Eloquência à maneira montaigneana

 Revista Sísifo. N° 13, Janeiro/Junho 2021. ISSN 2359-3121. www.revistasisifo.com

 

Ana Carolina Mondini

Doutora em Filosofia pela UFPR, com período sanduíche na EHESS/ Paris. Mestrado e Graduação em Filosofia pela UFPR, graduação em Pintura pela EMBAP.

 

 
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Resumo

No ensaio “Da educação das crianças”, ao fazer suas considerações sobre a eloquência, Montaigne estabelece, como pano de fundo, uma interessante conversação com Quintiliano, não apenas com o intuito de colocar seu próprio parecer sobre a clássica disputa que envolve a Arte Retórica e a Filosofia, mas também com o objetivo de recolocar o lugar da imaginação e do intelecto no contexto dessa discussão.

Palavras-chave: Montaigne; Eloquência; Intelecto; Imaginação.

 

Abstract

In the essay “On the education of children”, when making his considerations on eloquence, Montaigne establishes, as a background, an interesting conversation with Quintiliano, not only with the intention of asserting his own opinion regarding the classic dispute involving the Art of Rhetoric and Philosophy, but also with the purpose of relocating the place of imagination and intellect in the context of this discussion.

Keywords: Montaigne; Rhetorical Art; Eloquence; Intellect; Imagination.

 


Rafael, 1509-1511,

Detalhe da Escola De Atenas, Afresco, 500 x 700 cm.

Palácio Apostólico, Vaticano.


No século XVI, a Arte Retórica foi de uso significativo entre os humanistas. Com a retomada dos textos clássicos latinos e gregos guiada pelo consenso sobre a importância de imitá-los, o uso da retórica justifica-se pelo próprio preceito de imitatio, literalmente, imitação.1 Entre os tratados específicos dessa arte encontravam-se Ad Herennium, de autor desconhecido, mas que geralmente é atribuído a Cícero (106-43 a.C.), e as Instituições Oratórias de Quintiliano (35-95). Além das obras que se fundamentavam nas regras e, por conseguinte, transmitiam os preceitos retóricos, que se vinculavam à poesia, à filosofia, como, por exemplo, a Ars Poetica, de Horácio (65-8 a.C.), e as diversas obras de Cícero.

Esses autores que citamos fizeram parte das principais leituras de Montaigne (1533-1592) e seus ensinamentos, somados às exigências literárias da época, determinaram muitas discussões encontradas na filosofia dos Ensaios. Mesmo que não haja como contradizer a originalidade estilística desse autor e, consequentemente, seu rompimento com inúmeras determinações da tradição clássica, é inegável a forte presença e, talvez, a influência dos clássicos exercida em sua obra, tal como estava em voga em seu século.

Alguns aspectos vindos de séculos precedentes mantiveram-se nos Ensaios, tal como a síntese entre a filosofia e a retórica, instituída por Cícero,2 como menciona Kristeller (1905-1999): “muitos dos maiores humanistas, como Petrarca (1304-1374) e Salutati (1331-1406), Valla (1407-1457) e Bruni (1370-1444), Alberti (1404-1472) e Pontano (1426-1503), Erasmo (1466-1536), Tomás Moro (1478-1535) e Montaigne, foram capazes de unir à sua eloquência uma autêntica sabedoria” (KRISTELLER, 1954, p. 26 – grifo nosso).

O saber bem escrever e bem falar seria o maior preceito da época em questão, mas, além do exemplar uso da eloquência, como sintetiza Kristeller, outras características comuns entre os humanistas merecem ser consideradas, nas palavras do comentador: expressão das sensações, opiniões, experiências e circunstâncias de um indivíduo singular, “tendência que aparece na literatura biográfica e descritiva da época, e ainda no retrato, na pintura, e que, presente em todos os escritos dos humanistas, encontra a sua mais cabal expressão filosófica em Montaigne” (KRISTELLER, 1954, p. 27).

Sem dúvida podemos atribuir todas essas características humanistas à obra montaigneana. É válido mencionar que, no entanto, Morçay (1877-1938) e Müller (?) detalham que o humanismo na França, que se iniciou no século XVI, desenvolve-se por um modo de pensamento novo, atribuindo à Renascença francesa um aspecto distinto da Renascença italiana do século XV: consiste em um humanismo realista distinto do humanismo puramente formal dos italianos (Cf. MORÇAY, MÜLLER, 1967, p. 405 e 406).

Enfim, como um bom humanista, porém, “enigmático”, como diz Morçay e Müller, Montaigne estabelece, nos Ensaios, debates com os autores clássicos, entretanto, incluindo os assuntos do XVI. E com vistas à relevância com a qual a Arte Retórica surge na obra montaigneana, mais precisamente, a eloquência, a imitação e a predileção pela naturalidade do discurso, discutiremos, nesse momento, a função da eloquência na obra montaigneana, levando em conta o posicionamento de Montaigne acerca da relação entre intelecto e imaginação, que caracterizará sua criação estilística voltada para a construção de imagens.


***


O ensaio “Da educação das crianças” (I, XXVI), Montaigne escreveu para sua amiga Diane de Foix (1540-1587), condessa de Gurson, que estava grávida na ocasião. Em seus aconselhamentos sobre como acredita ser um bom modo de instruir o ser humano, principalmente, em sua infância e juventude, a filosofia revela-se como uma das ocupações essenciais. Pois, através dela, assim como da comedida orientação do preceptor, a pessoa pode vir a desenvolver-se com firmeza de ânimo, entusiasmo, autonomia e liberdade. O modo como ele nos apresenta a filosofia, no entanto, parece bem inovador, se comparado às filosofias que seguiam as influências exercidas na época pela Escolástica. Pode inclusive ser considerado inovador em relação às filosofias antecedentes, na medida em que propõe novo modo de modelar o discurso. Ao modo de conversação, Montaigne pretende que seu jeito de transmitir a filosofia, ao romper com o modelo tratadístico e com o tom professoral, contenha a indicação para que o discípulo e, posteriormente, o leitor, possa vir a desenvolver uma reflexão filosófica autônoma. O modelo estilístico revela-se, portanto, ainda mais essencial na medida em que as operações da mente são ali rediscutidas.

