Revista Sísifo. N° 14, Julho/Dezembro 2021. ISSN 2359-3121. www.revistasisifo.com
Augusto Jobim do
Amaral
Professor dos
Programas de Pós-Graduação em Filosofia e em Ciências Criminais da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Mauricio Dal
Castel
Mestre em
Filosofia e Especialista em Ciências Penais pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul. Advogado.
Resumo: A ascensão dos dados na sociedade
contemporânea surge como um fator impactante em diversas dimensões da vida
social. Tendo como pano de fundo o conceito de psicopolítica na obra de
Byung-Chul Han – desde seus fundamentos, evolução e consequências como novo
paradigma do poder –, neste recorte, o ensaio propõe realizar uma análise sobre
um dos principais modos de exercício deste poder psicopolítico: o big data. Ao possibilitar o
processamento massivo de dados, em uma velocidade até então inimaginável, ele funciona
como ferramenta ideal para o desenvolvimento de novas formas de controle, provendo
a eficiência, agilidade e precisão necessárias para o uso indiscriminado dos
dados produzidos para fins de acúmulo de capital. Deve-se ainda refletir sobre
a dinâmica que lhe confere legitimação, ou seja, uma espécie de “dataísmo” em
que os dados e seu processamento por algoritmos e tecnologias de big data produzem uma forma de razão
mais elevada que desencadeia seu uso desenfreado na direção de uma razão
algorítmica. Assim, os dataísmos colaboram intensamente com o psicopoder ao
delegarem o máximo de atividades e informações a tecnologias de processamento
de dados, depositando sua crença na tecnologia como forma de aprimoramento da
vida humana.
Palavras-Chave: Psicopolítica. Byung-Chul Han. Controle social.
Big data.
Abstract: The rise of data in contemporary society emerges as an
impacting factor in several dimensions of social life. Having as a background
the concept of psychopolitics in the work of Byung-Chul Han – from its
foundations, evolution and consequences as a new paradigm of power –, in this
clipping, the essay proposes to carry out an analysis of one of the main ways
of exercising this psychopolitical power: the big data. By enabling massive
data processing, at a speed hitherto unimaginable, it works as an ideal tool
for the development of new forms of control, providing the efficiency, agility
and precision necessary for the indiscriminate use of the data produced for the
purpose of capital accumulation. It is also necessary to reflect on the
dynamics that give it legitimacy, that is, a kind of “dataism” in which data
and its processing by big data algorithms and technologies produce a higher
form of reason that triggers its unbridled use in the direction of an
algorithmic reason. Thus, dataisms collaborate intensely with psychopower by
delegating the maximum of activities and information to data processing
technologies, depositing their belief in technology as a way of improving human
life.
Keywords: Psychopolitics. Byung-Chul Han. Social control.
Big data.
Introdução
O capital de outrora, como fora observado por Marx
na sua principal obra[1],
funcionava a partir de um modelo caracterizado, primordialmente, pelo
surgimento das primeiras máquinas mecânicas de produção de bens de consumo de
massa e de alimentos processados e industrializados. No entanto,
contemporaneamente, pode-se dizer que o capital teria assumido uma forma mais
orgânica. Para Yuk Hui (2020, p. 116), essa nova faceta do capital é levada a
cabo por máquinas informacionais equipadas com algoritmos complexos, cujo
combustível, que outrora, na produção industrial identificada por Marx, era o
carvão, agora é a informação, cuja fonte são os dados. Esta capacidade de
processamento de dados e sua transformação em informação é que confere a
capacidade destes modelos recursivos estarem em todo lugar e serem eficientes.
A função orgânica do capital
refere-se, sobretudo, a suas capacidades autorreferencial e retroalimentar:
quanto maior a capacidade de processamento de dados, maior a capacidade de
obtenção de dados e, portanto, maior o acúmulo de capital.[2]
Além disso, através de técnicas de machine
learning, os algoritmos aperfeiçoam-se de forma autônoma, imitando organismos
biológicos. A tendência antevista por Marx permanece, alteram-se, por assim
dizer, as formas de funcionamento e de acumulação do capital.
Byung-Chul Han, por
sua vez, identifica, na crescente “euforia dos dados”, uma das razões que
possibilitam sua ascensão vertiginosa e a expansão onipresente no cotidiano.
Para o autor, não somente a tendência autorreferencial e retroalimentar do
capital sustenta a ascensão dos dados, mas também a própria subjetividade do
sujeito neoliberal é peça fundamental deste fenômeno. Os viciados em dados,
como denomina o autor, fornecem o material humano e, simultaneamente, a rede de
consumo necessários e aptos a possibilitar a existência e persistência da
situação. Segundo o filósofo sul-coreano:
Hoje se coleta dados para
toda e qualquer finalidade. Não são somente a Agência de Segurança Nacional
estadunidense, a Acxiom, o Google ou o Facebook que possuem uma fome
desenfreada por dados. Os adeptos do Quantified
Self também são viciados em dados. Equipam seus corpos com sensores que
registram automaticamente todos os parâmetros corporais. Mede-se tudo, da
temperatura do corpo, ciclos do sono, entrada e perda de calorias, perfil de atividade e até
mesmo ondas cerebrais. Até durante a meditação os batimentos cardíacos são
protocolados. Mesmo o que acontece durante o descanso conta, portanto, para o
desempenho e eficiência, o que na verdade é um paradoxo (HAN, 2021a, pp.
72-73).
A partir da percepção de que os dados e sua coleta massiva
subjugam o sujeito ao imperativo da transparência que afeta virtualmente todos
os âmbitos da vida, voluntariamente ou não, Han define este fenômeno como
“protocolamento total da vida”, categoria estreitamente vinculada e até
convergente com a do Quantified Self[3].
O protocolamento total da vida consiste na catalogação virtual de todas as
atividades desenvolvidas por determinado indivíduo, da construção de perfis
psicológicos, da aferição de preferências como restaurantes favoritos, artistas
prediletos, roupas e acessórios favoritos e até mesmo dados sensíveis como
religião, orientação sexual e etnia, que são perfilados e acessíveis aos
detentores destas informações. “Todo clique que eu faço é salvo. Todo passo que
eu faço é rastreável. Deixamos rastros em todo lugar”, alerta Han (2017a,
121-122).
Segundo Vicente Ordóñez Roig (2018, 759-771), vivemos em um
momento de superprodução incessante, em que objetos de todas as espécies
invadem constantemente nossas realidades física e virtual; alguns destes
objetos são tangíveis, ocupam um espaço determinado e limitado, outros,
contudo, são intangíveis, armazenam-se em uma rede informática interconectada
que se distribui através de praticamente todos os computadores e dispositivos
eletrônicos, de smartphones a videogames, até a geladeiras
“inteligentes”, dispersados pelo planeta, em um protocolo de comunicação
digital. Este material aglutina-se e forma uma espiral gigantesca e
fantasmagórica de informação que, apesar de sua intangibilidade, consiste na forma
hegemônica de transmissão de informações em âmbito global. Os objetos
intangíveis, digitais e portadores de informação assim são justamente os dados.
A ascensão dos dados na sociedade contemporânea
surge como um fator impactante em diversas dimensões da vida social. Tendo como
pano de fundo o conceito de psicopolítica na obra de Byung-Chul Han – desde
seus fundamentos, evolução e consequências como novo paradigma do poder –,
neste recorte, o ensaio propõe realizar uma análise sobre um dos principais
modos de exercício deste poder psicopolítico: o big data. Ao possibilitar o
processamento massivo de dados, em uma velocidade até então inimaginável, ele
funciona como ferramenta ideal para o desenvolvimento de novas formas de
controle, provendo a eficiência, agilidade e precisão necessárias para o uso
indiscriminado dos dados produzidos para fins de acúmulo de capital. Deve-se
ainda refletir sobre a dinâmica que lhe confere legitimação, ou seja, uma
espécie de “dataísmo” em que os dados e seu processamento por algoritmos e
tecnologias de big data produzem uma forma de razão mais elevada que
desencadeia seu uso desenfreado na direção de uma razão algorítmica. Assim, os
dataísmos colaboram intensamente com o psicopoder ao delegarem o máximo de
atividades e informações a tecnologias de processamento de dados, depositando
sua crença na tecnologia como forma de aprimoramento da vida humana.
