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Entrevista: Newton Bignotto

 Revista Sísifo. N° 13, Janeiro/Junho 2021. ISSN 2359-3121. www.revistasisifo.com

 

Entrevista concedida às organizadoras, Flávia Benevenuto e Ana Letícia Adami, em 22 de abril de 2021.

 

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1) Gostaríamos de começar conhecendo mais da sua trajetória de estudante. Conte-nos um pouco sobre como foi a sua graduação em Filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais, de 1977 a 1980, até a escolha do seu tema de mestrado, sobre a obra de Hegel, finalizado em 1984, pela mesma universidade.

Iniciei minha graduação em filosofia na UFMG no ano de 1977, curso que viria a concluir quatro anos mais tarde. O Departamento de Filosofia contava naquela época com um conjunto de professores muito competente, que oferecia uma formação ao mesmo tempo plural e profunda em filosofia. Alguns professores foram decisivos para minha vida acadêmica e a influência deles se faz sentir até hoje em minhas atividades. Em primeiro lugar, cabe lembrar o nome de dois professores que de maneira direta tiveram e ainda têm um lugar de destaque em minha trajetória. Sônia Maria Viegas, que viria mais tarde a ser minha orientadora de mestrado, oferecia uma gama variada de disciplinas, que combinava um interesse pela história da filosofia, pelo idealismo alemão em particular, com uma grande sensibilidade pelas artes e pela literatura. Ao lado do professor Moacir Laterza, ela convidava os alunos a alargar o campo das experiências e das vivências sobre as quais a reflexão filosófica deveria se debruçar. Com ela aprendi desde cedo a considerar como fontes importantes para a filosofia não apenas os grandes textos da tradição e seus comentadores, mas também as muitas práticas e disciplinas com as quais a filosofia convive e por meio dos quais expande suas fronteiras.

O segundo professor que me influenciou de maneira decisiva foi Hugo Pereira do Amaral. Tendo feito sua pós-graduação na Universidade de Louvain, na Bélgica, ele impressionava por sua cultura filosófica ampla e profunda e pelo conhecimento de autores que eram muito pouco estudados no Brasil. Num momento em que o marxismo influenciava muitos dos cientistas sociais e filósofos brasileiros, Hugo Amaral, que conhecia muito bem esta tradição de pensamento social e a ela se referia com pertinência em suas aulas, trazia a contribuição de pensadores que eram quase desconhecidos nas universidades brasileiras. Esse era o caso em especial de Cornelius Castoriadis, Hannah Arendt e outros autores, que serão em seguida fundamentais em minha formação. A influência duradoura do professor Hugo Amaral se revelaria decisiva para as escolhas teóricas e temáticas que eu faria ao longo dos anos. Sua lucidez, rigor e profundidade de pensamento são até hoje referências centrais para meu trabalho filosófico.

Iniciava-se com ele meu interesse pela filosofia política e por sua história, que estarão no centro de minhas atividades de pesquisa e de docência posteriores. A abertura a temas e autores como Maquiavel, Tocqueville, Hannah Arendt e tantos outros foi um aprendizado privilegiado do respeito à diversidade filosófica e à necessidade de se fazer do esforço contínuo de diálogo com a tradição e com o tempo presente a mola mestra de toda reflexão sobre a política de um ponto de vista filosófico.

