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Do imprescindível componente teojurígeno e mitopoético na formação do humano.

 Revista Sísifo. Nº 13, Vol. 2. Janeiro/Junho 2021. ISSN 2359-3121. www.revistasisifo.com

 

 

Willis Santiago Guerra Filho

Professor Titular do Centro de Ciências Jurídicas e Políticas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Professor Permanente no Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Bacharel em Direito e Livre Docente em Filosofia do Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC).  Doutor em Direito pela Universidade de Bielefeld (Alemanha). Doutor e Pós-Doutor em Filosofia pelo IFCS-UFRJ. Mestre em Direito, Doutor em Comunicação e Semiótica, Doutor em Psicologia Social e Política, ambos pela PUC-SP. E-mail para contato: willisguerra@hotmail.com

 

 

 


 O Berço da Linguagem, de Julian Brzozowski

 

 

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O weckt ihr Dichter! weckt sie von Schlummern auch,

Die jetzt noch schlafen, gebt die Gesetze, gebt

Uns Leben, siegt, Heröen! ihr nur

Habt der Eroberung Recht, wie Bacchus.

F. Hölderlin, An unsre grossen Dichter.


Oh, poetas, acordem! acorda-os do sono também,

Aqueles que ainda estão dormindo, deem as leis,

deem-nos vida, vençam, heróis!

Apenas vocês têm direito à conquista, como Baco.

F. Hölderlin, Aos nossos grandes poetas.

 

 

Resumo: Do que se trata no presente estudo é de verificar em que medida um componente jurídico está presente para fixar, em uma ordem, tudo o que cria esse ser criador que somos os humanos, criador de divindades que cremos criar-nos, a começar pela própria linguagem, sem a qual nada disso haveria. A proposta vai então no sentido de buscarmos uma compreensão do ser que somos, enquanto humanos, em sua correlação com o direito, entendido como o meio com que estabelecemos, com proibições e sanções – portanto, com ameaças de exercício da violência -, nosso relacionamento pacífico uns com os outros, tendo como garantia uma referência externa e superior, sobreposta aos que se conflitam, em si e entre si. Espera-se assim atingir uma compreensão fundamental, essencial, assim do humano como também do direito, tendo em vista a necessidade que verificamos de fortalecer um tal entendimento, na atualidade, pelo grau de incerteza e complexidade atingidos tanto pelas formas jurídicas de associação humana, como pelo nosso próprio modo de ser.

Palavras-chave: Direito; Religião; Antropogênese.

Abstract: The aim of the study is to verify to what extent a legal component is present to fix, in an order, everything that creates this creative being that we are as humans, creator of divinities that we believe that create us, starting with our own language, without which none of this would be. The proposal then goes in the direction of seeking an understanding of the being that we are, as humans, in its correlation with the law, understood as that by means of which we establish, with prohibitions and sanctions - therefore, with threats of the exercise of violence -, our peaceful relationship with each other, with the guarantee of an external and superior reference, superimposed on those that are in conflict, in themselves and among themselves. It is hoped, therefore, to achieve a fundamental, essential understanding, both of the human and of the law, in view of the need that we see to strengthen such an understanding, in our current days, due to the degree of uncertainty and complexity reached by both the legal forms of human association, as for our own way of being.

Keywords: Law; Religion; Anthropogenesis

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Urge desenvolver uma proposta teórica que seja também prática, logo, igualmente política, ético-política, e até econômica, visando recuperar a capacidade imaginativa, a mais própria do ser humano, como uma alternativa à crise existencial, epistemológica e epistemo-ecológica a nos ameaçar a sobrevivência planetária, transformados que fomos, pelos avanços tecnológicos, em agentes de uma nova era geológica, o “antropoceno”. Nela, findaria o mundo assim como vinha sendo percebido pelos humanos de um modo geral, enquanto horizonte único e infinito de sua existência. Esse “desaparecimento do mundo” está diretamente relacionado com a forma de conhecimento e de organização econômica da vida social radicalmente outra, aparecida no e com o Ocidente. Eis que ela, de planetária, busca já se tornar interplanetária, seguindo um impulso de “sair do mundo”, negando-o, assim como aos que nele vivem sendo a ele mais apegados, enraizados, donde a contraposição destes como “terranos” aos que se veriam como exclusiva e excludentemente humanos, “donos do mundo”. O mundo, que antes se apresentava como habitat de um sem-número de comunidades humanas, torna-se a sede - ao que parece provisória, pelo modo parasitário como assim é habitada - de uma sociedade única, a “sociedade mundial”, Weltgesellschaft (Luhmann). Eis que a presente proposta vem se apresentar como uma teoria extra-humanista construída em proximidade do direito, movida pelo intuito de resgatar um saber aplicado, próprio ao do direito, bem ao modo daqueles dos antigos, como também dos renascentistas, almejando um conhecimento verdadeiramente poético, antes de teorético e técnico, no aproximar-se das artes entendidas como o que quer que resulte da criatividade humana, aí incluídas tanto religiões como ciências, tornando-se cada vez mais liberto e libertador, ao modo da vivência mito-poética, trágico-literária, mântico-onírica.

Em texto intitulado “O Sagrado Selvagem”, publicado em obra homônima, o antropólogo francês Roger Bastide (2006), outro dentre diversos que estiveram no Brasil pesquisando e lecionando, principia fazendo alusão ao dito de Nietzsche, sobre a morte de Deus, como sendo já praticamente o mesmo daquele que à época (o texto é oriundo de uma palestra proferida em 1973) se associava a Michel Foucault, sobre a morte do Homem, quando a voga estruturalista fazia eco a pronunciamentos como o de Heidegger, em sua célebre carta a Jean Beaufret, asseverando o despropósito e a impertinência do humanismo. Que o anúncio da morte de Deus (e da religião) correspondesse ao anúncio também da morte do Homem (e do humanismo), para Roger Bastide, seria “lógico, já que o homem só se constitui como homem através de sua relação com os Deuses”.

E, de fato, é o que constatamos, se recorremos ao que nos ensina a antropologia, uma ciência, derivada da filosofia moderna – logo, pós-cristã, isto é, posterior e condicionada ao advento da subjetividade humana, referida ao Deus interiorizado e encarnado do cristianismo -, que tem como pressuposto fundamental a unidade do gênero humano, estudada, paradoxalmente, através da diversidade de manifestações dela, para sair em busca de regularidades incidindo sempre que estejamos diante dele, ou seja, de formas de se ser humano, como nós - ainda que se pareçam tão diversas.

Em todas as formas de organização social – e o humano só se manifesta e prospera em alguma delas – tem-se a presença do que para os seus componentes seria sagrado, índice de uma presença não-humana, a ser reverenciada, como divindade. Na esteira de René Girard, autor de “A Violência e o Sagrado”, tal como Michel Serres (em “O Incandescente” e, de uma outra perspectiva, Lévinas, em obra cujo título já indica a distinção proposta: “Do sagrado ao santo”), é preciso distinguir, no que é tido como divino e sagrado, a sacralidade e a santidade. O sacro é, literalmente, o excluído, o separado, mantido de fora do que é comum, profano – isto é, restrito aos que têm acesso ao lugar em que, secretamente, se pratica ritos iniciáticos -, e uma tal segregação pressupõe o emprego de violência, física ou simbólica, para que se verifique, bem como se mantenha. É um índice da presença de uma insanidade, ameaçadora, posto que pelo que se considera sagrado se está disposto a matar e morrer. O santo, a santidade, como a própria etimologia sugere, ao contrário, é decorrente da sanidade, de uma compreensão sã e salutar, salvadora, capaz de desativar os dispositivos mortíferos que agem, sobre e através de nós, humanos. Esta cura, porém, requer a prévia existência da doença, do mal, a serem desfeitos. A compreensão filosófica do e a partir do Direito, que por filosófica é universalista e, logo, humanista ou, mais precisamente, como aqui se caracterizará, “extra-humanista”, adiante esboçada, há de partir do entendimento da relação dele, por um lado, com esta violência sacra, que é uma realidade, própria a nós humanos, de se ter como originária, originante do que somos, por encontrada sempre que se tem a presença de uma organização social humana, e de outro lado, com a paz, santa, idealmente almejada, na convivência com os que fazem parte de dita organização, bem como no interior de cada um e também externamente, nas relações com os que dela não fazem parte, mas, em geral, pertencem a alguma outra, onde pode haver concepções diversas sobre como e o que se há de respeitar – no limite, por ser sagrado, e deste limite, vela o Direito. Eis o que aqui apresentamos como o componente teojurígeno da formação do humano.

