e perspectivista do Big Brother. Ela é eficiente porque é aperspectivista. A biopolítica não permite nenhum acesso sutil à psyche de pessoas. O psicopoder, em contrapartida, está em condições de intervir nos processos psicológicos.

 

          O poder psicopolítico não se serve mais da analogia com o panóptico benthamiano da sociedade disciplinar. O panóptico, agora, é digital. O panóptico digital de Han difere do panóptico extensamente analisado por Foucault, principalmente, por ser aperspectivístico. Não há mais uma vigilância posicionada unicamente no centro. A vigilância é difundida. O panóptico digital constrói-se de forma descentralizada e aperspectívista, e justamente nessa característica reside sua maior eficiência, em comparação ao panóptico de Bentham, em que são submetidos ao controle e estruturados de forma a permitir este controle presídios, fábricas, hospitais, escolas, quartéis. Na sociedade de controle digital, os habitantes do panóptico não se imaginam sob supervisão e vigilância constante. Pelo contrário, imaginam-se em pleno gozo da liberdade, liberdade esta instrumentalizada para os fins pretendidos por aqueles que detêm o controle das informações e dos dados voluntária ou involuntariamente cedidos pelos sujeitos (HAN, 2017a, pp. 106-109).

          Diferentemente do panóptico benthamiano, os habitantes do panóptico digital comunicam-se intensivamente e expõem-se voluntariamente uns aos outros de forma igualmente intensa. O poder psicopolítico, portanto, faz uso intensivo da liberdade, só sendo possível através dela, dando-lhe legitimidade, sustentação e matéria-prima. O poder psicopolítico se concretiza ali onde os sujeitos não mais se expõem e submetem-se ao seu jugo por coação externa, mas movidos por uma necessidade interna, dataísta (ou datassexual), “onde, portanto, o medo de renunciar à sua esfera privada e íntima dá lugar à necessidade de colocá-la à vista impudicamente, e onde liberdade e controle se tornam indistinguíveis” (HAN, 2021a, p. 54).

          Dessa forma, Han (2021a, p. 55) sintetiza a diferença entre o poder biopolítico e o poder psicopolítico da seguinte forma:

 

O Big Brother do panóptico benthamiano é capaz de observar os prisioneiros apenas em seu exterior. Ele não sabe o que se passa em seu interior. Não pode ler seus pensamento [sic]. No panóptico digital, ao contrário, é possível penetrar nos pensamentos de seus habitantes. É nisso que consiste a enorme eficiência do panóptico digital. Um controle psicopolítico da sociedade se torna, então, possível.

 

          A psicopolítica se faz presente, então, nesta forma de controle invisível característica do regime neoliberal, especialmente em sua versão digital, exercida através da ausência de negatividade, obstáculos e privações, mas, pelo contrário, a partir de uma positividade pura, pela busca incessante por rendimento, pela necessidade de exposição, de informar-se, de comunicar-se irrestritamente, fazendo nascer um nova forma de controle alicerçada na dependência, na necessidade, transformando a liberdade em instrumento eficiente de controle (LANDÁZURI, 2017, pp. 187-203). As novas tecnologias digitais de comunicação promovem, desta forma, o compartilhamento sucessivo e crescente de conteúdo entre os usuários, consumidores e produtores de informação, ao passo que, enquanto consomem e produzem, ainda fornecem informações convertidas em dados que servem de combustível para o domínio gerado através de sua própria atividade, do próprio exercício de sua liberdade. A algoritmização do cotidiano acentua-se com o acúmulo de dados, obtidos em âmbitos da vida privada cada vez mais profundos e até mesmo do inconsciente do usuário, que servem de instrumento de dominação financeira e social (MELO, 2020, pp. 68-81).