Se a influência dos dois professores foi decisiva para minha formação, é preciso lembrar que o Departamento de Filosofia da UFMG primava no final da década de 70 do século XX pela riqueza de seu quadro docente e pela multiplicidade de correntes filosóficas que eram ensinadas. No que diz respeito à política, sofri também a influência do professor Luiz de Carvalho Bicalho cujas aulas eram muito apreciadas pelos estudantes. Grande conhecedor da obra de Marx, especialista na obra de Sartre, em especial em seus escritos dos anos 50, Bicalho, como era conhecido, ensinava um marxismo não dogmático e aberto ao diálogo com outras correntes da filosofia. A leitura do Capital sob sua orientação, – em grande parte efetuada quando eu já cursava o mestrado –, e a introdução a aspectos variados da obra de Marx, foi uma oportunidade rara de tomar contato com os escritos filosóficos de Marx para além das modas e dogmatismos, que imperavam em outros cursos da área de humanas. Aprendi com ele a necessidade de se efetuar uma leitura cuidadosa e rigorosa dos textos originais, sem ceder precocemente ao fascínio de interpretações mais preocupadas com o impacto no grande público do que com o rigor da abordagem filosófica dos autores do passado. Se posteriormente não iria me interessar pela obra de Marx como tema de pesquisa, os conhecimentos adquiridos nas aulas de Bicalho me serviram para continuar a ler o filósofo do século XIX e para me interessar pelas renovadas leituras que foram aparecendo ao longo das últimas décadas.

É necessário também recordar alguns professores que se agrupavam em torno de duas correntes de pensamento, que contribuíam para dar um perfil filosófico ao departamento bastante interessante. O primeiro grupo, do qual faziam parte professores como José de Anchieta Corrêa, Sebastião Trogo, Hugo César e outros, tinha como grande referência teórica a fenomenologia e em menor grau o existencialismo. Foram eles que me apresentaram ao pensamento de Merleau-Ponty. De forma ainda pouco elaborada, parecia-me que o filósofo francês me conduzia a uma aproximação da realidade, que era uma forma inovadora de se pensar as dimensões políticas e sociais de nosso tempo. Só um pouco mais tarde, mais uma vez pelas mãos do professor Hugo Amaral, fui apresentado aos trabalhos de Claude Lefort, que havia realizado a ponte entre as concepções fenomenológicas de seu professor e o universo da política.

O segundo grupo importante de professores se reunia em torno do Idealismo Alemão. Desde o início, o Departamento de filosofia da UFMG foi marcado pela paixão de um de seus fundadores, o professor Arthur Versiani Velloso, pela filosofia de Kant. Na década de 70, no entanto, na graduação, Kant e Hegel eram apresentados aos alunos pelo professor José Henrique Santos. Embora seus escritos sobre a matéria só tenham sido publicados posteriormente, suas aulas revelavam um conhecimento vasto e profundo dos pensadores alemães do século XIX. O que encantava em suas apresentações não era apenas o domínio pleno do conteúdo da disciplina, mas a capacidade de ligar os temas estudados com pensadores e questões de outras épocas de forma criativa e equilibrada. Esse primeiro contato com o Idealismo alemão, ajudado pelas aulas da professora Ângela Mascarenhas, foi fundamental para minha escolha do tema de minha dissertação de mestrado.

Ingressei no mestrado em filosofia da UFMG em 1981. Escolhi como minha orientadora a professora Sônia Viegas, que desde a graduação era uma referência essencial em minha trajetória pela filosofia. Sônia, ao mesmo tempo em que dirigia com grande dedicação os trabalhos de seus orientandos, permitia-lhes escolher autores e questões diferentes daquelas que mais lhe interessavam. Assim, embora não fosse uma especialista na história da filosofia política, não fez objeção alguma quando me dirigi para essa área de estudos. De fato, os pontos de contato com os interesses de minha orientadora eram variados e passavam tanto por suas análises das obras de Hegel, que seriam decisivas para minha escolha do tema da dissertação, quanto pelo contato da filosofia com a literatura.