A proposta vai então no sentido de buscarmos uma compreensão do ser que somos, enquanto humanos, em sua correlação com o direito, entendido como o meio com que estabelecemos, com proibições e sanções – portanto, com ameaças de exercício da violência -, nosso relacionamento pacífico uns com os outros, tendo como garantia uma referência externa e superior, sobreposta aos que se conflitam, em si e entre si. Espera-se assim atingir uma compreensão fundamental, essencial, assim do humano como também do direito, tendo em vista a necessidade que verificamos de fortalecer um tal entendimento, na atualidade, pelo grau de incerteza e complexidade atingidos tanto pelas formas jurídicas de associação humana, como pelo nosso próprio modo de ser.

Daí que se precisa buscar, por meio de uma regressão simplificadora, a origem produtora das alterações trazidas ao mundo por esse modo de ser tão peculiar que é o nosso, o humano, na expectativa de assim atingir uma melhor compreensão do que nos diga respeito mais proximamente, como é o caso do Direito. Não custa lembrar que a investigação não tem caráter histórico nem factual, visto que não se trata de responder a questões sobre ocasiões e causas do surgimento do ser humano e do Direito, uma vez que nossa preocupação é com a discussão, filosófica, do sentido de tais fenômenos, partindo do dado de que aí estão e em correlação, para indagar, antes, “o que são e por que são assim”, do que “desde quando e como são”. E se o que se busca é fazer sentido, o que se apresenta é o sentido encontrado, para a discussão dos interessados.

Para iniciar, precisamos a indicação de um caminho, a ser entendida, em termos mais precisos, no sentido em que Heidegger se referia à “formale Anzeige”, ou seja, “indicação formal”, recurso empregado no início de sua longa carreira filosófica, tomando de empréstimo e ampliando noção devida a seu Mestre, Edmund Husserl. Diante desta expressão o tradutor espanhol opta por termo equivalente ao nosso “anúncio” e o italiano, tal como o fizemos, por “indicação”, enquanto na literatura nacional se encontra também a tradução de Anzeige por “indício”, não havendo propriamente um erro nessas opções, pois na palavra original estão contidas essas outras, e não só: notificação, inclusive no sentido mesmo jurídico, policial, é também uma tradução possível. E se “anúncio” é mais literal, em termos semânticos, e nisso se encontra a um só tempo uma vantagem e uma desvantagem, “indício” preserva, como “indicação”, a mesma etimologia do original, com a desvantagem de, na primeira palavra aludida, se ter uma alusão ao indiciário, em matéria probatória, sendo nossa opção, também por isso, pela segunda. Com apoio em Friedrich-Wilhelm von Herrmann (2003), pode-se identificar no emprego da indicação formal, ainda que a noção seja oriunda de Husserl, o que caracterizaria a diferença da abordagem fenomenológica de cunho reflexivo, transcendental, propugnada por este último, e aquela de seu discípulo, de cunho hermenêutico, que permaneceria fenomenológica ao compartilhar o “princípio dos princípios”, de “voltar às coisas mesmas”, livres dos modos como elas são conceitual ou preconceituosamente capturadas, seja por teorias, científicas ou filosóficas, seja pelo senso comum, respectivamente. Em Husserl, ter-se-ia grosso modo, um constante “voltar-se para dentro”, para a consciência, transcendental, a fim de fazer essa experiência de como seriam, ou se dariam, as “coisas mesmas”, enquanto em Heidegger ter-se-ia uma abertura para captá-las na experiência existencial, fora (eks), a caminho (unterwegs), servindo-se para isso das referidas indicações, “marcas no caminho” (Wegmarken), que vai se fazendo, muitas vezes desobstruindo, pela desconstrução (Abbau) dos que já se instalaram, evitando nosso acesso à “coisa”, mesma. Knut Martin Stünkel (2005, p. 259 – 287), em artigo muito elucidativo, demonstra, a propósito desta concepção de indicação formal, sua origem na teologia paulina, na noção de metaschematismo, assim como em proposta, anterior à de Heidegger e congenial, devida a Hamann, evidenciando como referências bíblicas sempre podem ser enriquecedoras para a reflexão filosófica, especialmente em se tratando de um pensador, como Heidegger, que justamente iniciou seu percurso acadêmico na teologia.

A primeira indicação ou “pista” a ser seguida, aqui fornecida a título de mera sugestão, sobre um modo de ser do humano, ou como nele podemos perceber, fenomenologicamente, e com uma conotação claramente jurídica, é a de que o ser humano é o ser responsável. Com essa indicação marca-se bem a sua – aliás, nossa - diferença em relação a seres que nos são tão próximos, como são os animais. O ser animal reage, ao invés de responder, donde não lhes podermos atribuir responsabilidade por seus atos, embora seja comum que lhes infrinjamos punições, praticando uma espécie de “imputação objetiva”, para coibir ações suas que repudiamos. Essa nossa característica imbrica-se inextrincavelmente com aquela outra, a liberdade, pois se nossas ações não são meras reações é porque são praticadas de um modo – por vezes mais, outras vezes menos – deliberado, sendo essa faculdade deliberativa própria de um ser reflexivo, devotado ao pensamento. Aqui cabe destacar a relação que guarda a responsabilidade-liberdade em que habita o ser humano com a sua natureza extraordinária. E extraordinário entendido primeiramente de maneira neutra, literal, como o que está fora de ordem, sendo isso assombroso, tanto no sentido de terrificante, pois é assustador ter a consciência de que dependemos de nossas deliberações para termos êxito na “luta pela existência”, como também no sentido positivo, de ser maravilhoso, tomar consciência da existência. Daí podermos concluir que, também literalmente, só o ser humano existe, por estar (“sistere”) fora (“ex”) de uma ordem natural, em que os outros seres simplesmente estão, por ser onde sobrevivem, mas não vivem nem morrem, propriamente, apenas começam e terminam, por não se saberem mortais. Acometidos dessa solidão existencial, uma resposta tipicamente humana está em supor a existência ainda maior de outros seres, míticos, divinos, que no animismo, tão comum entre os povos primevos, tribais, são associados a animais, em quem, sob esse aspecto, se reconhece uma superioridade em relação aos humanos, ao se mostrarem seguros de si, de seu ser. De fato, não é nada fácil lidar com a instabilidade de ser que é própria do ser humano, o ser que, a rigor, não é, não tem um ser, fixo, donde se explica a criação de uma ordenação humana para nos fixar o ser, assujeitando-nos, tornando-nos o sujeito que somos, sendo semelhantes ao(s) que nos cria(m), pela fala que nos transmitem e nos permite construir o mundo em que habitamos, assim econômica como eticamente.

Eis o caráter extraordinário da vida humana, dotada de subjetividade (espírito, mente, consciência ou como se queira denominá-la), na qual se revelam ideias a respeito do universo “lá fora”, bem como sobre a (ou as) divindade(s) que nos transcende(m), como ainda, reflexivamente, sobre si mesma, em si e em outros. Tal extra-ordinariedade, o extra do humano (donde extra-humanismo), é que nos atribui, propriamente, a responsabilidade, no sentido de que podemos assumi-la ou não, pela liberdade co(r)respondente, imanente deste modo de ser que somos. De antemão, no entanto, assombra-nos a possibilidade de estarmos pondo a perder uma oportunidade absolutamente excepcional – e isso, tanto individual como coletivamente, em escala mundial, inclusive – quando nos conduzimos sem sequer nos preocuparmos com o significado que pode ter isso de sermos dotados de consciência e da correlata reponsabili(ber)dade.

Referimos, assim, ao que entendemos ser a relação co-institutiva entre o direito e o humano, a configurar esse novo humanismo, que também é uma nova concepção jurídica, que entendemos, portanto, como um “teojushumanismo”, o “extra-humanismo”, acima referido. Aqui, trata-se de verificar em que medida um componente jurídico está presente para fixar, em uma ordem, tudo o que cria esse ser criador que somos os humanos, criador de divindades que cremos criar-nos, a começar pela própria linguagem, sem a qual nada disso haveria, a qual se origina necessariamente revestida de formalidades, segundo nos propõe Rossenstock-Huessy, em sua obra sobre a origem da linguagem, assim intitulada. E isso já por exigir um contexto adequado para que surja, que há de se conceber como devocional, reverente, ritualístico, mimético, por mítico-religioso. Em um tal contexto é que, por razões fáceis de se perceber, inserir-se-ia, para se manter e superar as adversidades, o ser que se extravia da ordem natural, buscando reencontrar-se, pensando reencontrá-la, criando, sem se dar conta, outras ordens, “co-naturais”, animistas, ou sobrenaturais, transcendentes, na qual somos criaturas, “creaturas”, para usar grafia arcaica, mais significativa.

