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O neo-estoicismo de Justo Lípsio e o papel da ação humana no De Constantia

 Revista Sísifo. N° 13, Janeiro/Junho 2021. ISSN 2359-3121. www.revistasisifo.com

 

Eugênio Mattioli Gonçalves

Doutorando em filosofia pela USP (Universidade de São Paulo), com estágio de pesquisa realizado na Université Jean Moulin Lyon 3. Mestre em filosofia pela USP, com estágio de pesquisa realizado na Università degli Studi di Torino, é bacharel e licenciado em filosofia pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

 

 

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RESUMO:

O século XVI testemunha um expressivo resgate da filosofia estoica, amparado por um número considerável de reedições, traduções e comentários de textos da escola antiga. Através desse movimento, as ideias dos pensadores do Pórtico passam a receber grande atenção no debate intelectual da época, e se espalham rapidamente por toda a Europa. Dentre os responsáveis por esse fenômeno, destaca-se Justo Lípsio (1547-1606), um dos maiores humanistas do norte do continente, e correspondente de figuras como Hugo Grotius e Michel de Montaigne. Lípsio, porém, não se limita a reproduzir os escritos dos filósofos da stoa; ele se esforça em conciliar essas teses com os dogmas religiosos de seu tempo, um período de grande agitação política e militar. Seu diálogo De Constantia (1584) é um exemplo desse esforço, refletindo os elementos de um movimento que, mais tarde, será decisivo para a filosofia moderna do século XVII. Busca-se, assim, caracterizar esse dito “retorno do estoicismo” – marcado pela influência cristã –, por meio da principal obra moral lipsiana, dedicada à virtude da constância. Esta análise permite, também, compreender o papel que o humanista atribui à ação humana, frente ao determinismo originalmente proposto pelos antigos.

Palavras-chave: Justo Lípsio. Neo-estoicismo. Providência. Constância. Destino.





ABSTRACT:

The 16th Century showcases a significant retrieval of stoic philosophy, which relies upon a variety of reissues, translations and commentaries of texts of this ancient school of thought. This movement draws great attention to the ideas of the Philosophers of the Porch, which are swiftly disseminated through Europe. Among those responsible for this phenomenon, Justus Lipsius can be highlighted, one of the most prominent humanists from the north of the continent, who also exchanged letters with Hugo Grotius and Michel de Montaigne. Lipsius, however, does not only reproduce the writings of the stoa philosophers; he endeavours to reconcile their theses with the religious dogma of his epoch, e period of intense political and military turmoil. His dialogue De Constantia (1584) exemplifies such an attempt, reflecting the elements of a movement that, later on, will be decisive for the modern philosophy of the 18th Century. This text intends to characterize the so-called “return of the Stoics” – marked by a Christian influence – recurring to the main work on moral of Lipsius, dedicated to the virtue of constancy. This analysis also encompasses the role ascribed by the humanist to human action, facing the conception of determinism proposed by ancient thinkers.

Keywords: Justus Lipsius. Neo-stoicism. Providence. Constancy. Fate.





Falar sobre o neo-estoicismo exige, antes de tudo, esclarecer os limites que separam o estoicismo clássico das teorias que virão a resgatá-lo no Renascimento tardio, como a de Lípsio. Ainda que traga no nome a idéia de sucessão (ou continuação) do pensamento da stoa, o neo-estoicismo muito se diferencia de seus antecessores.

Como sabemos, o estoicismo constitui uma popular escola filosófica da antiguidade, que, apesar de seu caráter sistemático, engloba autores e teses diversas, nem sempre em perfeito alinhamento. Em geral, os pensadores do pórtico são divididos em três grupos principais: o estoicismo antigo, o de Zenão – seu fundador –, Crisipo e Cleanto, datado do século III a.C.; o médio estoicismo, já em período romano (séculos II e I a.C.), de Panécio e Posidônio, e o estoicismo imperial, o mais voltado aos problemas da moral, que abrange as obras de Sêneca, Epiteto e Marco Aurélio (séculos I e II). Essa tradição de pensamento, composta sobretudo pelos fragmentos de seus escolarcas, constrói-se principalmente ao redor de conceitos fundamentais, como os de oikeiôsis1 (οἰκείωσις) e homologouménōs zên2 (ὁμολογουμένως ζῆν), a partir das quais se organiza uma rica concepção cosmológica e ética.

Abarcando idéias e nomes variados – de um escravo a um imperador romano – no decorrer de vários séculos, há consenso dentro da história da filosofia de que o estoicismo constitua uma relevante escola de pensamento, pautada por um sistema epistemológico comum muito popular em sua época. O que chamamos aqui de neo-estoicismo, contudo, está longe disso.

O termo neo-estoicismo nunca foi reinvidicado por nenhum autor do período, e só debuta no século XX, pelas mãos de Léontine Zanta. Seu La Renaissance du stoïcisme au 16 siècle é um marco para o estudo do tema, menos por cunhar a expressão que por mostrar o tortuoso renascimento do estoicismo no século XVI, que perpassa boa parte da Europa, do norte do continente até a península itálica e o território alemão. A esse “renascimento parcial, fragmentado” (ZANTA, 1914, p. 333), a estudiosa dá o nome de neo-estoicismo (neo-stoicisme), e aponta Lípsio e Du Vair como seus autênticos representantes.

Segundo Zanta, ao colocar o homem diante de si próprio, consciente de sua força – e da força de sua própria razão –, o humanismo tardio abre as portas para a moral laica e a religião natural, pilares do pensamento da stoa. Apesar da reação do mundo cristão – de reformados a contra-reformadores –, a comentadora mostra como se destacam os autores do neo-estoicismo, que aproximam a escola antiga dos ensinamentos de Cristo. Em suas palavras, esses pensadores “fazem do estoicismo não apenas o aliado do cristianismo, nas a filosofia que conduz ao cristianismo” (Ibid., p. 334). Uma das consequências desse movimento, para ela, seria uma espécie de enrijecimento da doutrina cristã, a partir da influência do racionalismo estoico. O cristianismo, assim, “perde seu calor, seu impulso, seu entusiasmo”, de modo que, “na alma cristã do neo-estoico, a razão permanece soberana, e, com a razão, também o entendimento e a vontade”, de maneira que, consequentemente, “o coração não está mais lá, e um cristianismo sem o impulso do coração não é mais o verdadeiro cristianismo” (Ibid., p. 336).

Ao precursor estudo de Zanta, outros se seguem, alargando o entendimento desse movimento tão importante, e, inversamente, tão pouco estudado.

Em Recherches sur le stoicisme aux XVIe et XVIIe siècles, o padre Julien Eymard D’Angers volta à questão, com foco na influência da retomada do estoicismo na primeira metade do século XVII. Em seu comentário, nas palavras de Louis Antoine, ele detecta “diversas atitudes” e “múltiplas diferenças” nos autores do período (D’ANGERS, 1976, p. IX). O religioso não poupa esforços em tentar delimitar cada uma das vertentes presentes nesse retorno do estoicismo. Como resultado, acaba por identificar, na época, uma vasta lista de correntes: “um estoicismo cristianizante, um cristianismo estoicisante, um humanismo cristão, um humanismo cartesiano, um comportamento duplo dos libertinos, e, por fim, um anti-estoicismo nascente” (Ibid., p. 24).

Recusando a expressão cunhada por Zanta, D’Angers enxerga não um neo-estoicismo, mas um “estoicismo cristão” encabeçando o resgaste dos textos clássicos da stoa – principalmente de Epiteto, Sêneca e Marco Aurélio –. Para D’Angers, os grandes responsáveis por esse movimento teórico seriam Justo Lípsio, Guillaume du Vair e Pierre Charron, que oscilariam entre teses estoicas e dogmas cristãos, ambos ora atenuados, ora reforçados. O comentador inclui também os Ensaios de Michel de Montaigne no rol de influências responsáveis pelo estoicismo cristão da época, particularmente influente sobre os libertinos eruditos do XVII. Para ele, a compreensão desse estoicismo cristão, pautado tanto por católicos quanto por protestantes, seria fundamental para se compreender adequadamente a história religiosa da França no período (Ibid., p. 35). Ainda que pouco convincente nos dias de hoje, a posição do capuchinho, ao incluir Montaigne e Charron no campo do estoicismo moderno, lança um novo olhar ao debate sobre esse movimento, que enriquece o estudo das filosofias do Renascimento tardio. D’Angers nos ajuda, também, a perceber como a obra de Lípsio – e de seus contemporâneos –, no fim do XVI, impulsiona a grande influência dos pensadores do pórtico no começo do XVII, cujas teses e florilégios passam a dominar a cena literária e política, principalmente na França.