O
big data e o protocolamento total da vida
O termo “big data” surgiu no ano de 2001, quando o
analista Doug Laney assim o cunhou para definir as novas tecnologias de
armazenamento e processamento de dados, diferentes das tecnologias de
processamento existentes até então, incapazes de processar uma quantidade
massiva de dados. Para definir e delimitar as características que concederiam o
status de “new data technology” a
determinado software ou algoritmo de
processamento de dados, Laney criou a técnica dos “3 Vs do big data”. Os 3 Vs
do big data, características
essenciais para a definição desta tecnologia, consistem na capacidade de
processo em alto volume (high volume),
em alta velocidade (high velocity) e
de alta variedade (high variety) de
informações (RIVEIRA, 2020).
Segundo o glossário de informação da tecnologia
Gartner Glossary (2021), onde Doug Laney introduziu o conceito, o big data consiste em:
[...] ativos de
informação de alto volume, alta velocidade e/ou alta variedade que exigem
formas inovadoras e econômicas de processamento de informações que permitem
visão aprimorada, tomada de decisão e automação de processos.[4]
Nos últimos anos, além dos tradicionais 3 Vs de
Doug Laney, mais dois Vs foram incorporados ao rol de características
definidoras do big data: valor (value) e veracidade (veracity). Para a companhia Oracle
Corporation (2021), multinacional que atua na área de computação e informática,
com desenvolvimento de bancos de dados e softwares
corporativos, além de serviços de armazenamento de dados em nuvem, na sua
definição oficial da tecnologia, o big
data consiste em:
[...] conjuntos de dados
maiores e mais complexos, especialmente de novas fontes de dados. Esses
conjuntos de dados são tão volumosos que o software de processamento de dados
tradicional simplesmente não consegue gerenciá-los. Mas esses enormes volumes
de dados podem ser usados para resolver problemas de negócios que você não
seria capaz de resolver antes.[5]
Não obstante o conceito de big data oferecido pela companhia vir carregado de seus interesses
comerciais (“esses enormes volumes de dados podem ser usados para resolver
problemas de negócios que vocês não seriam capazes de resolver antes”), a conceituação
da Oracle oferece a perspectiva de suas finalidades técnicas e empresariais
possibilitadas pelo big data.
Por outro lado, estabelecido o conceito técnico de big data, aquele criado e empregado pela
comunidade de profissionais da informática, torna-se necessário o retorno ao
pensamento crítico sobre esta tecnologia na obra de Byung-Chul Han.
Se aludimos antes ao “protocolamento total da vida”[6]
– categoria segundo a qual a quantidade massiva de informações e dados hoje
disponíveis e disponibilizados através, principalmente, da internet,
proporcionaria uma abrangência tamanha de seu escopo que seria, e de fato é,
capaz de alcançar virtualmente todos os aspectos da vida –, não paremos por aí.
A quantidade de dados de toda natureza imaginável tem o potencial de realizar
um protocolamento generalizado do mundo. Toda sorte de informação é coletada e
armazenada, 24 horas por dia, 7 dias por semana, no mundo inteiro, seja por
Estados-nações, empresas privadas ou indivíduos privados.
Para Han, o protocolamento total da vida humana
através da extração ininterrupta de dados, proporcionada até mesmo pelas
atividades mais banais, é característica central da sociedade da transparência,
servindo de instrumento para sua consumação. Han afirma que:
A internet das coisas
realiza e conclui simultaneamente a sociedade da transparência, que se tornou
indistinguível de uma sociedade de controle total. Observamos as coisas que nos
cercam e elas nos observam. Enviam informações sem parar sobre o que fazemos e
o que deixamos de fazer. A geladeira, por exemplo, conhece e avisa sobre nossos
hábitos alimentares. A escova de dentes conectada, sobre nossa higiene
dentária. As coisas operam conjunta e ativamente no registro total da vida. A
sociedade do controle digital também transforma os óculos de dados em uma
câmera de vigilância, e o smartphone
em um grampo de escuta secreta. [...]
No lugar do Big Brother,
aparece o big data. O registro total
e ininterrupto da vida realiza e executa a sociedade da transparência (HAN,
2021a, pp. 52-53).
O big data tentará significar, ao fim e ao cabo, a completa
manipulação e previsibilidade do futuro, através da possibilidade de previsão e
do prognóstico do comportamento humano a partir de sua instrumentalização como
ferramenta de predição[7].
O big data, diz Han, funciona como
instrumento psicopolítico capaz de manipular as pessoas como marionetes ao
intervir na psique humana e influenciá-la sem que elas saibam, indicando o fim
da vontade livre[8]
como a conhecemos (HAN, 2021a, p. 40).
Não faltarão os arautos da inevitabilidade da ascensão do big data como ferramenta de governo da
população[9].
Klaus Schwab (2016, pp. 133-134) sustenta que a tecnologia permite tomada de
decisão de forma mais rápida e eficiente[10],
além de prover uma abrangência de aplicações industriais cada vez maior e
proporcionar inovadoras formas de prover serviços, públicos e privados a
cidadãos e consumidores. Segundo ele, a utilização do big data pelo setor público proporcionaria efeitos benéficos
indiretos, além daqueles descritos pelos 3 Vs de Laney, como maior
confiabilidade das decisões políticas, redução da burocracia, diminuição da
complexidade para resolução de problemas inerentes ao exercício da vida civil,
diminuição de custos e maior disponibilidade de dados, quantitativa e
qualitativamente, para a inovação tecnológica. Assim, quanto maior o emprego do
big data, maior será a capacidade de
compreensão e gerenciamento de informações e dados através desta tecnologia,
gerando, consequente, seu aprimoramento exponencial.
Maior lucidez nos impõe, contudo, como lembra Han (2018a,
pp. 36-37), que hoje não somos mais “destinatários e consumidores passivos de
informação”, informação essa essencialmente diversa das formas tradicionais de
informação midiática ou transmitidas pela cultura e pela educação formal. Pelo
contrário, hoje somos, ao mesmo tempo, consumidores e produtores da informação.
A participação do sujeito tornou-se ativa e necessária para a produção de
informação, agora constituída sob o signo do dado. A informação transformada em
dado é passível de processamento e reaproveitamento para outros fins que não
aqueles aos quais inicialmente se propunha. A participação ativa, mas não
necessariamente voluntária, na produção de informação encontra finalidades, divulgadas
ou não, as mais diversas o possível. Aplicativos de e-mail podem rastrear o
itinerário diário do sujeito e recomendar-lhe restaurantes na vizinhança ou
servir para a comprovação de sua participação ou não em um crime. A
simultaneidade do papel do sujeito como produtor e consumidor aumenta
exponencialmente a quantidade de informação disponível. Diante dessa crescente
disponibilidade de informações e dados, somente tecnologias praticamente
autônomas, com capacidade de processamento de dados altíssima, têm capacidade
de dar conta de tamanho volume informacional. Esta capacidade de armazenamento
e processamento de dados, no entanto, não significa mais liberdade, mas pelo
contrário, em um cerceamento absoluto da vontade livre. Para Yuval Harari
(2016, p. 387), no mesmo sentido de diversos outros pensadores da tecnologia, a
demanda por dados retroalimenta-se partindo do plano individual. O indivíduo é
instigado a todo momento a produzir e consumir quantidades cada vez maiores.
Por decorrência, seus pares também o são, já que o indivíduo, buscando
compartilhar, acaba inundando as pessoas à sua volta com mais informações e, de
igual forma, sendo inundado também com informações dos demais, faz surgir um
ciclo perpétuo de produção e consumo de dados. Segundo Han (2018b, pp. 83-85):
A crença na mensurabilidade
e na quantificabilidade da vida domina toda a era digital. O quantified self também reverencia essa
crença. O corpo é equipado com sensores que registram dados automaticamente.
São medidos a temperatura corporal, os níveis de glicose no sangue, a ingestão
e o consumo de calorias, os deslocamentos ou os níveis de gordura corporal. Durante
a meditação os batimentos cardíacos são medidos. Até mesmo nos momentos de
repouso o desempenho e a eficiência têm importância. Estados de ânimo,
sensações e atividades cotidianas também são registrados. O desempenho corporal
e mental deve ser melhorado através da autoaferição e do autocontrole. [...]
O lema do quantified self é: Self knowledge through numbers («autoconhecimento através de
números»). [...]
O sujeito autoexplorador
traz consigo um campo de trabalhos forçados, no qual é ao mesmo tempo carrasco
e vítima. Como sujeito que expõe e supervisiona a si próprio, ele carrega
consigo um pan-óptico no qual é, de uma só vez, o guarda e o interno. O sujeito
digitalizado e conectado é um pan-óptico
de si mesmo. Dessa maneira, o monitoramento é delegado a todos os
indivíduos.