Assim, o direito compõe a argamassa que cimenta nossas relações uns com os outros, através da linguagem, em que ele se expressa e ajuda a fixar, sendo que nessa composição também se faz necessário o fluido da religião, entendida muito simplesmente, de maneira indissociável das práticas mágicas, com seus mitos e sua encenação, os ritos, como o faz Marcel Mauss (1968, p. 647), enquanto um conjunto de crenças, cristalizadas em dogmas, dogmas estes que também podem se revestir de conotação jurídica, donde ser na teologia e na jurisprudência, entendida como a ciência jurídica em sentido estrito, onde se verifica a permanência de uma estrutura dogmática de conhecimento, ou seja, de uma especulação racional sobre tais dogmas. O novo humanismo que é o teojushumanismo, sendo um extra-humanismo assim se apresenta ciente de que não poderá, portanto, incorrer em equívocos típicos dos puros humanismos, ao elegerem o homem e suas capacidades como a medida com a qual se avaliaria tudo o que nos diz respeito, tanto no campo do conhecimento, da teoria, em que imperariam as ciências, como naquele da ação, da prática, em que uma moral universalista e laica haveria de pautar nossa conduta, com pouca consideração para com situações particulares, singulares, e também para com as crenças que nos constituem, mesmo que sejam crenças ateístas.

Direito, magia e religião, portanto, estabelecem uma relação de simbiose, presente quando de sua afirmação pioneira pelo romano Cícero, e retomada no Renascimento, a qual se pretendeu romper, com o humanismo da modernidade, eivado de formalismo, sem se perceber que o lugar deixado vazio, ao lado do Direito, termina sendo ocupado pelo que se vai chamar então de ideologia, para designar esse conjunto de crenças, em amparadas em especulações racionais que não mais se apresentam como teológicas ou metafísicas, por não mais serem tidas como crenças, e sim como conhecimentos científicos, de acordo com o credo positivista. E, no entanto, mesmo nesse contexto de desmistificação de tudo, inclusive da relação entre Direito e religião – sem que na época, em geral, se percebesse o quanto se devia, para que se chegasse a tal ponto, ao desenvolvimento da religiosidade judaico-cristã -, chama a atenção um posicionamento como aquele de Jean-Marie Guyau (2007), em sua “Crítica da Ideia de Sanção”, de 1883, pela consciência demonstrada do caráter inextrincável daquela relação, entre Direito, magia e religião.

Para ele, em se tratando das sanções religiosas (2007, p. 27), tem-se o exemplo mais próprio de sanção, palavra que etimologicamente remete à consagração, ao que é sagrado, e também à santificação, ao santo, devendo remeter, de acordo com a ideia que para ele então se fazia da santidade, tida como divindade ideal, a uma espécie de renúncia, de desprendimento supremo, donde só se poder explicar a violência contida nas sanções, religiosas ou não, em se fazendo, como propusemos no início, sua referência ao sagrado – essas colocações vêm iluminadas em um conjunto de obras recentes, de inspiração assumidamente foucaultiana, da lavra do filósofo italiano Giorgio Agamben, retomando a figura do homo sacer, do direito penal romano, como um modelo para se pensar a situação em que nos encontramos nas atuais sociedades, em que o poder se exerce de maneira biopolítica, ou seja, cada vez mais sobre o que se denomina como vida nua (no que se pode ver uma alusão à “vida fática” do Dasein heideggeriano, cheia de consequências, como se pretende demonstrar no momento próprio, ao longo da pesquisa aqui proposta), a qual se pode entender como a vida do ser humano em quem não mais se reconhece uma pessoa, com a dignidade que lhe é própria. As religiões, assim como o Direito e a magia, enquanto impõem certa regra de conduta, a obediência a certos ritos e a fé em determinados dogmas, têm todas a necessidades de uma sanção para confirmar seus preceitos. Todas elas, para Guyau (2007, p. 77 ss.), são unânimes ao invocar a sanção mais temível que se possa imaginar, isto é, elas prometem castigos eternos e fazem ameaças que ultrapassam aquilo que a imaginação do homem mais furioso pode sonhar em infligir a seu mais mortal inimigo. Nesse, como em muitos outros pontos, as religiões, segundo ele, estariam em pleno desacordo com o espírito dos “tempos modernos”, mas considera estranho pensar que ainda são seguidas por multidões, inclusive de filósofos, ainda imaginando Deus como a mais terrível das potências, a concluir daí que, quando está irritado, ele deve infligir o mais terrível dos castigos. Desconsidera-se, assim, que Deus, esse supremo ideal, deveria ser simplesmente incapaz de fazer mal a alguém e, com ainda mais razão, de devolver o mal pelo mal. Precisamente por se conceber Deus onipotente – em sintonia com uma linhagem de pensamento que deriva da teologia metafísica tardo-medieval de franciscanos como Duns Scot e Guilherme de Ockham, a já então chamada via moderna, que repercute em filósofos tidos como maximamente modernos, a exemplo de Leibniz e Kant -, portanto como o máximo de potência, Ele só poderia infligir o mínimo de dor; isso porque, quanto maior é a força de que se dispõe, menos se tem necessidade de despendê-la para obter determinado efeito (princípio da economia ou parcimônia, também conhecido como “navalha de Ockham”). Como, além disso, vê-se n´Ele a suprema bondade, é impossível imaginá-Lo infligindo até mesmo esse mínimo de dor. É preciso que o pai celestial ao menos tenha, sobre os pais deste mundo, a superioridade de não açoitar seus filhos. Enfim, como Ele é, hipoteticamente, a soberana inteligência, por onisciente, não podemos acreditar que faça nada sem razão (princípio da razão suficiente, de Leibniz); ora, por que razão Ele faria sofrer inutilmente um culpado, já que isso não pode alterar o que foi feito, o passado? E, de todo modo, o ocorrido não se deu com a Sua concordância? Deus está acima de qualquer ultraje e não precisa se defender, não deve nada a ninguém (nullius debitor est) e Ele não tem, portanto, de ferir. Daí se entende a afirmação de Slavoj Žižek, em seu grande livro sobre Hegel, “Menos que Nada”, de que o primeiro mandamento, “Não Matarás”, tem como primeiro destinatário o próprio Deus.

Ou Deus, essa lei viva, é a onipotência, e então não podemos verdadeiramente ofendê-Lo, mas ele também não nos deve punir, ou então nós podemos alguma coisa contra Ele, e Ele não é a onipotência, não é absoluto, não é (esse) Deus. “No fundo, mesmo na moral kantiana, a sanção é apenas um expediente supremo para justificar racional e materialmente a lei formal de sacrifício, a lei moral. Acrescenta-se a sanção à lei para legitimá-la” (Guyau, 2007, p. 89 – 90). Caso se queira encerrar a escalada de violência que vem se mostrando ser a da humanidade, desde as formas primevas de organização social, ainda hoje existentes, coibindo as ações por meio da sanção sacrificial, originalmente voltada para – e devotada a – satisfazer divindades em quem projetamos o ódio que nos é próprio, até aquelas de natureza propriamente penal, das sociedades que se auto-representam como modernas, ter-se-ia que retribuir o mal com o bem, com o amor, fraterno, como apregoa Guyau (2007, p. 82 ss.), em texto que resume suas ideias sobre o assunto, significativamente intitulado “Sanção de amor e de fraternidade”. Ora, embora ele apenas insinue, talvez para não despertar o desagrado de seus pares, em época de secularização já avançada, de descrédito do que se pudesse considerar religioso, não seria essa justamente a proposta do cristianismo? E se não, que seja a do teojushumanismo, de que tanto estaríamos necessitando, para atravessar esta época já qualificada como sendo de pós-secularização, quadra tremendamente ameaçadora de nossa existência, individual e coletiva, que também é plena de possibilidades a serem detectadas e devidamente exploradas. Ao mesmo tempo, vale ressaltar, que sendo ainda jurígeno, não há de ser, contudo, presa do formalismo jurisdicista, por ser humanista, “extra-humanista”, privilegiando, assim, o destinatário do Direito, que somos nós, os que também o fazemos, em detrimento de formas normativas que mais nos aprisionam do que propriamente promovem, como deveria o Direito.

