Revista Sísifo. N° 13, Janeiro/Junho 2021. ISSN 2359-3121. www.revistasisifo.com
Laiz Fraga Dantas
Laiz Fraga Dantas é doutora em Filosofia pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia UFBA. Pesquisa na área de Teoria Crítica, com dissertação sobre a reconstrução do marxismo na Teoria Crítica de Habermas, e tese sobre o critério normativo da Teoria Crítica contemporânea através do pensamento de Nancy Fraser. Integrante do Grupo de Pesquisa Poética Pragmática e do Grupo de Estudos Independente Mulheres e Filosofia (GEIMF).
RESUMO: Para Nancy Fraser e Seyla Benhabib – ambas filósofas feministas da Teoria Crítica contemporânea –, discutir a relação entre a filosofia e o feminismo é crucial para pensar, por um lado, a política prática do movimento feminista e, por outro, a autocompreensão da filosofia contemporânea. Essa discussão passaria necessariamente pela análise das correntes pós-modernas que, para as autoras, tornaram-se, atualmente, elemento recorrente para as formulações da teoria feminista. A crítica das filosofias pós-modernas às grandes-narrativas, à ideia de história, e de um sujeito epistemológico abstrato, são cruciais para o debate de gênero. A Teoria Crítica, por outro lado, inspirada por um referencial hegelo-marxista, assume uma concepção mais ampla da história e uma teoria orientada a partir de uma normatividade. Partindo de um terreno teórico comum, as duas autoras apontam as dificuldades e potencialidades dos discursos pós-modernos e da Teoria Crítica em relação ao feminismo. As autoras pretendem conciliar elementos de ambas as correntes a fim de possibilitar uma relação entre filosofia e feminismo eficiente para lidar com desafios apresentados pela política prática hodierna. O artigo pretende discutir as reflexões apresentadas pelas filósofas, de modo a tratar da relação entre filosofia e a teoria e prática política feminista.
Palavras-chave: Teoria Crítica, Feminismo, Pós-modernismo, Nancy Fraser, Seyla Benhabib.
ABSTRACT: For Nancy Fraser and Seyla Benhabib – both feminist philosophers of contemporary Critical Theory – discussing the relationship between philosophy and feminism is crucial to think the practical politics of the feminist movement and the self-understanding of contemporary philosophy. This discussion would necessarily go through the analysis of postmodern philosophies that, for these authors, have now become a recurring element for feminist theory formulations. The critique of postmodern philosophies of the foundationalism, great narratives, the idea of history, and of an abstract epistemological subject, are crucial to the gender debate. Critical Theory, inspired by a Hegelian and Marxist framework, assumes a broader conception of history and a theory guided by normativity. Starting from a common theoretical ground, the two authors point out the difficulties and potentials of postmodern discourses and Critical Theory in relation to feminism. The authors intend to reconcile elements from both currents in order to enable an efficient relationship between philosophy and feminism to deal with today's issues. The article intends to discuss the reflections presented by the philosophers, in order to deal with the relationship between philosophy and feminist political theory and practice.
Keywords: Critical Theory, Feminism, Postmodernism, Nancy Fraser, Seyla Benhabib.
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Feminismo e Teoria Crítica podem trabalhar juntos?
Segundo Nancy Fraser, a relação entre filosofia e feminismo, estabelecida pelos debates acadêmicos contemporâneos, provoca uma inflexão importante nos dois campos. Na medida em que o feminismo se expande da prática política que, historicamente, se expressa nas conquistas e pautas de luta para a emancipação das mulheres, o movimento assume também o campo do debate teórico1.. Nos últimos anos, as ciências humanas foram levadas a refletir sobre seus fundamentos teóricos, considerando o ocultamento das mulheres e outras subjetividades subalternizadas, perpetrado pelas teorias ao longo da história. O desenvolvimento das chamadas teorias feministas informa e modifica os moldes estabelecidos para as lutas sociais e a prática política, que assimila novas pautas e novas discussões. Essa relação se dá através de uma via de mão dupla entre teoria e prática, produção teórica e movimento político.