Se tudo é previsível e controlável, todas as possibilidades
futuras encontram-se inacessíveis aos seres humanos, uma vez que a sua
liberdade criadora do futuro desaparece. O big
data é incapaz, contudo, de perceber e distinguir aquilo que é
especificamente humano, singular, único, permeado de nuances, pois é
estatístico e probabilístico, alimentado por dados que utiliza para interpretar
o mundo. Ao humano, porém, a realidade apresenta-se e é por ele construída de
forma diversa, imprevisível em grande medida, naquilo que é estatisticamente
improvável, singular, característico de seu ímpeto criador. Justamente por
isso, anuncia-se o fim da vontade livre humana: quando tudo é controlado e
conhecido de antemão, a liberdade e espontaneidade do agir humano são
fulminados (GALPARSO, 2017, pp. 25-43).
O big data é
capaz, inclusive, de prever desejos dos quais o sujeito sequer tem consciência.
Indo além da previsibilidade do comportamento, o big data ostenta a capacidade de moldá-lo de forma despercebida
pelo indivíduo manipulado. Isso é possível, primeiramente, em decorrência da
estratificação massiva de dados privados, fartos o suficiente a proporcionar
aos algoritmos responsáveis pelo seu processamento um acesso a detalhes
particulares da vida de determinada pessoa, uma análise minuciosa de sua
personalidade, de suas necessidades e de seus desejos. Assim, comportamentos
possíveis tornam-se prováveis (e desejáveis na medida em que servem ao
capital), servindo o big data como
ferramenta que, devidamente instrumentalizada, pode ser convertida para fins
alheios à vontade humana. Toda esta capacidade proporciona a possibilidade e
concretização de exploração da vontade e do desejo humanos, teoricamente
livres, mas condicionados pelo big data
(HAN, 2018b, p. 88). Segundo Han, a quantidade de dados angariada pelas
tecnologias de big data atualmente
contempla uma gama de informações sobre o indivíduo maior do que todo o
autoconhecimento que ele julga ter de si mesmo. Aduz o autor:
Hoje, cada clique que damos
e cada termo que pesquisamos ficam salvos. Cada passo na rede é observado e
registrado. Nossa vida é completamente reproduzida na rede digital. Os nossos
hábitos digitais proporcionam uma representação muito mais exata do nosso
caráter, e nossa alma, talvez até mais precisa ou mais completa do que a imagem
que fazemos de nós mesmos.
Hoje, o número de endereços
na web é praticamente ilimitado. Assim, é possível fornecer a cada objeto de
uso um endereço internet. As próprias coisas se tornam emissoras ativas de
informações: sobre a nossa vida, nosso fazer, nossos costumes. A expansão da
internet das pessoas (web 2.0) para a internet das coisas (web 3.0) completa a
sociedade do controle digital. A web 3.0 torna possível um registro total da
vida. Agora também somos monitorados pelas coisas que utilizamos cotidianamente
(HAN, 2018b, pp. 85-86).
A expansão do big data sobre todos os âmbitos da vida
privada não se deve mais, contudo, apenas à voluntariedade humana de fornecer
informações e dados gratuitamente, expondo-se e comunicando-se a partir da
internet, como primeiramente descrito por Byung-Chul Han. A exposição
voluntária serviu e ainda serve de fonte inesgotável de obtenção de dados, ou
de superávit comportamental para Zuboff, porém não consiste mais na única e
principal fonte de extração de dados. Na citação anterior, Han já adverte sobre
a sobreposição da internet das coisas (web 3.0) sobre a precedente internet das
pessoas (web 2.0). Hoje, com a expansão da internet para além do ambiente computacional,
a vigilância e a extração de dados foram expandidas para níveis até então
impensáveis, recaindo sobre aspectos da vida humana inimagináveis.
A partir deste poder silencioso[11],
que atravessa os sujeitos, característica do poder identificada por Deleuze nos
primórdios da sociedade de controle[12],
que será possível a solidificação daquilo que Byung-Chul Han denominou de
psicopolítica.[13]
O big data consiste na ferramenta que
tornou possível o acesso virtualmente irrestrito a aspectos não só da vida
humana, mas da própria mente humana, servindo de instrumento para a predição de
comportamentos, o condicionamento de condutas desejáveis (aos detentores do
superávit comportamental), e o controle praticamente absoluto e despercebido,
confundido com a própria noção de liberdade, do ser humano.
Dataísmo:
a religião do culto aos dados
O termo “dataísmo” surgiu no ano de 2013, mais precisamente
em 4 de fevereiro, quando o comentarista político do The New York Times, David
Brooks, pioneiramente o utilizou em seu artigo para o periódico intitulado The Philosophy of Data. No texto, Brooks
(2013) apresenta uma perspectiva otimista sobre a ascensão do big data em atividades profissionais
como as análises política, esportiva e educacional, nas quais a leitura
estatística obtida através de uma quantidade massiva de dados sobre essas
atividades e processada por tecnologias de big
data possibilitariam a tomada de decisões de forma melhor informada e,
portanto, melhor orientada, privilegiando escolhas racionais em detrimento de
escolhas emocionais ou intuitivas. No artigo, o autor apresenta o dataísmo como
a filosofia ascendente da atualidade. Aduz Brooks (2013):
Se você me pedisse para descrever a filosofia crescente
da época, eu diria que é o data-ísmo. Agora temos a capacidade de
coletar grandes quantidades de dados. Essa habilidade parece carregar
consigo certas suposições culturais – que tudo o que pode ser medido deve ser
medido; que os dados são lentes transparentes e confiáveis que
nos permitem filtrar o emocionalismo e a ideologia; esses
dados nos ajudarão a fazer coisas notáveis – como prever o futuro.[14]
Yuval Harari acabou por definir o dataísmo como uma
religião voltada ao culto dos dados, ou seja, não como uma filosofia
supostamente racionalista, nos termos defendido por David Brooks. O dataísmo é
voltado ao culto, principalmente, dos dados em sua versão mais extrema, o big data. O historiador israelense
conceitua o dataísmo da seguinte forma:
Segundo o dataísmo, o
Universo consiste num fluxo de dados e o valor de qualquer fenômeno ou entidade
é determinado por sua contribuição ao processamento de dados. Isso pode soar
como uma noção excêntrica e marginal, mas o fato é que ela já conquistou a maioria
do estamento científico. O dataísmo nasceu da confluência explosiva de duas
marés científicas. Nos 150 anos que transcorreram desde que Darwin publicou A origem das espécies, as ciências
biológicas passaram a ver os organismos como algoritmos bioquímicos.
Simultaneamente, nas oito décadas desde que Alan Turing formulou a ideia da
máquina que leva seu nome, cientistas da computação aprenderam a projetar e
fazer funcionar algoritmos eletrônicos cada vez mais sofisticados. O dataísmo
reúne os dois, assinalando que exatamente as mesmas leis matemáticas se aplicam
tanto aos algoritmos bioquímicos como aos eletrônicos. O dataísmo, portanto,
faz ruir a barreira entre animais e máquinas com a expectativa de que,
eventualmente, os algoritmos eletrônicos decifrem e superem os algoritmos
bioquímicos (HARARI, 2016, p. 370).
Para Byung-Chul Han (2018b, pp. 82-83), o dataísmo,
seja visto como religião, como filosofia ou como ideologia, faz emergir um
“segundo Iluminismo”, não mais movido pela razão, mas por dados, pelo “puro
conhecimento movido a dados”. Em nome dessa (pretensa) razão, foram suprimidos
“a imaginação, a corporalidade e o desejo”. O dataísmo, inserido no contexto de
uma sociedade da transparência que o sustenta, fulmina as formas narrativas da
linguagem, essencialmente humanas. Os dados, agora imensuráveis e
incognoscíveis aos seres humanos sem o auxílio das tecnologias de big data, são aditivos, numéricos,
estatísticos, não narrativos. Dessa forma, ao soterrar a linguagem como chave
interpretativa da realidade, o dataísmo converte-se em niilismo, retirando o
fator humano, até mesmo fenomenológico, da interpretação da realidade, pois
agora tudo – o universo inteiro e a própria realidade como a conhecemos ou
pretendemos conhecer – é descrito a partir de dados. Os dataístas, como Han
denomina os adeptos do dataísmo, assim o são em decorrência de, atualmente, os
números e os dados serem, além de absolutizados, sexualizados e fetichizados. A
fetichização dos dados manifesta-se através do fenômeno do quantified self, intimamente relacionado com a subjetividade
voltada ao desempenho característica da sociedade neoliberal do século XXI. Os
dataístas e adeptos ao autoconhecimento a partir dos dados, “datassexuais” como
ironicamente referido pelo autor, movem-se pelo desejo de obtenção e concessão
de informações, desejo este, segundo Han, que desenvolve características
libidinais e, ao extremo, traços pornográficos.
