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Entrevista com o filósofo e professor Alfredo Storck

 Revista Sísifo. Nº 13, Vol. 2. Janeiro/Junho 2021. ISSN 2359-3121. www.revistasisifo.com 

 

 

 


 Afredo Storck

 

 

 

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Alfredo Carlos Storck é professor titular na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), coordenador do programa de pós-graduação em filosofia da mesma instituição e bolsista produtividade do Cnpq. Foi coordenador do GT “História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga na ANPOF e, atualmente, é presidente da Sociedade Brasileira para o Estudo da Filosofia Medieval (SBEFM). Filósofo, professor, pesquisador, autor de muitos artigos e livros, Alfredo é um de nossos grandes especialistas brasileiros quando falamos sobre filosofia medieval em suas diferentes áreas, merecendo destaque sua reflexão sobre temas acerca da filosofia do direito. Foi com imensa alegria que eu, Camila, fiz o convite ao professor Alfredo para me conceder esta entrevista, o agradeço publicamente por ter o aceito e convido a todos e a todas para a leitura do texto:


  1. Professor Storck, conte-nos um pouco sobre a sua trajetória acadêmica. Como se deu sua escolha pela filosofia e, o que o levou a escolher mais adiante o direito? E, ainda, houve alguma dificuldade ao trabalhar, em seus projetos de pesquisa, temas correlatos as duas áreas do saber?


Minha vida acadêmica esteve e está quase toda ligada à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, universidade na qual fiz minha graduação e mestrado e na qual sou, desde 1994, professor do Departamento de Filosofia. Minha formação, no entanto, não iniciou pela filosofia. Minha primeira intenção era realizar uma formação em matemática e tornar-me professor do que antigamente se chamava primeiro e segundo graus, já que meus pais eram professores da rede estadual de ensino e eu havia feito toda a minha formação em escolas públicas de Porto Alegre.


Ingressei na universidade em 1982. Nesse momento, a ditadura militar instalada em 1964 estava enfraquecendo e o Brasil passava pelo período da redemocratização. Meus interesses pela matemática revelaram-se não serem tão fortes e não demorou muito para eu prestar novo vestibular, ingressar no curso de história da UFRGS e participar das passeatas do movimento Diretas Já. Os anos seguintes foram bastante tumultuados, com importantes e longas greves nas universidades federais. Em 1984, foram 84 dias de greve, no ano seguinte, mais 45 dias de paralisação, e assim por diante. Pessoalmente, tive a sorte de encontrar colegas no curso de história que eram muito engajados política e academicamente. Era bastante comum que acompanhássemos de perto os movimentos grevistas, participando inclusive das assembleias docentes. Paralelamente, organizávamos grupos de estudo sobre as disciplinas do semestre.


Paradoxalmente, foi frequentando o curso de história que descobri meu interesse pela filosofia e, em particular, pela filosofia medieval. Por obra do acaso, o professor que ministrava a disciplina de história da filosofia medieval que eu estava cursando foi substituído durante duas semanas pelo professor Balthazar Barbosa Filho. A imensa qualidade das aulas do professor Balthazar, sua clareza peculiar e a abordagem profundamente interessante que ele fazia de Tomás de Aquino me fizeram repensar meus projetos e considerar seriamente a possibilidade de ingressar na filosofia. Esse momento foi particularmente difícil, pois eu estava abandonando um segundo curso e iniciando um terceiro com oferta de emprego bastante mais reduzida. Considerando de forma retrospectiva, penso que minha decisão foi acertada, mas ela certamente não teria sido possível se a UFRGS não fosse uma universidade pública e se ela não possuísse a riqueza de ofertas que a caracteriza. Sou profundamente grato à universidade pública e ao papel que ela desempenhou em minha vida. Atualmente como professor, trabalho para que a UFRGS continue sendo um espaço amplo de formação e oportunidades. Mesmo que o sistema público de ensino tenha problemas, considero que a universidade pública tem um papel decisivo a desempenhar na produção do conhecimento e nos debates de ideias que caracterizam uma sociedade democrática e plural.