Podemos afirmar que no campo da filosofia – especialmente aqui no Brasil – encontramos maior resistência à assimilação do debate feminista2, assim como do estabelecimento de uma relação entre a produção teórica acadêmica com a prática política. Seguindo a proposta de Fraser, aliar o debate feminista à filosofia acadêmica só se faz, de forma efetiva, através da autorreflexão acerca do modo como compreendemos a filosofia. Inserir o feminismo como um novo tema na antiga estrutura de investigação da filosofia, assumindo uma história da filosofia europeia e masculina como cânone, apenas produz um efeito aparente de inclusão. Do mesmo modo, incluir mulheres na história do pensamento, revelando o apagamento dessas figuras ao longo da história, apesar de significar um avanço positivo no sentido de possibilitar a visibilidade de filósofas, isoladamente, não motiva um pensamento filosófico contemporâneo que produza mudança reais na estrutura androcêntrica sob a qual desenvolveu-se e consolidou-se a pesquisa filosófica. Do mesmo modo, reivindicar maior inclusão de mulheres nos espaços acadêmicos não leva necessariamente ao desenvolvimento uma filosofia menos androcêntrica. Pois, o androcentrismo da filosofia não se expressa apenas pela falta de representatividade das mulheres nesse campo, mas está embutido em concepções basilares da filosofia, como a ideia de sujeito, a noção de razão, a ideia de política assimilada a uma concepção de espaço público, em contraponto do espaço privado, o conceito de trabalho, entre muitos outros exemplos que poderíamos apresentar. Como expõe Fraser, ao debater a relação entre a Teoria Crítica contemporânea e as teorias feministas, o que se propõe é uma discussão sobre a autocompreensão da filosofia em nosso tempo à luz das reivindicações do movimento feminista e do seu debate teórico. Assim, o debate aparentemente metateórico possui uma intenção político e prática iminente.
Nancy Fraser e Seyla Benhabib, ambas com teorias cujo escopo de discussão remontam à tradição da Teoria Crítica e autoproclamadas feministas. As autoras percebem que o debate de gênero encontrou nos discursos desconstrucionistas, chamados pós-modernos3, um espaço fértil para o desenvolvimento para as teorias feministas. O campo marxista, no qual se insere a Teoria Crítica, sustenta uma compreensão de política baseada em uma ideia de história mais ampla, com foco nas condições materiais, através de uma crítica da economia política, com Marx e em uma ideia de “classe”. Esse referencial teórico, no entanto, parece não comportar bem questões indenitárias. Por outro lado, segundo as filósofas, as correntes pós-modernas trazem para a filosofia uma preocupação contextualista, um foco na diferença, e um ceticismo em relação às grandes-narrativas, elementos importantes para a composição do quadro teórico para os debates sobre identidade. Como, e porque, é necessário reconciliar esses dois campos teóricos aparentemente distintos – a Teoria Crítica e sua herança marxista, e as teorias feministas – é o que motiva o debate entre Nancy Fraser e Seyla Benhabib. No compêndio Discussões Feministas4 (1990 e 1995), Benhabib e Fraser estabelecem um diálogo cujo objetivo é compreender de que forma a Teoria Crítica, e seu referencial marxista, em relação ao viés teórico pós-moderno, podem contribuir para o debate acerca do feminismo. Ao discutirem os limites e potencialidades das duas correntes em relação ao feminismo, as autoras propõem modos de aliar a preocupação pós-moderna com a diferença com a normatividade, constitutiva da Teoria Crítica, a inserção na história e o apelo a um tipo de universalidade que sustenta tanto o interesse normativo como o aporte marxista-hegeliano para a história.
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Só é possível um feminismo pós-moderno? Os limites e potencialidades da modernidade e da pós-modernidade.
Para Benhabib, dentro da cultura acadêmica ocidental, em democracias capitalistas, feminismo e pós-modernismo têm emergido como duas correntes cruciais de nosso tempo. Essas duas correntes encontraram afinidades no combate às grandes-narrativas da modernidade (BENHABIB, 1995, p. 17). Paralelo à emersão dessas duas correntes, surge a questão sobre em que medida o marxismo, que inspirou fortemente a segunda onda do feminismo, ainda é conciliável com os novos caminhos das discussões feministas.
