Revista Sísifo. N° 14, Julho/Dezembro 2021. ISSN 2359-3121. www.revistasisifo.com
Camila
Braga
Mestranda em Filosofia pela UFRRJ
Leandro Pinheiro Chevitarese
Doutor em
Filosofia pela PUC-Rio, Professor do Departamento de Educação e Sociedade e Professor
da Pós-graduação em Filosofia da UFRRJ
Resumo: O presente artigo pretende investigar o problema da
alteridade no cenário contemporâneo, particularmente a partir das análises
desenvolvidas por Byung-Chul Han acerca da Sociedade do Desempenho. A partir da
consideração acerca da transição da Sociedade Disciplinar de Foucault, para a Sociedade
de Controle de Deleuze, pretende-se caracterizar a
condição do atual sujeito do desempenho, que padece de um processo de agonia do
pensamento, de violência neuronal, de aprisionamento narcísico e de perda da possibilidade
de experiência da alteridade atópica. Este artigo visa, assim, investigar
os desafios de reconfiguração das relações de alteridade no âmbito da Sociedade
do Desempenho, tendo em vista a pergunta sobre as possibilidades de repensar o “bem-viver”
diante de nossa condição contemporânea.
Palavras-chave: Alteridade; Eros; Agonia do Pensamento; Sociedade
do Desempenho; Produção de Subjetividade
Abstract: This article intends to
investigate the problem of alterity in the contemporary scenario, particularly
from the analysis developed by Byung-Chul Han about the Performance Society. Through
the consideration of the transition from Foucault's disciplinary society to Deleuze's
control society, it is intended to characterize the condition of the current
performance subject, who suffers from a process of thought agony, neuronal
violence, narcissistic imprisonment, and loss of the possibility of experiencing
atopic otherness. Thus, this article aims to investigate the challenges
of reconfiguration of alterity relations within the scope of the Performance Society,
considering the question about the possibilities of rethinking “well-living” in
face of our contemporary condition.
Keywords: Alterity; Eros; Thought Agony; Performance Society; Subjectivity Production
Introdução
O presente artigo propõe uma investigação sobre a
agonia do pensamento e a perda do papel da alteridade nas relações humanas,
no âmbito da atual Sociedade do Desempenho.
A partir da análise de Foucault (2010) sobre a Sociedade
Disciplinar e a transição para a Sociedade de Controle por Deleuze (1992), Han (2015) estabelece um diálogo
em que analisa os dispositivos de produção de subjetividade e relações de poder
na contemporaneidade. O filósofo investiga os cenários e deslocamentos das tecnologias
de poder, anteriormente centradas no esquema de poder pela negatividade e, posteriormente, pela positividade na atualidade, considerando que a segunda opera de modo
bem mais sutil, porém ainda mais eficiente que a primeira (HAN 2015, 2017b). Observa
que as transformações contemporâneas se complexificam e estimulam que o sujeito
da Sociedade do Desempenho e do Cansaço seja um modulador de seus projetos
e se constitua, cada vez mais, um empresário
de si mesmo. Estimulado
pela hiperatividade do sistema capitalista neoliberal, com foco determinante no
desempenho em todas as esferas da vida, edifica-se como aquele que busca possibilidades
sem limites, imbricando significados de liberdade e controle e transpondo seus
empreendimentos ao máximo de visibilidade e imediatez (HAN, 2017b). Ao tempo
que atinge um objetivo, já persegue outro, e deste modo, se vê emaranhado neste
mecanismo. Assim, o esquema de poder vai se deslocando de técnicas coercitivas
para outras mais sedutoras que inebriam o sujeito e visam níveis cada vez mais
altos de produtividade.
Han aponta que tal dinâmica recursiva e visível, estabelecida
agora num panóptico[1] digital
e compartilhado (HAN, 2017b), acaba por estimular que o sujeito confie seus
dados e imagens em mídias de afetos e no monitoramento, trabalhe contínua e
irreflexivamente para a otimização de sua performance em todos os setores da
vida, tais como: saúde, beleza, família, realizações pessoais e econômicas etc.
– o que necessariamente precisa tornar-se visível no mundo digital. Tal processo,
à primeira vista, cria uma analgesia instantânea (HAN, 2021a) mas devassa esferas
privadas da vida em espaços de exposição transparentes, agoniza o pensar, tensiona
as relações com o outro (HAN, 2017a), despercebe as coisas e, sobretudo, dilacera
a noção de valores (HAN, 2020a). Como consequência, o sujeito da Sociedade do Cansaço
pode se notar dependente de sua expectativa de sucesso, imerso numa profusão de
distúrbios neuronais[2] provocada
pelo “não mais poder” (HAN, 2015). Envolto por uma proliferação de idênticos (HAN, 2018c), em que tudo é comparável e consumível,
deriva-se deste processo um fenômeno de apagamento do indivíduo em sua
singularidade com o desaparecimento da alteridade e a capacidade de estranhamento da
realidade (HAN, 2015). E, por fim, o sujeito do desempenho se encontra em um mecanismo
narcísico que mais aprisiona do que liberta, reputando a este processo uma espécie
de violência microfísica que se expressa nas síndromes neuronais.
Considerando a agonia do pensamento e a violência neuronal que acometem o sujeito que empreende, formulam-se as
seguintes questões que emergem de tal panorama: em que medida seria possível recuperar as relações
de alteridade como contraponto aos mecanismos ensimesmados de produção de subjetividade
na contemporaneidade? Quais seriam possibilidades de subjetivação que nos fariam
reconfigurar as relações de ser e viver?
Cenários e Deslocamentos: a Sociedade Disciplinar, de
Controle e do Desempenho.
Nas sociedades disciplinares, Foucault
(2010) destaca que os indivíduos não podiam prescindir do dever e da obediência
através da “disciplina[3]” e
da referência à “norma”, cujos corpos ganhavam uma organização espacial e hierárquica
em instituições tradicionais de confinamento, tais como: hospitais, quartéis, escolas,
fábricas e presídios construídos. Um dos importantes elementos de tal análise é
o Panóptico de Bentham, que “pode ser bem representado como um puro sistema arquitetural
e óptico: é na realidade uma figura de tecnologia política que se pode e se
deve destacar de qualquer uso específico” (FOUCAULT, 2010, p.228-229). A
funcionalidade do tipo de edificação do Panóptico favorece o aparelhamento do
poder frente à sistematização de corpos e tarefas.