          A virada descrita por Han da biopolítica para a psicopolítica relega a corporeidade para o segundo plano, uma vez que as novas técnicas de poder características do regime neoliberal evoluíram paulatinamente para atuar sobre a psique humana. Assim, o autor justifica sua visão do poder que, por consistir em algo incorpóreo, só poderia ser coexistente, e até mesmo dependente, à liberdade assim sendo, uma vez que a liberdade não é análoga aos processos físicos. Se há coação física, inexiste liberdade. A liberdade, portanto, não coincide com objetos físicos, materiais, e, portanto, tampouco o poder poderia coincidir. O filósofo sul-coreano justifica a sua teoria sobre a eficiência e prevalência do poder psicopolítico no regime neoliberal justamente por conciliar liberdade e poder. O poder eficiente não consiste no poder de constranger, coagir ou punir, que necessita de recursos volumosos para o seu exercício. A eficiência do poder psicopolítico reside na ausência de resistência, na voluntariedade daqueles que são por ele atingidos, na liberdade de serem dominados e explorados através da promessa de liberdade (SASTRE, 2019, 240-260).

          A característica central da sociedade de controle digital teorizada por Han reside na transparência, marcada pela positividade, ou seja, pela eliminação da negatividade e pelo incentivo, pelo estímulo, pelo consumo, pela exposição, pela comunicação, pelo exagero, pelos likes (que, ironicamente ou não, são representados por um sinal de positivo com o polegar erguido no Facebook) (LANDÁZURI, 2019, 187-203), pela eliminação, inclusive, da dor[24].           “Quem quiser alcançar um poder absoluto deverá fazer uso não da violência, mas da liberdade do outro”, aduz Byung-Chul Han (2019, p. 16). Segundo o autor (2019, p. 21), em sua obra dedicada à analítica do poder, O que é Poder?, é justamente onde o poder não aparece como coerção que ele passa desapercebido e no consentimento sua percepção desaparece. Segundo o autor:

 

O hábito orienta as ações de tal modo que as relações dominantes de poder se reproduzem no interior de uma fundamentação racional de uma maneira quase mágica. A teoria do hábito de Bordieu torna subitamente mais claro que o poder não precisa aparecer como coerção. Ao contrário, mais poderoso, o mais estável, de todos os poderes está ali onde se produz a sensação de liberdade, onde nenhuma violência é precisa. A liberdade pode ser um fato ou uma aparência. Mas opera estabilizando o poder, ela lhe é constitutiva (HAN, 2019, pp. 80-81).

 

          A efetividade da psicopolítica reside justamente na ausência de sua percepção, na sutileza de sua atuação, por agir de forma desapercebida. O sujeito do desempenho, empreendedor de si mesmo, ocupa, agora, o lugar do trabalhador industrial, ainda existente, mas coadjuvante na economia do regime neoliberal. A subjetividade, como já demonstrado por Foucault e reforçado por Byung-Chul Han, ocupa o centro da analítica do poder na sociedade disciplinar e, atualmente, na sociedade da transparência (do desempenho, do controle...). A produtividade, estreitamente vinculada à subjetividade dos sujeitos, desde Marx já constitui, de igual forma, categoria essencial para a compreensão dos processos sociais e econômicos. Nesse sentido, Han assevera, a respeito da sociedade do desempenho, elaborando sua principal analítica sobre a subjetividade do sujeito neoliberal,e as suas implicações na subjetividade voltada à autoexploração, resultando na transformação do indivíduo em empreendedor de si mesmo:

 

A mudança de paradigma da sociedade disciplinar para a sociedade de desempenho aponta para a continuidade de um nível. Já habita, naturalmente, o inconsciente social, o desejo de maximizar a produção. A partir de determinado ponto de produtividade, a técnica disciplinar ou o esquema negativo da proibição se choca rapidamente com seus limites. Para elevar a produtividade, o paradigma da disciplina é substituído pelo paradigma do desempenho ou pelo esquema positivo do poder, pois a partir de um determinado nível de produtividade, a negatividade da proibição tem um efeito de bloqueio, impedindo um maior crescimento. A positividade do poder é bem mais eficiente que a negatividade do dever. Assim o inconsciente social do dever troca de registro para o registro do poder. O sujeito de desempenho é mais rápido e mais produtivo que o sujeito da obediência. O poder, porém, não cancela o dever. O sujeito de desempenho continua disciplinado. Ele tem atrás de si o estágio disciplinar. O poder eleva o nível de produtividade que é intencionado através da técnica disciplinar, o imperativo do dever. Mas em relação à elevação da produtividade não há qualquer ruptura; há apenas continuidade (HAN, 2017b, pp. 25-26).