A Teoria Crítica tem, desde seu surgimento, clara influência do pensamento marxista e hegeliano. Max Horkheimer, em seu texto Teoria tradicional e Teoria Crítica (1937), expõe a Teoria Crítica a partir de uma apropriação da filosofia de Marx, que apresentaria um contraponto dialético e crítico ao “positivismo” da teoria tradicional. Marx assumiu como atividade da filosofia atribuir diagnóstico à sociedade e prognósticos para orientar a ação, oferecendo à filosofia relevância prática e histórica. Horkheimer quer destacar o potencial humanístico da filosofia em Marx e seu caráter emancipatório, em contraponto ao caráter conservador da filosofia tradicional. Resgatando esse potencial humanístico em Marx através de seu impulso prático e histórico para a filosofia. Para Fraser, a Teoria Crítica atual deve relembrar Marx e voltar-se ao elemento político latente a qualquer discussão teórica. É justamente o desvelamento deste elemento, contra a pretensão de universalismo sustentada pela teoria tradicional, que definiria a teoria crítica. Fraser relembra a definição de Marx (1843), segundo a qual o papel da Teoria Crítica é produzir “o autoaclaramento das lutas e desejos de uma época” (FRASER, 2013, p.19, tradução nossa). A Teoria Crítica assume a narrativa moderna e, assimilando-a ao debate contemporâneo, percebe neste discurso elementos cruciais para a política contemporânea.
Os pós-modernistas, por outro lado, assumem o processo de saída da modernidade. Benhabib discute diretamente com Jean-François Lyotard, percebendo no seu pensamento o marco para o surgimento de um posicionamento crítico acerca da modernidade e do prenúncio de sua obsolescência. Fraser, em concordância com Benhabib, considera que atualmente há uma grande retração dos discursos marxistas, que não constituem mais “uma meta-narrativa ou discurso mestre de oposição política em sociedades capitalistas” (FRASER, 1998. P.4. Tradução nossa). Para as autoras, esse fenômeno faz parecer que, por um lado, feminismo e Teoria Crítica não são conciliáveis e, por outro, que feminismo e pós-modernismo encontram entre si uma relação de convergência óbvia. No entanto, para Benhabib, alguns discursos pós-modernos deveriam nos fazer concluir exatamente o contrário, pois conduziriam ao abandono de elementos definidores da teoria feminista e de dispositivos úteis para a luta política.
No texto Feminismo e Pós-modernismo: uma aliança difícil5 (1995), Benhabib expõe que são três as principais teses defendidas pelas correntes pós-modernas: I. a morte do sujeito, II. a morte da história e III. a morte da metafísica. Para a autora, existem duas formas possíveis de interpretar essas teses: a versão fraca e a versão forte. Benhabib se dedica a investigar cada tese em sua versão forte e fraca de modo a avaliar qual interpretação é mais produtiva para o feminismo. A primeira tese pós-moderna, a morte do sujeito, tem por intenção rejeitar qualquer concepção essencialista de sujeito ou natureza considerando – em contraponto à ideia de um sujeito transcendental – que o sujeito é formado historicamente, socialmente e se encontra inserido de modo constitutivo na rede linguística de significações. No feminismo esse tema aparece através da desmistificação do sujeito da razão. Em sua versão fraca da tese da morte do sujeito, essa formulação revela que, através da ideia de um sujeito universal da razão teórica e prática, a filosofia esconde um sujeito situado com contornos particulares, mas cujas características supostamente neutras são tratadas como universais. Esse sujeito universal da experiência, supostamente representativo para humanos como tal, oblitera as diferenças de gênero, época, raça e contexto social, deslegitimando o papel dessas diferenças na formação da subjetividade. Apontar o contexto cultural e reconhecer as características historicamente mutáveis e as variáveis sociais que constituem o sujeito é desmistificar a pretensão universal a que se arvora o sujeito metafísico transcendental. Para as teorias feministas, ainda mais profundamente, esse sujeito universal representa, ao fim e ao cabo, a imagem do sujeito masculino que, ao constituir-se como universal, relega à subjetividade feminina o caráter de uma variante secundária. A versão forte dessa tese dissolve completamente a subjetividade na cadeia das significações linguísticas e define-se através dos discursos socialmente construídos. O sujeito se torna, assim, apenas mais uma posição dentro da linguagem. Para a autora, essa leitura da tese sobre a morte do sujeito é incompatível com os objetivos do feminismo. Compreender o sujeito dessa forma encobre a possibilidade de agência, autonomia e a habilidade de perseguir autonomia, deixando em primeiro plano os processos passivos de subjetivação6. Benhabib considera que, para o pensamento contemporâneo, é impensável conceber a ideia de subjetividade fora dos processos de significação linguística e da estrutura simbólica das narrativas, situadas contextualmente. No entanto, levar essa concepção ao extremo acaba por solapar a possibilidade de autoafirmação do sujeito e autonomia.