Em épocas passadas, a comunidade se mantinha íntegra pela referência a uma origem comum, sacramentada por mitologias, religiões ou mesmo, mais recentemente, por mundividências filosóficas. No presente, o predomínio do pensamento científico e o correlato processo de “desencantamento” do mundo, ao qual se refere Max Weber, minam as bases sobre as quais tradicionalmente se ergueram as diversas ordens normativas. A construção de novas bases pressupõe uma recuperação de nossa capacidade criativa de ficções justificadoras da existência e da co-existência, ao mesmo tempo em que estejamos cientes do caráter ficcional desse empreendimento, cujo resultado é a afirmação de valores. Para isso, vamos precisar de uma aproximação entre as mais diversas formas de criações desenvolvidas pelo engenho humano, entendidas assim como diferentes formas poéticas, a saber, para além da literatura propriamente dita, as artes, mitologias, religiões, filosofias e mesmo as ciências, bem como aquela dentre elas que nos sanciona mais severamente, do ponto de vista social, a conduta, a saber, o direito. Caberá ao Direito, num tal contexto, solidificar essa invenção ou ficção coletiva, criando e estabelecendo valores, impondo-os mesmo, em busca de garantir as condições de manutenção da vida em comum, a vida humana.

O Direito é visto, geralmente, como um mero instrumento técnico, de controle do comportamento, da conduta humana, sem concebê-lo também como tendo o ônus de se justificar, de fundamentar o que apresenta como válido, para além da simples referência a normas postas, porque é uma visão tecnicista do direito a que predomina. É preciso, então, implicar mais o sujeito encarregado da interpretação e aplicação das normas nesse processo, com sua vivência do drama que tem diante de si. A orientação que hoje, pelo Direito, se fornece, para a conduta, em sociedades como a nossa, fundamenta-se no simples fato de se fazer normas supostamente obedecendo a outras normas, que já existem. Isso na medida em que nós numa sociedade como a nossa, de uma maneira digamos assim, bastante extraordinária na história da humanidade, não temos mais um vínculo estabelecido entre nós a partir de algo como a religião, tal como em geral tem se observado ao longo da história, no passado, e ainda hoje no presente, em sociedades ainda existentes e que se organizam de um determinado modo, que justamente não é o modo das sociedades como aquelas marcadas pela civilização ocidental do atual momento de sua história, em que se verificou a ruptura do vínculo tradicional entre o direito e uma esfera transcendente que o justifique. Esta esfera justificadora, por definição, há de ser transcendente, estar além (ou aquém) do que por ela se justifica, e neste sentido, logo pensamos, ser também de uma natureza religiosa, mas que pode não sê-lo. Tanto é assim que, por exemplo, no nosso passado, ou no passado desta civilização dita ocidental, o mais recuado, no seu passado greco-romano, esta instância transcendente foi a política, propriamente dita, enquanto a crença na superioridade da cidade, de cidades inicialmente gregas e, depois, Roma; e na outra vertente, formadora desta civilização, na vertente judaico-cristã, a justificativa estava na transcendência, aí sim, da própria divindade: monoteísta, única, do Deus único, criador do universo, do homem e, portanto, das suas leis fundamentais também expressas muito bem no decálogo, nas dez normas dos dez mandamentos, dos decalogoi (δεκάλογοι), dos dez ditos transmitidos na tradição judaica através de Moisés e supostamente enviados por Deus. Então é curioso que nós terminamos produzindo na Modernidade a ruptura destes vínculos do Direito com qualquer forma de transcendência, seja em termos estritamente religiosos ou em termos teológico-políticos. O Direito está, digamos assim, tendo que se impor pelas suas próprias razões e a gente não pode considerar satisfatório que a estas razões não se acrescente alguma forma de convicção emanada daquilo que nós entendemos se precisar prestar mais atenção atualmente, que é o próprio sentimento ou a sensibilidade dos que estarão sujeitos a estas ordenações, para que estas ordenações não sejam percebidas e, de fato, implementadas de uma maneira que desconsidera a dignidade própria destes sujeitos. E é aí que entendo tenhamos que desenvolver uma abordagem poética do Direito.

A poética é uma disciplina filosófica que remonta a Aristóteles, em seu Tratado da Poética, portanto deste que é um dos autores do cânone filosófico padrão do pensamento ocidental, sendo que desta obra o que restou foi sobretudo a teorização sobre a tragédia. Penso que aí nós temos realmente uma chave para ser utilizada também para reavaliar o pensamento teórico, como um todo e, claro, igualmente do campo do Direito, considerando aquela faculdade um tanto quanto desprezada tradicionalmente, que é a faculdade da imaginação. E em sendo, portanto, o Direito tido como uma criação, tal como é próprio da nossa tradição, ou desta tradição que se tornou mundial, a tradição ocidental, naquilo que ela remonta também a sua outra vertente, além da grega ou greco-romana, que é a vertente judaico-cristã, aí nós temos a possibilidade justamente de uma concepção “creacional” do direito, do direito como um produto de uma criação que, se num primeiro momento, é tido como de origem divina, atualmente, ou, ao longo de um processo histórico, cortou ou perdeu este vínculo com esta origem, assentando-se no próprio homem a fonte criadora, produtora do direito. Ora, então o direito é “poiético” (em grego, poiesis, produção inovadora, por oposição complementar a techné, a técnica, pela qual no máximo se aperfeiçoa o que já está dado) e, com o aumento da complexidade, tanto sua como também, correlativa e mutuamente, do meio social em que se insere, diria o saudoso mestre do período de estudos de doutorado na Alemanha, em Bielefeld, Niklas Luhmann, torna-se “autopoiético”. Ele se nos aparece, assim, como o resultado do emprego de um saber e de um poder de criação do homem e, não apenas de mera reprodução, como seria o saber da mera práxis, da técnica e da prática. Então é uma técnica-poética, diríamos, em termos gregos (téchné poietiké). Porque nós sabemos que, infelizmente, em Roma a técnica e a arte se confundiram e se misturaram, inclusive numa palavra única que é ars, “arte”, e o direito terminou sendo associado mais ao aspecto técnico como ainda hoje o é, e menos a este aspecto, que eu diria ser o aspecto original, e aqui podemos reivindicar Vico, Giambatista Vico como um dos pensadores que são tutelares, que são afiançadores desta ideia, quando remete à obra de legisladores, inspirados como artistas, a produção do direito em suas origens mitológicas. Ora, o que é um mito senão uma criação artística com este conteúdo, com esta conotação também religiosa, sobretudo a partir de um certo momento, com a influência maior da escrita – eu sou dos que privilegia a etimologia da palavra religio proposta por Cícero, de relegere, ou seja, reler, observando criteriosamente, doutrina previamente estabelecida por escrito.

Entendemos que, no espírito mesmo do pensamento viquiano, das recorrências, dos corsi e ricorsi, é preciso que se retorne mais uma vez a Vico e aos que, tanto antes, como depois dele, postularam uma defesa da racionalidade contemplando o solo mesmo de onde ela brota, o húmus da cultura donde emerge o humano: a capacidade simbolizadora presente na linguagem, em suas mais diversas formas (sendo o direito uma delas), enquanto produtora (e produto) do esforço de produção de um sentido para a existência desse ser em aberto, livre, que somos.