Diferentemente de sociedades anteriores, os mecanismos de poder na
sociedade disciplinar se mostravam mais velados e distribuídos de cima para
baixo na sua estrutura espaço-temporal, ao contrário daqueles que eram visíveis
e centrados em um opressor. A tecnologia de poder disciplinar torna possível a
produção de subjetividade, tema central das pesquisas de Foucault, por
contraste com a “anormalidade” via “antagonismo das estratégias” (FOUCAULT, 1995,
p. 234). Para se descobrir significados de sanidade propunha-se investigar a insanidade,
e outros pares opostos, tais como, a saúde-doença ou a legalidade-ilegalidade. Foucault
denomina de “práticas divisoras” a forma de poder que faz do indivíduo um sujeito,
ou seja, que faz uma divisão no seu interior e em relação aos outros. Produzir
o sujeito requer um olhar sobre dois significados da palavra sujeito: “sujeitá-lo
a alguém pelo controle e dependência, e preso à sua própria identidade por uma
consciência ou autoconhecimento. Ambos sugerem uma forma de poder que subjuga e
torna sujeito a.” (FOUCAULT, 1995, p. 235). Tal dinâmica de poder observa, fiscaliza
e compara o comportamento humano calculativa e relativamente a um grupamento ou
coletivo, sob pena de micropenalidades associadas ao corpo, retoricamente justificadas
em um discurso de medidas de ordem, saúde e segurança.
Assim, na visão do filósofo, a fim de produzir a construção da “normalidade”,
na sociedade disciplinar, investia-se em estratos mais fragilizados como os de crianças,
ou aqueles mais marginalizados como os de “delinquentes”, “doentes” ou dos considerados
“loucos”, vis-à-vis seus opostos. Configurava-se em um processo complexo
de individualização descendente viabilizado pelas novas tecnologias de poder, de
forma anônima e funcional, por meio da disciplina e do cumprimento à norma (Foucault, 2010, p.217).
Ainda que o indivíduo seja o foco de atenção para a
construção da Sociedade Disciplinar, para compreender tal tipo de sociedade e
as relações de poder nela inerentes, é necessário descontruir concepções
tradicionais, pois, na verdade, “o poder funciona (...) o poder se exerce em rede”
(FOUCAULT, 2005, p. 35). Trata-se de
rejeitar os desdobramentos do poder em suas formas “pejorativas” para se alcançar
o que se pode maquinar de “verdade” e “conhecimento” através das descobertas de
“produção entre sujeito, campos de objetos e rituais disciplinares”.
O indivíduo é sem dúvida o átomo fictício de uma
representação “ideológica” da sociedade; mas é também uma realidade
fabricada por essa tecnologia específica de poder que se chama a “disciplina”.
Temos que deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos:
ele “exclui”, “reprime”, “recalca”, “censura”, “abstrai”, “mascara”, “esconde”.
Na verdade, o poder produz; ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais
da verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa
produção (Foucault, 2010, p.218).
Foucault procura explicar que o exercício bem-sucedido
do poder estava centrado no funcionamento de suas relações, na forma de governar
o outro, ou seja, determinar e conduzir a conduta do outro, e isso não pode ser
simplificado apenas a uma ideia da conservação-reprodução das relações de
produção. Tais relações precisam estar fundeadas na formação de uma
triangulação entre “poder, direito e verdade” emergindo sem dissociar-se da
força do discurso. Assim, o autor descreve que “somos submetidos pelo poder à
produção da verdade e só podemos exercê-lo através da produção da verdade” (FOUCAULT, 2017, p. 279).
Destaca-se também a revisão da proposta inicial de Foucault,
que complementa sua análise disciplinar com a noção de governamentalidade,
tratando das tecnologias de segurança exercidas sobre o “corpo social” para
fomentar discursos de “verdade” e gerir comportamentos coletivos. Na concepção atualizada
de Foucault, o mecanismo biopolítico é uma forma de poder ainda mais sutil, que
nunca evidencia seus efeitos, apresentando-se em nome de uma “necessidade de
segurança”, estendendo suas relações de poder por todo o corpo social (CHEVITARESE
e PEDRO, 2005).
Em relação à Sociedade Disciplinar, Han (2015) argumenta
que mesmo que as relações de poder sejam tomadas enquanto dinâmica de produtividade,
há que se lidar com a inerência coercitiva no ato de dever, presente no “indivíduo
da obediência” desta sociedade. Sendo assim, a produção de subjetividade
precisa ser compreendida mais por elementos “proibitivos” do que por aqueles “permitidos”,
mais por “mandamentos e leis” a serem cumpridos do que por possibilidades de
ação. Por isso, para Han (2015), a Sociedade Disciplinar é determinada pela negatividade
da proibição, em que prevalece o “não-ter-o-direito”. Nesta atmosfera, por mais
bem disciplinado e aplicado que o sujeito seja, a técnica disciplinar atingirá rapidamente
seus limites. E isto ocorre porque o poder que se manifesta pela negatividade “verga
as vontades e nega a liberdade” (HAN, 2018a, p.25).
Em Capitalismo e impulso de morte, Han
(2021c) acrescenta mais elementos no sentido de demonstrar os limites que emergem
neste tipo de sociedade prevalentemente repressora, cuja violência culminava em
protestos e tensionamentos capazes de derrubar a relação dominante de produção.
Em decorrência dos mecanismos de exploração, proibição e de repressão, o autor
destaca os atos de manifestação e resistência que acompanham os efeitos da
negatividade. Han (2015), acompanhando a análise antecipada por Deleuze (1992; 2000),
sinaliza os desgastes de governamentalidade e a vulnerabilidade do
sistema de poder pela tecnologia disciplinar.