A transparência, ode da sociedade neoliberal
digitalizada, fomenta a exposição pornográfica, completa, absoluta, livre de
nuances e de espaços desconhecidos. A exposição, ou hiperexposição como cunhado
por Han, não se restringe apenas à imagem, mas a âmbitos outros da vida até
então privada, como desempenho esportivo e laboral, saúde física e hábitos alimentares,
dentre outros. O dataísmo, através do big data, reifica o pensamento e o comportamento humanos,
tornando-os cognoscíveis de formas incognoscíveis ao próprio sujeito,
transformando-os em números, probabilidades, expectativas, possibilidades e
instrumentos de manipulação. A voluntariedade, extensamente apresentada como
elementar para este cenário, transforma a exploração dataísta em (pretensa)
liberdade, subvertendo a vida à funcionalidade, a funções, padrões de
desempenho, em corpos úteis e anestesiados pela sensação de liberdade, de
livre-arbítrio. Para Han (2018b, p. 21), o princípio do desempenho aproxima o
ser humano da máquina. A vida passa a ser regida pelos ditames da eficiência e
da utilidade.
Assim, estes procedimentos de expansão da disponibilidade e
da disponibilização de dados levam à algoritmização da vida social, remetendo
todos os indivíduos a uma espécie de era de “barbárie dos dados”, na qual a
crença na mensurabilidade e na quantificação da vida domina toda o mundo
digital. A simplificação da vida, dos processos sociais e políticos, e da
própria realidade sob a ótica dos dados, cuja expansão assume a forma de máxima
ética, reduz a sociedade, as pessoas e o mundo a números, estatísticas,
gráficos e modelos computacionais, transformando tudo em objeto de verificação
e cálculo, cujo manejo é restrito a programadores, via de regra vinculados a
grandes corporações tecnológicas e governos, que obtêm para si o poder de
manipular e influenciar, direta ou indiretamente, a forma de pensar e de agir
dos seres humanos. O dataísmo, orientado pelo mantra da transformação de tudo
em dados e pela noção de exercer o seu poder a despeito de qualquer ideologia,
de forma neutra e racional, contradiz-se justamente neste ponto, ao, através de
sua forma de conceber o mundo[15],
transformar-se em mais uma delas, pretensamente amparada pela razão tal como
ocorrido com o “primeiro” Iluminismo (RAMÍREZ; JIMÉNEZ, 2020, pp. 15-27).
Shoshana Zuboff descreve,
ainda que de forma indireta, os efeitos e consequências da expansão dataísta
sobre todos os aspectos da vida e do cotidiano na era por ela denominada de era
do capitalismo de vigilância. Hoje, o poder totalizante dos dados e da
renderização de pessoas através dos dados ultrapassaram o mundo virtual e
expandiram-se, também, para o mundo real, através da internet das coisas, apta
a concretizar a utopia dataísta como descrito por Han. Segundo a autora:
Hoje, a coisa real alimenta
e inspira a retórica capitalista de vigilância conforme os líderes promovem as
ferramentas e visão que darão vida às ideias do velho professor... ou melhor,
trarão para a nossa vida. Os
processos de normalização e habituação já começaram. Nós vimos que a busca de
certeza pelo capitalismo de vigilância (o mandato do imperativo de predição)
requer uma aproximação contínua da informação total como a condição ideal para
a inteligência de máquina. Na trilha da totalidade, os capitalistas de
vigilância ampliaram seu escopo do mundo virtual para o real. O negócio da
realidade renderiza todas as pessoas, coisas e processos como objetos
computacionais numa interminável fila de equivalência sem igualdade. Agora, à
medida que o negócio da realidade se intensifica, a busca da totalidade
necessariamente leva à anexação de “sociedade”, “relações sociais” e processos
sociais básicos como novos terrenos para renderização, cálculo, modificação e
predição.
A ubiquidade do Grande Outro é reverenciada
como inevitável, mas este não é o objetivo final. Nessa nova fase, a meta é
alcançar abrangente visibilidade, coordenação, confluência, controle e
harmonização dos processos sociais na busca de escala, escopo e ação. Embora
instrumentarianismo e totalitarismo sejam espécies distintas, cada uma anseia
pela totalidade, por mais que as formas desta sejam muito distintas. O
totalitarismo a busca como condição política e se apoia na violência para abrir
seu caminho. Já o instrumentarianismo busca a totalidade como condição de
dominação do mercado, e se apoia no controle dela sobre a divisão da
aprendizagem na sociedade, possibilitada e aplicada pelo Grande Outro, para
abrir caminho. O resultado é a aplicação do poder instrumentário à otimização
da sociedade em nome de objetivos de mercado: a utopia da certeza (ZUBOFF, 2020, p. 452).
O “Grande Outro” referido pela autora trata-se do “fantoche
perceptível, computacional, conectado que renderiza, monitora, computa e
modifica o comportamento humano”, em alusão ao Grande Irmão orwelliano[16],
que, agora, em sua versão aprimorada, não serve mais somente para monitorar e
vigiar a população, mas serve instrumento de engenharia comportamental capaz de
prever e moldar o comportamento humano. O Grande Outro impõe a todos uma
indiferença radical, uma equivalência sem igualdade, transformando pessoas e
também objetos em informações legíveis ao sistema computacional, passíveis de
processamento, predição e modelagem (ZUBOFF, 2020, pp. 427-428), concretizando
a diferenciação deleuzeana do indivíduo
para o divíduo caracterizado pela
identificação através de uma cifra,
de uma senha, e pela divisibilidade
de suas particularidades em informações cognoscíveis ao sistema, característico
da sociedade de controle (DELEUZE, 2013, p. 226).
No entanto, o conhecimento gerado por meio do big data e cultuado pelo dataísmo,
anunciado como um conhecimento absoluto, é, em verdade, um conhecimento
bastante rudimentar. O data mining ou
a mineração de dados, isto é, a obtenção massiva de dados privados e públicos,
apenas descobre e realiza as correlações existentes entre determinadas
informações. Segundo Han (2021b, p. 36), a correlação representa a forma mais
precária de saber na lógica hegeliana, uma vez que a correlação não explica o porquê A sucede a B e vice-versa, apenas
atesta esta sucessão. A correlação indica tão somente a probabilidade, não a
necessidade, ou seja, não estabelece um conhecimento preditivo com precisão
absoluta. O big data proporciona
apenas possibilidades e probabilidades, consistindo, assim, em um conhecimento
precário, ainda que cultuado e valorizado como o principal recurso tecnológico
atualmente (HAN, 2021b, p. 36).
Para Han, apenas o conceito
é suficiente para estabelecer um conhecimento concreto, categoria inexistente
para o big data, uma vez que possui a
capacidade de sintetizar a relação existente entre diversas categorias,
enquanto o processamento de dados se restringe a identificar correlações e
padrões, sem, no entanto, estabelecer o vínculo essencial entre estes dados e
informações. Sintetiza o autor:
Apenas o «conceito» captura a conexão entre A e B. É o C que conecta A e B. Por meio de C, se compreende a relação entre A e B. O conceito forma a estrutura, a totalidade, que reúne A e B e esclarece sua relação. A e B são apenas os «momentos de um terceiro superior». O conhecimento propriamente dito só é possível no nível do conceito: «O conceito é o que é inerente às próprias coisas, o que nos diz o que elas são e o que são e, portanto, compreender um objeto significa estar ciente de seu conceito». Somente a partir do conhecimento abrangente do conceito C é possível compreender a relação entre A e B. A própria realidade é transmitida ao saber quando é capturada pelo conceito.
O big data fornece conhecimento rudimentar. Restringe-se a correlações e reconhecimento de padrões, nos quais, no entanto, nada é compreendido. O conceito forma uma totalidade que inclui e compreende seus momentos em si. O todo é uma forma final. O conceito é uma conclusão. «Tudo é uma conclusão» significa «tudo é um conceito». A razão também é uma conclusão: «Tudo o que é racional é uma conclusão. » O big data é aditivo. O aditivo não forma uma totalidade, um fim. Falta o conceito, ou seja, o que une as partes em um todo. A inteligência artificial nunca atinge o nível conceitual de conhecimento. Você não entende os resultados de seus cálculos. O cálculo difere do pensamento porque não forma conceitos e não avança de uma conclusão para outra (HAN, 2021b, pp. 36-37).[17]
No entanto, apesar da precariedade do conhecimento gerado a
partir dos dados, a sua fetichização coloca as coisas (físicas, tais como os
objetos) em segundo plano, fazendo com que os dados assumam o lugar da
fetichização da mercadoria outrora identificada por Marx (2017a, pp. 146-148)[18].