A segunda tese pós-moderna debatida por Benhabib é a morte da história. Segundo os discursos pós-modernos, a ideia de uma história pensada através do desenvolvimento de uma narrativa ampla pressupõe o valor da unidade, homogeneidade e totalidade, em face do contingente e singular próprios dos pontos de vista mais contextualizados. Além disso, essa defesa da história é, também, a defesa de uma ideia de progresso. Em nome do progresso humano, das ciências e das tecnologias, uma série de violências e destruição do meio-ambiente foram justificadas. Essa ficção acerca de um processo ascendente de desenvolvimento que a história humana percorreria ao longo do tempo esconderia um potencial totalitário que os autores pós-modernos querem denunciar. A versão fraca dessa tese pós-moderna sustenta que é preciso abrir mão das grandes-narrativas, que são essencialistas e monocausais. O que, na prática, se traduziria na rejeição em assumir qualquer grupo específico como representante das forças da história, como o agente que move essas forças e cujos interesses coincidem com as aspirações do seu tempo. Configura-se em uma crítica aos movimentos totalitários do nosso século, incluindo os fascismos, além do marxismo ortodoxo e seu nacional-socialismo. Para as discussões do feminismo, a tese sobre o fim das grandes narrativas se traduz na crítica à possibilidade de se defender uma ideia de mulher universal que, partindo do papel culturalmente assumido pela mulher ao longo da história, acaba definindo essencialmente o que é a mulher em si. O feminismo então expõe as especificidades das mulheres negras, trabalhadoras, lésbicas, etc, como forma de esvaziar a possibilidade de um conceito único de mulher. A versão forte da tese sobre a morte da história, para Benhabib, configura-se a partir da rejeição de qualquer narrativa que extrapole as micro-práticas e foque em macroestruturas, em um recorte amplo e de maior duração da história. Essa leitura da tese pós-moderna implicaria, para Benhabib, na impossibilidade de estabelecer qualquer relação entre política e história, confinando a política à especificidade de um contexto e momento histórico. Para Benhabib, olhar criticamente para história, de forma ampla, fez o feminismo revelar a invisibilidade das mulheres nessa narrativa e apontar para possibilidades futuras de emancipação. Assim, para a autora, abandonar a narrativa histórica significa também abandonar a possibilidade de produzir uma teoria feminista engajada, com interesse emancipatório amplo projetado para além do contexto presente. Isso possibilitaria a formulação de uma ética e de uma política que possa ser abrangente suficiente para constituir-se em um horizonte comum para as diversas lutas específicas.
Por fim, a tese sobre a morte da metafísica considera que, desde Platão, a filosofia pretende desvendar o mundo através de uma noção unitária de ser, a-histórico e absoluto. Na medida que a metafísica tem acesso ao real, ela tem também acesso privilegiado à verdade, que desempenha papel fundacionista para o conhecimento. A versão fraca dessa tese rejeita a transcendência e o fundacionismo e afirma em seu lugar um conhecimento histórica e culturalmente situado. Em sua versão forte, essa tese acaba por negar a possibilidade da filosofia, para Benhabib, na medida que a descreve como um metadiscurso de legitimação que perde sua razão de ser quando abandona esse objetivo.
Nesse aspecto, se apresenta a discordância crucial entre Fraser e Benhabib. Apresenta-se às filósofas a questão: “Como podemos combinar a incredulidade pós-moderna em relação às metanarrativas com o poder social-crítico do feminismo?”7 (FRASER, 1990b, P.34, tradução nossa). A Teoria Crítica define seu método em dois momentos: o diagnóstico e o prognóstico. O diagnóstico supõe uma leitura explicativa da realidade através da análise das condições sociais, as relações de poder, dominação e opressão, apontando os elementos sociais bloqueadores da emancipação no interior do contexto social. O prognóstico supõe um salto para fora do real, apoiado em critérios normativos, a teoria formula uma proposta, voltada para a ação prática, orientada para a emancipação.
Para Benhabib, a crítica não é capaz de evitar a tarefa de classificar e reconstruir as normas às quais precisa apelar no próprio exercício da crítica, dessa forma, é necessário que esteja situada fora do contexto que analisa, ou seja, para que exista a possibilidade de um salto normativo, a crítica não pode ser totalmente imanente. Por outro lado, o debate feminista encontrou no discurso pós-moderno um rico modelo de compreensão da diferença em face do discurso moderno. Saltando para fora da estrutura homogeneizante de uma história universalizante, foi possível enxergar e analisar os sujeitos empurrados para fora desse universal e, dessa maneira, invisibilizados. Como é possível, então, aliar diagnóstico imanente dos discursos pós-modernos, frutíferos ao feminismo com a intenção utópica-antecipatória do prognóstico crítico?