Embora as interpretações acerca dessa retomada estoica nos séculos XVI e XVII sejam diversas3 e por vezes heterodoxas4, sua existência constitui um fato incontestável. Como apontam Zanta e D’Angers, as publicações do período estão recheadas de teses e passagens retiradas diretamente do estoicismo. Junto a elas, também, observa-se uma surpreendente quantidade de novas edições e traduções de autores clássicos da stoa – com destaque para Sêneca –, bem como de difusores dessa filosofia, como Cícero5. Para além dos círculos filosóficos, Pierre-François Moreau relembra que as idéias trazidas por esse resgate do estoicismo também marcam presença, de forma um tanto confusa e fragmentada, em outros debates, como no campo da alquimia e na literatura médica, “onde conceitos que remontam ao Pórtico se articulam com outras noções para explicar a estrutura dos seres vivos ou a transmutação dos elementos” (MOREAU, 1999, p. 13)6.

É claro que o estoicismo antigo não desaparece por completo entre seu declínio e o início do Renascimento. Em certa medida, ele também é lembrado durante o medievo, porém com grande comedimento, nitidamente ofuscado pela influência do aristotelismo. Com a chegada dos humanistas, e seu empenho em buscar no passado as bases do conhecimento antropológico, é que as atenções se voltam à escola de Zenão. Se para os pensadores do início da modernidade a fortuna – entendida pelos estoicos como a face visível da Necessidade – é o grande mistério a ser solucionado, sua antípoda é a virtude; e essa relação será atentamente esmiuçada, com a ajuda dos pensadores do Pórtico. Moreau destaca que o retorno do estoicismo através da mão dos modernos não pode ser entendido como o resgate impecável de uma doutrina sólida e fechada, de teses e conceitos determinados; mas sim como parte de um diálogo filosófico dinâmico, que se relaciona diretamente com outros pensamentos antigos, como o aristotelismo e o ceticismo. Tal resgate, portanto, deve ser visto sempre a partir desse prisma, e estudá-lo significa observar o contraste de uma filosofia com outra, suas continuidades e significações, de modo a entender como essas alternâncias e divergências se refletem nas interpretações que estas recebem na época.

O estudioso francês aponta que até o séc. XVI - incluindo aí o começo do Renascimento -, embora haja alguns temas estoicos presentes, não se pode dizer que o humanismo forje propriamente um neo-estoicismo (ou um estoicismo cristão); ou seja, um pensamento sistemático construído a partir do estoicismo antigo. Para ele, é com a chegada do XVI que o cenário muda: os problemas de congruência entre o estoicismo e o cristianismo se agravam, principalmente a partir da crítica de Calvino à escola antiga e à relação entre destino e providência, o que aguça as diferenças para muito além do campo ético. Textos como o De Constantia de Lípsio vão de encontro a esse problema, buscando resolver as questões lógicas e metafísicas da doutrina, adaptando assim o funcionamento de sua ética. Ainda que, por exemplo, o título do diálogo de Lípsio denote uma exposição sobre a doutrina moral do estoicismo, ele o faz amparando essa doutrina a partir de uma profunda explicação sobre o sistema metafísico que precede a formulação do melhor agir. Para Moreau, é somente após o De Constantia de Lípsio que podemos dizer que temos em mãos um “verdadeiro neo-estoicismo”, ainda que por vezes confundido com um “estocismo cristão” (Ibid., p. 20-21).

A meu ver, o fenômeno do neo-estoicismo coincide com a confluência natural de duas expressivas demandas da época: a de um humanismo latente e racionalizante, que se opõe à escolástica, sedento por buscar seus fundamentos numa antiguidade não-aristotélica, e a de um cristianismo em crise, dividido por guerras e por um incisivo movimento Contra-Reformista. Dado, pois, o fenômeno, segue-se a necessidade de classificá-lo, defini-lo, nomeá-lo.

O vocábulo criado por Zanta para rotular esse movimento teórico não é recusado apenas por D’Angers. Marcelo Lachat, por exemplo, critica a expressão neo-estoicismo, pois acredita que ela “não esclarece nem acrescenta coisa alguma; ou melhor, torna as coisas ainda mais indeterminadas do que já são”. Diz ele:



Quanto ao termo “neo-estoicismo”, se já não bastasse depender de estoicismo7, parece-nos ainda mais anacrônico e inadequado, pois ele não explica nem significa nada do que pudemos verificar nas obras dos séculos XVI ou XVII. Os autores desse período não demonstram jamais se considerarem “novos estóicos”, mas cristãos que têm algum interesse na doutrina estóica, e ainda menos parecem querer criar uma escola “neo-estóica”. Aliás, não se encontra nos textos da época nenhum rastro de neoqualquer (LACHAT, 2008, p. 108-109).



De fato, nada nos textos indica que tais pensadores cristãos almejassem a formulação de uma nova filosofia, tampouco a ambição de tomar para si a responsabilidade de “atualizar” o pensamento estoico. Isso, porém, não anula o valor de reunir sob o guarda-chuva do neo-estoicismo o conjunto de autores responsáveis por resgatar e divulgar, no início da modernidade, o pensamento do pórtico. Menos do que uma caprichosa disputa lexical, a discussão acerca do nome dado a esse movimento denota a importância de suas publicações e de seu debate para a história da filosofia. O que nos interessa, aqui, não é encontrar o melhor vocábulo para definir esses autores; tampouco buscar uma definição minuciosa que englobe seus escritos. Mas sim examinar sua contribuição, através da influência que exerceu em sua época. A meu ver, a recepção do neo-estoicismo – como em Montaigne e nos libertinos eruditos – é seu maior legado para o pensamento político e moral. Ainda que não tenham produzido um corpus filosófico, os autores neo-estoicos foram fundamentais para o debate público de seu tempo – tal como foi o maquiavelismo8 –, o que, por si só, já justifica a incorporação da denominação.

Com grande didática, Jacqueline Lagrée relembra que o estoicismo antigo é marcado por grandes mestres e suas lições – mais orais que escritas – sobre questões decisivas, comentando as teses do passado e sempre em diálogo com aquelas que lhes são contemporâneas (como o epicurismo). Não resta dúvidas, portanto, que ele “constitui, indiscutivelmente, uma escola filosófica” (LAGRÉE, 2010, p. 10). O mesmo, porém, não pode ser dito sobre o movimento que séculos mais tarde o resgata. De acordo com ela,



Fica claro que o neo-estoicismo [néostoïcisme] não constitui uma nova escola filosófica, mas sim uma corrente de pensamento que oferece vida novamente a certas concepções estoicas (as noções comuns, a providência e o destino, seguir a natureza, etc.), em um contexto radicalmente diferente do contexto original (Ibid. p. 11).



É nítido que o neo-estoicismo não se pretende, nem constitui, uma continuação da filosofia da stoa. Ele deve ser entendido mais como um momento (de forte influência estoica) do que propriamente uma doutrina. Mas isso não é pouco. O retorno do estoicismo no início da modernidade mostra a força dessa filosofia antiga, frequentemente evocada em momentos de crise pública. O valor maior desse resgate, portanto, só aparece quando se observa o neo-estoicismo tendo em consideração seu contexto e a influência que imprime em seus sucessores. A ausência de um sistema rigorosamente concatenado, ou a suposta fragilidade de suas conexões argumentativas, se tornam secundárias quando examinamos o impacto dessa corrente no debate de seu tempo.