O ambiente que encontrei no curso de filosofia era incrivelmente mais dinâmico que aqueles que eu havia conhecido anteriormente. O Departamento de Filosofia da UFRGS estava em pleno processo de transição, com a saída gradativa de diversos professores que passaram a integrar universidades privadas. Cirne Lima e Ernildo Stein são só dois exemplos. O professor Balthazar passou a organizar a série de colóquios anuais Lógica e Ontologia cuja proposta básica era reunir professores brasileiros e estrangeiros (sobretudo franceses) de diversas orientações filosóficas, mas unidos por compartilharem elevados padrões de análise conceitual e argumentação. A base do grupo envolvia os mesmos professores e os mesmos ideais de sustentação da Revista Analytica, cujo primeiro volume é de 1993.


Após concluir o bacharelado de Filosofia, fui convidado a lecionar em um curso preparatório para juízes do trabalho. Obviamente, não era possível, nesse contexto, trabalhar apenas com o pensamento metafísico medieval e passei a estudar as obras de Kelsen, Hart e principalmente Ronald Dworkin. Aliás, Dworkin ainda não gozava do prestígio que passaria a ter em anos posteriores. Foi ao lecionar filosofia jurídica para futuras juízas e juízes que meu interesse pelo fenômeno jurídico foi despertado. Era necessário, no entanto, concluir minha dissertação sobre o princípio de individuação em Tomás de Aquino, sob orientação do professor Balthazar.


Em 1997, vou para França realizar o doutorado em história da filosofia medieval sob orientação de Joël Biard. O tema escolhido foi a influência de Avicena em Tomás de Aquino, mas o resultado final foi algo como a recepção da teoria aviceniana acerca da acidentalidade da essência na Universidade de Paris no século XIII. O referencial teórico foram as obras que Alain de Libera havia publicado sobre a teoria dos universais e sobre a teoria da abstração. Naquele momento, havia sérias limitações para o estudo da filosofia medieval no Brasil a tal ponto que a CAPES decidiu lançar um projeto destinado a induzir a formação de novos pesquisadores. O professor Ernesto Perini dos Santos, certamente nosso maior especialista em Ockham, mas também grande conhecedor da filosofia contemporânea, e eu fomos contemplados na chamada e estudamos com Biard durante o mesmo período. Ernesto defendeu sua tese duas semanas antes de mim no Centre d'études supérieures de la Renaissance para onde fomos acompanhando nosso orientador que havia sido eleito professor na Universidade de Tours.


Em 2000, o professor Moacyr Novaes passa por Paris e conversamos sobre a possibilidade de criar, com base no Centro de Estudos de Filosofia Patrística e Medieval da USP (CEPAME), um GT de filosofia medieval ligado à ANPOF. Fundamos então o Grupo de Trabalho: História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga. Tive o prazer de coordenar o GT de 2002 a 2009, juntamente com Ernesto Perini. Entre 2009 e 2012, o GT foi coordenado por Rodrigo Guerizoli Teixeira que conheci no congresso da SIEPM no Porto em 2002 quando ele ainda cursava o doutorado na Universidade de Köln. Atualmente, o GT é coordenado pelas colegas Cristiane Abbud Ayoub, professora da UFABC e ex-orientanda do Moacyr Novaes, e por Ana Rieger Schmidt, a quem tive o prazer de orientar na iniciação científica e mestrado.


Em 2016, durante o XVII encontro da ANPOF, foi fundada a Sociedade Brasileira para o Estudo da Filosofia Medieval (http://sbefm.com/). No ano seguinte, foi realizado em Porto Alegre o XIV Congresso Internacional da Société Internationale pour l'Étude de la Philosophie Médiévale (https://hiw.kuleuven.be/siepm). Fundada em 1958, a SIEPM é a principal sociedade científica da área. Essa foi apenas a terceira vez em que o congresso não foi organizado na Europa e foi a primeira vez que foi sediado no hemisfério sul. O evento não teria acontecido sem o trabalho conjunto de colegas pertencentes três universidades: Roberto Hoffmeister Pich (PUC-RS), Alfredo Santiago Culleton (UNISINOS) e o apoio que recebi da UFRGS. Tudo isso demonstra a incrível vitalidade que a área de filosofia medieval tem no país e o aumento significativo na qualidade das produções.


  1. Partindo do primeiro questionamento, como o senhor vê a relação entre a filosofia e o direito? Pensando que se trata de duas áreas do saber que ao mesmo tempo são próximas em certos aspectos teóricos, mas também são distintas em sua práxis: filosofia e direito só se encontram na “filosofia do direito”?