Para Vico (1936, p. 6, 7, 10 e 17), os primeiros poetas foram teólogos que com a sua teologia estabeleceram os fundamentos da organização política, inicialmente republicana, expressando-se através de “imagines humanae maiorum”, antes que por conceitos, como se faz em teologia natural ou racional. Daí ser para ele a poética uma sabedoria (sapientia), a se diferençar tanto das ciências, como a matemática, enquanto um emprego da razão com finalidade demonstrativa, como das “técnicas” (ars), de natureza preceptiva – e também daquelas disciplinas que, segundo ele, são em parte demonstrativas e em parte preceptivas, dando como exemplo a Medicina e o Direito, e preceptivas em um sentido mais amplo do que elas, que seria a retórica (oratoria) ou uma do que uma outra disciplina, que denomina imperatoria, designação que aponta para algo assim como o que outros chamariam “arte de governar”, pois aquelas prescrevem na forma do aconselhamento (consilia) combinado com demonstrações, enquanto estas últimas combinam os conselhos (consilia) com os preceitos propriamente ditos (praeceptis). Merece transcrição integral as passagens concernentes, nomeadamente, os “capítulos” (capita) XXXVI e XXXVII do Livro primeiro da obra acima referida, “O Direito Universal”, intitulado “De uno universi iuris principio et fine uno”, in: loc ult. cit, p. 50: “CAPUT XXXVI – DE VIRTUTE: Ab hac vi veri, quae est humana ratio, virtus existit et appellatur. CAPUT XXXVII [VIRTUS DIANOETICA ET VIRTUS ETHICA] – Virtus dianoetica: scientia, ars, sapientia.: Vis veri, quae errorem vincit, est virtus dianoetica, seu virtus cognitionis. Quae, si tota demonstratione constat, est scientia, ut mathesis; si tota praeceptis, est ars, ut grammatica, frenaria; si partim demonstratione partim consilio, ut medicina, iurisprudentia, vel partim praeceptis partim consilio, ut imperatória,oratória, poética, proprie ‘sapientia’ est appellanada” (em vernáculo: Poder dianoético: conhecimento, habilidade, sabedoria: O verdadeiro poder, que vence o erro, é o poder dianoético, ou poder do conhecimento. Pois bem, se toda a demonstração do evidente é uma ciência, como a matemática, será o seu ensino uma forma de arte, restringida pela gramática. Se em parte for demonstrativa e em parte preceptiva, como no Direito e na Medicina, ou em parte projetar regras, como se faz na arte de governar, na retórica e na poética, é de se considerar uma "sabedoria").

Em Vico, o direito natural seria o direito universal, próximo da linguagem igualmente natural e universal, criado pelo homem poeticamente criador, criando-se, como criança, sendo ambos, a linguagem e o direito, o resultado da criação de imagens por seres com corpos desejantes, desejando expressar-se. Só assim o real poderá ser racional e vice-versa, como postulara, já embriagado de historicismo, Hegel – e “virado de ponta-cabeça”, como propõe Marx, não fica nada bem para quem estiver de ressaca do hegelianismo generalizado em que vivemos, intelectualmente, como se nota na obra “Direito Natural e Dignidade Humana”, deste grande utopista contemporâneo que foi Ernst Bloch, não desistindo de sonhar acordado, em meio ao pesadelo vivido socialmente.

Retornemos então a Vico, para assim irmos refazendo, de maneira poética, onírica, a nós e para isso também ao Direito, agora liberto do formalismo positivista que o estiola, minando assim os fundamentos mesmo de nossa sustentação humanamente aceitável num mundo cada vez mais exaurido pelo sem sentido da técnica e do tecnicismo.

Do que faz falta, então, concluindo esta parte, é de promover uma (re)aproximação da teoria a um modo antes poético, do que científico e mesmo filosófico (ou religioso), de desenvolver a reflexão e sua exposição. Com isso não se pretende invalidar os esforços que em geral fazem os estudiosos de filosofia, quando se dedicam à exegese do que escreveram os filósofos, normalmente aqueles do passado e, em raros casos, alguns poucos contemporâneos, que ousaram, ou ainda ousam, elaborar um pensamento (mais) próprio. “Próprio”, aqui, entenda-se no duplo sentido da palavra, em que este pensamento tanto aparece como original, originário do próprio sujeito, como apropriado ao que se pode considerar assunto da filosofia. Ocorre que, no modo de ver aqui proposto, realizar um trabalho teórico que mais se aproxima de parâmetros científicos, sejam das ciências humanas, sejam de ciências naturais ou formais, como se dá, comumente, no âmbito da filosofia de corte analítico, entendemos que significa desviar-se do que mais direta e imediatamente interessa tratar em filosofia, desviando-se para um caminho técnico, no qual se exaure o modo mais originário de questionamento filosófico, que é metafísico ou, como preferimos, “archôntico”, enquanto imanente, e escatológico, quando aberto ao transcendente, à discussão do sentido da existência e de si, ou seja da vida e da morte, bem como dos demais e do próprio mundo, tal como normalmente é feito pelo simbolismo “mitopoético” de religiões e artes em geral. De certa maneira, estaremos assim retomando uma perspectiva suscitada ainda na passagem do séc. XIX para o seguinte pelo filósofo cearense Raymundo de Farias Brito (1957, p. 128) – para muitos, se não o único, o primeiro filósofo autenticamente brasileiro -, que entendia deverem filosofia, ciência e poesia fundirem-se em uma só, enquanto princípio ativo (e regenerador) do pensamento, dirigindo-o, respectivamente, para o bem, o verdadeiro e o belo.

Então, a presente proposta é no sentido de pensarmos a nós mesmos nessa nossa correlação com o elemento teojurígeno e ao Direito, novamente, dessa maneira em que ele se associa a componentes essencialmente humanos, que são aqueles de ordem poética, ficcional, mítico, religioso, todos eles presentes na encenação teatral. Como afirmava Augusto Boal, somos teatro. Vivemos encenando e o que se passa na consciência, como também no inconsciente, nos sonhos, é também encenação, representação. Daí que interessa particularmente ampliar a compreensão do Direito indexando-o à literatura, ao teatro, à filosofia, mitologias e religiões, a partir de leituras de obras como a de Kafka, abrangente de todas essas dimensões, como também em tragédias como “Antígona”.

Certa feita disse Jacques Lacan (1992, p. 102), em um de seus Seminários, "o que vem lá do começo tem um nome: é o mito".

Lembremos, portanto, nessa perspectiva, do mito concebido por Freud, para figurar o surgimento da religião e de tudo o mais que é da ordem da cultura, do propriamente humano, do simbólico. Na origem disso tudo – onde se inclui, é claro, o próprio Direito - estaria um crime, o primeiro, o assassinato de um pai, que só depois de assassinado os assassinos o perceberiam como pai, e a eles, os assassinos, como filhos. Esse pai teria sido morto por não partilhar nem limitar o seu gozo, pois só ele detinha, usava, fruía e abusava das mulheres da chamada "horda primitiva", em que viviam agrupados. Há, portanto, nesse assassinato, uma conotação de reivindicação de direitos, de tiranicídio, o que seria justificável, e de fato o foi, dadas certas circunstâncias, até por padres da Igreja Católica, teólogos-juristas medievais, regicidas. Só que o tirano, depois, revelou-se como pai.

Na situação que podemos imaginar como sendo aquela dos "filhos" nessa horda primitiva, eles, à medida que cresciam, eram expulsos pelo "pai", para que conseguissem por seus próprios meios o sustento e as suas mulheres. Ora, essas criaturas - de acordo com a explicação dada em teoria recente sobre o surgimento do humano, devida ao biólogo chileno de renome internacional, Humberto Maturana -, se eram seres "proto-humanos", então já conheciam o amor e eram cooperativos numa escala jamais atingida por seus "primos" não-humanos, os chimpanzés, que por serem tão agressivos não evoluíram no sentido de uma hominização. A nosso ver, isso torna ainda mais consistente o mito-fundador da sociabilidade humana – e, logo, da religião -, tal como concebido por Freud, mito em que encontramos, como veremos em seguida, as características próprias da tragédia, o seu telos, como se acha definido por Aristóteles, nos capítulos sexto e décimo terceiro de seu tratado sobre a poética: provocar piedade e temor.

Façamos aqui um excurso, antes de continuarmos com a narração do que teria ocorrido naquele tempo mítico, o que é conceituado por Lévi-Strauss, em sua "Antropologia Estrutural", como abrangente do passado, presente e futuro, aquele em que se deu (dá e dará) o assassinato do pai primevo. Ali pode se ver os filhos, os jovens, como "expulsos do paraíso", tal como foram os pais prototípicos da narrativa bíblica, também em razão da transgressão que perpetram, desafiando, como é comum entre os jovens, a autoridade paterna, a fim de assim afirmar sua própria potência. A mesma coisa, portanto, pode-se considerar como articulada no livro do Gênesis, no mito do paraíso perdido, onde a transgressão da Lei de Deus-Pai, Todo-Poderoso, aparece como condição para que o primeiro homem e a primeira mulher conheçam o sexo, pois só assim percebem que estão nus; conheçam a morte, tornando-se mortais; e conheçam as leis, que lhes permitirá estabelecer a diferença entre o bem e o mal. Portanto, graças ao desejo de transgredir a ordem divina, dada para que eles conhecessem o desejo, é que se tornaram sujeitos, separados de Deus e, ao mesmo tempo, mais próximos d'Ele, de ser como Ele. A mesma ideia é detectada por Lacan (1991, p. 217) em uma epístola de São Paulo, quando em determinada passagem afirma que não teria conhecimento do pecado, antes de conhecer a lei que o proíbe, havendo versões “ortodoxas” do cristianismo que chegam a preconizar o pecado como condição da salvação...