Para Lagrée, o neo-estoicismo representa uma restauração, uma retomada de temas e conceitos estoicos, pensados a partir de um novo contexto. Dos ensinamentos de Sêneca, esses autores trazem de volta a noção de uma moral racional, universalista e laica; nas palavras da comentadora, uma espécie de racionalismo voluntarista. Assim, aprende-se que: “A única maneira digna de lidar com uma situação difícil não é fugir ou se ajoelhar em um refúgio de paz, distante do mundo, mas sim enfrentar o infortúnio dos tempos com lucidez e fazendo uso da inteligência” (Ibid., p. 12).

Esse ensinamento será, pois, a estrada proposta por um movimento humanista que, deixando de lado o dogmatismo teológico, se volta aos antigos na busca por um guia moral de conduta, em um presente marcado pelas turbulências e divisões de uma guerra civil que parece não ter fim.

Na medida, portanto, que o neo-estoicismo se aproxima mais da representação de um momento histórico do que propriamente de um cânone de autores, não há um rol preciso de nomes responsáveis por sua difusão. Nas décadas de destaque desse renascimento estoico, traduções e comentários sobre os pensadores do pórtico abundam por toda a Europa; e ainda mais difícil de enumerar são os incontáveis florilégios, orgulhosos das máximas de sabedoria estoica que portavam. Apesar disso, duas figuras podem ser consideradas como as principais referências do neo-estoicismo: Justo Lípsio (1547-1606) e Guillaume du Vair (1556-1621), com destaque para o primeiro9. Pertence a Lípsio o posto de grande autor do neo-estoicismo, influente inclusive sobre o pensamento de Du Vair, que lhe acompanha em muitas idéias mas jamais em importância10.

Definido por Montaigne – um de seus vários correspondentes – como “o homem mais sábio que nos resta”11, Justo Lípsio12 nasce em 1547 em Overijse, um vilarejo na região de Flandres, localizado entre Louvain e Bruxelas. Filho de uma família católica da baixa nobreza, rapidamente se mostra um aluno brilhante, e com tenra idade é enviado para cursar direito na universidade de Louvain (a mesma fundada por Erasmo). Dedicado ao estudo de textos latinos, como o de Cícero13, após terminar seus estudos embarca para a Itália, onde se aproxima da cultura clássica e do mundo eclesiástico, trabalhando como secretário do cardeal Granvelle. Nesse período, publica seu primeiro trabalho, Variae lectiones, por volta dos 20 anos de idade14. Retorna para Louvain e lá continua seus estudos, até 1571, quando decide fugir da guerra civil nos Países Baixos e segue em direção a Viena. Durante essa viagem, que seria utilizada mais tarde como pano de fundo do De Constantia, Lípsio visita Carlos Langio (Carolus Langius) em Liège, em 1571, o mesmo que protagoniza no livro a figura de mestre do pensador flamengo.

Em 1572, ainda durante seu exílio, a propriedade de Lípsio na Bélgica é ocupada por tropas espanholas combatentes na guerra civil, o que impossibilita seu retorno à terra natal e o leva a se candidatar ao cargo de professor de história na Universidade Luterana de Jena. Como John Sellars relembra, esse é o primeiro de uma sequência de movimentos institucionais que obrigam Lípsio a mudar a professão pública de sua fé15, cuja ambiguidade religiosa é uma marca. Após dois anos em Jena, transfere-se para Colônia e posteriormente retorna a Louvain, onde permanece até 1579, quando tem sua propriedade novamente saqueada por soldados e se vê obrigado a fugir, desta vez para Leiden, em cuja universidade – calvinista – permanece lecionando por 13 anos16. É nesse período que escreve suas principais obras, De Constantia Libri Duo (1584) e Politicorum sive civilis doctrinae libri sex (1589). Fazendo jus a sua formação católica, aceita em 1592 a cátedra de história e literatura latina em Louvain17, onde permanecerá até o fim de sua vida18. Nessa etapa final de sua produção, edita obras de Sêneca e escreve dois tratados sobre o estoicismo, o Manuductio ad Stoicam Philosophiam e o Physiologia Stoicorum, ambos publicados pela primeira vez em 1604. Morre em 1606, jurando sua fé ao catolicismo.

Do legado de Lípsio, destaca-se sua influência intelectual, sobre alunos e admiradores, espalhados por todo o continente. Já desde a época de sua morte, o pensador, alvo de inúmeros panegíricos, era reconhecido como um dos maiores responsáveis por transportar no fim do século XVI a erudição da cultura italiana aos países do norte da Europa. Não que o berço do latim fosse um território inacessível. Sabemos que já então era tradicional a viagem de intelectuais ao país – como fez o próprio Lípsio –, numa espécie de temporada de formação erudita; sem falar, é claro, no constante fluxo de membros do clero, indo e voltando de Roma. Mas o destaque do escritor flamengo está no seu esforço em difundir essa cultura clássica, através de sua rica produção bibliográfica – no campo da história, filologia, filosofia, e política19 – e, sobretudo, de sua divulgação. Lípsio, lembremos, fugindo dos conflitos civis, viaja por toda a Europa, lecionando e debatendo em diferentes regiões. Como uma abelha que derruba seu pólen por onde passa, o humanista transmite suas idéias a incontáveis interlocutores, que a ele tornam a recorrer regularmente, interessados em suas discussões.

A influência de Lípsio é evidente no grande alcance de suas principais obras, mas não só. Sua dedicação na troca de correspondências é notável, de modo a compor quase um corpus paralelo de escritos, ajudando a mensurar o prestígio que detinha em seu tempo. Estima-se que o humanista tenha trocado milhares de cartas20, com dezenas de interlocutores, sendo 126 delas publicadas ainda em vida, em Epistolarum Quaestionum libri V (1577). Ainda que boa parte de suas correspondências se limite a assuntos cotidianos ou de foro íntimo – a encomenda de seus óculos novos em uma passagem pela Antuérpia, reclamações sobre o baixo salário de docente da universidade, etc. –, o grande valor desses documentos reside em atestar, de forma complementar, seu papel como referência intelectual ainda em vida. Seus correspondentes não eram apenas muitos, mas também personalidades de relevo – e espalhadas por toda a Europa –, como Michel de Montaigne, Francisco de Quevedo, Hugo Grotius e o príncipe Maurício de Orange21. Lípsio, vale lembrar, é retratado também no quadro Os quatro filósofos, de Peter Paul Rubens, mestre da pintura barroca europeia. Na obra, o grande autor neo-estoico – professor do irmão de Rubens, Philip – é retratado sob um busto de Sêneca, aplicando suas lições aos presentes.

Seu reconhecimento como humanista erudito começa a ganhar alcance após a publicação, originalmente em Leiden, do De Constantia Libri Duo, Qui alloquium praecipue continente in Publicis malis. Diálogo composto por dois livros, o texto dedicado à virtude da constância busca uma espécie de consolação filosófica para um período turbulento, marcado pelas guerras de religião, e é notadamente inspirado no De constantia sapientes de Sêneca, que lhe empresta inclusive o nome. Muito popular no período, é provavelmente o escrito mais conhecido de Lípsio, rapidamente se espalhando por todo o continente. Em um intervalo de pouco mais de um século, entre sua primeira publicação (em 1584) e 1705, o De Constantia recebeu nada menos que 32 edições latinas. Vale lembrar também que, ainda em seu ano de lançamento, recebeu edições em holandês e francês, e nas décadas seguintes foi traduzido para o alemão (1599), inglês (1595), polonês (1600) e espanhol (1616). Tamanha repercussão se justifica por ao menos dois fatores: pelo contexto de agitação pública, marcado por guerras e disputas em nome da fé; e pelo estilo do texto, um diálogo de aconselhamento, distante do estudo acadêmico e mais voltado a fornecer respostas aos problemas do presente22. Além de lhe trazer fama, a obra é responsável também por iniciar Lípsio nos escritos sobre o estoicismo. É sabido que seu contato com a escola do pórtico remete à sua juventude, particularmente sua estadia em Roma, momento em que seu contato com Marc Antoine Muret teria sido fundamental a seu acesso aos estudos sobre o estoicismo romano.