Para Montaigne, a maneira de a pessoa se expressar, sua capacidade de eloquência, manifesta-se como algo inerente à sua disposição interna. É importante, portanto, que o preceptor direcione o discípulo sem atravancar o seu caminho. Desse modo, além de um modelo pedagógico “libertário”, cuja filosofia propõe-se a ser condizente com a vida prática, paralelamente, há ao menos outras três conversas acontecendo.

A primeira consiste em uma conversação que Montaigne estabelece com Quintiliano e que parte de uma discussão sobre a eloquência como um passo para recolocar o sentido dos componentes estruturais da obra, mais precisamente, as imagens e as palavras. Já a segunda, muito ligada à primeira, retrata-se também pela conversação com Quintiliano sobre a relação entre a Arte Retórica e a filosofia. Quintiliano, em suas Instituições Oratórias, procura defender a independência da Arte Retórica, ao mostrar que ela não precisa estar relacionada à filosofia para instruir as pessoas com juízos valiosos. Através das considerações sobre a eloquência e do retorno às Instituições, fica claro que Montaigne procura responder ao intento de Quintiliano. Montaigne, contrariamente, se posicionará a favor da filosofia como uma importante forma de reflexão e, consequentemente, de bem viver, em detrimento da possível artificialidade das regras da Arte. Porém, isso não significa que descarte a retórica enquanto importante para a expressão filosófica, desde que absorvida com naturalidade ou como constituindo o espírito do autor.

E a outra discussão que ocorre simultaneamente no mesmo ensaio seria a exposição da própria trajetória de Montaigne, no que tange à escolha de sua maneira de escrever e desenvolver seu estilo. Esses três assuntos ou, como chamamos, planos de significação textual são discutidos ao mesmo tempo, vinculados uns aos outros, de modo tal que nos surpreende a maestria do autor. Por isso, faz-se ainda mais essencial ocupar-se do parecer de Montaigne sobre a maneira como os ensinamentos da Arte são transmitidos.

Em relação aos ensinamentos voltados à educação, não os discutiremos pontualmente, mas alguns deles serão, indiretamente, levantados na discussão sobre a eloquência, como não poderia ser diferente, dada a ligação entre os temas em questão.

Para tanto, levantaremos dois aspectos dessa primeira conversação com Quintiliano que aparece como pano de fundo: ambos têm como ponto de partida a noção de eloquência, que surge como uma pista no corpo do ensaio e que nos conduz a investigar as Instituições. O primeiro refere-se à discordância sobre o princípio e outros componentes da eloquência. Enquanto Quintiliano entra na velha batalha de valorizar o intelecto como imprescindível para a instrução, Montaigne desmistificará essa ideia, atribuindo à imaginação papel relevante. Ao fazer uso bem particular das regras retóricas para o desenvolvimento de sua própria filosofia, além de inovar o uso da Arte, Montaigne termina por vincular a filosofia à retórica.

E, assim, entramos no segundo aspecto, que seria justamente o conflito acerca da comparação da filosofia e da Arte Retórica. Através da conversa com Quintiliano, Montaigne oferece seu ponto de vista, não sem considerar os protagonistas do debate na época renascentista, a saber, as correntes platônica e aristotélica.

A eloquência, tanto na obra de Montaigne quanto na de Quintiliano, significa uma qualidade da expressão, conforme uma maneira apreciável de se pronunciar. Porém, enquanto para Quintiliano a eloquência se relaciona essencialmente ao discurso falado, para Montaigne as coisas se darão de maneira um pouco diferente. Essa discordância que pode parecer insignificante num primeiro momento adota contornos importantes para a história da filosofia na medida em que o que está em jogo é a maneira como temos acesso aos objetos, o modo como os percebemos com maior vivacidade. E, portanto, significa uma discussão sobre a melhor forma de transmiti-los.

Quintiliano defendeu que o orador, por ter domínio sobre a Arte Retórica, i.e., por saber expressar os objetos através das essenciais regras da Arte, assim como por tocar o espectador pela audição, seria o mais apto a transmitir com exatidão e vivacidade os objetos a que se propõe.

Montaigne, por sua vez, no “Da educação das crianças”, comenta como considera a boa maneira de se exprimir:

O falar que aprecio é um falar simples e natural, tanto no papel como na boca; um falar suculento e musculoso, breve e denso, [C] não tanto delicado e bem arrumado como veemente e brusco: A expressão é boa se ferir (Epitáfio de Lucano) [A] antes difícil que tedioso, livre de afetação, desordenado, descosido e ousado [...] (I, XXVI, p. 256 – grifos nossos).3

Não há dúvida de que o discurso de Montaigne seja “breve e denso” em alguns momentos. Eis o exemplo dessa passagem concentrada em poucas palavras e que resume o que poderia ser uma longa discussão. De modo que interpretá-lo não é tarefa simples. A eloquência compreendida como aplicando-se à expressão, “tanto no papel como na boca”, retira qualquer distinção fundamental relativa à fala ou à escrita. Esta frase que passa despercebida quando não sabemos o que está por trás do discurso de Montaigne, certamente não passava despercebida para os intelectuais da época, que muito possivelmente conheciam as fontes do filósofo. Isso não descaracteriza o fato de que nosso autor escreveu para todos: mesmo os que não estão informados dessas sutilezas são capazes de, em alguma dimensão, captar o sentido da escrita de nosso autor.