Na Bíblia, também podemos encontrar apoio para nossa hipótese mítica de que o primeiro pai foi assassinado: imaginem por qual pecado ou crime original se exigiria o sacrifício de Jesus, do "filho do homem", se não fosse, de acordo com aquela lei que rege o direito penal primitivo, a "lei de Talião", o assassinato do pai, o assassinato de Deus – é o que, segundo nos parece, Nietzsche fará um louco (der tolle Mensch), seu personagem, dizer, em um de seus “contos filosóficos” mais belos e impressionantes, de “A Gaia Ciência” (“Die fröhliche Wissenschaft”, Livro III, § 125): “Nós o matamos - vocês (scilicet: os ateus) e eu! Nós todos somos assassinos! (...) Deus está morto. Deus permanece morto! E nós o matamos! Como nos consolaremos, os maiores assassinos, assassinos dos assassinos? (...) Quais cerimônias sacrificiais, quais jogos sagrados teremos de inventar? (...) Nunca houve feito semelhante tão grande – e seja quem for nascido depois de nós, pertencerá a uma história superior a toda história havida até agora”.1

Com Deus morto, para Lacan, dá-se o contrário do que Sartre supõe, em seu manifesto existencialista "O Existencialismo é um Humanismo", retomando a fórmula dostoievskiana (a qual Nietzsche também parece ter levado em conta): "Se Deus não existe (está morto), tudo é permitido". Lacan entende que, ao contrário, com Deus morto, nada é permitido. Quando Ele estava vivo, presente, existente, nos edênicos tempos adâmicos, é que tudo era permitido, ou melhor, tudo menos uma coisa: comer o fruto da árvore do conhecimento. Agora que ele foi comido, assim como o Deus-Pai do banquete totêmico, Ele morreu para nós, ausentou-se, não existe, mas “ek-siste”, “está de fora”; nos tornamos seres desejantes, sexuados e mortais; nada mais na vida é permitido, só uma coisa é permitida: morrer. Daí que, entre os existencialistas, penso que Lacan daria mais razão a Camus, quando inicia seu ensaio "O Mito de Sísifo" colocando o suicídio como a questão filosófica fundamental.

Retomando a narrativa do mito freudiano, tem-se que os jovens expulsos ficavam inconformados com a perda do convívio na horda, onde aprenderam as vantagens da cooperação, para atingir o que sozinhos não conseguiriam, donde ter-lhes ocorrido a ideia que os levou a pactuar, tacitamente, o assassinato de quem os expulsou, e que morto, ausente, se revelará como o pai. Eis que, porém, esse primeiro contrato, um pacto de sangue, o verdadeiro "contrato social", não resultará muito benéfico para as partes contratantes, pois eles terminaram ficando, de qualquer modo, sem aquele que os protegia e alimentava. Além disso, ao invés da aprovação, devem ter despertado a indignação de suas "mães", que aí também ficaram sem essa proteção e, de resto, sem um "homem de verdade", adulto, donde terem instaurado o matriarcado, em que o gozo do direito às mulheres e a tudo o mais foi organizado pelas mulheres, reforçando aquela Lei que Lévi-Strauss (1949, p. 38 ss., passim) considera a lei fundadora da sociedade, lei ao mesmo tempo natural e social, a primeira: a lei que proíbe o incesto com a mãe.

Na situação em que se encontraram nossos antepassados parricidas, é fácil imaginar que tenham experimentado os sentimentos que, na Grécia Clássica, foram considerados o instrumento de purgação e apaziguamento, pela catarse provocada com a encenação das tragédias, de semelhantes paixões: temor - "prius in terram deus facit terror" - e piedade.

Assim é que, como para complementar o mito do assassinato do pai primevo, no dizer de Lacan (1991, p. 216-127), "talvez o único mito de que a época moderna tenha sido capaz (...), mito de um tempo para o qual Deus está morto",2 a outra grande invenção de Freud, para estabelecer o estatuto da fantasia inconsciente que nos constitui, inspirou-se na tragédia de Sófocles, "Édipo-Rei", apontada por Aristóteles, no capítulo décimo quarto de sua já citada obra, como exemplar para nos dar o prazer próprio da tragédia: nos fazer "tremer de temor" e apiedarmos, tornar-nos pios.3 Ali, também um filho assassina, inconscientemente, o pai, que o expulsara do convívio familiar. Só que Édipo, ao contrário dos filhos da horda primitiva, vai realmente possuir sua mãe, ainda que sem o saber (inconscientemente), ou seja, da eliminação do pai não vai decorrer, como para aqueles "filhos primevos", a abstinência, mas sim, o oposto, a realização do ato sexual com a mãe, acompanhado de um gozo letal.4 Em ambas as hipóteses, contudo, o resultado da transgressão, quando dela se toma consciência, é o reforço da interdição, com a invocação do pai morto e de sua Lei. A interdição, portanto, revela-se como condição do gozo, ao acenar para a sua possibilidade, anunciada no além dela, isto é, na sua trans-gressão.

Eis aí representada a origem violenta de toda proibição, tanto sagrada, como jurídica, que garante nossa vida em sociedade, sustentada pelo enfrentamento da morte. O incremento da violência na sociedade “pós-moderna” não poderá ser contido pelo reforço da proibição jurídica,5 mas antes por uma consideração das consequências psicológicas e sociais da secularização defendida pela ideologia oficial e a re-sacralização crescente das relações fora das instituições religiosas, ou seja, em seitas ou “tribos”.6

Há, então, para a psicanálise, um pai-morto na origem da sociedade, da religião, da ética e do direito, assim como na origem da própria psicanálise, só que aí não é um pai-mítico, mas um pai real, o pai do pai da psicanálise, o pai de Freud, cuja morte, segundo atesta ele próprio, o teria levado a escrever o seu primeiro trabalho puramente psicanalítico, "A Interpretação dos Sonhos", a partir da interpretação que elaborou para os sonhos que tinha com seu falecido pai. Depois, com a postulação do complexo de Édipo e do mito da horda primitiva, Freud vai pôr um pai-morto na estrutura de nossa organização psíquica. Por fim, em sua última obra, “Moisés e o Monoteísmo”, Freud pretende descobrir um patriarca assassinado pelos seus na origem da nação e da religião monoteísta judaica.

Afinal de contas, deve-se à psicanálise a “descoberta” da vinculação do sentimento religioso à relação com o pai, como sua raiz mais profunda; as expressões artísticas – literatura, pintura, etc. – mostram, na verdade, a vinculação delas ao “inconsciente incompreensível”, permitindo a “construção de uma ponte” entre o mito e a realidade: o complexo de Édipo. O complexo de Édipo é o “correlativo psíquico de dois fatos biológicos fundamentais: o longo período de dependência da criança humana e a maneira notável pela qual sua vida sexual atinge um primeiro clímax do terceiro ao quinto ano de vida, e depois, passado um período de inibição, reinicia-se na puberdade. E aqui se fez a descoberta de que uma terceira parte extremamente séria da atividade intelectual humana, a parte criadora das grandes instituições da religião, do direito, da ética e de todas as formas de vida cívica, tem como seu objetivo fundamental capacitar o indivíduo a dominar seu complexo de Édipo e desviar-lhe a libido de suas ligações infantis para as ligações sociais que são enfim desejadas.”7

Então, como dirá Lacan, tudo gira e é amarrado pelos "Nomes-do-pai" - e ele dará vários nomes ao Pai, pois o conceberá como uma "função", mais dessubstancializado do que em Freud, por quem era tido como uma "posição". O significante "Pai" é equivalente ao significante "Lei", no mesmo encadeamento ao qual pertencem outros significantes, como "Deus" e "Falo", por entre os quais o sujeito se constitui, e pelos quais é representado.8 A linguagem mesma, na visão lacaniana, é o que obtemos em troca da perda do Pai, causada pelo Pai, em compensação pelo imenso trauma que resulta da ruptura da vinculação simbiótica com a mãe, que em toda sociedade é reafirmada em rituais de passagem para a condição propriamente adulta, de integrante pleno da comunidade.