A hiperinflação e a hiperprodução de coisas, ou mercadorias para Marx, que as
torna excessivas em quantidades e, portanto, frívolas, faz crescer a
indiferença quanto à sua existência e disponibilidade. A obsessão humana, portanto,
é deslocada das coisas para a informação e para os dados. Hoje, o indivíduo é
literalmente intoxicado por informações em demasia[19]
e as energias libidinais são transpostas das coisas para aquilo que Han cunhou
como “não-coisas”[20].
A consequência disto consiste naquilo que o autor cunhou de “infomania”[21],
termo criado para conceituar a obsessão por informações e dados, tornando os
sujeitos em “infômanos”[22],
em seres datassexuais, dataístas, uma vez que o fetichismo das coisas, ou das
mercadorias como antevisto por Marx, cedeu espaço para o fetichismo dos dados
(HAN, 2021b, p. 09).
Ricardo Timm de Souza
identificará com precisão neste ponto o fetichismo pela ciência e pela
tecnologia como instrumento de idolatria e de idolatrização da técnica científica.
Aduz o autor:
O “aparato lógico” que, com
seu poder de abstração, permitiu o surgimento e o avanço da ciência moderna e
da tecnologia tornou-se para si mesmo um fetiche,
o primeiro passo para a aberta constituição em ídolo da idolatrização. De
instância crítica da realidade, se converteu em instrumento legitimador de um reflexo da realidade que teria como
constitutivo principal a pretensão de substituir, com vantagem, à realidade
mesma. O mundo, assombrado por esse fetiche, procura a si mesmo, para falar com
Rosenzweig, em algo totalmente diferente dele mesmo; o que ele realmente é
permanece obscurecido por trás da falsa consciência que ele gera. Os dados que
constam no disco rígido do computador são mais importantes do que as intenções
de quem lá os colocou; a forma de como a máquina os organiza é mais importante
do que saber o que pode significar, exame, “organização”. O mundo administrado
– um grande Processo kafkiano –
presta contas apenas a si mesmo de suas razões: o resto seria falsa
consciência, ingenuidade ou pré-cientificidade (SOUZA, 2020, p. 246).
O culto aos dados, extremamente lucrativo para as big techs, é incentivado através da
hipercomunicação e da hiperexposição na internet, conforme amplamente
demonstrando por Byung-Chul Han, mas não só. Todos estes fenômenos – sociedade
positiva, demanda por transparência, fomento à comunicação e à exposição, big data e dataísmo – estão
estreitamente conectados, convergindo em fonte de controle e lucro virtualmente
ilimitados (LOVELUCK, 2018, p. 298.) Dessa forma, hoje, na sociedade de
controle digitalizada tal como descrita por Han, as pessoas não são mais apenas
recursos humanos como na sociedade disciplinar industrializada tal como
descrita por Michel Foucault, são fonte de dados economicamente exploráveis e
manipuláveis, fenômeno sedimentado através da fusão entre mercado e o survellaince, a vigilância, estatal e
privado, que encontra no dataísmo seu instrumento mais potente de legitimação,
responsável por revestir a verdadeira natureza do big data e transformá-la em algo simpático à opinião pública e
lúdico aos sujeitos, potencializando seus efeitos e normalizando a sua expansão
a áreas cada vez mais abrangentes do cotidiano, da vida privada, criando uma
sociedade digital que inclui e exclui consumidores e cidadãos conforme a
conveniência do sistema, isto é, dos detentores do capital acumulado através
dos dados e do Estado (MALAMACCI, 2017, pp. 74-94).
O dataísmo, portanto, caracteriza-se pela crença
ideológica, apesar de negar-se como tal, na suposta virtude dos dados de
substituir a razão humana, como um segundo Iluminismo, e funcionar como solução
para toda sorte de problemas – políticos, sociais, econômicos, morais –,
transformando-se, entretanto, em totalitarismo digital, uma ideologia que almeja
a abrangência total, absoluta, de todos os aspectos da vida humana, sejam
aqueles particulares, privados e íntimos ou sejam aqueles de caráter público,
coletivo e social, reduzindo e equalizando tudo na opacidade dos dados
(PIQUERAS, 2020, pp. 122-125).
A
psicopolítica e as técnicas de controle no regime neoliberal
Partindo de Michel Foucault para introduzir sua
teoria, Byung-Chul Han (2018a, pp. 129-130) assevera que, desde o século XVII,
o poder não se manifesta mais como o poder do soberano sobre a morte. A partir
de então, o filósofo francês cunhou de biopoder, ou poder biopolítico, o poder
que é exercido através do estímulo, do fortalecimento, da vigilância, dos
ajustes comportamentais sobre a população – a massa de sujeitos reunidos,
característico da sociedade disciplinar. O biopoder, portanto, é exercido de
forma mais refinada, discreta, inferindo nos processos e leis biológicas para
guiar e conduzir a população. Entretanto, para Han, o controle biopolítico é
adstrito apenas a fatores e comportamentos externos, como a reprodução, taxa de
mortalidade, saúde pública, controle da criminalidade, não sendo apto a
intervir nos processos psicológicos, na psyche,
dos sujeitos por ele afetado, tampouco apto a conhecer e revelar os seus
pensamentos. Exemplifica o autor com a analogia do panóptico benthamiano[23],
amplamente trabalhada por Foucault, onde a vigilância exercida incidiria apenas
no comportamento externos dos prisioneiros, enquanto os seus pensamentos
permaneceriam disponíveis somente a eles. A biopolítica consiste na técnica de
administração e governança da sociedade disciplinar, mas, segundo o autor
sul-coreano, seria inadequada para o regime neoliberal que explora,
principalmente, a psyche, uma vez que
a biopolítica se restringe a estatísticas demográficas, a amostragens, e,
assim, não detém acesso ao psíquico, não fornece um psicograma da população.
Justamente neste ponto reside uma das principais diferenças entre a estatística
e o big data, principal instrumento
psicopolítico: a estatística não adentra na psyche
do sujeito, enquanto o big data é
capaz de extrair não apenas o psicograma individual
do sujeito, mas também o psicograma coletivo da população (HAN, 2018b, pp.
33-36).
Contudo, hoje, o poder seria exercido de forma ainda mais
abrangente do que este poder biopolítico descrito. Agora, o poder é exercido
não apenas sobre os corpos dos sujeitos e incidindo no seu comportamento
externo enquanto sujeitos e no comportamento coletivo enquanto população.
Agora, o poder de controle viabilizado pela tecnologia incidiria, também, sobre
a psyche, sobre a mente dos sujeitos.
Aduz Han (2018a, pp 130-131):
Hoje uma nova mudança de
paradigma se realiza. O panóptico digital não é uma sociedade disciplinar
biopolítica, mas sim uma sociedade da transparência psicopolítica. E, no lugar
do biopoder, entra o psicopoder. A
psicopolítica está em posição para, com ajuda da vigilância digital, ler e
controlar pensamentos. A vigilância digital toma o lugar da ótica inconfiável,
ineficiente e perspectivista do Big Brother. Ela é eficiente porque é aperspectivista. A biopolítica não
permite nenhum acesso sutil à psyche
de pessoas. O psicopoder, em contrapartida, está em condições de intervir nos
processos psicológicos.
O poder psicopolítico não
se serve mais da analogia com o panóptico benthamiano da sociedade disciplinar.
O panóptico, agora, é digital. O panóptico digital de Han difere do panóptico
extensamente analisado por Foucault, principalmente, por ser aperspectivístico.
Não há mais uma vigilância posicionada unicamente no centro. A vigilância é
difundida. O panóptico digital constrói-se de forma descentralizada e
aperspectívista, e justamente nessa característica reside sua maior eficiência,
em comparação ao panóptico de Bentham, em que são submetidos ao controle e
estruturados de forma a permitir este controle presídios, fábricas, hospitais,
escolas, quartéis. Na sociedade de controle digital, os habitantes do panóptico
não se imaginam sob supervisão e vigilância constante. Pelo contrário,
imaginam-se em pleno gozo da liberdade, liberdade esta instrumentalizada para
os fins pretendidos por aqueles que detêm o controle das informações e dos
dados voluntária ou involuntariamente cedidos pelos sujeitos (HAN, 2017a, pp.
106-109).