Minha primeira tarefa no mestrado foi uma leitura orientada das obras de Hegel. Dediquei-me ao estudo das seguintes obras: Princípios da filosofia do direito; A Fenomenologia do Espírito, Ciência da Lógica e Introdução à História da Filosofia. Dentre elas, foi sem dúvida a leitura de A Fenomenologia do Espírito, na tradução hoje considerada problemática de Jean Hyppolite, a que mais me impactou. Essa primeira impressão do estudo de uma das grandes obras da tradição filosófica ocidental foi sem dúvida ampliada pelo conhecimento aprofundado da obra que tinha dela minha orientadora e pela presença no seio da pós-graduação em filosofia da UFMG de um dos maiores especialistas mundiais no pensamento de Hegel, o Padre Henrique Claudio de Lima Vaz. No começo dos anos 80, Pe. Vaz era um filósofo de grande reputação e que causava um fortíssimo impacto em todos os que tiveram o privilégio de serem seus alunos. Meu primeiro contato com ele como professor, pois já havia lido alguns de seus primeiros textos e assistido a algumas palestras, se deu no primeiro semestre de 1982. O curso versava sobre “A dialética da História em Hegel” e partia de uma apresentação geral das questões centrais do idealismo alemão, para se dedicar em seguida ao estudo das grandes linhas de constituição do pensamento hegeliano. Voltaria a frequentar um de seus cursos no segundo semestre de 1984, quando já era professor do Departamento de Filosofia da UFMG, mas foi sem dúvida o curso de 1982 que influenciou de maneira direta a elaboração de minha dissertação de mestrado.

A partir dele, e dos encontros com minha orientadora, acabei me dirigindo para um estudo sobre a “dialética do senhor e do escravo”. A solução mais óbvia teria sido uma análise interna do texto de Hegel e o exame da bibliografia secundária a respeito do tema. Já influenciado pelas lições sobre a filosofia política do professor Hugo Amaral, decidi-me por uma abordagem do tema numa perspectiva histórica, mas que ao mesmo tempo guardava como referência a matriz hegeliana de pensamento. O tema central era naturalmente retirado da Fenomenologia do Espírito, mas havia também uma maneira de encarar a história da filosofia que era devedora dos estudos de Hegel.

A dissertação se estrutura em seis capítulos, cada um dedicado ao pensamento de um autor. Parti da obra de Aristóteles, passando por Etienne La Boétie, Maquiavel, Rousseau, Hegel e finalmente Marx. O pressuposto metodológico é que os desenvolvimentos do tema do “senhor e do escravo” são fruto de um processo interno ao pensamento ocidental, que se inicia na antiguidade e atinge sua maturidade apenas com o filósofo alemão. Se o trabalho se apresenta nos moldes de uma história da filosofia, ou pelo menos como uma história de um conceito – tal como desenvolvia Koselleck –, ele espelha a crença de que a história da filosofia é parte do desenvolvimento do “espírito” e, por isso, pode ter sua lógica interna desvelada por uma leitura em perspectiva dos pensadores do passado. Em cada capítulo, governado pelo estudo de uma obra do autor, procurei apontar o momento de constituição de uma dialética, que encontrará na obra de Hegel sua formulação mais acabada. Dizendo de outra maneira, busquei ler A Política de Aristóteles, O Príncipe de Maquiavel, O discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens de Rousseau, e mesmo alguns trechos da obra de Marx, como momentos de criação de um paradigma central do pensamento político ocidental, que teria sido exposto por Hegel em seu livro célebre. Aliás, o título escolhido para a dissertação fazia alusão direta a essa perspectiva de análise: A dialética do senhor e do escravo como paradigma na filosofia política. A hipótese central da dissertação, que fazia da dialética do senhor e do escravo a forma por excelência do conflito constituidor das sociedades políticas, acabou por influenciar a maneira de ler cada pensador. Embora eu tenha recorrido a alguns comentadores clássicos sobre os autores estudados, o importante foi tentar descobrir, na tessitura conceitual das obras, o momento de aparecimento da oposição entre os polos antagônicos, que definem a forma universal do conflito. Se a dissertação não se limitava ao estudo da Fenomenologia do Espírito, ela foi governada pela crença na universalidade da dialética do senhor e do escravo.