Porém, é importante conhecermos as fontes das conversas de Montaigne, caso queiramos perceber mais detalhes de seu temperamento e observar mais de perto a maneira como ele se pronunciava em suas conversações. Assim como tomar consciência das discussões teóricas nas quais ele estava envolvido. Conhecer, mesmo que brevemente, as Instituições Oratórias, nos faz compreender as dimensões de cada sentença pronunciada por Montaigne.

Devemos ter em mente que caracterizar a expressão escrita e falada sem distingui-las não era regra. A definição de Quintiliano sobre a eloquência traduz-se pela “ciência de falar bem” – uma “arte” cuja matéria são todas as coisas sobre as quais se pode discorrer, (Cf. Instituições Oratórias, Tomo III, Livro VIII, Artigo I). Ele a coloca antes em relação à expressão oral do que à expressão escrita. O mesmo vale para a definição de elocução (ou expressão), que seria uma importante parte da eloquência, sobre a qual Quintiliano baseia-se em Cícero: “elocução não é outra coisa, senão exprimir e comunicar os ouvintes tudo o que tiveres concebido em seu espírito”, (Inst. Or., III, VIII, II - grifo nosso). Eloquência, para Quintiliano, significa a elocução bem executada ou executada de acordo com as regras da Arte. Volta-se preferencialmente ao discurso falado, compreendendo a Arte como tarefa mais bem executada pelo orador:


Os benefícios da audição e aqueles da leitura não são idênticos. Quem fala nos estimula por um sopro (souffle) mesmo, e ele não nos inflama pela imagem e pelos contornos das coisas, mas pelas coisas mesmas [...] Além disso, a voz, a graça, a adaptação do fluxo às exigências de cada passagem, que é, talvez, o elemento mais decisivo em um discurso, para dizer em uma palavra, tudo isso contribui igualmente para a instruir. Quando lemos, o juízo é melhor assegurado, juízo tal que, muitas vezes, arranca de um ouvinte suas simpatias pessoais ou as aclamações de louvores. (Inst. Or. X, I, XVI – grifos nossos).


Dadas as vantagens de cada um dos modos discursivos, a leitura parece caminhar bem apenas ao lado do intelecto. Segundo Quintiliano, enquanto o discurso falado, cujo juízo emanado do intelecto toca intimamente o ouvinte, possui diversos elementos extras, exclusivos e essenciais para instruir, o que possibilita o acesso à coisa mesma, para além de sua mera imagem. Os juízos possuem lugar de destaque na transmissão da realidade das coisas, porém, a graça e a voz são elementos juntamente essenciais. O discurso escrito, por sua vez, sem os elementos da fala, incorre no risco de apenas transmitir o contorno das coisas, ao invés de transmitir as coisas mesmas.

Por outro lado, Montaigne desconsidera todas essas sutilezas ao dizer que a escrita também pode ser eloquente. A rapidez da resposta de Montaigne para esta distinção não quer dizer que ele apenas discorda sem maiores motivos. O problema que surge no seio desse debate se refere à compreensão de cada qual acerca da própria natureza dos elementos discursivos.

Essa disputa, no entanto, não se trata de uma cisão marcada por lados totalmente opostos. Nas Instituições, o autor não desconsidera totalmente o discurso escrito. Como não poderia ser diferente, na medida em que ele mesmo está fazendo uso desse recurso. Porém, compreende que a leitura significa apenas uma etapa para a formação do orador. Etapa através da qual ele poderá adquirir e exercitar os mandamentos da Arte.

Quintiliano chega inclusive a considerar que nem todo discurso filosófico escrito seria totalmente incompatível à Arte Retórica. Abre uma rápida exceção à maneira dos estoicos, que, por tratarem do justo, útil, honesto e de seus opostos, e argumentarem com raciocínio silogístico, demonstrando seus princípios, têm magnífica forma oratória (Cf. Inst. Or., X, I, 83).

Mesmo que, para Quintiliano, o despertar da sensibilidade e simpatia seja o traço particular da fala da oratória, precisamos enfatizar algo óbvio, a saber, o acesso à coisa não advém apenas da sonoridade, mas também das palavras que são expressas por essa maneira determinada. Como ele considera, sobre o princípio da eloquência: “pois, de fato, como o papel do orador é falar, é de palavra que se trata antes de tudo, e é manifesto que tal foi o princípio desta arte” (Inst. Or., X, I, III – grifos nossos).

Sendo para Quintiliano a palavra o princípio da eloquência, consequentemente a boa expressão sempre estará vinculada ao intelecto. O aspecto sensível da expressão, por outro lado, ele o relacionará a qualidades externas às palavras, como vimos ser a sonoridade.

A despeito do que diz Quintiliano, é preciso esclarecer se então haveria a possibilidade de se causar a mesma percepção sensível das coisas tais como elas são, característica do discurso falado, através da escrita. É óbvio que não faltaram poetas e escritores humanistas que fizeram uso de regras retóricas para a composição de seus escritos, assim como ocorreu entre os artistas para a elaboração de suas pinturas. Mas, será que suas obras deram conta de significar o objeto, tanto quanto a fala oratória é capaz de o fazer? Será que ao menos Montaigne encontrou algum meio de trazer a graça, exclusiva da sonoridade, para sua obra?

A discordância de Montaigne em relação à eloquência inicia-se pela qualidade desse princípio operador que são as palavras. Enquanto Quintiliano enfatiza o aspecto intelectual da palavra, Montaigne confere relevância a seus dois aspectos: intelectual e imagético. Assim, se para Quintiliano a sonoridade é a ferramenta mais poderosa para despertar a simpatia pelas palavras, para Montaigne não é exatamente assim: a responsável pelo reavivar das palavras será a própria imaginação.