Em sua análise sobre as Sociedades de Controle, Deleuze (1992; 2000) acrescenta à discussão
de biopoder de Foucault (2010), tendo em vista a dinâmica do capitalismo e o
desenvolvimento de novas tecnologias, a problematização do controle para
além do modelo panóptico tradicional. Assim, Deleuze destaca a substituição das
edificações arquitetônicas e ópticas da sociedade anterior, em função do
surgimento de novas configurações espaço-temporais mais apropriadas para formas
de produção operáveis em ambientes abertos e não mais em meios de confinamento,
como outrora, eram, nas Sociedades Disciplinares.
São as sociedades de controle que estão substituindo as sociedades
disciplinares. “Controle” é o nome que Burroughs propõe para designar o novo
monstro, e que Foucault reconhece como nosso futuro próximo. Paul Virilio também
analisa sem parar as formas ultrarrápidas de controle ao ar livre, que substituem
as antigas disciplinas que operavam na duração de um sistema fechado (DELEUZE,
2000, p.220).
Perspectivas deste deslocamento da Sociedade Disciplinar
para a Sociedade de Controle trazem como evidência “a crise de todos os meios de
confinamento” e, como consequência, o enfraquecimento das instituições
tradicionais com fronteiras rígidas e o surgimento de novas estruturas espaço-temporais
mais flexíveis.
Considerando a transição entre as sociedades disciplinar
e de controle, Deleuze (2000) caracteriza as arquiteturas de confinamento
disciplinares como “moldagens”, indo de uma instituição a outra, na medida em
que separam estágios e criam ciclos de inícios e términos de atividades durante
a vida, enquanto aquelas de controle seriam “modulações” que de forma distinta,
fazem estes ciclos ininterruptos e simultâneos. Sugere, portanto, que o homem
da disciplina e da obediência, em confinamento, esteve sempre à mercê de
um recomeço e “era um produtor descontínuo de energia” (DELEUZE, 2000. p.223). Já
o homem do controle não encerra uma atividade. Ele estará sempre modulando
atividades umas nas outras, se mostrando “ondulatório, funcionando em órbita, num
feixe contínuo” (DELEUZE, 2000. p.223).
Ao aprofundar
as distinções sobre as sociedades, Deleuze (2000) ressalta elementos presentes
na linguagem que também são próprios a cada uma delas: linguagem analógica
(disciplinar) como foco indivíduo-massa[4] e linguagem
numérica (controle), através de cifras que autorizam e rejeitam – reforçando a concepção
de modelagem e modulação nas respectivas sociedades. O autor lança mão da metáfora
da toupeira e da serpente para ilustrar tal distinção. A primeira é capaz de transitar
bem em ambientes fechados e a segunda necessita de espaços mais abertos para seus
movimentos e flutuações.
A leitura de Han (2018a) sobre a metáfora da toupeira
e a serpente é que a primeira representa um sujeito “submisso” e a segunda um “projeto”.
A toupeira é trabalhadora e, como visto, por mais disciplinada que venha a ser,
não alcança grandes níveis de produtividade. Já a serpente, supera as limitações encontradas
pela toupeira, através de novas formas de movimento. Se abre para a competição fazendo
alusão a um “empreendedor que se motiva”. Na visão de Han (2018b), enquanto
projeto, nos lançamos a uma condição de deslocamento potencialmente infinito
quando “deixamos de nos pensar como um sujeito que se submete e nos vemos antes
como um projeto que delineamos e otimizamos” (HAN, 2018b, p. 57). Tal análise encontra-se
em sintonia com Deleuze (2000), que já havia indicado a crise das instituições,
a partir de uma nova lógica de gestão do dinheiro, dos produtos e dos homens,
destacando a empresa tomando o lugar das fábricas e a atividade de marketing
figurando como instrumento de controle social.
Discussões sobre tais modificações de uma sociedade
para outra se mostraram relevantes, principalmente sobre as repercussões da dinâmica
do capitalismo de consumo e relações de um lado de dominação, e de outro, escolha
e liberdade. Em outras palavras, tais formulações produzem a sensação de indivíduos
livres e ativos e, de forma mais invisível, alimentam e fortalecem os
mecanismos de sujeição, modulando “subjetividades controladas” (CHEVITARESE e PEDRO,
2005).
É a partir destas reflexões de cenários e deslocamentos,
das Sociedades Disciplinares para as de Controle, que Han (2018a) identifica a
transição para uma nova sociedade que se constitui em sintonia com o regime neoliberal
deixando de se apoiar na “biopolítica que se organiza como corpo para dar lugar
a ‘psicopolítica’ que se comporta como alma” (HAN, 2018a, p.30).
A psicopolítica como técnica de dominação abandona
a ideia de determinação de deveres e condução coercitiva do outro, através das
disciplinas rígidas e micropenalidades sobre o corpo. Como previsto por Deleuze,
“muitos jovens pedem estranhamente para serem motivados, solicitando por novos estágios e formação permanente”
(DELEUZE, 2000, p. 226). Sucede-se, portanto, uma nova tecnologia de poder e de
dominação do indivíduo, sujeitos à “liberdade” de suas próprias “iniciativas pessoais:
em que cada um se comprometa a tornar-se ele mesmo” (HAN, 2015, p.26), configurando
uma nova perspectiva de “economia do si-mesmo”.
A Sociedade do Desempenho e do Cansaço: o excesso
de positividade e a ausência de negatividade
Han (2015) recupera as discussões de disciplina e
controle, apresentando um novo locus de
análise, antes centrado nas instituições tradicionais e, agora, ofertado em uma
miríade de espaços como academias, shoppings, bancos, aeroportos que constituem
o cenário da Sociedade do Desempenho como
denominou e, por efeitos correlatos, uma Sociedade do Cansaço.