 

 

Haveria, portanto, não uma substituição da biopolítica foucaultiana para a psicopolítica, mas em verdade uma continuação entre ambas. Se tivéssemos mais espaço, diríamos que faltou a Han uma maior amplitude na análise da obra foucaultiana, em especial desde a clássica aula de 1º de fevereiro de 1978 sobre “a governamentalidade”, espaço em que talvez encontrasse muito mais coincidência e pistas condizentes aos seus próprios argumentos do que imaginaria e, sobretudo, evitaria talvez propor em sua obra certos “etapismos” ou “idades do poder”, que certamente não caberiam na analítica de Foucault (cf. AMARAL, 2020, pp. 09 ss.).

As prisões, os manicômios, as escolas, as fábricas e os quartéis não deixaram de existir. Contudo, se faz presente, de forma onipresente e virtualmente invisível, uma nova forma de poder, ainda mais aguda do que aquela forma de poder cujo exercício recaía diretamente sobre o corpo dos sujeitos a serem normados, no termo de Foucault, mas, antes de tudo, incide sobre os processos psíquicos e opera instrumentalizando a liberdade, subvertendo-a em autoexploração, em uma violência praticada a partir do próprio indivíduo contra si mesmo[25]. A vigilância psicopolítica, diferentemente daquela biopolítica, é aperspectivística e, apesar de também ser realizada de forma indiscriminada por entes públicos e privados, muitas vezes em conluio, também o é realizada pelos próprios sujeitos uns em detrimento dos outros, uns possibilitando e colaborando para com a vigilância de si e dos outros.

O poder psicopolítico é exercido sobre o indivíduo sem oposição, mas através de sua colaboração. A transparência, elevada a imperativo ético na administração pública e transposta à vida privada, fornece a legitimação da exposição em rede que sustenta a vigilância online. A subjetividade voltada ao desempenho alimenta a necessidade de exposição e de autoaprimoramento constante, em uma busca incessante por produtividade e acúmulo de capital. Tudo isso é fomentado pela eliminação da negatividade, da coerção, do constrangimento ao indivíduo, fenômeno que Byung-Chul Han identificou como excesso positividade, traduzido em um estímulo constante ao uso da liberdade: liberdade para consumir, interagir, comunicar, expor, de forma livre de obstáculos, enquanto estas atividades geram lucro ou matéria-prima (dados) a conglomerados empresariais e órgãos governamentais, mas não só. O próprio sujeito, agora empreendedor de si, encontra-se dependente destes mesmos mecanismos.

Hiperexposição e hipercomunicação integram estes instrumentos de dominação absoluta, induzindo o sujeito a, voluntariamente, ceder seu tempo e sua intimidade em prol dos detentores do conglomerado digital que preenche a quase totalidade das interações em rede, dando forma àquilo que Byung-Chul Han denominou de panóptico digital.

O big data, por seu turno, forneceu a capacidade necessária à consolidação deste domínio ao permitir o processamento de quantidades de dados até então inimagináveis, servindo de fonte inesgotável de lucro ao interpretar e redirecionar para fins alheios à vontade dos sujeitos informações privadas – e até mesmo informações desconhecidas dos próprios sujeitos sobre si mesmo. O dataísmo, por fim, confere a legitimação ideológica ao uso desenfreado e crescente do big data como instrumento de controle, vendido através da bandeira da necessidade, da eficiência, da inevitabilidade e da razão, de uma nova razão, não-humana e insuscetível a erros.

A psicopolítica, aduz o autor, veio para substituir a biopolítica como técnica de poder dominante – ainda que não exclusiva –, tendo em vista a crescente digitalização da sociedade, terreno fértil para o controle psicopolítico.