Tendo referido à lenda de Édipo para caracterizar, segundo a psicanálise, a associação da Lei, em suas diversas modalidades, com a função paterna, vale fazer uma alusão à filha de Édipo, Antígona, uma “menina” (He païs), como a ela sempre se refere o Coro da peça: para Lacan, o símbolo da firmeza ética, para todas as éticas possíveis, inclusive a ética da psicanálise, cujo imperativo categórico é: "não ceda de seu desejo".9 Disso resulta a negação de toda ética universalista, tal como aquelas propugnadas na modernidade, em prol da ética de cada um, a ética individual e situacional, a ética da amizade e do cuidado de si, sobre a qual falou e escreveu o último Foucault.10

Dependendo do ponto de vista, Antígona pode aparecer como santa ou criminosa. Criminosa, na perspectiva do direito positivo; santa, para o direito natural, tradicional, meta-positivo, de origem religiosa. Para a psicanálise, porém, ela não seria nem santa, nem criminosa, duas ilusões provocadas por duas ficções diferentes: a religião e o direito.

Para a psicanálise, Antígona apenas agiu conforme o seu desejo, inconsciente. Desse ponto de vista, só lhe era permitido escolher a morte que teve, como condição de seu gozo.11 Sua liberdade é a necessidade de sua morte, dando seu corpo para ser o túmulo de seu irmão, que assim descansaria em paz, na paz que não teve um outro seu irmão, seu pai, Édipo – reza a lenda que ele teria sido muito mal-tratado por seus filhos-irmãos, após a revelação que o desmoralizou, tendo lançado sobre eles a maldição de que jamais se entenderiam, como de fato ocorreu, pois se enfrentaram na disputa do trono de Tebas, donde adveio o falecimento daquele a quem Antígona insistiu até a morte para enterrar condignamente, perante um mandatário ilegítimo, que vinha a ser seu tio, tutor e (ex-)futuro sogro, Creonte.12

Na "metáfora paterna" psicanalítica, o pai aparece como "outro", uma figura estranha ao Um que são mãe e filho, um estrangeiro, "étranger", "étre-anje" - "ser-anjo", sempre por perto, que de tanto aparecer e reaparecer se torna familiar, mas que em dado momento, de anjo da guarda torna-se anjo-exterminador, e corta a relação “umbilical” entre mãe e filho, fazendo a castração simbólica do Falo que um representa para o outro. Com isso, instaura-se a falta, a falha, que possibilita a fala do filho, para preenchê-la - a fala e tudo o mais que é da ordem do simbólico, do humano e do sublime, como as leis. A castração simbólica, portanto, repristina aquela Lei primordial, proibindo o excesso, o incesto. Mas nem todos a aceitam, donde além dos neuróticos, haver os que se põem acima dessa Lei ou fora dela: os psicóticos e os perversos.

Daí ter Freud falado na necessidade de sublimar nossas pulsões no processo civilizatório, e Lacan, por seu turno, tenha enfatizado a importância da simbolização dos desejos produzidos em nosso imaginário, que são espectros, fantasmas, a atormentarem o sujeito, sempre em busca do objeto causa de seus desejos, apesar de ser barrado no seu acesso a ele.

Aqui estamos diante de uma possibilidade de surgimento da “primeira Lei”, aquela que Lévi-Strauss (1949, p. 38 ss.) considera, como vimos, a um só tempo, natural e social, e que para Freud nos constitui propriamente como humanos, isto é, a proibição do incesto – especialmente, com a mãe -, conforme o mito concebido por este último, para figurar o surgimento de tudo o mais que é da ordem da cultura, do propriamente humano, do simbólico, o mito do assassinato do pai primevo, seguido do banquete totêmico – também uma festa -, que seria, no dizer de Lacan (1991, p. 216 e s.), como vimos, o "mito de um tempo para o qual Deus está morto”. De se notar, portanto, é a alusão de Freud ao banquete no qual os filhos comem a carne do pai morto, uma festa de natureza sacrificial, que René Girard (1990), irá situar na origem da religião e de toda sociedade – esta pressupondo a primeira –, enquanto excesso permitido e violação ritualizada de proibições, exceções que garantem a persistência das regras e da ordem social, da Lei.

Para os membros dessas sociedades, a coisa ou pessoa afetada pelo tabu se torna intocável, como se esse fosse "uma marca que se imprime no ser (e esta é provavelmente a etimologia da palavra). Se experimenta um distanciamento, uma repulsa, sobretudo física, frente ao ser marcado. E esta repulsa é algo vivido, e não simplesmente uma máxima pensada". Tal vivência se dá ao nível corporal.

O corpo sempre foi um lugar privilegiado na demonstração e revelação do poder social vigente, de “inscritura” da letra e da marca de que estamos aqui a tratar. São clássicas já as teses expostas pelo etnólogo Pierre Clastres em "La société contre l'État", quando considera os rituais de passagem e iniciação das sociedades pré-estatais, ditas "primitivas" (melhor: primevas) - que normalmente envolvem alguma forma de mutilação ou "investida" dolorosa sobre o corpo do seu paciente, tatuando-o, queimando-o, cortando-o -, como uma forma de inscrição no corpo de cada um das leis da comunidade. "La letra con sangre entra", costumavam dizer os pedagogos inquisitoriais na Espanha. As cicatrizes deixadas pela ação disciplinar são sinais exteriores da dor uma vez sofrida interiormente, marcas indeléveis também na memória, que se prestam à identificação mútua dos que a possuem como membros de um mesmo grupo social e fundamentalmente iguais entre si, sem que um seja melhor ou pior do que o outro, donde não podem nenhum pretender dominar o(s) outro(s).

Bem diferente, então, seriam as coisas em sociedades já mais "evoluídas", letradas, não mais igualitárias, e sim com predomínio de um pequeno grupo sobre os demais membros, onde já se tem a escritura das leis em rochas, tábuas, moedas e, finalmente, papel. Seja como for, fica registrada a origem violenta de toda proibição, tanto sagrada, como jurídica, que garante nossa vida em sociedade, sustentada pelo enfrentamento da morte, ou, na fórmula consagrada por R. Caillois (1996, p. 147 ss.), condição da vida e porta para a morte.

A eficácia de toda prática mágica e a autoridade das ideias que a fundamentam repousa sobre uma tradição sacramental (Caillois, 1996, p. 14), velada por fortes sanções sociais, de que certas palavras apropriadas e gestos específicos possuem um poder secreto sobre as coisas. Em obra bastante conhecida de filosofia da linguagem, Ogden e Richards (1976, p. 51 s.) explicam que "classificar as coisas é dar-lhes nomes e, para a magia, o nome de uma coisa ou grupo de coisas é a sua alma; conhecer os seus nomes é dispor de poder sobre as almas delas. Nada, seja humano ou sobre-humano, está acima do poder das palavras. A própria linguagem é um duplicado, uma alma-sombra, de toda a estrutura da realidade". Daí, não é de estranhar o fato de o estudo da formação infantil do significado, assim como o do significado selvagem ou iletrado se depararem como uma mesma atitude mágica em relação às palavras e, por intermédio destas, em relação ao mundo.13

A percepção da resistência do mundo em aceitar o seu domínio mágico, pela consequente falibilidade de seus rituais, atestada pelo malogro de experiências sucessivas, termina por acarretar a submissão às forças misteriosas e sobrenaturais que não consegue controlar - como escreveu Marcel Mauss, o homem então “après avoir été dieu, il a peuplé le monde de dieux”.14 Vale assinalar o significado político dessa submissão a entes superiores, donde resultaria a submissão também àqueles que se diziam capazes de entender e tratar com eles, isto é, as castas sacerdotais. Estas, como se sabe, fornecem o sustentáculo ideológico para a concentração do poder, inicialmente distribuído entre os membros do grupo social. A noção do supra ou sobrenatural, que é própria da religião, introduz a representação de forças que escapam ao poder humano, a serem controladas através de um relacionamento amistoso, proporcionado pelo culto com oferendas, sacrifícios e coisas do gênero. Assim, enquanto a magia envolve operações que se revestem de um caráter coercitivo para com os espíritos, forçados a agir no sentido indicado pelo praticante dos atos mágicos, na religião é estabelecida uma espécie de aliança para impedir a arbitrariedade na ação divina, revestindo o relacionamento entre homens e divindade de um caráter, por assim dizer, jurídico.15

Em seus estudos pioneiros na Polinésia, Malinowski chegou à conclusão de que toda a estrutura da sociedade trobiandense repousa sobre o princípio do estatuto jurídico (status), combinado com aquele outro princípio maior da organização jurídica dos povos originários ou primevos, que é o princípio da reciprocidade.16 Pesquisas realizadas em épocas mais recentes, por cientistas de diferentes países, efetivamente corroboram esta tese, de que a organização social neste nível mais “primitivo'” se assenta sobre as pilastras da posição ocupada por razões hereditárias pelos indivíduos (status) e na forma econômico-jurídica dominada pela reciprocidade, o que permite uma classificação de tais sociedades como 'sociedades igualitárias', em oposição à nossa, que se poderia denominar ‘sociedade competitiva'. Aqueles dois padrões estruturadores da vida social em estágio, por assim dizer, selvagem, fornecem os critérios determinantes das obrigações mútuas dos membros da comunidade, isto é, de suas 'relações jurídicas', e em ambos se pode identificar a presença catalisadora da magia.