3. O dilema entre pós-modernidade e utopia.
Para Benhabib, a crítica deve apresentar-se como um refúgio, para além e fora dos discursos que circulam, ou seja, a crítica não pode ser imanente, sob a pena de perder sua efetividade crítica e seu potencial emancipatório. As normas de uma cultura podem não ser suficientes para o exercício da crítica a esta cultura, sobretudo em momentos em que a cultura se encontra tão reificada e engessada que se torna limitador para a formulação de um pensamento crítico efetivo como horizonte para uma política emancipatória. Essa tarefa de desafiar a certeza de nossos próprios modos de vida é perdida, para Benhabib, em uma crítica que se contenta em restringir-se ao contexto que analisa: se perde a capacidade de gerar utopia.
Assumir uma postura pós-moderna radicalmente anti-fundacionista provocaria uma retração da utopia, o que geraria consequências tanto teóricas como práticas. A crítica à utopia moderna como forma de sujeição impediria a possibilidade de qualquer outra utopia. Como consequência prática, acabaríamos com um feminismo tanto anti-moderno quanto sem possibilidades de subversão crítica ou ressignificação radical da realidade. Esse seria um feminismo pouco hábil politicamente, nivelando qualquer possibilidade de utopia, à utopia moderna. Transformando qualquer tentativa de fornecer princípios reguladores para a teoria social e horizontes de mudança social radical em formas de sujeição. Segundo Benhabib:
Ouso sugerir que o pós-modernismo produziu um “recuo da utopia” dentro do feminismo. Por "utopia" não me refiro à compreensão modernista desse termo, como a reestruturação total de nosso universo social e político de acordo com algum plano racionalmente elaborado. Essas utopias do Iluminismo não só deixaram de convencer, mas com a auto-iniciada saída do Estado de graça das “utopias sociais” anteriormente existentes, uma das maiores utopias racionalistas da humanidade, assim como a utopia de uma economia planejada racionalmente que levaria a humanidade a emancipação, chegou ao fim. O fim dessas visões racionalistas da engenharia social não pode secar as fontes da utopia na humanidade. Quanto ao anseio pelo “totalmente outro” (das ganz Andere), por aquilo que ainda não é, esse pensamento utópico é um imperativo prático-moral. Sem tal princípio regulador de esperança, não só a moralidade, mas também a transformação radical é impensável.8 (BENHABIB, 1995, p. 30, tradução nossa)
No texto Falsa Antítese9, publicado na mesma edição da revista Discussões Feministas do supracitado texto de Benhabib, Fraser argumenta que Benhabib desconsidera a possibilidade de existir um nível intermediário entre a leitura fraca e a leitura forte em relação à tese pós-moderna da morte da metafísica. E esse caminho intermediário é, para Fraser, hábil politicamente para uma teoria crítica feminista que se pretende, ao mesmo tempo engajada e orientada normativamente, mantendo o elemento emancipatório orientador para a política. Acerca do diagnóstico social sob um ponto de vista situado, Fraser argumenta que as práticas culturais não têm um significado único, consistente e unívoco, que o crítico pode ler diretamente, as tradições são contestadas, as interpretações conflitam e as práticas sociais não trazerem seus significados como cartas na manga.10 (FRASER, 1995a, p.64). A qualidade contraditória e contingente das práticas sociais, portanto, não significa, para Fraser, um empecilho para que seja possível realizar a crítica social imanente e para que seja possível apontar potenciais emancipatórios para além das condições socialmente dadas:
De fato, o auto-esclarecimento da crítica social não precisa tomar a forma de uma reflexão conceitual geral, buscada isoladamente da investigação histórica, legal, cultural e sociológica. Pode também tomar a forma de uma narrativa histórica situada que realiza uma genealogia das normas e, assim, as situa mais precisamente. Finalmente, não vale a pena considerar que as críticas situadas excluem as reivindicações gerais ou os apelos às normas gerais; requer apenas considerar que estes também são situados. Assim, por várias razões, a primeira objeção de Benhabib à crítica situada erra o alvo11. (FRASER, 1995a, p. 64, tradução nossa)
Para Fraser, o critério da crítica emerge da própria política. Para Fraser, a tese pós-moderna sobre a morte da história pode ser lida, segundo um viés interpretativo mediano, através da ideia de que a teoria deve distinguir metanarrativas fundacionistas daquelas que, apesar de fundadas no contexto, possuem um recorte largo suficiente para discutir padrões de dominação de modo a avançar em uma análise de fundo histórico. As narrativas locais e as narrativas históricas de maior escala devem complementar-se, de forma que as narrativas locais previnam as narrativas de maior escala de se converterem em metanarrativas, e as narrativas de larga escala possam prevenir as narrativas locais de dissolverem-se nas diferenças menores do contexto.