De forma simplificada, posso dizer que tentei realizar um percurso “hegeliano” por momentos da história da filosofia política. Essa maneira de colocar o problema definiu a forma e a metodologia da dissertação. Ao mesmo tempo, meu trabalho buscou afirmar a primazia da dialética do senhor e do escravo como instrumento conceitual para se fundar uma filosofia política, que reconhece na divisão inicial dos elementos constitutivos da sociedade o ponto de partida de toda reflexão filosófica sobre a vida em comum dos homens.

Depois do mestrado defendido em 1984, não retornei mais ao estudo sistemático da obra de Hegel, embora seu pensamento tenha tido importância evidente em minha formação e seja, a meu ver, incontornável para todos os que como eu se dedicam à história da filosofia e à filosofia política. Dessa primeira experiência de pesquisa e formação ficaram heranças que me acompanham até hoje.



2) No seu doutorado, realizado na École des Hautes Études en Science Sociales em Paris, entre 1985 e 1989, você parece ter mudado radicalmente ao migrar de um estudo sobre a dialética de Hegel para pensar a política na perspectiva de Maquiavel. O que despertou o seu interesse pela obra do autor? Que ordem de preocupações ou questões (se as tinha bem claras) o levaram a mudar de tema?

Findo o mestrado, decidi iniciar meu doutorado rapidamente buscando uma instituição que contemplasse meus interesses filosóficos de então. Não se tratou propriamente da descoberta da obra de Maquiavel, que já estava presente em minha dissertação de mestrado, mas do abandono do paradigma hegeliano. Mais uma vez foi por sugestão do professor Hugo Amaral que me iniciei na leitura das obras de Claude Lefort, que viria a ser meu orientador de doutorado na França. Lefort havia ensinado na Universidade de São Paulo na década de 50 e guardara vínculos com o Brasil, o que fazia com que alguns de seus trabalhos fossem bem conhecidos pela comunidade filosófica brasileira. Na metade dos anos 80, dois de seus livros me impressionaram. As formas da história contém um conjunto de textos que abarca uma gama variada de temas e autores. De imediato me marcou o diálogo ao mesmo tempo respeitoso e crítico com Marx. Distante de uma certa ortodoxia reinante nas ciências sociais brasileiras, Lefort revisitava conceitos como os de alienação e ideologia para concluir que é importante deixar de tratar a ideologia como mero reflexo da sociedade mas sim como produtora de uma de suas dimensões constituidoras. A combinação dessa perspectiva crítica da obra de Marx com o diálogo com as ciências sociais, a antropologia em particular, e o uso de conceitos como os de imaginário e simbólico, abriram para mim um universo de investigação da política de um ponto de vista da filosofia que não encontrara até então em outros autores, exceção feita aos trabalhos de Hannah Arendt, que me haviam sido apresentados ainda no curso de graduação. Naquele momento, eu não tinha consciência de que esses autores participavam na linha de frente da reconstituição da filosofia política contemporânea, depois de décadas de debates entre o marxismo e algumas formas do liberalismo, que acabavam por colocar “o problema do político” – para me servir de uma maneira de colocar a questão de Lefort –, como uma dimensão derivada de uma totalidade comandada pela economia. Esse encontro com a investigação filosófica da política, a discussão dos fundamentos da vida em comum nas condições do mundo contemporâneo, deixaram em mim marcas e produziram interesses que perduraram ao longo das décadas seguintes.