Diferentemente do panóptico benthamiano, os habitantes do
panóptico digital comunicam-se intensivamente e expõem-se voluntariamente uns
aos outros de forma igualmente intensa. O poder psicopolítico, portanto, faz
uso intensivo da liberdade, só sendo possível através dela, dando-lhe
legitimidade, sustentação e matéria-prima. O poder psicopolítico se concretiza
ali onde os sujeitos não mais se expõem e submetem-se ao seu jugo por coação
externa, mas movidos por uma necessidade interna, dataísta (ou datassexual),
“onde, portanto, o medo de renunciar à sua esfera privada e íntima dá lugar à
necessidade de colocá-la à vista impudicamente, e onde liberdade e controle se
tornam indistinguíveis” (HAN, 2021a, p. 54).
Dessa forma, Han (2021a, p. 55) sintetiza a diferença entre
o poder biopolítico e o poder psicopolítico da seguinte forma:
O Big Brother do panóptico
benthamiano é capaz de observar os prisioneiros apenas em seu exterior. Ele não
sabe o que se passa em seu interior. Não pode ler seus pensamento [sic]. No
panóptico digital, ao contrário, é possível penetrar nos pensamentos de seus
habitantes. É nisso que consiste a enorme eficiência do panóptico digital. Um
controle psicopolítico da sociedade se torna, então, possível.
A psicopolítica se faz
presente, então, nesta forma de controle invisível característica do regime
neoliberal, especialmente em sua versão digital, exercida através da ausência
de negatividade, obstáculos e privações, mas, pelo contrário, a partir de uma
positividade pura, pela busca incessante por rendimento, pela necessidade de
exposição, de informar-se, de comunicar-se irrestritamente, fazendo nascer um
nova forma de controle alicerçada na dependência, na necessidade, transformando
a liberdade em instrumento eficiente de controle (LANDÁZURI, 2017, pp.
187-203). As novas tecnologias digitais de comunicação promovem, desta forma, o
compartilhamento sucessivo e crescente de conteúdo entre os usuários,
consumidores e produtores de informação, ao passo que, enquanto consomem e
produzem, ainda fornecem informações convertidas em dados que servem de
combustível para o domínio gerado através de sua própria atividade, do próprio
exercício de sua liberdade. A algoritmização do cotidiano acentua-se com o
acúmulo de dados, obtidos em âmbitos da vida privada cada vez mais profundos e
até mesmo do inconsciente do usuário, que servem de instrumento de dominação
financeira e social (MELO, 2020, pp. 68-81).
A virada descrita por Han da biopolítica para a
psicopolítica relega a corporeidade para o segundo plano, uma vez que as novas
técnicas de poder características do regime neoliberal evoluíram paulatinamente
para atuar sobre a psique humana. Assim, o autor justifica sua visão do poder
que, por consistir em algo incorpóreo, só poderia ser coexistente, e até mesmo
dependente, à liberdade assim sendo, uma vez que a liberdade não é análoga aos
processos físicos. Se há coação física, inexiste liberdade. A liberdade,
portanto, não coincide com objetos físicos, materiais, e, portanto, tampouco o
poder poderia coincidir. O filósofo sul-coreano justifica a sua teoria sobre a
eficiência e prevalência do poder psicopolítico no regime neoliberal justamente
por conciliar liberdade e poder. O poder eficiente
não consiste no poder de constranger, coagir ou punir, que necessita de
recursos volumosos para o seu exercício. A eficiência do poder psicopolítico
reside na ausência de resistência, na voluntariedade daqueles que são por ele
atingidos, na liberdade de serem dominados e explorados através da promessa de
liberdade (SASTRE, 2019, 240-260).
A característica central da sociedade de controle digital
teorizada por Han reside na transparência, marcada pela positividade, ou seja,
pela eliminação da negatividade e pelo incentivo, pelo estímulo, pelo consumo,
pela exposição, pela comunicação, pelo exagero, pelos likes (que, ironicamente ou não, são representados por um sinal de
positivo com o polegar erguido no Facebook) (LANDÁZURI, 2019, 187-203), pela
eliminação, inclusive, da dor[24].
“Quem quiser alcançar um poder
absoluto deverá fazer uso não da
violência, mas da liberdade do outro”, aduz Byung-Chul Han (2019, p. 16).
Segundo o autor (2019, p. 21), em sua obra dedicada à analítica do poder, O que é Poder?, é justamente onde o
poder não aparece como coerção que ele passa desapercebido e no consentimento
sua percepção desaparece. Segundo o autor:
O hábito orienta as ações
de tal modo que as relações dominantes de poder se reproduzem no interior de
uma fundamentação racional de uma maneira quase mágica. A teoria do hábito de
Bordieu torna subitamente mais claro que o poder não precisa aparecer como coerção.
Ao contrário, mais poderoso, o mais estável, de todos os poderes está ali onde
se produz a sensação de liberdade, onde nenhuma violência é precisa. A
liberdade pode ser um fato ou uma aparência. Mas opera estabilizando o poder,
ela lhe é constitutiva (HAN, 2019, pp. 80-81).
A efetividade da
psicopolítica reside justamente na ausência de sua percepção, na sutileza de
sua atuação, por agir de forma desapercebida. O sujeito do desempenho,
empreendedor de si mesmo, ocupa, agora, o lugar do trabalhador industrial,
ainda existente, mas coadjuvante na economia do regime neoliberal. A
subjetividade, como já demonstrado por Foucault e reforçado por Byung-Chul Han,
ocupa o centro da analítica do poder na sociedade disciplinar e, atualmente, na
sociedade da transparência (do desempenho, do controle...). A produtividade,
estreitamente vinculada à subjetividade dos sujeitos, desde Marx já constitui,
de igual forma, categoria essencial para a compreensão dos processos sociais e
econômicos. Nesse sentido, Han assevera, a respeito da sociedade do desempenho,
elaborando sua principal analítica sobre a subjetividade do sujeito
neoliberal,e as suas implicações na subjetividade voltada à autoexploração,
resultando na transformação do indivíduo em empreendedor de si mesmo:
A mudança de paradigma da
sociedade disciplinar para a sociedade de desempenho aponta para a continuidade
de um nível. Já habita, naturalmente, o inconsciente
social, o desejo de maximizar a produção. A partir de determinado ponto de produtividade,
a técnica disciplinar ou o esquema negativo da proibição se choca rapidamente
com seus limites. Para elevar a produtividade, o paradigma da disciplina é
substituído pelo paradigma do desempenho ou pelo esquema positivo do poder,
pois a partir de um determinado nível de produtividade, a negatividade da
proibição tem um efeito de bloqueio, impedindo um maior crescimento. A
positividade do poder é bem mais eficiente que a negatividade do dever. Assim o
inconsciente social do dever troca de registro para o registro do poder. O
sujeito de desempenho é mais rápido e mais produtivo que o sujeito da
obediência. O poder, porém, não cancela o dever. O sujeito de desempenho
continua disciplinado. Ele tem atrás de si o estágio disciplinar. O poder eleva
o nível de produtividade que é intencionado através da técnica disciplinar, o
imperativo do dever. Mas em relação à elevação da produtividade não há qualquer
ruptura; há apenas continuidade (HAN, 2017b, pp. 25-26).
Haveria, portanto, não uma substituição da biopolítica foucaultiana
para a psicopolítica, mas em verdade uma continuação
entre ambas. Se tivéssemos mais espaço, diríamos que faltou a Han uma maior
amplitude na análise da obra foucaultiana, em especial desde a clássica aula de
1º de fevereiro de 1978 sobre “a governamentalidade”, espaço em que talvez
encontrasse muito mais coincidência e pistas condizentes aos seus próprios
argumentos do que imaginaria e, sobretudo, evitaria talvez propor em sua obra
certos “etapismos” ou “idades do poder”, que certamente não caberiam na
analítica de Foucault (cf. AMARAL, 2020, pp. 09 ss.).
As prisões, os manicômios,
as escolas, as fábricas e os quartéis não deixaram de existir. Contudo, se faz
presente, de forma onipresente e virtualmente invisível, uma nova forma de
poder, ainda mais aguda do que aquela forma de poder cujo exercício recaía
diretamente sobre o corpo dos sujeitos a serem normados, no termo de Foucault,
mas, antes de tudo, incide sobre os processos psíquicos e opera
instrumentalizando a liberdade, subvertendo-a em autoexploração, em uma
violência praticada a partir do próprio indivíduo contra si mesmo[25].
A vigilância psicopolítica, diferentemente daquela biopolítica, é
aperspectivística e, apesar de também ser realizada de forma indiscriminada por
entes públicos e privados, muitas vezes em conluio, também o é realizada pelos
próprios sujeitos uns em detrimento dos outros, uns possibilitando e
colaborando para com a vigilância de si e dos outros.