Essa análise de Fraser está profundamente influenciada pela apropriação que faz a filósofa da teoria crítica de Foucault, autor que ela assimila à sua teoria crítica feminista. Através da genealogia de Foucault, Fraser assume que a teoria crítica pode redefinir a utopia de forma deflacionada. A tarefa da crítica compreendida através do exercício hermenêutico do teórico em relação aos discursos políticos, buscaria uma genealogia das origens históricas e sociais desses discursos e a rede de poderes que eles criam e nos quais se inserem. Sob esse ponto de vista, o teórico encontra-se em posição mais deflacionada e, invés de oferecer uma utopia, um conceito, ou um ideal a perseguir, apenas realizaria a tarefa de situar as narrativas políticas no cenário da micro-política, dos poderes em relação aos sujeitos, às práticas e, ao mesmo tempo, à história social de desenvolvimento da economia e do Estado. A utopia não requereria, necessariamente, que a teoria encontre o critério para além da realidade social através de uma formulação de caráter universalizante, um ideal moral ou um telos sobre o qual a realidade poderia ser e em relação a qual se devem formular as utopias de transformação social.
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CONCLUSÃO: Ressonâncias contemporâneas
Para Nancy Fraser, a apropriação que se fez do pensamento pós-moderno pelos debates feministas – e, neste ponto, mais especificamente, acerca do pensamento de Foucault –, produziu uma falsa antítese entre modernidade e a possibilidade da projeção de uma utopia política, e a descoberta feminista do caráter produtivo do poder, dos processos de sujeição através dos quais as normas de subordinação de gênero são assumidas e performadas. Essas duas rotas, invariavelmente opostas, jamais se cruzam, considerando que a teoria do poder de Foucault nasceria justamente da contraposição ao humanismo moderno. Essa antítese impediria que uma teoria feminista assuma a compreensão foucaultiana do poder e possa encontrar no ideal moderno a noção de autonomia como uma zona livre de poderes pois, não haveria zonas livres de poder. Ao sujeito, constituído por um processo de sujeição, no interior das relações de poder, não haveria possibilidade de emancipação total. Como alternativa à sujeição, Foucault ofereceria a experimentação, a contra-conduta, através do qual o sujeito poderia realizar uma resistência autotransformadora. A ideia de emancipação como projeção de possibilidades de subversão real dos poderes é abandonada e transmuta-se na ressignificação radical, em uma forma de liberdade condicionada ao poder, dentro dos poderes. A possibilidade de utopia de emancipação moderna é deixada de lado pelo feminismo contemporâneo, perdendo significado no interior deste referencial teórico. É esse abandono que Benhabib assinala como a impossibilidade de um pensamento feminista efetivamente crítico.