Já em seu prefácio o De Constantia adianta o intuito do autor, que alega ter “buscado consolações contra os males públicos” (LÍPSIO 2006, p. 29)23, inspirado nas lições deixadas por Sêneca e Epiteto sobre as paixões24. Anunciado seu escopo, inicia-se o diálogo, que gira em torno de dois personagens: o próprio Justo Lípsio, tentando escapar do sofrimento que assola sua pátria – perturbada pelos conflitos armados – em busca de paz de espírito25; e Langio, seu mestre no período de juventude, que o recebe em sua casa. Como já vimos, pouco após seu retorno da Itália, ao viajar de Louvain para Viena, o humanista de fato havia visitado Langio, de modo que a narrativa que dá cenário ao livro se baseia em um encontro real, embora o mesmo não se possa dizer dos diálogos nela descritos.

Logo no primeiro capítulo da obra, ao encontrar Langio e relatar a ele as razões de sua fuga, Lípsio é imediatamente reprimido pelo interlocutor, que lhe aponta o erro de sua decisão: “Lípsio, você não deve abandonar seu país, mas suas paixões (adfectus). Nossas mentes devem estar tão seguras e conformadas de modo que possamos estar tranquilos quando em dificuldades, e ter paz mesmo em meio à guerra” (Ibid., p. 32).

A partir dessa premissa se desenrola o diálogo, que nos ensina, a partir das lições de Langio, que o mal é fruto da opinião humana, e que para dele escapar devemos mudar não de lugar, mas nossa maneira de pensar. Do sofrimento, nos mostra a lição estoica, não se foge com as pernas, mas com a mente. Isso porque nenhum acontecimento deve ser entendido, por si só, como mau: mesmo as calamidades públicas, como já ensinaram os antigos, são parte de uma razão superior, cuja finalidade é perfeita. Ainda que tais acontecimentos possam nos parecer ruins, eles seguem uma ordem impecável. O equívoco, portanto, está em nós; mais precisamente, na maneira como recebemos esses acontecimentos. E se reside em nosso entendimento o problema, também nele está a solução.

Langio explica que o antídoto para as paixões que nascem dos acontecimentos calamitosos é a constância. Como ele mesmo define no quarto capítulo do primeiro livro, “a constância é uma reta e inamomível força da mente, que não é afetada por causas externas ou fortuitas” (Ibid., p. 37). “Filha da paciência” (Ibid., p. 37), essa virtude é essencialmente um produto da razão, dado que somente através dela a constância se produz. Assim, fica em evidência o peso que o diálogo coloca sobre a disposição racional do indivíduo. Não é o exemplo dos outros homens a origem da constância; tampouco algum tipo de inspiração ou intervenção divina. O remédio para o sofrimento decorrente das paixões está dentro de si, e não no mundo ao redor, nem em um plano superior. Consequentemente, a responsabilidade de encontrá-lo pertence unicamente ao próprio homem.

Jacqueline Lagrée percebe na concepção de constância defendida pela obra de Lípsio uma clara oposição entre a postura dos neo-estoicos e a de seus críticos, notadamente os católicos. Para ela, a diferença se resume à visão sobre as responsabilidades – “constance contre charité” –, dado que, para o controle do sofrimento, enquanto os tratados sobre a constância sugerem o emprego imediato das próprias forças nesse intuito, começando com aquelas do próprio escritor, o dogmatismo cristão vigente relegava esse papel a Deus, à Sua intervenção, e tinha preferência sobretudo pelos escritos de aconselhamento, dirigidos aos fiéis (Cf. LAGRÉE, 2010, p. 120).

De fato, se comparada com o pensamento católico, a constância reflete o genuíno espírito humanista, ao fortalecer a autonomia da razão individual frente aos tormentos do mundo. Mas, resgatada pelo neo-estoicismo, essa virtude não se opõe diretamente aos pressupostos cristãos; ao contrário, os engloba. Confrontado com as diferenças entre a ética cristã e a estoica, percebe Jan Papy, Lípsio demonstra que os conflitos entre as duas eram mais aparentes que reais (PAPY, 2002, p. 861). No diálogo, a constância, produto da razão, é contrastada à inconstância, fruto da opinião. Embora atributo tipicamente humano, nossa capacidade de raciocinar não está isolada em nós: ela deriva, em certa medida, da razão divina, infinitamente superior e distante, a quem devemos espelhar para fugir dos equívocos e opiniões. Para tanto, compartilhando da visão dos antigos pensadores do pórtico, aprendemos com o neo-estoicismo que devemos alinhar nosso logos individual à razão do universo, responsável por reger o mundo e todos os seus acontecimentos. Moderando nossa vontade, e nos engajando a seguir a força maior que guia o rumo das coisas, nos afastamos das paixões e do sofrimento trazido por elas. E, segundo os pensadores do XVI, o que vem a ser essa inteligência superior que devemos buscar? A resposta não poderia ser outra: Deus, é claro.

Parte fundamental do exercício da constância reside em entender as condições cosmológicas que a sustentam. Como já apontado pela stoa, a ética é inseparável da física; viver a vida conforme a natureza requer o conhecimento dessa natureza. O neo-estoicismo, assim, remete às bases do sistema estoico para assentar os pilares de sua proposta de comportamento. De nada adianta prantear os desígnios da fortuna, lamentando a inconstância que acompanha os acontecimentos por ela trazidos. Ao invés de lhe resistir, deve-se, pois, conhecê-la, de modo a entender seu rumo, e aceitar que a melhor escolha possível é seguir os caminhos que nos traça. Nas palavras de Adma Muhana,



É neste sentido que a Fortuna é interpretada pelos humanistas cristãos: como uma alegoria do desconhecimento humano acerca das causas que regem o mundo, governado todo pela Providência divina. Fortuna, assim, aparece como um nome dado pelos estultos ao que lhes sucede sem ordem aparente, por ignorarem suas verdadeiras causas. Desde que se importam apenas com as coisas que têm existência terrena – por si transitória, efêmera, fugaz – quando aquelas são bem-sucedidas consideram ter boa sorte ou boa fortuna; se fracassam, afigura-se-lhes um infortúnio, ou fortuna adversa. Todavia, se perscrutassem a justiça divina, cujos desígnios se ocultam à sua voluntariosa ignorância, poderiam encontrar as causas dos infortúnios e neles reconhecer, pelo contrário, a ação da Providência, que legitima tais insucessos com vistas seja a um bem permanente, eterno, seja ao fortalecimento dos homens dignos: “os homens bons esforçam-se, sacrificam-se e são sacrificados, e de bom grado. Não são arrastados pela Fortuna, seguem-na e igualam seus passos. Se a conhecessem, se antecipariam à sua frente” – diz Sêneca, fonte de tantos, no opúsculo Sobre a Providência (REBELO, 2006, p. 331).26



Não por acaso, é resgatada pelo De Constantia a providência (providentia), acompanhada do destino (fatum). Ao colocá-la novamente em evidência, Lípsio transmite um recado sutil a seus contemporâneos: a prudentia, clássica substituta humana da providência divina, a ela está inevitavelmente atrelada. Não basta a mera experiência – ou o estudo da história, tão louvado pelos humanistas – para aprender a domar a fortuna; que, aliás, não se domestica. Estamos, todos, sujeitos aos inescapáveis ditames da providência; mas, acima de tudo, estamos submetidos ao seu télos, determinado por Deus, que, em nós, se reflete em nosso destino.

O sistema cosmológico que dá sustentação ao De Constantia – presente também em textos posteriores – resume-se a três camadas sequenciais: partindo de Deus, segue-se a Providência divina, que, por sua vez, incide sobre o mundo dos homens através do Destino.