Nesse momento de “descoberta” da filosofia política contemporânea, a leitura de A Invenção democrática me colocou em contato não apenas com uma concepção original da democracia, mas também com o problema dos regimes totalitários. No curso do processo de redemocratização do Brasil, a interrogação da natureza do regime democrático fazia parte das preocupações de uma boa parte da intelectualidade brasileira. Pessoalmente não trabalhei essa questão de forma direta em minha dissertação de mestrado e não me sentia apto a abordá-la naquele momento de um ponto de vista teórico. O livro me ajudou, no entanto, a compreender algumas das dimensões fundamentais do problema. Numa direção, tratava-se de pensar a natureza do regime democrático nas sociedades de massa contemporânea. Lefort apontava para uma ideia da democracia à distância da concepção de certos marxistas, que concebiam a democracia como forma da dominação burguesa, e da concepção das ciências sociais norte-americanas, que tendiam a acentuar os aspectos procedimentais do regime democrático. Outra dimensão essencial das reflexões do pensador francês é o fato de que ele mostra que o outro da democracia no nosso tempo são os regimes totalitários. Ao associar os dois problemas, ele contribuiu para alargar as fronteiras da investigação sobre a natureza dos regimes políticos de uma forma que até hoje me parece um caminho frutuoso e rico.

Para a escolha de meu caminho para o doutorado, no entanto, foi decisivo o contato com o livro Le travail de l’oeuvre. Essa obra densa e erudita me colocou diante de um universo de pesquisa de uma grande riqueza. Em sua parte inicial, a apresentação da posição metodológica do autor, em conexão com os trabalhos de Merleau-Ponty, Heidegger e Gadamer, me fez ver o quão importante é compreender o lugar ocupado pelo intérprete na investigação de uma obra do passado e, sobretudo, como não podemos supor que o leitor fala sobre o passado de um ponto de vista neutro. Lefort mostra que ao ler um autor já carregamos uma bagagem, que vai nos conduzir ao interior de seus argumentos e produzir nosso caminho de leitura, ou nossa interpretação, para ficar no horizonte da hermenêutica filosófica, que tanto interessava o pensador francês. A segunda parte do livro discute o que Lefort chama de “interpretações exemplares” e reúne o debate com grandes nomes da tradição de estudos maquiavelianos de várias procedências. O importante, no entanto, nessa maneira de abordar a obra de Maquiavel não é a exposição de uma erudição sem falhas, mas o fato de que Lefort nos mostra que ao mesmo tempo em que mergulhamos nos escritos do pensador clássico, já o fazemos tendo ao lado um conjunto de leituras que, de forma direta ou indireta, estão na raiz das leituras contemporâneas. Dizendo de outra maneira, Lefort me ajudou a compreender que a intepretação não se resume à leitura direta da obra, nem à discussão com outros intérpretes. A “obra de pensamento” (expressão usada por ele) se apresenta sempre de um ponto de vista objetivo – expresso no texto e na tradição de recepção-, e de um ponto de vista subjetivo –, que congrega nossas expectativas e nosso projeto de leitura. Essa forma de abordar as obras filosóficas será para mim uma bússola que me acompanha desde então. Nesse momento fui levado ao livro de Merleau-Ponty –Éloge de la philosophie1–que sistematizou para mim os aspectos teóricos mais relevantes dessa perspectiva e que continua a me influenciar. Por fim, a terceira parte contém a “intepretação” lefortiana de Maquiavel e me causou por ocasião da primeira leitura – continua a causar até hoje – uma forte impressão. Lefort mergulha nas obras de Maquiavel combinando um grande respeito à letra dos textos com uma aguda percepção de que ao fazê-lo ocupa o lugar do intérprete tal como ele o definira. O resultado é um livro impressionante, que foi decisivo para a escolha de meu tema de pesquisa no doutorado.

No momento de procurar uma instituição para a realização de meu doutorado, o nome de Lefort se impôs de forma quase natural. O fascínio por seu trabalho e o fato de que eu queria me dedicar ao estudo da filosofia política e de sua história foram decisivos para minha escolha. Tomada a decisão de procurar Lefort, fui ajudado pela professora Marilena Chaui, que já trabalhara com ele e se dispôs a me apresentá-lo.



3) Como foi a sua experiência de estudos na França? Conte-nos um pouco sobre a sua relação com Claude Lefort, seu orientador em Paris.