Fraser, assim como Benhabib, reconhece o poder político da utopia como imperativo prático-moral que orientou a Teoria Crítica, desde Marx, à prática política. Marx, cuja filosofia projetou uma das mais potentes utopias políticas e cujo declínio como narrativa política contestatória possivelmente tem papel crucial no ceticismo que experimentamos atualmente acerca das utopias. Fraser propõe uma conciliação entre a utopia e o pluralismo pós-moderno e essa conciliação se faz, certamente, a partir de uma certa deflação na compreensão do que seja a utopia, embora não implique abandoná-la. Para tanto, Fraser assume em Práticas indisciplinadas: poder, discurso e gênero na teoria social contemporânea (1989)12, a interpretação de que Foucault é um continuador da modernidade. A crítica radical de Foucault ao humanismo, que rejeita o sistema de práticas e discursos modernos, não é um ataque aos ideais modernos de liberdade e razão por si. Ao contrário, esses são os ideais que a filosofia de Foucault almeja. Por exemplo, Foucault parece reproduzir a interpretação marxista sobre a economia, na medida em que tende a perceber as forças de dominação nos cientistas sociais, nas ciências do comportamento e nas hermenêuticas da psique, ligando de alguma forma o bio-poder com a dominação de classes. Além disso, para Fraser, Foucault parece pressupor também noções da filosofia moral de Kant, na medida em que considera condenável a violação da dignidade e da autonomia praticada pelas técnicas disciplinatórias e pelo cárcere. O que Foucault renuncia é a interpretação universalista e fundacionista dos conceitos e valores da modernidade, o que não implicaria na rejeição desses conceitos. É possível assumir os valores humanistas e, ao mesmo tempo, produzir uma crítica ao fundacionismo moderno. 13
Amy Allen em Emancipação sem Utopia (2015) defende que as filosofias feministas influenciadas por uma compreensão pós-moderna tenderam a falhar ao distinguir no pensamento de Foucault entre a noção de “relações de poder” e “estados de dominação”, considerando que toda relação de poder supõem estados de dominação. Segundo Allen, estados de dominação configuram-se através da cristalização de relações de poder, que tem natureza fluida. Quando estas relações são bloqueadas, de forma a não permitir movimento de reversibilidade, encontramos um quadro de dominação. Da assimilação entre poder e dominação, resulta uma teoria feminista que descarta a utopia da libertação como possibilidade política. Desconsiderando, inclusive, como aponta Allen, que prática de subversão e de resistência transformadora dentro do poder só faz através algum grau de liberação do poder. A proposta de Allen está em consonância com Fraser, que defende que é necessário distinguir entre formas de poder que envolvem dominação daquelas que não o fazem para que seu pensamento possa avançar além de uma rejeição unilateral da modernidade e do quadro de uma filosofia política incapaz de projetar possibilidade de mudança social radical (FRASER, 1989, p.33). Allen redefine a utopia da teoria crítica, através de Foucault, oferecendo uma compreensão negativa de utopia (ALLEN, 2015. P. 130).
Percebemos que esse debate se desdobra na política prática através do problema acerca de como expandir as pautas identitárias para além do eixo de interesse do grupo concernido. Dessa forma, essas pautas podem ser formuladas a partir de um vocabulário ético de mais amplo alcance. Considerando o cenário político democrático, que exige a formulação de discursos visando o consenso amplo, as pautas identitárias talvez precisem ser articulados através do vocabulário dos debates acerca da justiça, sob o ponto de vista de uma moralidade universalmente vinculante14. Dessa forma, seria possível transpor barreiras inevitavelmente criadas pela afirmação das diferenças em contextos em que há um forte bloqueio das relações de poder e que os atos de subversão ao poder não podem encontrar reconhecimento dos grupos majoritários. É necessário assumir, como alerta Benhabib, que em certos contextos encontraremos culturas com cenários cristalizados inférteis à subversão crítica e, considerando esses cenários, formular estratégias políticas eficientes para a defesa das pautas identitárias. A substituição da emancipação, como uma utopia política, pela linguagem da performance, da ressignificação paródica e das maneiras subversivas de reiteração das normas15se, por um lado, possibilita uma melhor compreensão da diferença, também reduz a amplitude do horizonte político-prático do discurso feminista.
Acomodar a incontornável crítica à modernidade e o avanço das pautas identitárias no vocabulário da teoria social é um importante debate em andamento na filosofia contemporânea, que não pretendemos esgotar aqui. Mais do que um debate metateórico, com Fraser, encaramos esse como um debate que auxilia à fixação de estratégias político-práticas para os discursos contestatórios no cenário atual. Segundo Fraser, uma Teoria Crítica se define através de uma estrutura teórica informada pela identificação com os interesses políticos que visa a defender. O que Fraser e Benhabib, por vias distintas, buscam preservar é uma relação estreita entre a teoria e a política, seus objetivos e atividades. Guardando a capacidade da teoria, para além da linguagem da experimentação, a possibilidade da criação de um prognóstico político coletivo.
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1 Não queremos aqui afirmar que a luta política do feminismo já foi, em algum momento, desvinculada da reflexão, mas que essa reflexão penetrou a esfera acadêmica, nas discussões das ciências humanas e filosofia, na teoria política e nos estudos culturais.