O paradigma que se instaura, agora, vislumbra não
somente uma mera geração de produção, mas sim sua maximização de circulação de
bens e, sobretudo, de produção imaterial com a ampliação do mundo digital, e o crescimento
de lucros. Substitui-se a disciplina pelo desempenho ou “pelo esquema positivo
do poder. A positividade do poder é bem mais eficiente que a negatividade do
dever” até porque “o poder, porém, não cancela o dever” (HAN, 2015, p.25). A
positividade é descrita pelo autor como um estímulo à hiperatividade que
facilita a maximização da produção. Tal lógica edifica uma nova tipologia de sujeito,
que ainda que seja disciplinado, não o é produzido por outro e, sim, por si
mesmo, se mostrando um empreendedor de si
mesmo. Neste sentido, almeja acumular projetos diversos, guiado pela própria
motivação, se mostrando mais ágil e ávido por resultados, comparativamente àquele
da obediência.
Na Sociedade do Desempenho, Han observa o
estabelecimento de um panóptico digital de “permeabilidade transparente
aperspectivística[5]” (HAN,
2017b, p.57). Diferentemente do panóptico de Bentham, fenômeno da Sociedade Disciplinar,
a vigilância, agora, opera através de redes sociais e bancos de dados, os Big
Data. Pode-se assemelhar a configuração do panóptico digital presente na atual
Sociedade do Desempenho e da Transparência àquela da Sociedade de Controle descrita,
um tanto profeticamente, por Deleuze.
Quando
o sujeito compartilha (aparentemente) livre e digitalmente todos os âmbitos da
vida em rede, perde sem perceber a privacidade de suas informações pessoais, na
medida em que se permite, de forma atuante e voluntária, um nível de exposição que
reduz sua existência humana a um mero potencial de relações comerciais no tempo.
Ele se torna um número, ou um conjunto de informações de seus padrões de consumo
mapeados e avaliados por algoritmos, tratados em grandes coletivos de dados. Han
(2021c) destaca os riscos éticos do Big Data e da psicopolítica digital sobre
a existência humana:
O Big Data torna possível prognósticos do comportamento humano. O futuro será, desse modo, previsível e manipulável.
(...) O Big Data produz um saber de dominação. Isso torna possível intervir na psique humana e
influenciá-la, sem que a pessoa a quem isso foi feito perceba. A psicopolítica digital degrada a pessoa humana
em um objeto quantificado e manipulável. (...) Com isso, o Big Data
anuncia e é indício do fim da vontade livre (HAN, 2021c, p. 44).
O filósofo ressalta a intervenção imperceptível
sobre as nossas deliberações e vontades, destacando a “indistinguibilidade das relações
de liberdade e controle” (HAN, 2021c, p. 54) prevista por Deleuze (2000), visto
que as ações do sujeito empresário de si mesmo lhe são concebidas como próprias
e voluntárias. A gestão de Big Data por grandes corporações acaba por gerar
uma “valoração de tempo de vida como cliente” que consome, navega, deseja, toma
decisões e comunica suas ações em rede, para “transformar a pessoa humana
inteira, toda sua vida, em um valor puramente comercial” (HAN, 2021c, p.41). Tais organizações, recursivamente, estimulam a
“desproteção digital”, a hiperatividade e a hipercomunicação. Garante-se assim a
conectividade entre os indivíduos, sem qualquer capacidade crítica por parte do
sujeito, seja em relação ao contexto coletivo ou à sua conduta individual, em
defesa da eficiência do sistema capitalista neoliberal.
Os estímulos no panóptico digital são bem-sucedidos
porque ocorrem por um tipo de poder inteligente que alisa, encanta, seduz e analgesia
as pessoas (HAN, 2021a) que se “submetem à relação de dominação ao consumirem e
comunicarem, ou seja, ao apertarem o botão para dar likes” (HAN, 2021c, p.57). Tal tipo de poder não se materializa por
força, disciplina, proibição e obediência, mas, sim, por cadência de partilhas,
curtidas e pelo prazer instantâneo que afaga a psique humana.
É interessante considerar que ainda que Deleuze
tenha previsto as relações de controle e liberdade se fundindo na Sociedade de Controle, é possível perceber em sua análise mecanismos
de coação externos articulados ao controle dos indivíduos:
(...) Com
uma estrada que não se enclausuram pessoas, mas ao fazer estradas,
multiplicam-se os meios de controle (...) e que elas podem trafegar até o
infinito e ‘livremente’, sem a mínima clausura, e serem perfeitamente controladas.
Esse é o nosso futuro (DELEUZE, 2012, p.12).
Na continuidade da Sociedade de Controle para a Sociedade do Desempenho, amplia-se
a ideia de que as bases do controle não são mais localizadas e, sim,
pulverizadas e despolarizadas. Desse modo, se tornam transparentes para dar vazão
ao capital, com suas mercadorias consumíveis, circuláveis, sem distância e sem
resistência, alicerçando, assim, a lógica do inferno do igual (HAN, 2017c). O
sujeito e demais frequentadores do panóptico aperspectivístico passam a edificar
e manter tal dispositivo, inclusive, como produtores dos meios de controle e
vigilância. E isto se manifesta por “vontade própria” e, não mais por coação
externa, agindo, portanto, de forma ativa e voluntária (HAN, 2017c; 2021c).
É nesta toada que Han (2015) concebe, contra intuitivamente,
em sua teoria, a ideia da variação entre as noções de positivo e negativo para
explicar os mecanismos de produção de subjetividade na Sociedade do Desempenho. Desse modo, nos adverte que a violência
neuronal não provém da negatividade,
mas, sobretudo, do exagero de positividade (HAN, 2015), da incapacidade de processamento do indivíduo em um mundo
de hiperprodutividade em franca aceleração. A positividade é percebida pelo
excesso de estímulos, informações, circulação de bens materiais e imateriais
(como, por exemplo, a aparência) e impulsos (HAN, 2015). Isto se caracteriza, na
visão do autor, como uma violência invisível que acomete o sujeito (HAN, 2017a)
e ocorre quando o empreendedor de si mesmo rejeita a negatividade
do outro, sendo esta considerada uma violência brutal (HAN, 2017a).