Retomando um pouco minha trajetória pessoal, ao regressar de meu doutorado na França em 2001, passo a cursar Ciências Jurídicas na UniRitter. A escolha da instituição deveu-se em boa medida ao desejo de realizar um curso em uma universidade em que eu não atuava como professor nem tinha vínculos pessoais. Encontrei na UniRitter um grupo de jovens doutorandas/os e recém doutoras/es em Direito e que possuíam uma proposta bastante inovadora e ousada para o funcionamento do curso. O currículo era organizado de modo que as disciplinas possuíam conteúdos integradores. Para cada bloco, clássicos da literatura eram escolhidos para servirem de ancoragem de análises jurídicas e dos fenômenos sociais. A primeira disciplina do curso era de Direitos Fundamentais, ministrada pelo desembargador federal Roger Raupp Rios que tem desenvolvido um trabalho fantástico sobre direitos sexuais. O núcleo era pensar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, as formas e técnicas interpretativas exigidas pela prática jurídica e o modo como o nosso ordenamento jurídico afirma direitos em várias esferas da vida, como sexualidade, transexualidade, travestilidade, religiosidade, laicidade etc. O tratamento técnico conferido pela jurisprudência do STF aos conflitos entre direitos e garantias fundamentais seria melhor compreendido se fossem levados em conta debates filosóficos sobre, por exemplo, o que significa interpretar um texto jurídico, qual a diferença entre regras e princípios jurídicos (e aqui entrava Dworkin) ou como dar sentido aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade (Robert Alexy era uma das principais referências). Para quem se interessar, o Roger possui diversas entrevistas e palestras disponíveis no youtube.


Outro professor que tive o prazer de conhecer e que acabou orientando minha monografia de final de curso foi Bruno Nunes Miragem, doutor em direito do consumidor e grande conhecedor da história do direito, em particular do direito civil e de suas origens romanas. Bruno Miragem não ensinava apenas a pensar os ramos tradicionais do direito à luz de sua história, como o direito das coisas, por exemplo, mas fazia isso ao mesmo tempo em que se preocupava com direitos novos e em como constituir tecnicamente um novo ramo, no caso, o direto do consumidor. Obviamente, a delimitação dos contornos jurídicos de um novo direito é uma constante na prática jurídica, mas ela não é simplesmente um mero resultado dessa prática. Elementos políticos estão envolvidos, em maior ou menor grau. Um exemplo claro estudado no curso era o impacto do
Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, elaborado em 1995 durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso e que serviu de guia para diversas reformas constitucionais pelas quais passou o país. Esse é um exemplo evidente de que concepções políticas e filosóficas não são apenas meras ideias e que as disputas que as envolvem não são simples discussões teóricas sem repercussão prática. Bem ao contrário. A partir do momento que se reconhece que concepções políticas e filosóficas estão consubstanciadas em regras e práticas sociais, seja na forma que adota o aparelho estatal, ainda na forma de direitos que são reivindicados, então passa-se a perceber mais claramente o impacto real que a filosofia possui na vida do dia a dia.

Respondendo mais especificamente à provocação inicial segundo a qual “filosofia e direito só se encontram na “filosofia do direito”, eu diria que essa maneira de apresentar o problema parte da consideração de que a prática jurídica pode ser vista como autônoma e independente de outras práticas sociais e que a consideração filosófica acerca do direito estaria situada em outro nível. Estaria mais propriamente no nível metajurídico, uma vez que seria uma consideração acerca da prática jurídica e não uma consideração realizada no interior da prática jurídica. Nesse sentido, o filósofo do direito estaria em posição semelhante à do filósofo da matemática que discute o que é uma demonstração em matemática. Não se trata, nesse caso, de matemática, mas de um discurso acerca da matemática. Há boa dose de verdade nessa caracterização, já que é possível caracterizar as técnicas jurídicas como técnicas que regulam a validade de atos jurídicos. Por exemplo, pode-se estudar as formas de união estável no ordenamento jurídico brasileiro e quais são os procedimentos para que uma determinada união seja reconhecida como estável. Além disso, é igualmente possível, mas já no nível filosófico ou metajurídico, indagar pelas condições necessárias para que um conjunto de regras constitua um ordenamento jurídico. Nesse momento, direito e filosofia do direito seriam dois campos distintos.