 

A psicopolítica se empodera do comportamento social das massas ao acessar a sua lógica inconsciente. A sociedade digital de vigilância, que tem acesso ao inconsciente-coletivo, ao comportamento social futuro das massas, desenvolve traços totalitários. Ela nos entrega à programação e ao controle psicopolíticos. A era da biopolítica está, assim, terminada. Dirigimo-nos, hoje, à era da psicopolítica digital (HAN, 2018a, p. 134).

 

Assim como em toda a obra do autor sul-coreano, seus conceitos entaleçam-se e dão forma, ao fim e ao cabo, à psicopolítica, conceito onde reúne de forma sutil e integrada as categorias trabalhadas ao longo de seus principais escritos.

 

Considerações finais

A Revolução Digital, ao propiciar a expansão das tecnologias digitais e disseminar o seu uso, de forma espontânea ou através da criação artificial de necessidades, preparou o ambiente ideal para o surgimento de tecnologias de grande penetração social, capazes de captar, processar e instrumentalizar uma gama praticamente ilimitada de informações extraídas de todos os sujeitos conectados em rede. O big data, sendo a ferramenta mais eficaz dentre as disponíveis aos detentores destes dados – fornecidos voluntariamente ou não pelos sujeitos – expande sobremaneira – ao nível de tornar-se essencial para tanto – o poder psicopolítico descrito na crítica social desenvolvida por Byung-Chul Han.

O big data, ao proporcionar o protocolamento total da vida, no termo trazido por Han, torna possível ao psicopoder a cognição virtualmente absoluta da vida privada dos sujeitos, submetendo-os ao seu regime de consumo desenfreado e de vigilância contínua, funcionando de forma ambivalente ao estimular comportamentos (via de regra pra consumo) e, simultaneamente, para coibir outros tantos (através da vigilância direcionada em indivíduos-alvo do Estado).

Assim, através dessa funcionalidade marcada pelo estímulo e pela manipulação de comportamentos, internalizados pelos sujeitos como um agir espontâneo e livre de obstáculos, surge um poder que funciona através da liberdade e dela se alimenta, tornando os sujeitos vigias e vigiados, servos e mestres, enquanto se autoexploram e se autoexpõem, acreditando-se livres. Um poder que atua não mais através de estímulos negativos, externos, sobre os corpos e mentes dos sujeitos, mas que, a partir da cognição absoluta dos sujeitos, impõe-se de dentro para fora e se exerce de forma despercebida e, portanto, mais eficiente. Welcome to the desert of the real.

 

 

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SASTRE, Alejandro Recio. Análisis crítico sobre las nociones de poder y psicopolítica en el pensamiento de Byung-Chul Han. Revista Scientific. - Ensayo Arbitrado - Registro nº: 295-14548 - pp. BA2016000002 - Vol. 4, Nº 13 - Agosto-Octubre 2019 - pág. 240/260. ISSN: 2542-2987 - ISNI: 0000 0004 6045 0361. Disponível em: <http://www.indteca.com/ojs/index.php/Revista_Scientific/article/view/371/494>. Acesso em 10 jan. 2022.

 

SCHMIDT NETO, André Perin. O Livre-Arbítrio na Era do Big Data.  1. ed. São Paulo, SP: Tirant lo Blanch, 2021.

 

SCHWAB, Klaus. The Fourth Industrial Revolution. Genebra, CH: World Economic Forum, 2016.

 

SOUZA, Ricardo Timm de. Crítica da Razão Idolátrica: Tentação de Thanatos, Necroética e Sobrevivência. 1. ed. Porto Alegre, RS: Zouk, 2020.

 

WACHOWSKI, Lana; WACHOWSKI, Lilly. The Matrix. Produção de Joel Silver e direção de Lana Wachowski e Lilly Wachowski. Village Roadshow Pictures e Silver Pictures. Estados Unidos da América, 1999. Filme. 136 min.