De um lado, a negatividade se caracteriza, no
instante inicial, como algo que provoca limite, tensão, dor, conflito. De outro,
atos que envolvem um chamamento ao pensar, de ruminar sobre algo, se demorar sobre
o outro e os significantes, refletir, contemplar e poetizar a vida. O autor
explica que tais sentimentos e atitudes são práticas negativas que provocam tensionamentos,
mas que nos “imunizam” com o tempo, nos “protegendo de uma violência maior”. Em
contraposição, na dinâmica da positividade, o sujeito se autoexplora em meio a uma
abundância de estímulos, informações e impulsos oriundos da superprodução, do super
desempenho ou da super comunicação para responder ao imperativo do desempenho, do
poder ilimitado e da cultura de significados (HAN, 2020a). “Se o verbo da Sociedade
Disciplinar era dever, o da Sociedade do Desempenho é poder” (HAN, 2017a).
Consequentemente, há uma falta de defesa imunológica[6] face
à violência da positividade imanente
ao sistema. A dialética da negatividade (HAN, 2015) permite a infiltração e o contraste do outro, que inicia
um processo de defesa, imunizando o sujeito do outro e, também dele mesmo, de
seu si narcísico. Ao negar-se ou descapsular-se de seus processos ensimesmados permite-se
algum nível de violência da negatividade do outro no si, que culmina, ao fim e
ao termo, por lhe fruir e infundir vida (HAN, 2018a).
Assim, a dialética da negatividade (HAN, 2015) ao tempo que cria tensão,
no desfecho, também oferece “cura”. A questão que Han suscita é que vivemos um inferno
do igual em que se explora a
violência da positividade pelo excesso do igual ou pela proliferação de idênticos (HAN, 2018a) e ficamos expostos
a um alter que, sem se valer de sua diferença, não estimula a atividade
de nosso sistema de defesa e nem nos impele a fazer escolhas. Cabe, portanto,
investigar melhor o problema da alteridade no âmbito da Sociedade do Desempenho
em que vivemos.
Em tempos de abundância de coisas, do consumo desenfreado,
de informação, de comunicação, e de maximização da produtividade, a Sociedade do
Igual não parece se dispor a mediações, nem estabelecer diálogos com abertura
para alteridade e a diferença, tampouco se lançar para a atividade crítica e construtiva
da experiência do pensamento. Na concepção de Han, tais atitudes ameaçam à
capacidade humana de desenvolver defesa imunológica, de evitar estados
patológicos como os da depressão e do burnout e, sobretudo, limitam as
possibilidades do refazimento do si mesmo.
Alteridade atópica e o papel do Eros
No cenário contemporâneo, um dos elementos que cabe
destaque é a ressignificação na noção de “confiança”. Se antes confiar dependia
da articulação de relações humanas e laços sociais, hoje tal atitude encontra-se
submetida à dinâmica tecnológica do monitoramento contínuo. O sujeito troca a prática
da confiança em um outro com o qual relaciona-se, pelo controle através do
registro absoluto das experiências vividas, seja por meio de câmeras, por emprego
de GPS ou outros mecanismos de rastreamento, por sua própria autoexposição nas redes
sociais ou pela coleta de dados sobre suas atividades de navegação – fatores estimulados
atualmente pela internet das coisas e pela inteligência artificial. Assim, Han
nos relata que
confiar torna possível as relações
com as outras pessoas, mesmo sem conhecê-las bem. A conexão digital torna mais
fácil obter informações, na medida em que a confiança como prática social é
cada vez mais insignificante. Ela dá lugar ao controle. A sociedade então, tem uma
estrutura similar à sociedade do controle. Onde informações são obtidas de modo
muito fácil, o sistema social da confiança passa a ser de controle e transparência
(HAN, 2021c, p.53).
Embriagamo-nos pela proximidade que a conexão digital
viabiliza, perdendo a capacidade de um “olhar distanciado, um pathos da distância”
(HAN, 2018b, p.11), um respeito que requer uma atenção ao nosso observar e conviver
ligados à “nominalidade” (HAN, 2018b. p. 14). Trocamos o respeito de modo
nominal em prol de uma comunicação mais anônima, ágil, e abundante de dados, desconstruindo
ideias de respeito e confiança como laços sociais apoiados na “crença nos nomes”
(HAN, 2018b. p. 14). Com isto, permite-se a aparência e a exposição desmedida em
favor de “controle e transparência”.
Em função da não participação do alter
nominal em diálogo com o sujeito do desempenho, “a rede transforma-se numa
caixa de ressonância especial, numa câmara de eco da qual foi eliminada toda a
alteridade, toda a estranheza” (HAN, 2018c, p. 14) – fenômeno que tem ocorrido
de maneira imperceptível na atualidade. Ao
tempo em que as relações de indivíduos são cada vez mais “anônimas”, sem respeito
e confiança apoiada em laços sociais, há também uma perda de mediação, de importância
e de interação com a negatividade da alteridade. Tal fenômeno se configura mais
evidente, principalmente, com a eliminação da alteridade atópica (HAN, 2017a). Desarticula-se a possibilidade
de uma experiência com o outro concebido enquanto instância não determinada e
previsível, ou seja, elimina-se a percepção daquele outro que apresenta características
que não podem ser mapeadas, cartografizadas, visto que se desenvolvem por relações
de diferença. A alteridade atópica tem forma assimétrica e disruptiva, é “sem-lugar”
em função da potência de sua singularidade. Isto se deve ao fato de que “a
cultura atual da comparação constante não admite a negatividade do atopos”
(HAN, 2017a, p.9).
A falta de uma experiência do tempo que permite o acolhimento do outro
(HAN, 2021b) recai num tempo do ego, centrado no esfriamento e indiferença à
alteridade. Tal comportamento esgarça a possibilidade da vivência de
experiências de velamento e sedução e, consequentemente, compromete-se o
vínculo emocional. O que se quer na Sociedade do Desempenho é o outro igual, para
que se borrem os limites entre o sujeito e o outro, de modo que sejam amorfos,
não havendo distanciamento, nem negatividade, nem dor, nem diferença, falta ou
ausência. “Sem distância, a mística e a sedução não são possíveis” (HAN, 2021c,
p. 140).