O poder psicopolítico é
exercido sobre o indivíduo sem oposição, mas através de sua colaboração. A
transparência, elevada a imperativo ético na administração pública e transposta
à vida privada, fornece a legitimação da exposição em rede que sustenta a
vigilância online. A subjetividade voltada ao desempenho alimenta a necessidade
de exposição e de autoaprimoramento constante, em uma busca incessante por
produtividade e acúmulo de capital. Tudo isso é fomentado pela eliminação da
negatividade, da coerção, do constrangimento ao indivíduo, fenômeno que
Byung-Chul Han identificou como excesso positividade, traduzido em um estímulo
constante ao uso da liberdade:
liberdade para consumir, interagir, comunicar, expor, de forma livre de
obstáculos, enquanto estas atividades geram lucro ou matéria-prima (dados) a
conglomerados empresariais e órgãos governamentais, mas não só. O próprio
sujeito, agora empreendedor de si, encontra-se dependente destes mesmos
mecanismos.
Hiperexposição e
hipercomunicação integram estes instrumentos de dominação absoluta, induzindo o
sujeito a, voluntariamente, ceder seu tempo e sua intimidade em prol dos
detentores do conglomerado digital que preenche a quase totalidade das
interações em rede, dando forma àquilo que Byung-Chul Han denominou de
panóptico digital.
O big data, por seu turno, forneceu a capacidade necessária à
consolidação deste domínio ao permitir o processamento de quantidades de dados
até então inimagináveis, servindo de fonte inesgotável de lucro ao interpretar
e redirecionar para fins alheios à vontade dos sujeitos informações privadas –
e até mesmo informações desconhecidas dos próprios sujeitos sobre si mesmo. O
dataísmo, por fim, confere a legitimação ideológica ao uso desenfreado e
crescente do big data como
instrumento de controle, vendido através da bandeira da necessidade, da
eficiência, da inevitabilidade e da razão, de uma nova razão, não-humana e
insuscetível a erros.
A psicopolítica, aduz o
autor, veio para substituir a biopolítica como técnica de poder dominante –
ainda que não exclusiva –, tendo em vista a crescente digitalização da
sociedade, terreno fértil para o controle psicopolítico.
A psicopolítica se empodera
do comportamento social das massas ao acessar a sua lógica inconsciente. A
sociedade digital de vigilância, que tem acesso ao inconsciente-coletivo, ao
comportamento social futuro das massas, desenvolve traços totalitários. Ela nos
entrega à programação e ao controle psicopolíticos. A era da biopolítica está,
assim, terminada. Dirigimo-nos, hoje, à era da psicopolítica digital (HAN,
2018a, p. 134).
Assim como em toda a obra
do autor sul-coreano, seus conceitos entaleçam-se e dão forma, ao fim e ao
cabo, à psicopolítica, conceito onde reúne de forma sutil e integrada as
categorias trabalhadas ao longo de seus principais escritos.
Considerações finais
A Revolução Digital, ao propiciar a expansão das
tecnologias digitais e disseminar o seu uso, de forma espontânea ou através da
criação artificial de necessidades, preparou o ambiente ideal para o surgimento
de tecnologias de grande penetração social, capazes de captar, processar e
instrumentalizar uma gama praticamente ilimitada de informações extraídas de
todos os sujeitos conectados em rede. O big
data, sendo a ferramenta mais eficaz dentre as disponíveis aos detentores
destes dados – fornecidos voluntariamente ou não pelos sujeitos – expande
sobremaneira – ao nível de tornar-se essencial para tanto – o poder
psicopolítico descrito na crítica social desenvolvida por Byung-Chul Han.
O big data,
ao proporcionar o protocolamento total da vida, no termo trazido por Han, torna
possível ao psicopoder a cognição virtualmente absoluta da vida privada dos
sujeitos, submetendo-os ao seu regime de consumo desenfreado e de vigilância
contínua, funcionando de forma ambivalente ao estimular comportamentos (via de
regra pra consumo) e, simultaneamente, para coibir outros tantos (através da
vigilância direcionada em indivíduos-alvo do Estado).
Assim, através dessa funcionalidade marcada pelo
estímulo e pela manipulação de comportamentos, internalizados pelos sujeitos
como um agir espontâneo e livre de obstáculos, surge um poder que funciona através da liberdade e dela se alimenta,
tornando os sujeitos vigias e vigiados, servos e mestres, enquanto se
autoexploram e se autoexpõem, acreditando-se livres. Um poder que atua não mais
através de estímulos negativos, externos, sobre os corpos e mentes dos
sujeitos, mas que, a partir da cognição absoluta dos sujeitos, impõe-se de
dentro para fora e se exerce de forma despercebida e, portanto, mais eficiente.
Welcome to the desert of the real.
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[1] Cf.
MARX, Karl. O Capital: Crítica da
Economia Política: Livro I: O Processo de Produção do Capital. Tradução de
Rubens Enderle. 2. ed. São Paulo, SP: Boitempo, 2017.
[2] Neste ponto, a abordagem de Domecq sobre a
convergência das interpretações de Han e Marx sobre a reprodução do capital,
cada um o interpretando no formato em que se apresenta à sua época, demonstra a
persistência de determinadas características, apesar das diferenças inerentes
às formas atuais de reprodução e criação do capital – e até mesmo dos próprios
produtos produzidos – na economia moderna e da economia calcada primordialmente
na produção industrial. Para o autor, “[o] neoliberalismo instala um discurso e
dispositivos de poder que convertem o modelo do empresário individualista, cujo
sucesso se mede pela sua capacidade de multiplicar o capital, num modelo que
perpassa todas as atividades e todas as classes sociais. É o self-made man reduzido à self-made capital: a liberdade
individual subjugada pelo mandato de reproduzir o capital. Neste ponto Han
segue a Marx.” In: DOMECQ, Martin. Sobre a
Noção de Transparência em Byung-Chul Han e a Defesa de Nossa Desacreditada
Opacidade. In: Griot: Revista de Filosofia, Amargosa - BA, v.20, n.3,
p.342-361, outubro, 2020. Disponível em:
<https://doi.org/10.31977/grirfi.v20i3.1860>. Acesso em: 09 dez. 2021.
[3] O Eu quantificado, em tradução livre.
[4] Tradução
livre e adaptada de “Big data is high-volume, high-velocity and/or high-variety
information assets that demand cost-effective, innovative forms of information
processing that enable enhanced insight, decision making, and process
automation.” In: Gartner (n.d.) Information Technology Gartner Glossary
[Online]. Disponível em:
<https://www.gartner.com/en/information-technology/glossary/big-data>.
Acesso em: 14 dez. 2021
[5] Tradução
livre e adaptada de: “Put simply, big data is larger, more complex data sets,
especially from new data sources. These data sets are so voluminous that
traditional data processing software just can’t manage them. But these massive
volumes of data can be used to address business problems you wouldn’t have been
able to tackle before. In: Oracle (n.d.) What
Is Big Data? [Online]. Disponível em:
<https://www.oracle.com/big-data/guide/what-is-big-data.html>. Acesso em: 14 dez. 2021.
[6] Cf. HAN,
Byung-Chul. No Enxame: Perspectivas do Digital. Tradução de Lucas
Machado. Petrópolis, RJ: Vozes, pp. 121-127.
[7] Sobre tecnologias de vigilância e de
armazenamento e processamento massivo de dados utilizados como forma de
controle social e penal, imprescindível a menção à obra de Bernard Harcourt
sobre o tema. Cf. HARCOURT,
Bernard. Against Prediction: Profiling,
Policing, and Punishing in an Actuarial Age. Reprint. Chicago, IL: Chicago University Press, 2016.
[8]Especificamente sobre relação entre livre
arbítrio e big data, Cf. SCHMIDT NETO, André Perin. O Livre-Arbítrio na Era do Big Data. 1. ed. São Paulo, SP: Tirant lo Blanch, 2021.
[9] Augusto Jobim do Amaral e Eduardo
Baldissera Carvalho Salles alertam sobre a narrativa a respeito da anunciada
“inevitabilidade” de tecnologias de controle e seu poder retórico utilizado
como forma de neutralização de críticas e de construção de alternativas,
vendidas ao grande público através do fenômeno denunciado por Evgeny Morozov
como “solucionismo tecnológico”, fenômeno este em muito intensificado durante a
pandemia de covid-19, a pretexto de serem estas tecnologias utilizadas para
combate e controle ao novo coronavírus. Cf.