 

ZUBOFF, Shoshana. A Era do Capitalismo de Vigilância: A Luta por um Futuro Humano na Nova Fronteira do Poder. Tradução de George Schlesinger. 1. ed. Rio de Janeiro, RJ: Intrínseca, 2020.

 

 



[1] Cf. MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política: Livro I: O Processo de Produção do Capital. Tradução de Rubens Enderle. 2. ed. São Paulo, SP: Boitempo, 2017.

[2] Neste ponto, a abordagem de Domecq sobre a convergência das interpretações de Han e Marx sobre a reprodução do capital, cada um o interpretando no formato em que se apresenta à sua época, demonstra a persistência de determinadas características, apesar das diferenças inerentes às formas atuais de reprodução e criação do capital – e até mesmo dos próprios produtos produzidos – na economia moderna e da economia calcada primordialmente na produção industrial. Para o autor, “[o] neoliberalismo instala um discurso e dispositivos de poder que convertem o modelo do empresário individualista, cujo sucesso se mede pela sua capacidade de multiplicar o capital, num modelo que perpassa todas as atividades e todas as classes sociais. É o self-made man reduzido à self-made capital: a liberdade individual subjugada pelo mandato de reproduzir o capital. Neste ponto Han segue a Marx.” In: DOMECQ, Martin. Sobre a Noção de Transparência em Byung-Chul Han e a Defesa de Nossa Desacreditada Opacidade. In: Griot: Revista de Filosofia, Amargosa - BA, v.20, n.3, p.342-361, outubro, 2020. Disponível em: <https://doi.org/10.31977/grirfi.v20i3.1860>. Acesso em: 09 dez. 2021.

[3] O Eu quantificado, em tradução livre.

[4] Tradução livre e adaptada de “Big data is high-volume, high-velocity and/or high-variety information assets that demand cost-effective, innovative forms of information processing that enable enhanced insight, decision making, and process automation.” In: Gartner (n.d.) Information Technology Gartner Glossary [Online]. Disponível em: <https://www.gartner.com/en/information-technology/glossary/big-data>. Acesso em: 14 dez. 2021

[5] Tradução livre e adaptada de: “Put simply, big data is larger, more complex data sets, especially from new data sources. These data sets are so voluminous that traditional data processing software just can’t manage them. But these massive volumes of data can be used to address business problems you wouldn’t have been able to tackle before. In: Oracle (n.d.) What Is Big Data? [Online]. Disponível em: <https://www.oracle.com/big-data/guide/what-is-big-data.html>. Acesso em: 14 dez. 2021.

[6] Cf. HAN, Byung-Chul. No Enxame:  Perspectivas do Digital. Tradução de Lucas Machado. Petrópolis, RJ: Vozes, pp. 121-127.

[7] Sobre tecnologias de vigilância e de armazenamento e processamento massivo de dados utilizados como forma de controle social e penal, imprescindível a menção à obra de Bernard Harcourt sobre o tema. Cf. HARCOURT, Bernard. Against Prediction: Profiling, Policing, and Punishing in an Actuarial Age. Reprint. Chicago, IL: Chicago University Press, 2016.

[8]Especificamente sobre relação entre livre arbítrio e big data, Cf. SCHMIDT NETO, André Perin. O Livre-Arbítrio na Era do Big Data.  1. ed. São Paulo, SP: Tirant lo Blanch, 2021.

[9] Augusto Jobim do Amaral e Eduardo Baldissera Carvalho Salles alertam sobre a narrativa a respeito da anunciada “inevitabilidade” de tecnologias de controle e seu poder retórico utilizado como forma de neutralização de críticas e de construção de alternativas, vendidas ao grande público através do fenômeno denunciado por Evgeny Morozov como “solucionismo tecnológico”, fenômeno este em muito intensificado durante a pandemia de covid-19, a pretexto de serem estas tecnologias utilizadas para combate e controle ao novo coronavírus. Cf. AMARAL, Augusto Jobim do; SALLES, Eduardo Baldissera Carvalho. Pandemia, vigilância e “solucionismo tecnológico”. In: SOBRINHO, Liton Lanes Pilau; CALGARO, Cleide; ROCHA, Leonel Severo (Orgs.). COVID-19: Ambiente e Tecnologia. Itajaí, SC: Ed. da Univali, 2020. Disponível em: <https://www.univali.br/vida-no-campus/editora-univali/e-books/Documents/ecjs/E-book%202020%20COVID-19%20%E2%80%93%20AMBIENTE%20E%20TECNOLOGIA.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2021.