A consideração deste mecanismo de troca recíproca conduz igualmente a especulações extremamente elucidativas quanto à formação das sociedades antípodas daquelas em que ele vigora — a sociedade competitiva —, onde a submissão e a propriedade privada aparecem de forma marcante. Assim, é possível imaginar que indivíduos com maior capacidade produtiva doassem uma quantidade cada vez maior de excedente, criando para quem recebia os 'presentes' a necessidade de praticamente trabalhar para os primeiros, no afã de conseguir manter em equilíbrio as suas relações, tornando-os cada vez mais abastados e poderosos. Até o ponto em que estes se sentiam capazes de desprezar as regras da reciprocidade, escravizando as pessoas, que a partir de então deviam lhe prestar reverência e obediência, pagando-lhe taxas e produzindo para satisfazer sua sede de acumulação e entesouramento, sem retribuição equânime. Eis que a reciprocidade, levada ao extremo, torna-se o seu contrário, ensejando a quebra da reciprocidade...

Um momento particularmente propício para a doação de presentes, donde decorreria, posteriormente, a “servidão” da maioria a uma minoria (inicialmente) mais pródiga, é precisamente aquele das festas e ritos sacrificiais, em que se troca presentes e faz oferendas, até a exaustão, como no potlatch, num desperdício anti-econômico, se considerarmos apenas a economia dos bens. Ainda hoje, em nossas sociedades estatais, como nos evidencia o jurista, professor de direito medieval e psicanalista francês Pierre Legendre, o poder dos governantes se exerce sobre os governados seduzindo-os pela distribuição de “presentes”, os cargos e serviços públicos em geral, pois tudo o que recebemos, mesmo tendo pago impostos, como não há uma relação direta entre o pagamento e o que é entregue em troca, será percebido (e recebido) como um presente: “Si nous recevons quelque chose, ce ne peut être qu’un cadeau”.17

Encaminhado-se para concluir, pode-se dizer que as reflexões aqui desenvolvidas revelam uma matriz comum às diversas formas de ordenação social da conduta humana, como são a política, a economia, o direito e a religião. Esta matriz comum se constitui historicamente, como parte de nossa filogênese, mas se reproduz também, com variações e regularidades, no processo de formação de cada sujeito, individualmente. A partir da constatação da imensa dificuldade do direito em regular, com as normas gerais e abstratas que são as leis, o comportamento cada vez mais diversificado dos membros de sociedades que se transformam com a velocidade das atuais, ditas “pós-modernas”, vale recordar a origem violenta de toda proibição, tanto sagrada, como jurídica, que garante nossa vida em sociedade, sustentada pelo enfrentamento da morte. O incremento da violência na sociedade “pós-moderna” não poderá ser contida pelo reforço da proibição jurídica, mas antes por uma consideração das consequências psicológicas e sociais da secularização defendida pela ideologia oficial, donde se verificar uma re-sacralização crescente das relações fora das instituições religiosas, ou seja, em seitas ou “tribos”, nas quais se reúnem nossos jovens, agora de maneira cada vez mais digital, virtual, tendência de que os efeitos psicológicos e consequências jurídicas ainda estão por ser melhor apreciados.18

Em épocas passadas, a comunidade se mantinha íntegra pela referência a uma origem comum, sacramentada por mitologias, religiões ou mesmo, mais recentemente, por mundividências filosóficas. No presente, o predomínio do pensamento científico e o correlato processo de “desencantamento” do mundo, ao qual se refere Max Weber, minam as bases sobre as quais tradicionalmente se ergueram as diversas ordens normativas. A construção de novas bases pressupõe uma recuperação de nossa capacidade criativa de ficções justificadoras da existência e da co-existência, ao mesmo tempo em que estamos cientes do caráter ficcional desse empreendimento, cujo resultado é a afirmação de valores. Para isso, vamos precisar de uma aproximação entre as mais diversas formas de criações desenvolvidas pelo engenho humano – artes, mitologias, ciências, religiões, filosofias – e aquela dentre elas que nos sanciona mais severamente, do ponto de vista social, a conduta, a saber, o Direito. Cabe ao Direito solidificar essa invenção ou ficção coletiva, criando e estabelecendo valores, impondo-os mesmo, em busca de garantir as condições de manutenção da vida em comum, a vida humana, tarefa prioritariamente econômica, mas que se orienta ético-jurídico- religiosamente.













































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1 Em “O Anticristo”, § 41, Nietzsche destaca o caráter bárbaro da ideia de que o Deus-Pai teria exigido o sacrifício do próprio filho, inocente, para perdoar os pecados dos culpados – culpados de quê? Com Carlos Henrique Escobar (2000, p. 131), podemos responder: “O cristianismo (e por habilidade de Paulo) – como dizem Nietzsche e Freud – opera mudanças na ‘ficção’, ao elaborar a ‘primeira morte de Deus’. Morre o Deus distante e velho e nasce (como seu filho) o Deus jovem e cúmplice dos homens (...)” – que por sua vez é morto por aqueles que não acreditaram em sua divindade.

2 O mesmo foi dito por Lacan no Seminário "O Desejo e a sua Interpretação", na última das sete lições sobre Hamlet, em 29 de abril de 1959, acrescentando: "Este mito indica-nos uma ligação essencial - a ordem da lei apenas pode ser concebida na base de algo mais primordial, um crime. É também o sentido freudiano do mito de Édipo". J. Lacan (1989, p. 104). Para Jacques-Alain Miller (2006, p. 62 ss.), além do Édipo, Freud forja seus mitos, nesta sequência, em Totem e Tabu e na última obra, Moisés e o Monoteísmo.

3 Para J. Hillman (1992, p. 113), "a análise é edípica no método: a pesquisa como interrogação, a consciência como olhar, o diálogo para descobrir, a descoberta de si através da rememoração dos primeiros anos de vida, a leitura oracular dos sonhos...".

4 Cf., nesse sentido, Ricardo Goldenberg (1994, p. 30).

5 Cf., v.g., Willis Santiago Guerra Filho (1997; 2014; 2018).

6 Cf. G. Balandier (1976, p. 258 s.).

7 Cf. S. Freud (1980, p. 258).

8 Para uma apresentação particularmente esclarecedora sobre esse aspecto do pensamento lacaniano consulte-se J. Dor (1991, p. 69 ss.).

9 Cf. J. Lacan (1991, p. 382 ss.), bem como o comentário à "Antígona" (ib., 295 ss.).

10 Cf., a respeito, por exemplo, Francisco Ortega (1998, p. 62 ss.).

11 Nesse sentido, M. Safoan (apud H. Yankelevich, s/d, p. 47).

12 Sobre a lenda de Édipo cf. J.-P. Vernant (2000, p. 162 ss., esp. 177 ss.), a respeito dos filhos do herói grego.

13 V. tb. B. Malinowski (1979, p. 309 ss.).

14 Mauss/Hubert (1969 [1898], p. 11).

15 Cf. Marcel Mauss (1969 [1898], p. 112) "Pour une sociologie des religions archaïques".

16 Cf., v.g., B. Malinowski (1933, p. 37).

17 P. Legendre (1976, p. 189), grifos do A., que continua nos seguintes termos: “Ce que l’Etat nous doit, ce sera donc toujours, malgré tout, une sort de cadeau. Le sujet-objet de l’amour d’Etat peut en chaque occasion se convaincre de ceci: je l’ai échappée belle, un peu de plus je n’avais rien, finalement j’ai de la chance, je reçois ma part d’amour.

18 Cf. M. Maffesoli (1987); G. Balandier (1976, p. 258 s.); G. Marramao (1995).

 



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