AMARAL, Augusto Jobim do; SALLES, Eduardo Baldissera Carvalho. Pandemia,
vigilância e “solucionismo tecnológico”. In:
SOBRINHO, Liton Lanes Pilau; CALGARO, Cleide; ROCHA, Leonel Severo (Orgs.). COVID-19: Ambiente e Tecnologia.
Itajaí, SC: Ed. da Univali, 2020. Disponível em:
<https://www.univali.br/vida-no-campus/editora-univali/e-books/Documents/ecjs/E-book%202020%20COVID-19%20%E2%80%93%20AMBIENTE%20E%20TECNOLOGIA.pdf>.
Acesso em: 15 dez. 2021.
[10] A eficiência como força motriz e ideal
objetivado pelo Estado administrativizado em ampla medida denunciado por Han já
fora antevisto também por Foucault. Embora os autores apresentem abordagens
diferentes do fenômeno, a crítica de ambos é centralizada no neoliberalismo
como causa desse imperativo eficientista. Cf.
BRANCO, Guilherme Castelo. Michel
Foucault: Filosofia e Biopolítica. 1. ed.; 1. reimp. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2019, pp. 25-26, e HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. 2. ed. ampl.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2017b.
[11] Segundo Byung-Chul Han, “[u]m poder
absoluto seria aquele que nunca aparecesse, que nunca fosse assinalado, que, ao
contrário, se fundisse completamente na autocompreensividade. O poder resplandece pela ausência.” In: HAN, Byung-Chul. O que é Poder? Tradução de Gabriel Salvi Philipson. Petropólis, RJ: Vozes,
2019, p. 92.
[12] Cf. DELEUZE,
Gilles. Conversações (1972-1990). Tradução
de Peter Pál Pelbart. 3. ed. São Paulo, SP: Editora 34, 2013, pp. 223-230.
[13] “O Big
Data como instrumento biopolítico torna o comportamento humano
prognosticável e controlável. A psicopolítica digital nos derruba em uma crise
da liberdade.” In: HAN, Byung-Chul. Sociedade Paliativa: A Dor Hoje. Tradução de Lucas Machado. 1. ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2021c, p.
110.
[14] Tradução livre de “If you asked me to describe the rising philosophy of
the day, I’d say it is data-ism. We now have the ability to gather huge amounts
of data. This ability seems to carry with it certain cultural assumptions —
that everything that can be measured should be measured; that data is a
transparent and reliable lens that allows us to filter out emotionalism and
ideology; that data will help us do remarkable things — like foretell the
future.” In: BROOKS, David. The
Philosophy of Data. The New York Times, Nova
Iorque, NY, 04 fev. 2013. Opinion. Disponível em:
<https://www.nytimes.com/2013/02/05/opinion/brooks-the-philosophy-of-data.html>.
Acesso em: 24 dez. 2021.
[15] Sobre a categoria “ideologia”, nos
referimos ao termo na concepção abordada por Marx e Engels, como uma concepção
de mundo distorcida ou falsa, mas que o sujeito acredita ser a própria
realidade em sua forma verdadeira. Cf. MARX,
Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia
Alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes
Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes
profetas. 1. ed. São Paulo, SP: Boitempo Editorial, 2017b.
[16] Cf.
ORWELL, George. 1984. Tradução de Alexandre
Hubner, Heloísa Jahn. Pósfácios de Erich Fromm, Bem Pimlott, Thomas Pynchon.
São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2009.
[17] Tradução livre e
contextualizada de: “Solo el «concepto» capta la conexión entre A y B. Es la C
que conecta A y B. Por medio de C, se comprende la relación entre A y B. El
concepto vuelve a formar el marco, la totalidad, que reúne a A y B y aclara su
relación. A y B solo son los «momentos de un tercero superior». El saber en
sentido propio solo es posible en el nivel del concepto: «El concepto es lo
inherente a las cosas mismas, lo que nos dice que son lo que son, y, por tanto,
comprender un objeto significa ser consciente de su concepto». Solo a partir
del concepto omnicomprensivo C puede comprenderse plenamente la relación entre
A y B. La realidad misma se transmite al saber cuando es captada por el
concepto. El big data proporciona un
conocimiento rudimentario. Se queda en las correlaciones y el reconocimiento de
patrones, en los que, sin embargo, nada se comprende. El concepto forma una
totalidad que incluye y comprende sus momentos en sí mismo. La totalidad es una
forma final. El concepto es una conclusión. «Todo es conclusión» significa
«todo es concepto». La razón también es una conclusión: «Todo lo racional es
una conclusión». El big data es aditivo. Lo aditivo no forma una totalidad, un
final. Le falta el concepto, es decir, lo que une las partes en un todo. La
inteligencia artificial nunca alcanza el nivel conceptual del saber. No
comprende los resultados de sus cálculos. El cálculo se diferencia del pensamiento en que no forma conceptos y no avanza de una conclusión a
otra.” In: HAN, Byung-Chul. No-Cosas: Quiebras del Mundo de Hoy.
Traducción de Joaquín Chamorro Mielke. Madrid: Taurus, 2021b, pp. 36-37.
E-book.
[18] Segundo a descrição de Marx sobre o caráter
fetichista da mercadoria, “[u]ma mercadoria aparenta ser, à primeira vista, uma
coisa óbvia, trivial. Mas sua análise a revela como uma coisa muita intricada,
plena de sutilezas metafísicas e caprichos teológicos. Quando é valor de uso,
nela não há nada de misterioso, seja do ponto de vista de que ela satisfaz
necessidades humanas por meio de suas propriedades como produto do trabalho
humano. É evidente que o homem, por meio de sua atividade, altera as formas das
matérias naturais de modo que lhe é útil. Por exemplo, a forma da madeira é
alterada quando dela se faz uma mesa. No entanto, a mesa continua sendo
madeira, uma coisa sensível e banal. Mas tão logo aparece como mercadoria, ela
se transforma numa coisa sensível-suprassensível. Ela não se contenta em manter
os pés no chão, mas põe-se de cabeça para baixo em relação a todas as outras
mercadorias, e em sua cabeça de madeira nascem minhocas que nos assombram muito
mais do que se ela começasse a dançar por vontade própria. [...] O caráter
misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que
ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como
caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como propriedades
sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação
social entre os objetos, existente à margem dos produtores. É por meio desse
quiproquó que os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas
sensíveis-suprassensíveis ou sociais. [...] É apenas a uma relação social
determinada entre os próprios homens que aqui assume, para eles, a forma
fantasmagórica de uma relação entre coisas. Desse modo, para encontrarmos uma
analogia, temos de nos refugiar na região nebulosa do mundo religioso. Aqui, os
produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, como figuras
independentes que travam relação umas com as outras e com os homens. Assim se
apresentam, no mundo das mercadorias, os produtos da mão humana, a isso eu
chamo de fetichismo, que se cola aos produtos do trabalho tão logo eles são
produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias.
Esse caráter fetichista do mundo das mercadorias surge, como a análise anterior
já demonstrou, do caráter social peculiar do trabalho que produz mercadorias.” In: MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política: Livro I: O Processo de
Produção do Capital. Tradução de Rubens Enderle. 2. ed. São Paulo, SP:
Boitempo, 2017, pp. 146-148.
[19] Em 1996, o psicólogo britânico David Lewis
utilizou, pela primeira vez, o termo “síndrome da fadiga por informação” para
designar o distúrbio caracterizado por quem processa informações além do volume
considerado saudável pelo cérebro. In: LEWIS,
David. Dying for Information? An Investigation into the Effects of Information
Overload Worldwide. Reuters Studies, 1996. Também no ano de 1996, o físico e
especialista em inovação espanhol Alfons Cornella criou o termo “infoxicação”
para designar o estado mental disfuncional de indivíduos expostos a uma
quantidade de informação excessiva ao ponto de não ser processável pelo cérebro
humano e, assim, causando os sintomas característicos deste distúrbio. In:
CORNELLA, Alfons. Cómo darse de baja y evitar la infoxicación en
Internet. Extra!-Net. Revista de
Infonomía, 1996.
[20] Tradução livre.
[21] Tradução livre.
[22] Tradução livre.
[23] Cf.
BENTHAM, Jeremy. O Panóptico. 2. ed. Organização de Tomaz Tadeu. Tradução de
Guacira Lopes Louro, M. D. Magno e Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2008.
[24] Cf.
HAN, Byung-Chul. Sociedade
Paliativa: A Dor Hoje. Tradução de Lucas Machado. 1. ed. Petrópolis, RJ:
Editora Vozes, 2021c.
[25] Cf. HAN,
Byung-Chul. Topologia da Violência. Tradução
de Enio Paulo Gianchini. Petropólis, RJ: Vozes, 2017c.
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