Nos anos 80 do século passado, quando fui para a França fazer meu doutorado, Claude Lefort era um dos grandes nomes da filosofia, sobretudo da filosofia política, na Europa. Seus seminários na École des Hautes Études en Sciences Sociales ocorriam sempre às terças-feiras e duravam cerca de três horas. A sala ficava abarrotada de auditores, que vinham de várias partes do mundo e incluíam um certo número de professores de outras universidades, que vinham escutá-lo. Naquele tempo ainda se fumava em uma sala fechada de seminário, o que fazia com que depois de um certo tempo pairasse uma verdadeira névoa no recinto, que não se dissipava até o final. O ambiente dos seminários era bastante formal e parecia tenso para um estudante brasileiro como eu, acostumado com a informalidade de nossas universidades e até mesmo com a proximidade que costumava se estabelecer ao longo dos anos entre professores e alunos. Nessas ocasiões, o acesso a Lefort era bastante difícil, até pelo fato de que muitos o procuravam ao final do seminário por uma série de motivos.

Depois das apresentações havia um encontro em um café perto da EHESS do qual participavam, além de Lefort, muitos dos que haviam seguido a apresentação e era uma ocasião para se conversar com outros participantes e ouvir as considerações mais relaxadas do professor, em geral sobre a conjuntura política e literária. Nesses encontros, pude me ligar a colegas como Sérgio Cardoso, Claudia Hilb, Daniel Cefai e tantos outros, que se tornaram amigos de uma vida inteira e que vieram a ocupar lugares de destaque no mundo acadêmico posteriormente.

As coisas eram muito diferentes, no entanto, quando se tratava de conversar com Lefort na condição de seu orientando. A formalidade não se dissolvia inteiramente, mas ele era extremamente preocupado como seus alunos, com suas dificuldades e com o desenvolvimento de suas pesquisas. Ele não tinha nada do comportamento distante das grandes estrelas do mundo intelectual francês. Ao contrário, agia como um orientador interessado no trabalho dos alunos. Fazia sugestões e críticas, indicava bibliografias e lia os textos com grande atenção. Os encontros eram longos e extremamente produtivos. Ele se comportava como um leitor atento, que não deixava passar nada, mas que nunca menosprezava o material que tinha diante dele.

Essas características pessoais raras no mundo acadêmico fizeram com que eu tenha podido manter um contato permanente com ele até sua morte em 2010. Depois da defesa de tese, o contato passou a ser menos formal, ainda que naturalmente eu sempre o tratasse como alguém a quem eu admirava e a quem eu devia enormemente. Minha admiração por sua obra e por sua pessoa se mantiveram inalteradas ao longo dos anos.



4) O seu primeiro livro, resultado do doutorado, publicado sob o título Maquiavel Republicano (São Paulo: Loyola, 1991), trouxe para o Brasil a possibilidade de se analisar a obra de Maquiavel por um viés ainda pouco explorado na ocasião: o da liberdade pensada a partir das dissenções entre “grandes” e “povo”. Quais foram as dificuldades de pensar Maquiavel por uma via distinta das correntes mais consolidadas naquela época?