2 Preferimos aqui utilizar o termo “feminista” em concordância com o que propõe Nancy Fraser na Introdução do livro Práticas Indisciplinadas (FRASER, 1989), em que a autora nos sugere utilizar o termo “feminismo” em vez de “gênero”. “Gênero” é um conceito e remete, portanto, ao debate teórico. “Feminismo” remete ao movimento social, com uma história de pautas e conquistas sociais. É a esse movimento, sua história e sua atuação prática que Fraser quer direcionar sua discussão filosófica.
3 Em relação ao termo “pós-modernos”, Benhabib e Fraser apresentam uma concepção bastante ampliada. Inspiradas na concepção de Habermas em O Discurso Filosófico da Modernidade (1985), para as autoras, “pós-modernos” representam os autores que criticaram a modernidade, apontando o caráter totalitário e opressor deste modo de compreender o conhecimento e, como solução, buscaram abandonar o marco teórico da modernidade, contrapondo-se a este. Essa corrente tem seu início com Nietzsche, tendo como desdobamentos Foucault, Derrida, Deleuze, Lyotard, entre outros. Ao lado deste grupo de autores encontra-se as correntes que também perceberam as dificuldades do paradigma moderna mas, diante disso, consideram necessário reformular as concepções modernas de modo a torná-las mais eficazes para lidar com as questões contemporâneas. São esses os autores inspirados por Hegel e Marx, como a Teoria Crítica.
4 “Feminist Contentions”.
5 Feminism and Postmodernism: An Uneasy Alliance.
6 A filosofia de Butler, por exemplo, apresenta uma formulação que para Benhabib, na ocasião que a autora publica o texto referido acima, expõe a fraqueza da versão forte da tese sobre a morte do sujeito.
7 “How can we combine a postmodernist incredulity toward metanarratives with the social-critical power of feminism? ”.
8 “I dare suggest that postmodernist has produced a “retreat from utopia” within feminism. By “utopia” I do not mean the modernist understanding of this term as the wholesale restructuring of our social and political universe according to some rationally worked-out plan. These utopias of the Enlightenment have not only ceased to convince but with the self-initiated exit of previously existing “social utopias” from their state of grace, one of the greatest rationalist utopias of mankind, the utopia of a rationally planned economy leading to human emancipation, has come to an end. The end of these rationalistic visions of social engineering cannot dry up the sources of utopia in humanity. As for the longing for the “wholly other” (das ganz Andere), for that which is not yet, such utopian thinking is a pratical-moral imperative. Without such a regulative principle of hope, not only morality but also radical transformation is unthinkable.”.
9 “False Antihteses” Nancy Fraser (tradução nossa).
10“That cultural practices have a single, consistent, univocal meaning, which the critic can read off straightforwardly and unproblematically. but this is belied by the fact that traditions are contested, interpretations conflict, and social practices do not wear their meanings on their sleeves.”.
11 Indeed, the self-clarification of social criticism need not take the form of general conceptual reflection pursued in isolation from historical, legal, cultural, and sociological inquiry. It may also take the form of contextualizing historical narrative that genealogizes norms and thereby situates them more precisely. Finally, it is worth nothing that situated criticism does not preclude general claims or appeals to general norms; it only requires that these, too, be regarded as situated. Thus, for a variety of reasons, Benhabib first objection to situated criticism misses the mark.”.
12 “Unruly practices: Power, Discourse and Gender in Contemporary Social Theory.” (tradução nossa).
13 Para maior desenvolvimento acerca deste ponto, ver DANTAS, 2019.
14 No texto Reconhecimento sem Ética (2007), Fraser considera que existem dois vocabulários aparentemente concorrentes: o vocabulário da moralidade (Moralität) kantiana e o reconhecimento (Sittlichkeit) hegeliana. O vocabulário da moralidade propõe um ponto de vista deontológico que considera que o correto tem prioridade sobre o bem, ou seja, as demandas de justiça estão acima das reivindicações éticas. Por outro lado, o vocabulário da ética consideram que uma moralidade universalmente vinculante, independente de uma ideia de bem, é conceitualmente incoerente. Tratam a ética através da questão da boa vida, priorizando as condições qualitativas para o desenvolvimento humano (FRASER, 2005. P. 104).
15 Referirmo-nos aqui ao vocabulário utilizado por Judith Butler em sua filosofia, inspirada por Foucault. A filósofa considera impossível transcender a rede de poderes que constitui o sujeito, compreendendo a mudança social através de processos de ressignificação do sujeito dentro do poder, subvertendo o processo de subjetificação, transformando as normas em um contexto radicalmente novo.
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