Montaigne não discorda do uso das regras enquanto tais, visto que ele mesmo se utiliza de muitos recursos da Arte, incluindo seus adornos. Mas não está de acordo com a exigência de que elas sejam utilizadas de maneira determinada, tal como se observa nas regras de Quintiliano, transmitidas nas Instituições. Coloca-se em oposição à exigência pela beleza do discurso baseada e fundamentada nas opiniões e regras da Retórica. Para Montaigne, o modelo tratadístico, que exige um estudo formal, pode vir a ser muito pouco eficaz em relação aos seus objetivos. Visto que esse modelo não visa a formação anímica de bons oradores ou escritores eloquentes, mas apenas formal. Qualquer um pode apreender as regras e aplicá-las em sua expressão, sem necessariamente ter o que seria mais essencial para a eloquência, a saber, a própria disposição espiritual: “o verdadeiro espelho de nossos discursos é o curso de nossas vidas” (I, XXVI, p. 251).

Para Montaigne a verdadeira eloquência corresponde, antes, àquilo que se encontra no interior do sujeito: “ele não sabe retórica, nem, como prelúdio, captar a benevolência do cândido leitor, nem lhe importa sabê-lo. Na verdade, toda essa bela pintura é facilmente apagada pelo brilho de uma verdade simples e natural. Esses refinamentos servem apenas para distrair o vulgo, incapaz de consumir o alimento mais sólido e mais firme [...]” (I, XXVI, p. 253). A memorização dos artifícios linguísticos não forma um bom orador ou escritor. Como diz Montaigne, o conteúdo, antes apreendido na alma, será sempre melhor expresso, sem a necessidade do uso de qualquer recomendação: “tendo as coisas e a matéria dispostas na alma, ele pouco se preocupava com o restante” (I, XXVI, p. 255).

Ora, se o íntimo de cada sujeito é tão particular e individual, como poderiam as regras das artes serem utilizadas sempre de formas tão semelhantes? Quase como uma apologia ao desuso dos ornamentos retóricos, Montaigne enfatiza a simplicidade do discurso. Essa crítica, no entanto, não deve ser compreendida ao pé da letra. De fato, Montaigne pretende desmistificar os mandamentos da Arte Retórica e instituir um uso livre de seus preceitos, mas isso não significa, porém, que ele mesmo tenha se libertado totalmente desse uso.

A conversação com Quintiliano é tão íntima que Montaigne guia seu discurso utilizando-se dos mesmos recursos que seu interlocutor, porém, para posteriormente dele discordar. Quintiliano apresenta metáforas de batalha para caracterizar a postura desejável a um orador a fim de passar o seguinte sentido: “[...] se não se tem uma eloquência em trajes de batalha e pronto para qualquer eventualidade, cobrirá, por assim dizer, tesouros trancados à chaves” (Inst. Or., X, I, II).

Então, Montaigne entra para o combate! Nosso filósofo não se importa em se confrontar com tamanha autoridade, tal como o seria Quintiliano, e faz jus à não muito delicada citação que empresta de Lucano (39-65), “a expressão é boa se ferir”. Em tom “veemente e brusco”, nosso autor balança a força dos primeiros mandamentos das Instituições. Como visto, ele termina com toda e qualquer diferença relativa à expressão, pois considera que tanto a falada quanto a escrita podem evocar simpatias pessoais e, principalmente, o acesso à coisa, dependendo apenas da maneira como elas são transmitidas. E questiona o princípio atribuído a Quintiliano, conforme diz no “Da educação das crianças”, sobre as palavras serem acompanhantes, ao invés de determinantes:


[A] Há quem seja tão tolo que se desvie de seu caminho um quarto de légua para correr atrás de um dito espirituoso; [C] Ou que, em vez de escolher as palavras para as coisas, vão procurar fora do tema coisas a que as palavras possam convir (Quintiliano, Inst. Or., VII, III). [...] De muito melhor grado torço uma boa frase para costurá-la em mim do que torço meu fio para ir buscá-la. [A] Ao contrário, cabe às palavras seguir e servir [...] (I, XXVI, p. 256).

É ilusão achar que nesse momento Montaigne estaria concordando com Quintiliano, embora o contexto faça parecer que haja concordância entre suas ideias. Montaigne nos conta na sequência seu procedimento, como mencionamos anteriormente, o aspecto intelectual das palavras servirá como uma escada para que as coisas adentrem na imaginação através de suas próprias imagens: “quero que as coisas predominem, e que invadam de tal forma a imaginação de quem escuta que ele não tenha a menor lembrança das palavras” (I, XXVI, p. 256). Fazendo jus aos seus dizeres, ele mesmo torce o sentido do pensamento de Quintiliano, conformando-o ao seu próprio contexto.

Mesmo que ambos concordem que as palavras devam se ajustar às coisas, num sentido geral, defendem o justo contrário. Montaigne não concorda com o peso que Quintiliano confere às palavras. Distintamente, pretende que seu procedimento não se atravanque pelo rigor sistemático, pois compreende que a linguagem e seus sentidos devem acompanhar o ritmo do espírito do autor e não o oposto.

A importância que Quintiliano confere às palavras é imensa. Portanto, recomenda examiná-las, realizando um estudo sobre seu mecanismo para que, quando o orador for utilizá-las, o faça com todo o domínio possível: “conhecer essas palavras, e conhecê-las não apenas em seu sentido, mas sua morfologia e valor métrico, para que elas concordem, onde quer que as coloquemos, não podemos fazer isso a não ser pelo ler e escutar, pois é através do ouvido que percebemos toda a linguagem” (Inst. Or., X, I, X). Sublinha a necessidade dos exercícios para a conquista da eloquência: “porque jamais a eloquência será sólida e robusta, se os numerosos exercícios escritos não lhe comunicarem o vigor, e, sem os modelos oferecidos pela leitura, esse trabalho, privado de piloto, ficará à deriva” (Inst. Or., X, I, II).