[10] A eficiência como força motriz e ideal objetivado pelo Estado administrativizado em ampla medida denunciado por Han já fora antevisto também por Foucault. Embora os autores apresentem abordagens diferentes do fenômeno, a crítica de ambos é centralizada no neoliberalismo como causa desse imperativo eficientista. Cf. BRANCO, Guilherme Castelo. Michel Foucault: Filosofia e Biopolítica. 1. ed.; 1. reimp. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019, pp. 25-26, e HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. 2. ed. ampl. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017b.

[11] Segundo Byung-Chul Han, “[u]m poder absoluto seria aquele que nunca aparecesse, que nunca fosse assinalado, que, ao contrário, se fundisse completamente na autocompreensividade. O poder resplandece pela ausência.” In: HAN, Byung-Chul. O que é Poder? Tradução de Gabriel Salvi Philipson. Petropólis, RJ: Vozes, 2019, p. 92.

[12] Cf. DELEUZE, Gilles. Conversações (1972-1990). Tradução de Peter Pál Pelbart. 3. ed. São Paulo, SP: Editora 34, 2013, pp. 223-230.

[13] “O Big Data como instrumento biopolítico torna o comportamento humano prognosticável e controlável. A psicopolítica digital nos derruba em uma crise da liberdade.” In: HAN, Byung-Chul. Sociedade Paliativa: A Dor Hoje. Tradução de Lucas Machado. 1. ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2021c, p. 110.

[14] Tradução livre de “If you asked me to describe the rising philosophy of the day, I’d say it is data-ism. We now have the ability to gather huge amounts of data. This ability seems to carry with it certain cultural assumptions — that everything that can be measured should be measured; that data is a transparent and reliable lens that allows us to filter out emotionalism and ideology; that data will help us do remarkable things — like foretell the future.” In: BROOKS, David. The Philosophy of Data. The New York Times, Nova Iorque, NY, 04 fev. 2013. Opinion. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2013/02/05/opinion/brooks-the-philosophy-of-data.html>. Acesso em: 24 dez. 2021.

[15] Sobre a categoria “ideologia”, nos referimos ao termo na concepção abordada por Marx e Engels, como uma concepção de mundo distorcida ou falsa, mas que o sujeito acredita ser a própria realidade em sua forma verdadeira. Cf. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas. 1. ed. São Paulo, SP: Boitempo Editorial, 2017b.

[16] Cf. ORWELL, George. 1984. Tradução de Alexandre Hubner, Heloísa Jahn. Pósfácios de Erich Fromm, Bem Pimlott, Thomas Pynchon. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2009.

[17] Tradução livre e contextualizada de: “Solo el «concepto» capta la conexión entre A y B. Es la C que conecta A y B. Por medio de C, se comprende la relación entre A y B. El concepto vuelve a formar el marco, la totalidad, que reúne a A y B y aclara su relación. A y B solo son los «momentos de un tercero superior». El saber en sentido propio solo es posible en el nivel del concepto: «El concepto es lo inherente a las cosas mismas, lo que nos dice que son lo que son, y, por tanto, comprender un objeto significa ser consciente de su concepto». Solo a partir del concepto omnicomprensivo C puede comprenderse plenamente la relación entre A y B. La realidad misma se transmite al saber cuando es captada por el concepto. El big data proporciona un conocimiento rudimentario. Se queda en las correlaciones y el reconocimiento de patrones, en los que, sin embargo, nada se comprende. El concepto forma una totalidad que incluye y comprende sus momentos en sí mismo. La totalidad es una forma final. El concepto es una conclusión. «Todo es conclusión» significa «todo es concepto». La razón también es una conclusión: «Todo lo racional es una conclusión». El big data es aditivo. Lo aditivo no forma una totalidad, un final. Le falta el concepto, es decir, lo que une las partes en un todo. La inteligencia artificial nunca alcanza el nivel conceptual del saber. No comprende los resultados de sus cálculos. El cálculo se diferencia del pensamiento en que no forma conceptos y no avanza de una conclusión a otra.” In: HAN, Byung-Chul. No-Cosas: Quiebras del Mundo de Hoy. Traducción de Joaquín Chamorro Mielke. Madrid: Taurus, 2021b, pp. 36-37. E-book.