Para o estoicismo antigo, Deus e a matéria são princípios eternos e coextensivos; isto é, coincidentes. E, conjuntamente, compõem a Natureza, o universo e tudo o que nele habita, como os seres vivos. Deus, nesse sistema, é entendido como o todo; isto é, não há uma divisão ontológica entre criador e criatura, ele compõe a totalidade das coisas. Mas a extensão, para Deus, é um aspecto secundário, que é incorporado pela matéria. O que lhe é verdadeiramente fundamental é sua razão, seu logos, que – dada sua totalidade –, consequentemente, se traduz na razão do universo, que incide sobre todo o mundo.

Mas concepções panteístas ou materialistas da realidade e da constituição de Deus não podiam ser aceitas pelos humanistas cristãos. Lípsio, assim, se debruça sobre o sistema estoico para corrigir seus equívocos e más interpretações, lendo à sua maneira princípios que mais tarde seriam fundamentais para o trabalho de filósofos da geração de Espinosa, como a imanência de Deus nas coisas, o determinismo do universo e a unidade entre Deus e matéria. Ainda que possamos identificar no De Constantia alguns aspectos dessa modificação que Lípsio oferece às teses do estoicismo – como a relação entre providência e destino –, é no seu Physiologia Stoicorum (1604) que essas alterações ficam mais evidentes.

Na obra, o neo-estoico abraça as idéias da stoa, inclusive se posicionando ao lado da escola na contenda com os epicuristas. Porém, não hesita em divergir quando estas se opõem aos dogmas do cristianismo. Isso se vê no valor negativo que Lípsio atribui à matéria, conferindo a ela a origem do mal27, ou quando recusa a concepção de que Deus e matéria unidos formam a natureza. Esse tipo de postura se dá por todo o texto. Como aponta Anthony Long sobre a leitura do humanista, por exemplo “quando os estoicos falam de Deus como ser presente nas coisas, eles na verdade querem dizer, como ensina as Escrituras, que ‘nós temos nosso ser em Deus’ (Physiologia stoicorum, I, 9)” (LONG, 2003, p. 17); isto é, o olhar lipsiano, cristianamente enviesado, deturpa a proposição estoica sobre a relação entre Deus e matéria, interpretando que – ao contrário do que defendem os antigos – Deus não seria de fato imanente à matéria, pois essa tese implicaria uma leitura, sobre a ontologia divina das coisas terrenas, que não poderia ser aceita.

Essa maneira de adaptar teses estoicas aos princípios cristãos, marca fundamental do chamado neo-estoicismo, se repete na cosmologia defendida por Lípsio; que, como já mencionado, é composta por Deus, pela Providência e pelo Destino. Sem surpresa, também o esquema proposto pelo humanista é fruto de uma considerável modificação feita ao sistema estoico original. Como afirma Jacqueline Lagrée, enquanto a estrutura antiga “repousava sobre um modelo físico-químico de mistura total entre Deus e o mundo”, Lípsio o substitui por “um modelo metafísico que temporaliza a relação de implicação entre o princípio divino fundador e as organizações espaço-temporais das coisas do mundo” (LAGRÉE, 2010, p. 68). De fato, como percebe a comentadora, ele parece amenizar essa relação, evitando a todo custo assumir a tese estoica, que insere o ser divino nas coisas, sem rodeios, preferindo por sua vez distanciar Deus da matéria terrena. Mudando-se a concepção acerca de Deus, altera-se também o entendimento sobre sua providência. No De Constantia, assim, a providentia do estoicismo retorna; mas, desta vez, cristianizada.

Como sabemos, segundo os estoicos o universo é regido pela racionalidade divina, cujo logos perfeito produz e organiza tudo. O logos de Deus, imanente à matéria, está presente em todas as coisas, inclusive na razão humana, entendida por eles como uma centelha da razão divina. Tal racionalidade está também na natureza, cujos movimentos manifestam os desígnios de Deus. O cair de uma folha, assim, reflete o próprio logos divino em ação. Segundo o estoicismo, Deus não se ocupa de determinar, individualmente, cada fenômeno mundano, pois estes são, também eles, centelhas de sua razão, e refletem seu ordenamento racional para o universo. Em outras palavras, deve-se entender que Deus não apenas produz a natureza; ele é a natureza, e está em todas as coisas. Sua providência reside, portanto, na atualidade da razão divina imanente à natureza, como um plano geral realizador das coisas, que reflete o logos de Deus sobre cada partícula do universo, dos homens às gotas de orvalho. Consequentemente, a esse plano benevolente – pois tudo o que faz parte do logos divino é perfeitamente bom – estamos todos submetidos, e acatá-lo configura menos uma obrigação – dado que não podemos alterá-lo – do que uma escolha deliberada, confiante no rumo determinado por Deus ao mundo. Aquilo que se retrata popularmente sob o nome de fortuna, é, na verdade, obra da providência, e aceitar seus ditames não significa se resignar a viver em um mundo pré-determinado, mas sim adotar uma postura ativa que, buscando compreender o movimento do universo, nele se espelhe para alinhar nossa vontade à racionalidade divina, aprendendo a dançar conforme a música.

Partindo desse horizonte antigo, o neo-estoicismo estabelece sua própria interpretação da cosmologia do mundo e da providência que o rege. Como observa Jan Papy,



Explicando a doutrina da Providência – a inteligência superintendente de Deus e origem de toda a experiência humana – Lípsio conclui que é vão e insensato resistir-lhe. Preferentemente, com Sêneca, Lípsio postula o seu Leitmotiv de que nascemos num reino onde a obediência a Deus é verdadeira liberdade (PAPY, 2002, p. 865).



Se num primeiro momento pode soar paradoxal a relação entre obediência e liberdade, à luz da cosmologia de inspiração estoica essa suposta contradição se desfaz. Na medida em que a vontade de Deus se reflete nos acontecimentos do mundo, ela não deve ser entendida como uma determinação externa, imposta por um terceiro. Seguir a razão divina significa acompanhar o princípio intrínseco ao nosso próprio ser. É mirando os ditames do universo, portanto, que realizamos nossa natureza. Mas essa liberdade apregoada pelo neo-estoicismo não se limita a um caráter ontológico: acompanhando a providência, libertamo-nos também das paixões. Sofremos porque lutamos contra o movimento do mundo. Abraçar o fluxo das coisas significa se aproximar da virtude e se libertar de nossas paixões, que nascem da resistência ao destino.

Falando através de Langio, no capítulo 19 do primeiro livro do De Constantia o autor retifica a concepção estoica, ao operar uma separação entre Deus e natureza. Partindo dessa separação, ele esclarece como vê a relação entre providência e destino:



Eu defendo e sustento que Providência é uma coisa, e que aquilo que chamamos Destino, outra. Considero a Providência algo não diferente de um poder e uma faculdade em Deus, de ver, conhecer e governar todas as coisas. Um poder, digo, universal, indivisível, impenetrável e, como afirma Lucrécio, unificado. Já o Destino parece recair sobre as próprias coisas, sendo visto em suas particularidades, como uma inclinação conferida por aquela Providência universal aos particulares. Assim, a Providência está em Deus, e é atribuída apenas a ele; o destino está nas coisas, e está nelas inscrito. [...] Portanto, como falei, o primeiro está em Deus, e o segundo verdadeiramente deriva de Deus, e é percebido nas coisas propriamente ditas (LÍPSIO, 2006, p. 67).



Para o cristão, enquanto, pois, a providentia divina rege o mundo, o fatum reflete essa ordenação, individualmente, em cada coisa, incutindo nos particulares o télos universal determinado pela natureza. Como explica o texto, o destino “não suprime o movimento interno e a natureza das coisas”, pois ele “age docemente e sem violência, como exigem as marcas e sinais impressos por Deus em cada ser” (Ibid., p. 67-68). Tal ressalva tem como pano de fundo a intenção de mostrar a faceta divina do destino, que deve ser entendido menos como uma árdua imposição cósmica que como o leve fluir do movimento natural da vida. Assim, do ponto de vista dos seres que o vivenciam, o destino “não traz nenhuma força violenta ou coação, mas dirige e conduz cada realidade, de modo que ela se realize ou sofra conforme sua natureza” (Ibid., p. 68). Em outras palavras, podemos dizer que o destino atribui a cada um seu papel no espetáculo do mundo, espetáculo esse produzido por Deus e dirigido por Sua providência.