Recuperar o eros, é na visão de Han, ter capacidade de sair da auto-centralidade
e abrir-se verdadeiramente para a alteridade, suas diferenças e formas
distintas. É poder olhar o outro nos olhos, ouvi-lo e reconhecer sua alteridade
e idiossincrasias. Han (2018c) em diálogo com Heiddeger[7], discute
a aspiração do outro, ligando eros, sua diferença e a atividade de pensar,
sobretudo para o alcance de um processo de cognição que o sujeito ainda não foi
capaz de acessar. Assim, “eros conduz
e seduz o pensamento pelo intransitado, pelo outro atópico” (HAN, 2017a, p. 91),
sendo, portanto, responsável por vitalizar e transformar o pensamento.
Sem eros, o sujeito se extravia, e só vê
significado onde reconhece a si mesmo. É só quando se dá conta de não-poder-poder
que surge o outro.
Não por acaso, Sócrates enquanto
amante, chama-a de atopos. O outro que eu desejo (begehre)[8] e
me fascina é sem-lugar (...). Não é apenas a oferta de outros outros que contribui
para a crise do amor, mas a erosão do Outro, que por ora ocorre em todos os âmbitos
da vida e caminha cada vez mais de mãos dadas com a narcisificação do si-mesmo.
(...) O eros é precisamente uma relação com o outro, que se radica para
além do desempenho e do poder. Seu verbo modal negativo é não-poder-poder (HAN,
2017a p. 6-13).
O que Han procura explicar é que há um
processo de oferta não apenas de “outros outros” que coloca em risco a recuperação
do eros, mas sobretudo por uma erosão paulatina do Outro. Ao se
relacionar com o outro igual em relações de desempenho, perde-se de vista quem
ele é, o que o constitui como significante, o que pode oferecer de diferente e singular.
Em tempos da narcisificação do si mesmo, que se distingue da ideia de
desenvolver-se o amor-próprio, e ao se dar conta do não mais poder, o sujeito percebe
que “é a alteridade que sustenta o outro como determinação essencial” (HAN,
2017a, p.25). A negatividade da alteridade e a atopia do outro se subtraem de
toda e qualquer normatização, sendo base constitutiva para a experiência erótica
(HAN, 2019). Desta forma, eros não se
submete ao poder hegemônico e, por consequência, é atopos. Recuperar o eros
é na visão de Han, algo constitutivo das relações do amor em sua forma mais peculiar
e originária, sem meramente possuir, reconhecer e apreender o outro, que são
formas de poder e dominação.
Engdahl (2020) acompanha o raciocínio de Han (2017a) e discute o
desaparecimento do outro, em vivências de distorção e abordagem quantitativa da
conjugalidade. Para a autora, em tal processo, o amor é visto como um negócio:
com o “tu podes” destacado por Han
(2017a), a alteridade é retirada de cena tornando-se impossível ter atenção ao
outro como desejo absoluto, o que pressupõe uma “perda da temporalidade do amor”
(HAN, 2021c). A autora retrata que em tais experiências, em que o outro vai
sendo erodido e desprezado, o eros vai
sendo descaracterizado, se tornando uma fórmula de prazer e consumo entendida
como performance e não como experiência erótica. Han (2021c, p.154) tematiza
também tal abordagem quando cita que “não há mais amor, pois nos supomos
livres, pois escolhemos entre demasiadas opções”. Engdahl procura explicar que,
numa cultura de ênfase em liberdade e independência individual, o outro é
negligenciado para manter intacta a própria identidade pessoal ou para evitar-se
a perda de autoestima. No entanto, a autora elucida que “tanto identidade
pessoal e autoestima dependem dos aspectos do amor de liberalidade e entrega”
de forma generosa (Engdahl, 2020,
p. 26), porque depende-se da diferença radical do outro para o desenvolvimento
de uma unidade. Similarmente, Han (2017a) noz diz que
um
sujeito do amor é tomado por um tornar-se-fraco
todo próprio, que vem acompanhado por um sentimento de fortaleza ao mesmo
tempo. Mas esse sentimento não é desempenho próprio de si mesmo, mas o dom do
outro (HAN, 2017a, p.11).
Como nas passagens de Engdahl (2020) e Han (2017a) acima descritas, às
ideias de estima e unidade soma-se também a de estabilidade relatada por Han (2018c,
p.31) pela qual “um eu estável (...) surge somente em presença do outro ou que
o resgata de seu inferno narcisista”. Ainda que eros represente um papel dual porque o outro ao tempo que é o amado
é também o inimigo (HAN, 2021c), e que não posso assimilar completamente, é só através
dele que se é “capaz de vencer a depressão” (HAN, 2017a, p.11). Estar deprimido
é se ver “incapaz de amar”, é estar em “insolvência psíquica”.
Na análise de Han sobre a constituição da alteridade, evidencia-se que este
outro pode ser reconhecido como uma força, uma potência atópica que tensiona o
que está presente, articulando mecanismos de dualidade, porque limita, questiona,
mas também acolhe quando nos retira da interioridade narcísica. Quando nos
encapsulamos, perdemos a possibilidade de vê-lo em sua alteridade dado que nos
inundamos por nosso próprio mundo, nossa própria imagem, permanecendo no próprio
alcance do si mesmo (HAN, 2021c). Han (2018c) destaca um aspecto enigmático do
outro nas relações de amor e cita Nietzsche[9]
para trazer um outro exemplo do papel dual da alteridade do outro em enlace ao
si mesmo. O enigma do amor para Han, nesta leitura de Nietzsche, está em
aprender a decifrar a alteridade do outro e a de si mesmo. “Negar” o outro
significa lidar com suas características singulares, suas diferenças mesmo que
sejam contrárias, sem eliminá-lo. Quando a dualidade falta, o sujeito “funde-se
consigo mesmo” fadigado num tempo do si mesmo
(HAN, 2018c).