Embora ambos apreciem a expressão “musculosa” ou “robusta”, Quintiliano opta pela “sólida”, enquanto Montaigne, pela “suculenta”. A solidez de Quintiliano é traduzida nos Ensaios não tanto por “consistente” quanto por “rígida”. Montaigne prefere o discurso macio e suave.

Então não devemos compreender que Montaigne entrou para a batalha com Quintiliano considerando-o um inimigo a ser destruído. Muito pelo contrário, aquele autor encontra-se em viva conversação e, mesmo que ele entre no conflito, assim o faz, justamente, para, num resultado final, despir-se das armaduras de guerra, ou seja, “[B] de bom grado venho imitando esse descaso que se vê em nossa juventude, no porte de suas vestimentas [...] Por isso fazemos bem em desviarmo-nos para o natural e despretensioso” (I, XXVI, p. 257).

Ele reverte a crítica de Quintiliano sobre a necessidade de examinar meticulosamente o sentido e estrutura das palavras, e fazer diversos exercícios a fim de acessar as coisas. Contrariamente, salienta a necessidade de não desenvolver técnicas retóricas em que haja essa separação sistemática, demasiado artificial, entre os elementos discursivos e as próprias coisas, que existem sempre em unidade: “[A] não gosto de texturas em que as junções e as costuras apareçam, assim como em um belo corpo não devemos contar os ossos e as veias” (I, XXVI, p. 257).

Tanto a filosofia quanto a Arte Retórica podem ser estudadas juntas pelo exemplo dos autores capazes de conciliá-las. Montaigne faz de sua obra um exemplo disso. Enfim, ele conclui enfaticamente que “a eloquência injuria as coisas quando nos desvia para si mesma” (I, XXVI, p. 257). Ou seja, a eloquência que possibilita o acesso às coisas pela expressão, ao voltar-se ao exame de si mesma, descaracteriza seu aspecto prático, descaracterizando, desse modo, a si própria. Mas, quando usada com flexibilidade, sem ocupar-se em dominar os movimentos da imaginação, ela contribui para a própria criação estilística.

Assim, antes de mostrar-se contraditório, ao vestir por um momento os trajes de batalha, discutindo pontualmente sobre os problemas filosóficos de sua época, Montaigne assim o faz a fim de revelar uma nova maneira de dar tratamento tanto à Arte Retórica, quanto à filosofia. E essa unidade é observável no resultado final de sua obra, ou seja, no texto como ele se apresenta ao leitor: suas discussões envolvem distintos assuntos já colocados em prática. Sua filosofia moral, seu eu, suas opiniões sobre os mais diversos assuntos, são tratadas todas ao mesmo tempo.

O uso dos preceitos retóricos, portanto, não tem por objetivo demonstrar as habilidades estilísticas do autor, mas é de grande auxílio para que ele possa inserir-se no contexto discursivo da época, desfazer-se do que não lhe serve mais, para que, posteriormente, num resultado final, ofereça não apenas a leveza necessária ao assunto, mas também crie suas próprias regras em relação à eloquência.

Montaigne não concorda com o excesso de detalhamento sobre os assuntos, com a meticulosidade do estudo que Quintiliano estipula ao orador, enfim, com esse sistema de instrução separatista, que apenas descaracteriza seus elementos no que tange à sua essência. Sua discordância não se trata apenas de uma opinião, mas refere-se ao modo como compreende a operação da mente em relação ao processo de apreensão das palavras. Como considera as palavras não apenas como fornecedoras de sentidos intelectuais, mas também como substancialmente dotadas de significados imagéticos, aponta para a falácia concernente ao exame sistemático voltado para elas mesmas, cindindo-as em suas distintas acepções. Instaura, portanto, um modelo de escrita unificado e que, naturalmente, elevará as palavras às percepções imagéticas. Ao invés de criar um tratado sobre como operam as faculdades mentais, mostra o exemplo de como elas funcionam em sua própria obra, ou melhor, na prática.

As considerações de Montaigne no ensaio “Sobre versos de Virgílio” revelam, enfim, o exemplo do sentido de eloquência baseado tanto na razão quanto na imaginação: “[B] quando vejo aquelas belas formas de expressar-se, tão vivas, tão profundas, não digo que isso é falar bem; digo que é pensar bem. É a galhardia (elegância) da imaginação que eleva e infla as palavras. [C] É o pensamento que faz a eloquência (Quintiliano, X, VII, 15)” (III, V, p. 132). Montaigne recoloca o sentido de eloquência proposto por Quintiliano. Ele concorda que o pensamento se vincula à expressão. Porém, ao contrário do que poderíamos concluir, o intelecto é apenas um aspecto e não a principal característica da eloquência. Pois, devemos considerar que os efeitos sensíveis e graciosos da eloquência, que antes advinham da sonoridade das palavras, como disse Quintiliano, agora são transmitidos de outra forma.

Pois, Montaigne coloca a linguagem escrita, as palavras, e o estilo inscrito nela como ferramentas para a transmissão de seus objetos, ou “coisas”, cujo acesso ocorrerá na imaginação, e não apenas no intelecto. Em analogia à sonoridade, a ênfase da imaginação auxiliará no acesso às coisas. Mas, agora, esse aspecto sensível da eloquência não dependerá mais de algo distinto das palavras, mas da própria imagem que ela mesma proporciona. Dada a unidade entre os elementos discursivos, palavras, intelecto, imaginação e imagens, não faria mais sentido pensar na filosofia e na Arte Retórica como operando distintamente uma da outra.