Maquiavel republicano foi tirado diretamente de minha tese de doutorado e guarda as marcas de sua origem. Ao chegar à França estava impregnado pelo grande livro de Lefort, mas isso nunca foi um obstáculo para a descoberta de novos rumos. Ao contrário, meu primeiro contato, por exemplo, com a obra e Hans Baron foi feito por sugestão de meu orientador. O mesmo se deu com os trabalhos de Pocock. A partir desse impulso inicial abriu-se o universo das leituras feitas por uma série de estudiosos de língua inglesa do pensamento do Renascimento, que naquele momento ganhavam grande relevância. Minhas frequentes visitas a bibliotecas italianas, em particular em Florença, me aproximaram de intérpretes como Genaro Sasso, que viriam a ser muito importantes para minha démarche de pesquisa. Acho que foi esse conjunto de influências diversas que me levou a procurar caminhos para abordar a obra de Maquiavel, que não ficavam restritos a uma determinada corrente interpretativa. É claro que minha maior influência continuou a ser Lefort, mas ele mesmo sempre me incentivou a alargar os horizontes da pesquisa para evitar a tentação de repetir o caminho que ele já havia percorrido com um brilho e uma força que eu não teria como reproduzir. Ao combinar as diversas influências me pareceu que era possível encontrar um viés diferente daquele de outras interpretações, que colocavam o tema da liberdade no centro. Mas é claro que meu trabalho só foi possível por eu ter tido acesso a um número grande de estudos, que me davam alguma segurança no momento de avançar minhas hipóteses, em particular sobre os temas que me pareciam centrais na obra de Maquiavel. Não estando limitado por qualquer razão de ordem acadêmica, tive plena liberdade para procurar uma interpretação da obra de Maquiavel que, à luz da grande tradição de interpretação, me pareceu fecunda naquele momento.



5) Seu trabalho motivou muitos pesquisadores brasileiros a se dedicarem aos temas que estavam no centro de convergência de suas pesquisas, tais como o da “liberdade”, do “republicanismo”, da “tirania” e demais questões erigidas a partir do pensamento de Maquiavel. Quão importante tem sido essa rede de pesquisadores para o debate desses temas e o desenvolvimento de suas ideias?

Ter participado de alguma maneira na criação de um grupo amplo de estudiosos, não somente do pensamento de Maquiavel, mas também do Renascimento, no Brasil tem sido uma das coisas mais gratificantes de minha vida acadêmica e pessoal. Hoje, quando escrevo alguma coisa, ou me preparo para fazer uma apresentação, sempre tenho esse grupo de estudiosos como referência. Leio o que meus colegas escrevem quase de forma obsessiva e com isso tenho aprendido muito. Acho que fazer parte de uma comunidade de saber é essencial para continuar a trabalhar e avançar em novas direções. Desde os anos 90, quando voltei da França, o número de pesquisadores da filosofia do Renascimento aumentou muito e hoje já podemos falar em mais de uma geração de estudiosos dedicados aos temas e aos autores que me interessam, o que dá uma profundidade incrível aos trabalhos. Por vezes, vemos que uma questão que apenas aflorou em nossos debates trinta anos atrás se transformou no centro das investigações de jovens colegas, que passaram a explorar assuntos que antes eram desconhecidos entre nós. Isso é profundamente gratificante. Acredito que essa é uma condição essencial para dar sentido à vida intelectual. Trabalhar de forma isolada é extremamente penoso e estou convencido que de alguma maneira prejudica a qualidade de nosso trabalho. É só quando o olhar do outro confere sentido ao que fazemos e nos integra em uma comunidade de trabalho que o exercício da filosofia adquire significação e força.



6) Recentemente, você publicou o livro O Brasil à procura da Democracia (Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020). Como os seus estudos de filosofia política do período do Renascimento contribuíram para pensar os problemas políticos brasileiros que o conduziram à escrita no livro?

Embora sempre tenha me interessado pelo pensamento político-social brasileiro, não sou um especialista na matéria e, por isso, procurei me aproximar do assunto com as ferramentas teóricas que me guiam em meus estudos da filosofia política do Renascimento, em particular, do republicanismo. Um grande número de estudos da formação brasileira se guia pela contraposição entre americanismo e iberismo. Essa polaridade ainda é importante para se pensar nossa história intelectual, mas parece incapaz de abrir novos veios de investigação. No que diz respeito ao problema da democracia, as chaves mais tradicionais da historiografia brasileira terminam, com grande frequência, por apontar o “fracasso” do Brasil de se constituir como uma democracia moderna e por mostrar as “faltas” que bloqueiam nossa caminhada em direção à modernidade democrática. Essa abordagem é influenciada, em grande medida, por uma concepção próxima da tradição liberal do que seja um regime democrático. Tomada como modelo, essa matriz acaba por limitar a visão do percurso das ideias democráticas entre nós. Ao me apoiar num referencial republicano para analisar meu objeto de estudo no livro, não tinha a pretensão de deixar de lado tudo o que foi feito até hoje. Ao contrário, procurei me servir dos muitos estudos sobre as ideias políticas e sobre a história brasileira para prosseguir com o apoio de balizas sólidas e estabelecidas.