Antes de discorrer longamente sobre a relação entre providência e destino – inclusive diferenciando sua visão daquela concebida originalmente pelos antigos –, o neo-estoico insiste, através de Langio, na proximidade entre providência e destino, esclarecendo que estas não se encontram propriamente apartadas, pois a primeira apenas é mais excelente e precede a segunda, e portanto se distinguem.

Para Lagrée, a relação providência-destino apresentada por Lípsio busca resolver o problema que nasce da determinação metafísica do mundo frente à liberdade de ação do homem. Segundo ela:



O destino é uma série ou uma corrente (catena) entrelaçada (series implexa) de causas [determinadas]. Mas seria essa cadeia inflexível? A grande originalidade de Lípsio é contornar essa objeção cerceadora, oferecendo uma determinação cristianamente admissível e filosoficamente fértil, a partir de conceitos do Pórtico. Entre a providência e as leis da natureza há uma relação recíproca de fundação (a providência funda a legalidade da natureza) e de atestação (o conhecimento das leis da natureza atesta a providência divina). A partir dessa concepção nomológica da natureza, podemos derivar vários modelos de relações entre Providência e destinos, que se sobrepõem: uma que vai da providência geral aos destinos particulares, uma que vai da causa das causas às causas particulares envolvidas nela; uma que conecta o princípio a suas consequências; o que é in Deo [em Deus] àquilo que existe a Deo et in rebus [a partir de Deus e nas coisas]; (...) é ancorado, enfim, o primeiro elo celeste da cadeia de causas, seguindo o modelo da corrente homérica que conectava Zeus à terra (LAGRÉE, 2010, p. 67).



Nesse encadeamento Lípsio encontraria, assim, uma brecha, um espaço possível para a realização do agir humano, entre o plano universal guiado pela providência e os destinos particulares dos indivíduos. Tal agir, é claro, ainda se encontra sob a regência da vontade divina, pois é dela decorrente. Mas cria, ali, um espaço de liberdade, alcançável a partir da auto-realização do indivíduo, entendida como o cumprimento dos desígnios estabelecidos pela razão universal. Pois enquanto a providência é única, os destinos que a ela estão condicionados são inúmeros. O destino, como percebe Jan Papy, “vem de Deus, é verdade, mas reside nas próprias coisas (inhaerens rebus mobilibus)”, de modo que, como já demonstrado por Pico della Mirandola e Agostinho28, no que tange à ação humana, o destino é “a causa primeira (prima causa), enquanto que entre as causas secundárias está o livre arbítrio do homem” (PAPY, 2002, p. 865-866). De fato, o entendimento compartilhado por Lagrée e Papy é ilustrado no próprio De Constantia, através de diferentes metáforas. Em uma delas, ao fim do capítulo 20, o destino é comparado a um navio, do qual somos passageiros. Dentro dele temos a liberdade de nos locomover, para cima e para baixo, rumo à proa ou à popa; mas independente do percurso que traçamos em seu interior, a embarcação em nada alterará sua rota. Assim são os homens livres, passageiros de seus destinos.

É essa concepção que eleva, no neo-estoicismo, a importância da virtude da constância. Ciente das limitações que a Providência coloca à sua vontade, o bom cristão deve ser capaz de aceitar seu destino, reconhecendo que este traz o caminho determinado a ele por Deus. Como explica Adma Muhana,



Distintamente do estoicismo romano, que tem na aceitação do Destino cego e imutável a justificativa da conformidade e da apatia, o estoicismo cristão reconhece que a constância e firmeza de Jó só são possíveis porque são fundadas sobre uma razão modesta que tem por base o conhecimento judicativo da Providência divina. (...) Por isso, a verdadeira sabedoria é viver de acordo com esse conhecimento da Providência: segundo o qual há coisas próprias, que dependem dos homens (como o julgamento acerca das coisas, como as virtudes e os vícios, e como todos os males...), e coisas alheias, dependentes apenas de Deus. Ignorância é afligir-se e perturbar-se com o que independe do conhecimento humano, como a morte, as ruínas e os fracassos – que consistem todos em perdas de bens temporais, inúteis para a salvação (REBELO, 2006, p. 340).



Compartilhando com o estoicismo antigo o seu incisivo caráter prático, o pensamento que ganha luz através das mãos de Justo Lípsio visa as ruas, e não as bibliotecas, como lugar de chegada. Catapultado pelo humanista flamengo e fomentado principalmente por uma Igreja em pleno movimento Contra-Reformista, os ensinamentos do estoicismo cristão passam a penetrar no cotidiano do homem desse período, mostrando-lhe como se comportar frente os acontecimentos do dia-a-dia, sem deixar de seguir sempre a vontade de Deus. E essas lições têm na literatura uma de suas principais frentes.

Muhana nota que as epopéias gregas em prosa, famosas por retratarem seus heróis em jornadas castigadas pela fortuna, são recebidas nos séculos XVI e XVII sob um forte viés cristão, que passa a oferecer a essas narrativas uma fundamentação teológica, de modo a servirem como exemplo de constância e firmeza a seus leitores. Narrativas como Infortúnios trágicos da constante Florinda (1625) reproduzem esse roteiro, repetindo também essa mesma lição moral. Na obra, escrita pelo português Gaspar Pires de Rebelo, a jovem Florinda, após a dramática morte de seu amado, foge de casa e se lança ao mundo numa longa peregrinação, buscando escapar do sofrimento provocado pela fatalidade vivida e pelas tentações que ameaçam seu juramento de amor eterno ao falecido29. Em seu caminho, repleto de desventuras, a firmeza da protagonista é a todo momento colocada à prova, confrontada com inúmeras dificuldades, “ora em cárceres, ora em caminhos, ora em pobreza, já tido por ladrão, ora tido por invencionário e público usurpador de donzelas; já pobre pedindo de porta em porta, agora feito um moço de navio, tudo por perseverar em sua firmeza e constância” (Ibid., p. 166), sem jamais esmorecer. Na trama, Florinda encarna a atualização da figura do sábio estoico, que segue impassível sua estrada, honrando suas virtudes e resistindo às tentações que surgem em seu caminho.

Muitos dos personagens com quem a donzela cruza em suas andanças sofrem, também eles, com os golpes do destino; de moças sequestradas a reis destronados. Nesses encontros, além de lembrar o leitor de que os planos da fortuna a todos afetam, vemos também a aplicação da teoria estoica da “partilha dos males”, que é resgatada pelo neo-estoicismo. Ao compartilhar entre si as histórias de seus infortúnios, os personagens nos ensinam que vivemos, juntos, sob uma trama entrelaçada de destinos individuais, orquestrada pela providência divina, mas que reconhecer as experiências negativas vividas por outrem é uma útil terapia de conforto de nosso próprio sofrimento.