Han (2021b, p. 37) destaca que uma recuperação erótica das relações de
alteridade atópica demanda que “o retorno para si” não deva ser interpretado
como uma apropriação violenta do outro, mas, sim, como uma experiência que
acolhe a dádiva do outro, que traz consigo uma fraqueza do si em “poder
não poder”, uma renúncia, um abandono e entrega do si para se abrir ao outro. Trata-se
de reconhecer o outro como “dádiva” e conceder a ele nova experiência de
temporalidade, distinta da aceleração que é própria a vida contemporânea. Tal
perspectiva em nada relaciona-se com aquela interpretação que diria que “meramente
me aproprio de uma parte do outro, de modo que eu permaneço inalterado em mim mesmo”
(HAN, 2021b, p. 38). O amor como entrega mútua é uma dinâmica conativa de
sobrevivência que permite a pergunta sobre o “bem-viver” (HAN, 2020b), experiência
capaz de “vulneração e paixão”, de produzir uma duração, “uma clareira no tempo”,
e de envolver-se em uma “metamorfose” (HAN, 2017a; 2021).
Caberia refletir, como síntese, de que se está diante de um outro atópico
difícil de ser cartografizado, por ser singular, incomparável e, por vezes,
indisponível. De um eros assimétrico
que desequilibra o sujeito através de seu papel dual para depois balanceá-lo e,
que, ao tempo que tensiona, se ausenta e o enfraquece, mas também acolhe,
fortifica e estabiliza. E fundamentalmente, por via de seus significantes, sua
diferença, e sua dádiva, este outro sendo quem é, nega, descapsula e transforma
o sujeito em algo que, sozinho, seria improvável de edificar. Ele nutre a
cupidez “pelo que ainda não há”, pelo porvir (HAN, 2017a). Deve-se assim, enquanto
horizonte ético de reflexões filosóficas, aprofundar a investigação acerca da
problemática do lugar do outro, das relações de troca e da recuperação da alteridade
atópica no cenário da Sociedade do Desempenho e da Transparência.
Considerações Finais
O problema da alteridade configura-se na Sociedade
do Desempenho diante da compreensão de que reconhecer o alter passa a
ser um mecanismo de lida com a negatividade, com o tempo e a mediação. Tais
elementos fogem aos padrões exigidos pelo capitalismo contemporâneo e pelo
mundo digital no qual estamos inseridos. Fomenta-se a positividade, a formação de
idênticos amorfos sob os efeitos narcísicos, em face da lógica da sociedade do
igual que precisa equalizar tudo ao seu redor para enfatizar o trabalho, acelerar
a comunicação e informação, circular a produção material e imaterial, tudo
submetido à máxima visibilidade (HAN, 2017a; 2017b; 2018c; 2021a; 2021c).
Reconhecer a importância da experiência de uma alteridade
atópica é um caminho que leva a produção em sentido amplo de diferença, pois
exige o diálogo, o reconhecimento da negatividade do outro, que demanda lidar com
seu tempo, sua atopia, seu corpo, seu pensamento e seu letramento. Isto representa
muito mais que ser um sujeito compassivo. Trata-se de renovar o olhar sobre seu
papel, bem como seus imbricamentos no refazimento do si e estar aberto a experiência
de sentir, e de pensar sobre o bem-viver, não estando submisso a uma mera economia
do sobreviver e expressar afetos narcísicos (HAN, 2017a; 2021c).
Este artigo explorou como Han (2015) desenvolve sua
investigação a partir dos deslocamentos da Sociedade Disciplinar para Sociedade de Controle e os efeitos desta análise
com o surgimento da Sociedade do Desempenho e do Cansaço. Versou ainda sobre a variação entre os conceitos
de positividade e negatividade, proposta por Han (2015), para fundamentar
os mecanismos de produção de subjetividade na Sociedade do Desempenho.
Dispersa e regida pelo sistema do igual (HAN, 2017b) por influência do sistema capitalista
neoliberal, pela hiper valorização de ações
individuais e por uma padronização do pensamento, tal forma de sociedade compreende alguns fenômenos observáveis,
a saber: a transformação de objetos,
pessoas e sentimentos em consumíveis, o achatamento das diferenças e singularidades,
o desaparecimento da alteridade, da dádiva do outro e a violência neuronal resultante
do excesso de positividade (HAN, 2015; 2017a).
Como vimos nos cenários de deslocamento das sociedades,
percebemos distinções e modificações nas relações de poder e o papel da
alteridade figurando em cada uma delas. Ao recapitular-se tais caracterizações
societárias, pode-se defrontar nas disciplinares, tipicamente uma sociedade da
negatividade, com um outro opressor distribuído em várias figuras de forma anônima,
em uma configuração de vigilância e punição desejante por governar o indivíduo
e fabricar seu potencial de produção.
Na Sociedade de Controle, este papel de uma alteridade
“opressora” vai se dissolvendo para que na Sociedade do Desempenho, pulverize e
desapareça significativamente. O sujeito do desempenho é envolto numa sociedade
da positividade e do imperativo econômico, cujos mecanismos de poder são deslocalizados
e sedutores, não permitindo espaço para mediação com o outro. Em outras
palavras, o sujeito percebe-se como um projeto livre e em modulação contínua
por si mesmo. Fecha-se e só se relaciona consigo, não percebendo os mecanismos
de autoexploração e autocoerção aos quais incorre, ao perder de vista a negatividade
do outro. O sistema é eficiente porque não forma um “nós” para impor resistências.
É um sistema de indivíduos isolados (HAN, 2018b, 2021c).
Segundo Han (2015), não há como reagir de forma
imunológica e firme, ou seja, o sujeito ser capaz de afirmar-se diante do
outro, “negando a negatividade dele” (HAN, 2017c), se há ausência de estranheza
e falta de vínculo à negatividade. Adicionalmente,
Han (2017c, p. 153) diz que “toda e qualquer forma de reação imunológica é uma
reação diante da alteridade”. No entanto, parece ser mais factível para o sujeito
que empreende a si mesmo, submisso a si mesmo, avançar pelo seguinte percurso: se
afastar do lugar do estranhamento, ceder ao apelo ao poder e à vigilância na
microesfera do panóptico digital. E, por fim, tornar aquilo que era estranho em
algo familiar, como confiar em relações construídas pela conectividade no lugar
dos laços sociais contidos na presencialidade e na alteridade do outro. Pela
falsa sensação de proximidade do outro com o domínio da psicopolítica digital, diagnostica-se
a erosão do outro e o processo de falência do pensamento. Compromete-se, assim,
o acesso à possibilidade de experiência do pensamento.