Em termos teóricos, não há dúvida de que Montaigne em alguns momentos estaria de acordo com alguns andamentos de Quintiliano. Por exemplo, Montaigne compreende que o papel do preceptor seria o mesmo do orador, como diz Quintiliano: “o professor ensina, o orador mostra” (Inst. Or., X, I, 15). E justamente por concordar com essa maneira de instrução da oratória, Montaigne recoloca o sentido das Instituições, enfatizando o exemplo da prática, como mais importante que as prescrições puramente teóricas:


[A] quem algum dia perguntou a seu discípulo o que lhe parece [B] da retórica e da gramática [A], desta ou daquela frase de Cícero? Pespegam-nas (afirmam-nas falsamente) em nossa memória todas emplumadas, como oráculos em que as letras e as sílabas participam da substância da coisa. [C] Saber de cor não é saber: é conservar o que foi entregue à guarda da memória. Do que sabemos efetivamente, dispomos sem olhar para o modelo, sem voltar nossos olhos para o livro. Desagradável competência, a competência puramente livresca! Espero que ela sirva de ornamento, não de fundamento, segundo o parecer de Platão, que afirma que a firmeza, a honradez, a sinceridade são a verdadeira filosofia, enquanto as outras ciências e que visam alhures são apenas ouropéis. (I, XXVI, p. 228).

A verdadeira apreensão dos objetos não ocorrerá necessariamente pelo contato com as teorias, mas pelo processo íntimo e particular do sujeito. O preceptor de Montaigne tem o mesmo caráter do orador: ele não ensinará seu discípulo, mas sugerirá o caminho a ser percorrido para que ele mesmo apreenda as coisas a partir de si mesmo. Assim como o papel do preceptor, a teoria pode perfeitamente auxiliar no processo, porém, o que contará, de fato, não é aquilo que a pessoa guardará na memória, mas aquilo que ela será capaz de aplicar em sua vida, em suas ações. Nesse sentido, a memória pode ser compreendida apenas como a ideia impressa apenas no intelecto, sem a apreensão íntima e real do objeto. E a maneira de transmitir o conhecimento revela-se primordial.

Conforme Montaigne, a competência livresca pode sim colaborar para o conhecimento, não deve, porém, ser compreendida enquanto seu fundamento. Não devemos entender essa crítica, neste caso em específico, como algo que se direciona aos manuais de arte retórica, por exemplo, pois, em tal caso, Montaigne entende que eles podem auxiliar o desenvolvimento do conhecimento. A crítica volta-se pontualmente para a especulação filosófica ou discussões pontuais sobre temas que antes deveriam ser coadjuvantes e não protagonistas na cena da razão ou da experiência.

Assim como Montaigne considera um risco para a instrução os adornos serem utilizados como princípios, Quintiliano se preocupa do mesmo modo com a sedução da filosofia que tem seu estilo corrompido. Este defende a importância da filosofia porque ela se ocupa da moral; por outro lado, considera pernicioso o fato dela ser capaz de seduzir, com suas habilidades inatas, pela exaltação de seus defeitos, que seriam, justamente, a falta de arte (Cf. Inst. Or., I, X, 129-130).

O embate entre Montaigne e Quintiliano não se trata de um conflito tão grande como poderia parecer. Ao procurar elevar a Arte Retórica, este sempre se colocou moderadamente em relação à filosofia, jamais a desconsiderando completamente quanto a sua importância. Aquele, por sua vez, tem o compromisso de não apenas elevar a filosofia, mas conciliá-la à Arte Retórica. Além de querer mostrar a significância da filosofia, ele pretende mostrar a importância da Arte para o discurso filosófico, cuja forma ocorre predominantemente pela escrita. A compatibilidade entre ambas não coloca a filosofia como sujeita às regras da Arte. Ao contrário, ao enfatizar a liberdade da filosofia, promove a importância da Arte para a criação do discurso filosófico.

O conflito, no entanto, já existiu de maneira muito bem consolidada. Sabe-se que na história da Arte Retórica sempre houve disputa sobre sua aplicação, desde a época antiga ou clássica. Lá nas Instituições Oratórias, Quintiliano revela esse grande debate sobre o sentido da retórica, e mostra o posicionamento de incontáveis doutos e poetas, entre eles Platão (428/427-348/347 a.C.), Aristóteles (384-322 a.C.), Cícero e Isócrates (436-338/336 a.C.).

Nos séculos XV e XVI as correntes aristotélica e platônica concentraram, através de seus discípulos, a disputa entre as teorias de seus respectivos filósofos.4 Conforme Emanuele (?) e Plebe (1927-2017), o debate em questão consiste na relação entre a retórica e a filosofia. É possível sintetizá-la por meio desses dois pontos de vista: por um lado, a retórica compreendida como mero instrumento para a poética, incompatível com a filosofia; por outro lado, como unificada à filosofia.

Em Górgias,5 Platão considerou, pela voz de Sócrates, que a retórica visaria apenas o resultado, enquanto a filosofia visava o verdadeiro: “daí as comparações que se tornam célebres: a retórica está para a filosofia assim como […] a maquiagem e as vestimentas estão para a ginástica. Ou seja, visando apenas o resultado (o prazer físico ou o belo aspecto), ela visa à fachada, não à substância” (EMANUELE, PLEBE, 1992, p. 14-15). Já Aristóteles oferece uma roupagem diferente à retórica, propondo a possibilidade de aproximá-la à filosofia: “por isso, no trecho supracitado do primeiro livro da Retórica, Aristóteles caracteriza o eikós retórico como ‘universal com relação à...’ O que é, precisamente, um universal perspectivo […] Foi precisamente com o estilo retórico que a filosofia aprendeu algumas de suas estratégias polêmicas, como as descritas por Aristóteles nas Confutações sofísticas” (EMANUELE, PLEBE, 1992, p. 30 e 31).