A lição moral trazida pelo romance de Rebelo se anuncia no desfecho da história. Após inúmeros desafios, a constância exemplar demonstrada por Florinda durante sua jornada é finalmente recompensada: a protagonista reencontra seu amado, que, ao contrário do que ela acreditava, não havia falecido. Esse prêmio concedido a ela pelos céus, fruto de absoluto mérito individual da heroína, reflete a compensação derradeira por uma vida vivida de acordo; isto é, aceitando seu destino e resistindo aos sofrimentos decorrentes dos ditames da providência. Tal como o personagem de Lípsio no De Constantia, Florinda busca escapar da dor que lhe aflige viajando para longe; mas, durante sua jornada, percebe que para fugir dos tormentos deve, na verdade, escapar das paixões que carrega consigo. Nessa dinâmica, que coloca a transformação da mentalidade voltada ao agir como a verdadeira mudança, os jardins e paisagens bucólicas são paisagens que trazem um aspecto de protagonismo, auxiliando a escapar dos conflitos ao desempenhar o papel de espaço estático de reclusão e conforto para as feridas da alma. Isso se vê, por exemplo, no ideal de paz que Florinda procura nas paragens pastoris e nas propriedades rurais que a acolhem, ainda que a fortuna acabe por impedi-la de permanecer nesses lugares por muito tempo. Também em oposição à fuga empreendida através das viagens, os primeiros capítulos do livro II do De Constantia apresentam o belo jardim de Langio como exemplo de refúgio e calmaria para os problemas do mundo. Numa crítica endereçada aos seguidores de Epicuro, o diálogo ensina que os jardins não devem ser entendidos como um cenário de vaidades e preguiça, mas sim um ambiente de estudo e meditação, ideal para tranquilizar nossos pensamentos e exercitar a virtude, ao alinhá-los com a natureza que rege o mundo. Como diz Langio:



Você acha que quando estou ali [no jardim] me atormento com o quê se ocupam os franceses e espanhóis; com quem detém ou deixa de ter o cetro da Bélgica? Se o tirano da Ásia nos ameaça por mar ou por terra? Ou ainda, o que tem em mente o rei das terras gélidas, próximas ao polo norte? Não, nenhuma destas coisas perturba meu cérebro. Estou guardado e protegido contra todas as coisas exteriores, bem estabelecido comigo mesmo; despreocupado de todas as preocupações, exceto uma, que é a de sujeitar esta minha mente exausta e angustiada à Reta Razão e a Deus, e sujeitar todas as coisas terrenas e humanas à minha mente. De modo que quando meu dia fatídico chegar, eu esteja pronto para recepcioná-lo de maneira corajosa e satisfeita, e parta desta vida não como quem é atirado da janela, mas sim saindo pela porta da frente. Este é meu lazer, Lípsio, em meus jardins. Estes são os frutos que jamais trocarei, enquanto estiver em meu bom juízo, nem por todos os tesouros da Pérsia e da Índia (LÍPSIO, 2006, p. 81).



Cenário tipicamente atribuído ao epicurismo, a figura dos jardins é elogiada e reivindicada pelo neo-estoicismo, desta vez em oposição ao hedonismo e ao gozo dos prazeres terrenos. Entendido como recanto da virtude e da retidão do homem, o jardim encarna – através do resgate cristão das teses da stoa – o lugar ideal daqueles que buscam a paz e o conforto de espírito, sentimentos tão desejados em uma Europa barroca dividida e atormentada. Dos arbustos desse terreno de calmaria e reflexão, relembra o De Constantia, pode nascer o mais valioso fruto da natureza: a virtude, escopo maior da vida humana. Assim, o ideal do jardim – em oposição às viagens – como espaço ideal de autoconhecimento e de cultivo das virtudes, é mais um elemento constituinte do modelo ético que o neo-estoicismo oferece a seus leitores, como solução às perturbações que afligem a alma.

Esse guia de conduta voltado ao homem da época, e produzido a partir das contribuições do estoicismo antigo, se alastra por todo o continente, através de obras como o De Constantia e, mais tarde, a Constante Florinda, enraizando-se profundamente no pensamento europeu do final do séc. XVI e começo do XVII. As transformações trazidas pelo modelo neo-estoico são, assim, palpáveis, e sintetizam uma nítida mudança de rumos no pensamento ético do Renascimento tardio, que encontrará, nas mãos dos filósofos modernos do XVII, sua continuação. É difícil, portanto, não concordar com Adma Muhana, ao concluir que “essa ética de matriz estóica se dissemina amplamente no catolicismo do Seiscentos”, de modo que



Substituídas as velhas noções de Destino e de Fortuna pela Providência, também se substitui uma ética aristotélica, que capacita o homem à sabedoria e à justiça por meio da razão, por uma do homem prudente, santo e puro, cuja aceitação divina capacita-o à temperança e à fortaleza. A distância entre ambas é grande (REBELO, 2006, p. 334-335).



Articulando conceitos da cosmologia estoica para assentar as bases de um modelo ético alinhado com a vontade divina e, simultaneamente, acessível ao homem, Lípsio diminui a distância entre o sábio inalcançável e o cidadão comum, oferecendo a este não apenas consolo em momentos de dificuldade, mas, também, o conhecimento necessário para se enfrentar as adversidades de cabeça erguida, ciente de que estas fazem parte de um plano superior que já tem determinado, para cada um de nós, um papel a protagonizar no roteiro perfeito do universo.



Referências bibliográficas:



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ZANTA, Léontine. La Renaissance du Stoïcisme au 16 Siècle. Paris: Honoré Champion, 1914.

1 De difícil tradução, a oikeiôsis pode ser entendida como a “adesão” ou “orientação” do homem a sua percepção de si como morada do próprio eu, “habitat de si próprio”. É através desse autoconhecimento que ele é capaz de buscar o que o beneficia e fugir do que o prejudica.

2 “Viver de acordo”. Pilar central do estoicismo, a idéia vem de uma tese de Zenão, segundo a qual a virtude reside no natural fluir da vida. Viver virtuosamente, portanto, é viver segundo nossas inclinações; ou seja, viver de acordo com sua própria natureza. Habitar a si mesmo, assim, configura o télos de todas as ações humanas.

3 Contemporâneo de Zanta, Morris William Croll, por exemplo, denomina o movimento encabeçado por Lípsio de “anti-ciceroniano”. Segundo ele, ao aderirem a Sêneca e ao tacitismo, esses autores estariam se afastando do orador romano, e abraçando uma concepção de mundo mais “individualista”. De acordo com Croll, “aquilo que distingue Lípsio é que ele indica ao movimento [desses autores] a rota que se deve seguir para se libertar do ciceronianismo” (CROLL, 1966, p. 16). Estudioso da razão de Estado, Michael Stolleis é um dos vários autores a adotar a tese de Croll (Cf. STOLLEIS, 1998, p. 202-203). Entendo que é perceptível nesse período um afastamento gradativo de Cícero – nas palavras de Marc Fumaroli, “a idade de ouro de Cícero e Virgílio passa a dar lugar à idade de ferro de Lucano, Sêneca e Tácito” (LÍPSIO, 2012, p. XVII) – mas configura um exagero resumir os teóricos do neo-estoicismo ao título de “anti-ciceronianos”.

4 Grande intérprete da escola fundada por Zenão, Antonhy Long não poupa críticas ao neo-estoicismo – termo que recusa – e seu desserviço ao estudo dos pensadores do pórtico. Apesar de reconhecer a erudição do filólogo flamengo e a vasta seleção que ele faz de citações gregas e latinas da escola antiga, “infelizmente”, diz ele, “as obras de Lípsio foram um desastre para a interpretação do estoicismo como filosofia sistemática” (LONG, 2003, p. 16). Ciente do contexto do final do séc. XVI, o comentador reconhece que não podemos julgar arbitrariamente a leitura dada aos textos clássicos; mas parece não perdoar a distorção levada a cabo nos conceitos originais, em vista de adaptá-los ao cristianismo vigente. Segundo ele, ao tentar alinhar a visão estoica de Deus e do determinismo do universo com os preceitos da fé bíblica, tem-se como resultado um estoicismo que “perde seu caráter distintivo, tornando-se [apenas] uma antecipação branda do teísmo cristão” (Ibid., p. 17). Isso leva Long a concluir, sem esconder o ressentimento, que “mais uma vez, infelizmente, a imagem geral [equivocada] do estoicismo no mundo moderno deve muito ao foco estreito de Lípsio na tolerância resignada do indivíduo frente a seu destino” (Ibid., p. 18).

5 Denise Carabin lista boa parte dessas publicações (CARABIN, 2004, p. 39-61).

6 Seria o caso, por exemplo, do estatuto do pneuma, já indicado na obra do pensador romano Cláudio Galeno.

7 Lachat é crítico, inclusive, do nome dado à escola antiga. Para ele, “não seria conveniente sequer falar de ‘estoicismo’, devido às dificuldades em caracterizar os fragmentos de Zenão como uma escola filosófica” (LACHAT, 2008, p. 108). No meu entender, é nítido o equívoco da afirmação.