[18] Segundo a descrição de Marx sobre o caráter fetichista da mercadoria, “[u]ma mercadoria aparenta ser, à primeira vista, uma coisa óbvia, trivial. Mas sua análise a revela como uma coisa muita intricada, plena de sutilezas metafísicas e caprichos teológicos. Quando é valor de uso, nela não há nada de misterioso, seja do ponto de vista de que ela satisfaz necessidades humanas por meio de suas propriedades como produto do trabalho humano. É evidente que o homem, por meio de sua atividade, altera as formas das matérias naturais de modo que lhe é útil. Por exemplo, a forma da madeira é alterada quando dela se faz uma mesa. No entanto, a mesa continua sendo madeira, uma coisa sensível e banal. Mas tão logo aparece como mercadoria, ela se transforma numa coisa sensível-suprassensível. Ela não se contenta em manter os pés no chão, mas põe-se de cabeça para baixo em relação a todas as outras mercadorias, e em sua cabeça de madeira nascem minhocas que nos assombram muito mais do que se ela começasse a dançar por vontade própria. [...] O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social entre os objetos, existente à margem dos produtores. É por meio desse quiproquó que os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sensíveis-suprassensíveis ou sociais. [...] É apenas a uma relação social determinada entre os próprios homens que aqui assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Desse modo, para encontrarmos uma analogia, temos de nos refugiar na região nebulosa do mundo religioso. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, como figuras independentes que travam relação umas com as outras e com os homens. Assim se apresentam, no mundo das mercadorias, os produtos da mão humana, a isso eu chamo de fetichismo, que se cola aos produtos do trabalho tão logo eles são produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias. Esse caráter fetichista do mundo das mercadorias surge, como a análise anterior já demonstrou, do caráter social peculiar do trabalho que produz mercadorias.” In: MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política: Livro I: O Processo de Produção do Capital. Tradução de Rubens Enderle. 2. ed. São Paulo, SP: Boitempo, 2017, pp. 146-148.

[19] Em 1996, o psicólogo britânico David Lewis utilizou, pela primeira vez, o termo “síndrome da fadiga por informação” para designar o distúrbio caracterizado por quem processa informações além do volume considerado saudável pelo cérebro. In: LEWIS, David. Dying for Information? An Investigation into the Effects of Information Overload Worldwide. Reuters Studies, 1996. Também no ano de 1996, o físico e especialista em inovação espanhol Alfons Cornella criou o termo “infoxicação” para designar o estado mental disfuncional de indivíduos expostos a uma quantidade de informação excessiva ao ponto de não ser processável pelo cérebro humano e, assim, causando os sintomas característicos deste distúrbio. In:  CORNELLA, Alfons. Cómo darse de baja y evitar la infoxicación en Internet. Extra!-Net. Revista de Infonomía, 1996.

[20] Tradução livre.

[21] Tradução livre.

[22] Tradução livre.

[23] Cf. BENTHAM, Jeremy. O Panóptico. 2. ed. Organização de Tomaz Tadeu. Tradução de Guacira Lopes Louro, M. D. Magno e Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.

[24] Cf. HAN, Byung-Chul. Sociedade Paliativa: A Dor Hoje. Tradução de Lucas Machado. 1. ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2021c.

[25] Cf. HAN, Byung-Chul. Topologia da Violência. Tradução de Enio Paulo Gianchini. Petropólis, RJ: Vozes, 2017c.

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