Em Montaigne, o debate sobre a relação entre filosofia e retórica muda um pouco de figura. Enquanto o autor apresenta suas opiniões a favor de Sócrates, o que poderia significar o posicionamento contra a Arte Retórica, ao mesmo tempo, faz uso desenfreado das regras da Arte. Dissolve-se o paradoxo na medida em que se compreende que o filósofo recoloca a questão direcionando-se, antes, aos que se colocam como sectários de correntes filosóficas, e não como um problema da natureza da retórica ou da filosofia. E, assim, institui-se um sentido próprio de atitude filosófica e uso específico da retórica compatíveis entre si.

No ensaio “Da educação das crianças”, mesmo que Montaigne cite muito Cícero, Sêneca (65 a.C.-4 a.C.), Horácio, etc., a disputa aparece delimitada pelos protagonistas das duas correntes filosóficas já mencionadas, e que se estendeu aos seus contemporâneos. Logo no início do ensaio, o autor lembra de Girolamo Borro (1512-1592), professor de filosofia humanista na Universidade de Roma, que ele conheceu durante sua viagem à Itália: “[B] em Pisa vi na intimidade de um homem de bem mas tão aristotélico que o mais geral de seus dogmas é: que a pedra de toque e a regra de todas as ideias sólidas de toda verdade é a conformidade com a doutrina de Aristóteles” (I, XXVI, p. 226). Observa-se que Montaigne não responsabiliza Aristóteles pelo posicionamento de seu sectário, mas seu foco de crítica é o próprio partidarismo.

Em relação à doutrina platônica, Montaigne explicita o mesmo juízo, porém, pelo outro extremo:

[C] Como apenas aos grandes poetas convém usar as licenças das artes, assim também só para as almas grandes e ilustres é admissível privilegiar-se acima do costume. Se a um Sócrates e a um Aristipo aconteceu de se afastarem em alguma coisa do costume e do uso, ele não deve acreditar-se autorizado a fazer o mesmo: neles méritos eminentes e divinos legitimavam essa licença (Cícero, De off., I, XLI”). (I, XXVI, p. 231).


Por mais paradoxal que possa parecer, Montaigne sugere que se deve manter certo distanciamento das recomendações de Platão que visam a liberdade para que se evite, igualmente, o sectarismo. Montaigne recomenda a quem quer que seja que não compreenda a filosofia que apresenta a figura de Sócrates, no caso, a de Platão, como um modelo a ser seguido, embora a entenda como um modelo admirável. Seja em relação ao modo de vida socrático acima dos costumes (ideal em termos de liberdade), seja em relação à abdicação das regras poéticas (ou retóricas), como ele diz, é bom que se ouse a transgressão apenas por almas ilustres e que tenham porte suficiente para o enfrentamento. Os elogios à liberdade de Sócrates são enormes e é a ela que se deve estar atento: “[A] ele, que tinha o pensamento mais aberto e mais amplo, abarcava o mundo como sua cidade, projetava seus conhecimentos, sua sociedade e suas feições para todo o gênero humano, e não como nós, que olhamos apenas à nossa roda” (I, XXVI, p. 235).

Mesmo que uma corrente filosófica que sugira a liberdade seja um ótimo exemplo, mesmo assim, ela não deve ser simplesmente seguida enquanto um modelo doutrinário de conduta prática e, principalmente, intelectual, não ao menos sem verdadeiras internalizações. Ora, para que a liberdade realmente se realize, é necessário que antes ela se constitua no íntimo daquele que a almeja.

Ao apresentar esses dois extremos, a saber, a corrente aristotélica defendida como um ponto de vista único, pelo exemplo do sectário Girolamo Borro, assim como a doutrina platônica que, à sua maneira, não deixa de atrair seus sectários, através da imagem socrática, Montaigne posiciona-se em relação ao debate sugerindo que ambas as correntes filosóficas devem dissolver-se enquanto doutrina, ou seja, devem ser apreciadas e conformadas intimamente ao espírito do sujeito. E, a partir da verdadeira apropriação, uma postura oposta ao sectarismo pode revelar-se:

[B] Nossa alma só se move por crédito, ligada e constrangida ao apetite das fantasias de outros, serva e cativa sob a autoridade do ensinamentos destes […] nosso vigor e nossa liberdade estão extintos […] [A] Que ele (o aprendiz) faça passar tudo pelo crivo e nada aloje em sua cabeça por simples autoridade e confiança; que os princípios de Aristóteles não lhe sejam princípios, não mais que os dos estoicos e epicuristas […] Pois se ele abraçar as opiniões de Xenofonte e de Platão por seu próprio julgamento, não serão mais as opiniões deles, serão as suas. [C] Quem segue um outro nada segue. Nada encontra, e até mesmo nada procura. (I, XXVI, p. 226).


Reavivar a alma com o “vigor” e a “liberdade”, retirando-a do lugar de não autonomia no qual ela se encontra, através da assimilação dos conteúdos filosóficos com propriedade, é a atitude filosófica proposta por Montaigne, portanto. Assim, a crítica sobre a relação filosofia versus Arte Retórica adota esse outro contorno amplo, e estende-se antes aos teóricos que participam do debate do que à natureza dos conceitos inerentes às doutrinas propriamente ditas.

Tanto faz se Aristóteles e Platão consideraram a retórica em relação à filosofia desta ou daquela forma, esse debate apenas tem força e se perpetua, exatamente da mesma forma, na medida em que se aceitam indiscriminadamente suas opiniões, sem o exercício de reflexão própria, com verdadeira apropriação. Ora, não deveria ser decorrência natural de uma discussão ela adotar alguns contornos distintos com a passagem do tempo? A resposta à essa questão é negativa quando se tem a intenção de apenas reproduzir aquilo que foi dito. Como enfatiza Montaigne, “[A] as abelhas sugam das flores aqui e ali, mas depois fazem o mel, que é todo delas: já não é tomilho nem manjerona. Assim também as peças emprestadas de outrem ele irá transformar e misturar, para construir uma obra toda sua: ou seja, seu julgamento” (I, XXVI, p. 227).