8 O argumento usado por Marcelo Lachat pra recusar o uso de “neo-estoicismo” (preferindo estóico-cristãos ao se referir a esses autores), se levado ao pé-da-letra, exigiria revogar também a noção de “maquiavelismo” – produzida pelo debate posterior à obra do florentino –, na medida em que ela em quase nada se assemelha ao real conteúdo do texto de Maquiavel.

9 Há quem inclua nessa categoria ainda outros nomes, como faz D’Angers com Pierre Charron (D’ANGERS, 1975, p. 44). Ainda que a influência do movimento alcance escritores como o discípulo de Montaigne, entendo que, diferente de Lípsio e Du Vair, sua obra está mais próxima da recepção do que do impulsionamento dessas idéias. Jacqueline Lagrée, por sua vez, compartilha a posição de destaque de Lípsio e Du Vair no neo-estoicismo, e coloca numa espécie de segunda categoria, por suas “contribuições importantes”, nomes como Charron, Hugo Grotius e Simon Goulart. Cf. LAGRÉE, 2010, p. 20.

10 Du Vair é autor, por exemplo, de um tratado sobre a virtude da constância, feito à imagem e semelhança da obra homônima de Lípsio, mais influente e conhecida que aquela escrita por Du Vair. Maxim Marin é autor de uma interessante comparação entre temas da metafísica e da ética estoica – como a teoria das paixões, o problema do bem e do mal, a concepção Deus-Natureza, a Providência e o Destino – nas obras de Lípsio e Du Vair, mostrando suas semelhanças e diferenças. Cf. MOUCHEL, 1996, p. 397-412.

11 Essa passagem, um dos mais famosos elogios do ensaísta ao neo-estoico, está na Apologia de Raymond Sebond. Cf. MONTAIGNE, 2006, p. 369.

12 Nascido Joest Lips, é frequentemente referido pela versão latinizada: Justus Lipsius.

13 É notório, no conjunto da obra lipsiana, que Sêneca é quem nela exerce maior influência. O contato com o pensador antigo, porém, aparece apenas posteriormente na formação de Lípsio. Cícero, o grande transmissor do pensamento estoico, é pouco lembrado como fonte de inspiração do filósofo flamengo, mas dele recebe frequentes citações. Alain Michel se debruça sobre essa questão, analisando a presença de Cícero nos escritos de Lípsio, em MOUCHEL, 1996, p. 19-30.

14 Há dúvidas sobre a data de publicação de sua primeira obra. Lagrée afirma ter sido em 1567 (LAGRÉE, 2010, p. 23), enquanto John Sellart aponta 1569 como o ano correto (LÍPSIO, 2006, p. 4).

15 Cf. LÍPSIO, 2006, p. 3. Henri Glaesener ironiza que “um homem tão inconstante [em suas convicções religiosas] tenha tido a idéia de escrever uma obra sobre a Constância”, e relembra que, ao longo de sua vida, Lípsio adere publicamente – no mínimo – ao catolicismo, ao luteranismo e ao calvinismo. Cf. GLAESENER, 1938, p. 29.

16 É durante seu período em Leiden que Lípsio teria recebido, em 1581, a visita de Du Vair, então com 26 anos e ansioso pelo encontro com o filólogo, que já então gozava de certo reconhecimento. Sobre essa ocasião, e o impacto dela na formação do jovem Du Vair, Cf. GLAESENER, 1938, p. 30-33.

17 Em uma carta endereçada ao padre Delrio, datada de 14 de abril de 1591, Lípsio lhe avisa ter fugido de Leiden e se reconciliado com a Igreja Católica. O documento, em cujo verso consta o rascunho da resposta de Delrio, está em GERLO, A.; VERVLIET, H., 1967, GV 19.

18 Lagrée relembra a importância do centro universitário de Louvain para a época, onde estima que Lípsio tenha lecionado para mais de 6 mil alunos – dentre eles Jakob Thomasius, que viria a ser professor de Leibniz em Leipzig. Cf. LAGRÉE, 2010, p. 23.

19 Antoine Coron resume bem as múltiplas contribuições deixadas por Lípsio: “Em filologia, ele teve o mérito de fornecer uma edição magistral de Tácito (1574), e assim de tornar conhecido o mais penetrante dos historiadores romanos; em história, ele alargou o campo de investigação da Antiguidade, graças ao seu perfeito conhecimento dos autores romanos e gregos no estudo da moral, integrando à história antiga os contributos da numismática e da arqueologia; em filosofia, ele foi o primeiro a estudar de maneira séria a doutrina estoica, e direto na fonte, com seu De Constantia, que traz a renovação do estoicismo como doutrina moral viva [...]. Ele foi também um pensador político, elaborando de maneira completamente original (em sua obra Politica, de 1589) uma teoria do principado que alcançou sucesso imediato” (CORON, 1977, p. 445).

20 Aloïs Gerlo e Hendrik Vervliet relembram a dificuldade de precisar esse número, mas calculam em torno de 2 mil as missivas do autor que já foram publicadas (GERLO, A.; VERVLIET, H., 1967, p. VII). Antoine Coron, por sua vez, supõe que as correspondências entre 1578 e 1606 ultrapassem as 4 mil cartas.

21 Aluno de Lípsio em Leiden durante a juventude, o príncipe viria a ser um de seus primeiros correspondentes a receber uma cópia do Politicorum, enviada pelo autor em agosto de 1589.

22 Anacronismos à parte, podemos dizer que, hoje, esse estilo de texto se aproximaria da categoria literária de autoajuda. Na definição de Jan Papy: “O De Constantia de Lípsio não é o seu tratamento mais sistemático ou abstrato da ética estóica, mas antes um livro de psicologia prática, uma orientação direta para viver sensatamente” (PAPY, 2002, p. 866).

23 A despeito da excelente tradução francesa ao De Constantia, editada por Jacqueline Lagrée (cujos fragmentos estão publicados em LAGRÉE, 1994, p. 124-159, e o texto integral em LAGRÉE, 2016, p. 37-162), opto aqui por utilizar como referência a versão inglesa de John Stradling, editada por John Sellars, mais completa que a primeira.

24 O neo-estoico utiliza o termo latino adfectus (afetos), equivalente à pathê dos antigos estoicos, que se refere às emoções, as paixões da alma, como o medo, a dor, o desejo e o prazer. Opto aqui por paixões como melhor tradução.

25 “Há muitos anos fomos lançados, como você sabe, na tempestade das guerras civis: [...] se amo a quietude e o repouso, as trombetas e o chacoalhar das armaduras me interrompem. Se me consolo nos jardins e plantações de minhas terras, os soldados e assassinos me obrigam a mudar para a cidade. Por isso, estou decidido a deixar esta desafortunada e infeliz Bélgica [...]” (LÍPSIO, 2006, p. 32).

26 A referência à Sêneca remete a De Providentia, V, 4.

27 De nítida inspiração platônica, em Physiologia Stoicorum, I, 14, Lípsio afirma que “os estoicos encontram o princípio do mal não em Deus, mas na matéria” (LÍPSIO, 1610, p. 37).

28 Lípsio utiliza os dois autores para introduzir sua exposição sobre o destino, em De Constantia, I, 19, utilizando, respectivamente, o Disputationes adversus astrologianm divinatricenm, IV, 4, e o De civitate Dei, V, 8-11. Esta última referência é particularmente importante para o neo-estoico, que vê bastante valia no comentário agostiniano à leitura que Cícero faz da doutrina estoica do destino. Lípsio se interessa, sobretudo, nos ensinamentos que Agostinho oferece aos cristãos que desejam adentrar essa questão. Cf. LÍPSIO, 2006, p. 134, nota 88.

29 Ainda no início do romance, ao trocarem juras apaixonadas, a personagem retrata claramente o ideal neo-estoico que norteia a obra, ao prometer a seu amante: “[...] e se nenhuns contrastes da fortuna serão poderosos para que se não cumpra vossa palavra, lembre-vos que nem eles poderão nunca vencer minha constância” (REBELO, 2006, p. 63).

 

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