Entretanto, é possível colocar a disputa de um outro modo. Por exemplo, como saber se as formas atualmente reconhecidas de união estável pela jurisprudência de nossos tribunais são ou não discriminatórias de certos grupos sociais, devendo, portanto, ser ampliadas? Nesse caso, passa a estar em jogo uma interpretação acerca de valores fundantes de nosso (mas não necessariamente de todo) ordenamento jurídico. A resposta oferecida não será apenas filosófica, no sentido de ser uma consideração absoluta baseada apenas na noção de igualdade e aplicável a todo ordenamento jurídico. Não será, todavia, exclusivamente jurídica, no sentido de recorrer unicamente a técnicas de reconhecimento da validade de atos jurídicos em nosso ordenamento. Obviamente, casos desse tipo não constituem toda a prática jurídica. Entretanto, eles também não são raros e surgem quando é questão de se saber se um direito, em sua forma positivada, recobre todas as reivindicações de direitos que as pessoas se julgam moralmente aptas a poder reivindicar. Não é raro que as disputas travadas nesse campo se tornem políticas e essa é uma das razões pelas quais considero haver um vínculo estreito entre filosofia jurídica e filosofia política. As reivindicações de titularidade de direitos morais que não estão reconhecidos no ordenamento positivo põem em xeque o modo como a sociedade distribui benefícios sociais.


Voltando agora à minha atuação acadêmica, minhas preocupações a respeito do modo de conceber as relações entre teoria do direito e filosofia política levou-me a constituir juntamente com alguns colegas o Seminário de Filosofia do Direito da UFRGS (http://www.ufrgs.br/seminariodefilosofiadodireito). O Seminário foi criado em 2010 apenas com o professor Wladimir Barreto Lisboa. Wladimir é professor da Faculdade de Direito da UFRGS, com graduação em Ciências Sociais e Jurídicas, mestrado em filosofia pela UFRGS e doutorado em filosofia política pela Sorbonne. Posteriormente, ingressaram no Seminário os professores Paulo MacDonald, também professor na Faculdade de Direito, e Nikolay Steffens, professor do Departamento de Filosofia, com formação em Ciência Política e doutorado em Filosofia. O Seminário caracteriza-se por promover eventos acadêmicos regulares sobre filosofia jurídica e política, por envolver uma disciplina semestral dos cursos de mestrado e doutorado em filosofia da UFRGS, e por contar com a participação de discentes cuja origem é tanto a filosofia quanto o direito.


  1. O professor vem se dedicando em seu último projeto de pesquisa a estudar a recepção da filosofia escolástica no Brasil, qual a importância histórico-filosófica de pensarmos e investigarmos sobre uma filosofia lida, reinterpretada e feita no Brasil Colônia?


O projeto Scholastica colonialis foi inicialmente concebido pelos colegas Roberto Pich e Alfredo Culleton tendo como ponto de inflexão as transformações pelas quais passa o pensamento medieval no processo de transmissão para o início da modernidade, mais especificamente em sua transmissão para as Américas. Em certa medida, o projeto segue os passos de historiadores como Walter Redmond, Vicente Muñoz Delgado, Mauricio Beuchot, Celina Ana Lértora Mendoza, José Carlos Ballón Vargas, dentre outros. Mesmo partindo dessa base, o trabalho que resta ainda a ser feito é imenso, pois há uma quantidade incalculável de manuscritos em bibliotecas públicas e de mosteiros que precisam ser editados, traduzidos e analisados para que se possa ter uma compreensão mais precisa acerca da originalidade da produção e de seu impacto na formação americana. Graças ao trabalho do Roberto, do Culleton e de suas alunas e alunos, nossa compreensão tem avançado consideravelmente.