Ao explorar a alteridade atópica e o significado do
eros (HAN, 2017a), com seu papel dual no equilíbrio do si, percebe-se
uma rejeição do sujeito diante deste alter
enigmático e assimétrico. Se o outro é mantido afastado, esta dualidade se esvazia
e cultivamos a vida de forma cinzenta, a partir de nós mesmos: sem mediação,
sem prioridade ética, sem linguagem de responsabilidade (HAN, 2018c). Culmina-se,
portanto, no ápice do fortalecimento do processo de narcisificação e
encapsulamento do si mesmo, o que em sequência, o leva às doenças neuronais a
partir do “não-mais-poder-poder” (HAN, 2015).
Pode-se extrair da visada filosófica de Han que
necessitamos de depreender-nos, sem apressamento sobre as relações entre amor,
conhecimento e transformação, em um exercício de saber filosófico, social e
cultural. A máxima de produtividade, para multiplicar bens e informações sem
opacidade ou velamento, fenômeno típico da Sociedade da Transparência na era
digital, parece não dar espaço para um “morrer-se no outro” convertendo morte
em vida, ao se deixar tocar por uma alteridade atópica, um eros assimétrico, em prol de um retorno conciliador para o si (HAN,
2017a; 2020b). Repensar com sensibilidade o lugar do outro nas condições de ser
e viver do sujeito na contemporaneidade, pode ser um caminho para manter ativa
a vivacidade da vida e a busca pelo bem-viver.
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[1]
Han (2021c, p.54)
descreve a ideia do panóptico de Jeremy Bentham que “concebeu no século XVIII
uma prisão que torna possível uma vigilância completa dos prisioneiros. As
celas são postas em torno de uma torre de observação que dá ao Big Brother uma
perspectiva total. Os prisioneiros são isolados uns dos outros por motivos disciplinares
e não devem falar uns com os outros”. Foucault (2010, p. 227) cita que “o panóptico
é um local privilegiado para tornar possível a experiência com homens, e para analisar
com toda certeza as transformações que se pode obter neles. (...) O Panóptico
funciona como uma espécie de laboratório de poder. Graças a seus mecanismos de
observação, ganha em eficácia e em capacidade de penetração no comportamento
dos homens, um aumento de saber vem se implantar em todas as frentes do poder,
descobrindo objetos que devem ser conhecidos em todas as superfícies onde este
se exerça”.
[2] As doenças neuronais citadas
são a depressão, o transtorno de déficit de atenção com síndrome de
hiperatividade (Tdah), transtorno de personalidade limítrofe (TPL) ou a Síndrome
de Burnout (SB) (HAN, 2015, p.7).
[3]
Foucault
(2010, p. 135) explica que as disciplinas são “métodos que permitem o controle
minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas
forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade”.
[4] A ideia de Foucault (2000)
sobre a concepção de massa é de criar nas raízes da “mecânica do poder” uma “anatomia
política”, de atrelar às instituições de confinamento uma organização espacial de
corpos “dóceis, úteis e inteligíveis” que se fabricam de forma individuante para
formar uma única massa, como se representassem um só corpo. Desta forma, faz-se
a máquina de que se precisa, de forma analisável e manipulável.
[5] “O panóptico digital do
século XXI é aperspectivístico na medida em que não é mais vigiado por um
centro, não é mais supervisionado pela onipotência do olhar despótico. A distinção
entre centro e periferia, essencial para o panóptico de Bentham, desapareceu
totalmente” (HAN, 2017, p. 57). Na verdade, a vigilância e o controle ocorrem
de todos os lados, por todos, o tempo todo.
[6] Han (2021c.p. 150) explica a
ideia de “defesa imunológica” da negatividade em entrevista a Ronald Düker e
Wolfram Eilenberger: “A negatividade é algo que provoca uma reação de defesa imunológica.
O outro é o negativo, então, que se infiltra no próprio, procurando negá-lo e destruí-lo.
Eu afirmei que vivemos hoje uma era pós-imunológica. As doenças psíquicas de
hoje como a depressão, a TDAH ou o burnout não são infecções causadas por uma
negatividade viral ou bacteriana, mas infartos pelos quais é o excesso de
positividade que é o responsável. A violência não parte apenas da negatividade,
mas também da positividade, não apenas do outro, mas também do igual. A violência
da positividade ou do igual é uma violência pós-imunológica. É a obesidade do
sistema que adoece. Como se sabe, não há reação imunológica à obesidade”.
[7] “É difícil exprimir o outro que, juntamente com o
amor por ti, é inseparável do meu pensamento, ainda que seja de modo diferente.
Chamo-lhe Eros, o mais antigo dos deuses, segundo Parménides. O golpe de asa
desse Deus toca-me sempre que dou um passo essencial no meu pensamento e me atrevo
a entrar no não transitado.” (HEIDDEGER, 2005 apud HAN, 2018c p. 70-71)
[8] Begehren é um conceito central no
livro Agonia do Eros. O tradutor criou notas explicativas para
apresentar a tradução desta palavra do alemão para o português. Na versão em
português, begehren é traduzido como “cupidez”; quando o verbo é
conjugado, optou-se por “desejar” (HAN, 2017a p. 11).
[9]
“Em que consiste o amor senão em entendermos, alegrando-nos com isso, que
há outro que vive, age e sente de maneira diferente da e até mesmo oposta à
nossa? Para que o amor ultrapasse as oposições valendo-se da alegria, é necessário
que não as elimine, que as negue. O próprio amor a si mesmo implica como condição
prévia a dualidade (ou a pluralidade) não miscível numa mesma pessoa” (NIETZSCHE,
1967 apud HAN, 2018c, p. 84).
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