A tradição republicana, que está no centro de muitos de meus estudos, me abriu a possibilidade de realizar uma investigação que, sem desprezar a herança da historiografia brasileira, iluminou aspectos que costumam ser pouco visitados pelos estudiosos do assunto. Busquei apoio na maneira como autores da tradição republicana formulam temas como os da liberdade, igualdade, autonomia, comunidade, participação e conflito para retornar à rica história das ideias democráticas entre nós. Ao longo de meu percurso pude constatar que essa estratégia analítica rendia bons frutos na medida em que apontava para aspectos da evolução do pensamento democrático brasileiro que nem sempre tinham sido destacados por investigadores da matéria. De alguma maneira, procurei me espelhar no percurso dos pensadores políticos do Renascimento para enxergar novas possibilidades de compreensão de nossa rica história intelectual e política.



7) No mesmo livro, você menciona os principais intelectuais brasileiros que, de 1889 à contemporaneidade, se dedicaram a pensar e discutir questões relacionadas à república e à democracia. Pensando no papel que a retórica ocupa na dimensão da vida política, como você avalia a importância e o lugar a ela concedido entre os intelectuais do Renascimento e aqueles analisados no seu livro?

Lopes Trovão foi um dos grandes propagandistas de república no final do século XIX. Suas palestras eram concorridas e ele era tido como um verdadeiro astro da vida pública sendo reconhecido e saudado nas ruas do Rio de Janeiro. Como ele, o Brasil teve outros grandes oradores que em diversos momentos da história tiveram uma participação importante na vida política. Em que pese essa presença marcante da arte da oratória na nossa história, valorizamos muito pouco esse aspecto de nossa vida em comum, relegando-o a um segundo plano, quando não o abordamos como um dos aspectos negativos da política.

Quando olhamos para o que se passou no Renascimento adquirimos uma outra visão do papel da retórica. Os trabalhos de colegas como Sérgio Cardoso, Helton Adverse e de muitos jovens pesquisadores brasileiros me despertaram para o fato de que a maneira como compreendemos a retórica é solidária de uma forma de pensar a política. Os pensadores italianos renascentistas não se ocuparam apenas com a recuperação dos textos de autores como Quintiliano e Cícero. Eles introduziram novas práticas na arena pública e, com isso, valorizaram a participação na vida da cidade, que havia sido deixada de lado na Idade Média. Na tradição republicana, retórica e política andam juntas e se completam. Como a arena pública é um território de conflitos, nela as armas são as palavras e não a violência. De forma sintética, eu diria que aprendi com os estudos sobre retórica levados a cabos por pesquisadores brasileiros do Renascimento que um regime livre combina necessariamente política com retórica.

Curiosamente, num país com uma história recheada de bons oradores, costumamos pensar a retórica numa chave negativa. Ainda que a implantação do pensamento político liberal entre nós tenha seguido um caminho tortuoso, incorporamos na cultura política a ideia de que a retórica é uma ferramenta do engano e da mentira, como acreditam muitos autores liberais. Ao olhar para nossa trajetória de lutas políticas, constatamos que estamos diante de uma história rica e que abre um campo interessante de investigações. Essa abertura para novos horizontes de pesquisa sobre o papel da retórica na história política brasileira, no entanto, só é possível se nos servirmos das ferramentas teóricas que nos foram legadas pelos pensadores do Renascimento.

1 Maurice Merleau-Ponty. Éloge de la philosophie. Paris: Gallimard, 1960.

 

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