Minha contribuição para o projeto inicia em 2011 e tem tido por foco basicamente a recepção da filosofia jesuítica nas colônias portuguesas da América. Tenho procurado trabalhar sob duas perspectivas. A primeira é mais política e entende o projeto jesuítico como dependente do projeto de expansão colonial da coroa portuguesa. O projeto jesuítico é também colonial, mas ele não pode ser visto exatamente no mesmo sentido do da coroa, o que fazia com que houvesse constantes tensões entre os dois projetos. Meu ponto de partida é a delimitação do lugar ocupado pela Companhia de Jesus no interior da Igreja Católica pós-Tridentina e o modo como pensadores jesuítas se posicionaram durante os conflitos envolvendo a Igreja e a consolidação das monarquias europeias. Seguindo alguns ideais retirados da tradição jurídica romana e transmitidos pelo Corpus Iuris Civilis, os juristas-teólogos tenderam a encontrar na noção de direitos naturais limitações ao poder absoluto dos monarcas. Havia três questões básicas que mereciam resposta: 1) qual a origem da comunidade política e do poder civil e quais as limitações desse poder; 2) qual a origem do poder do Papa e as limitações desse poder frente ao movimento Conciliarista; 3) como entender aquilo que o Cardeal Belarmino caracterizou como a potestas indirecta do Papa sobre a autoridade civil. No Brasil colonial, esses problemas emergiram seja na forma de debates internos à Companhia de Jesus, como o célebre debate entre Manoel da Nóbrega e Quiricío Caxa acerca da possibilidade de escravização voluntária, seja em disputas envolvendo jesuítas e colonos portugueses acerca dos direitos das pessoas escravizadas e das limitações do poder de senhores ao aplicarem castigos cruéis. Os escritos de Jorge Benci nos fornecem boas evidências desses debates.


A segunda perspectiva está ligada ao ensino formal dispensado nos colégios jesuíticos das colônias portuguesas. Há certamente um componente político importante em uma ordem que propunha um sistema de ensino intimamente associado ao projeto catequizador. Importa-me, contudo, apontar de maneira mais específica o lugar reservado para o ensino filosófico como preparatório aos estudos de Teologia, Direito e Medicina. Dispomos de muitos poucos textos produzidos nas colônias, mas o pouco que nos resta permite entender, para citar alguns exemplos, o papel dedicado ao ensino da lógica, quais eram as principais teorias em conflito, qual o papel reservado a autores como Tomás de Aquino, Duns Scotus e João Baconthorpe na caracterização dos universais de quais eram os principais manuais que serviam de livro texto para os estudos. Também nesse caso, há muito a ser investigado e não deixa de causar surpresa encontrarmos em todos os departamentos de filosofia do país especialistas sobre a filosofia dos séculos XVII e XVIII, sendo raros os cursos que abordam a recepção da filosofia no período colonial.


  1. Por fim, como sabemos, o momento que o ensino e a pesquisa, não só na filosofia, mas em todas as áreas do saber, passam em nosso país é bastante delicado. Como coordenador de um programa de pós-graduação, o senhor enxerga novos rumos para as ciências humanas no Brasil futuro?


Inegavelmente, o momento é de muitas incertezas. Ao responder a primeira pergunta, fiz questão de apontar o imenso desenvolvimento que a filosofia conheceu no Brasil desde a época em que cursei a graduação até o presente. Todo o sistema parece estar agora sob forte ataque. No caso das licenciaturas, as reformas previstas na Base Nacional Comum Curricular alterarão em muito os atuais currículos, sem que se tenha certeza da direção que será adotada. Não sou especialista no tema, mas os colegas que trabalham diretamente no ensino médio não param de soar a sineta de alarme para o que vem pela frente. No caso da pós-graduação, o caos tende a ser ainda maior. A CAPES e o CNPq têm realizado cortes sistemáticos nos recursos destinados ao pagamento de bolsas de mestrado e doutorado. O CNPq introduziu novos procedimentos para atribuição de bolsas aos cursos em um processo bastante confuso, para dizer o mínimo. A CAPES está com o processo de Avaliação Quadrienal 2017-2020 suspenso por decisão judicial. Além disso, já deveríamos estar iniciando a implementação de uma nova sistemática de avaliação para a pós-graduação brasileira, seguindo um modelo multidimensional mais afeito ao que é praticado em outros países. Por fim, o Plano Nacional de Pós-Graduação (PNPG) que define as diretrizes, estratégias e metas para a pós-graduação encerrou em 2020 e ainda estamos à espera de uma nova política para a pós-graduação. Frente a um quadro como esse, não há motivos para sermos otimistas. Resta-nos, todavia, continuar apostando na capacidade de recuperação da universidade e no potencial que ela possui para contribuir para o desenvolvimento do país. Essa tem sido uma aposta que fizemos e que trouxe resultados importantíssimos para o Brasil. Fora dessa aposta, não há muito o que fazer, pois, se a aposta fracassar, o país inteiro terá fracassado.


Porto Alegre, outubro de 2021.

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