O conhecimento elaborado dessa forma, como vimos, não se resume ao mero parafrasear daquilo que é adquirido, mas se relaciona à totalidade do próprio sujeito que o produz. Tanto é assim que ele valora o trabalho do filólogo como não salutar,6 enquanto a filosofia, por sua vez, deveria ser um exercício coerente à vida, ao corpo e à alma, um “ensinamento para viver”. E, por conseguinte, deve ser transmitida em concordância com o que ela visa: “eliminai todas essas sutilezas espinhosas da dialética, com que nossa vida não pode melhorar, tomai as simples reflexões da filosofia, sabei escolhê-las e abordá-las corretamente: são mais fáceis de compreender que um conto de Boccaccio” (I, XXVI, p. 244). Como diz Quintiliano, corroborando essa ideia: “tudo é vida e movimento” (X, I, 16). E, a partir dessa concepção mais ampla, finaliza-se uma batalha, colocando Montaigne em concordância com várias ideias quintilianistas.7

A solução apresentada por Montaigne em relação ao debate renascentista tem base em algumas passagens das Instituições. Quintiliano conta-nos a história acerca do debate em questão, apresentando as inúmeras considerações feitas por teóricos clássicos sobre a retórica: “outras opiniões, de diversas maneiras, foram apresentadas. Assim, alguns julgam que a retórica versa sobre todos os assuntos; outros somente sobre os temas civis; qual dessas colocações seja a mais apropriada direi na ocasião mais adequada a essa questão. Aristóteles parece ter incluído no domínio do orador, ao afirmar que o essencial está em ver o que se possa ser persuasível em qualquer assunto” (Inst. Or., I, II, XV).

Enquanto para Aristóteles a retórica é considerada positivamente como arte de persuadir, ao ser aplicada na filosofia, é justamente em relação a este ponto que Sócrates a condena. No diálogo, conforme apresenta Quintiliano: “Górgias, em Platão, diz ser mestre em convencer nos tribunais e em outras assembleias e em tratar tanto dos justos como dos injustos; contudo, Sócrates reconheceu-lhe a faculdade de convencer, não a de ensinar” (Inst. Or., I, II, XV).

Vimos que Montaigne concorda com essa opinião de Sócrates sobre o caráter formador da filosofia. Porém, isso não descarta a possibilidade de ele ser a favor da retórica e, diferentemente de Platão, não a considerar algo incompatível à filosofia, como visto. A definição oferecida por Quintiliano parece agradar a Montaigne. Iniciemos pelo que diz Quintiliano em suas Instituições:


Esses julgaram que a função da oratória reside como que em persuadir ou falando de modo adequado para persuadir. De fato, isso pode ser alcançado por aquele também que não seja um homem bom. Portanto, a definição mais comum é que a retórica seja o grande poder de convencer. O que chamo de poder, muitos dizem força, alguns capacidade; e para que não haja nenhuma ambiguidade, digo poder na acepção de dýnamis. Essa conceituação é originária de Isócrates. (Inst. Or., I, II, XV – grifo nosso).

A partir das palavras de Quintiliano, duas coisas devem ser levadas em consideração: o sentido de dýnamis e o fato dessa conceituação ser originária de Isócrates. Cícero procurou vincular a filosofia à arte retórica, chamando-a de a “arte do inventar”. Porém, muito antes, Isócrates procurou unificar ambas as disciplinas: “foi precisamente esse o ideal do maior retórico grego, Isócrates, que identificava a retórica com o pensamento, denominando-a philosophia” (EMANUELE, PLEBE, 1992, p. 02). Tendo em vista essas considerações sobre o retórico grego, chama-nos a atenção, diante de tudo o que vimos até agora, a seguinte passagem do “Da educação das crianças”:


Isócrates o orador, ao ser solicitado em um festim a falar de sua arte, todos acham que ele teve razão de responder: “Agora não é hora para o que sei fazer; e, aquilo para que agora é hora, não o sei fazer”. Pois apresentar arengas ou discussões de retórica a um grupo reunido para rir e gozar da boa mesa seria uma mistura de péssimo acordo. E o mesmo se poderia dizer de todas as outras ciências. Mas, quanto à filosofia, na parte em que trata do homem e de seus deveres e ofícios, foi opinião comum de todos os sábios que, pela doçura de seu trato, ela não devia ser recusada nem aos festins nem aos jogos. (I, XXVI, p. 246).

Não temos como saber exatamente o que Montaigne pretendeu ao contar a história desse modo. Mas como ele teve contato com a obra de Quintiliano, possivelmente sabia que Isócrates fora o fundador do sentido de retórica com o qual concordará. Além disso a obra Orationes, de Isócrates, encontrava-se em sua estante, e Montaigne o cita algumas vezes no desenrolar de seus escritos – o que significa que teve contato com a obra em questão. Não sabemos, também, se não teria sido o próprio Isócrates quem contou a sua própria história desse modo.

A história acima demonstra que discussões voltadas às técnicas da retórica não garantem uma boa conversa. A retórica, porém, quando já aplicada nos assuntos ligados à filosofia e/ou à vida prática, confere tratamento agradável. A ligação entre ambas deve sempre ser íntima, e realizada de modo tal que a retórica se inclua na própria elaboração dos assuntos filosóficos.

Passemos, então, para o segundo ponto: em relação ao significado original de dýnamis, esse termo significa “faculdade de poder”, podendo adotar em sentido filosófico a conotação de “poder”, “capacidade” para ser, ou “força física ou moral”. Pelo viés latino, pode ser compreendido como “força”, “essência”, “propriedade”, “valor” (Cf. BASSETO, In: Instituições Oratórias, p. 395, nota 36). Montaigne usa o termo “força” em dois momentos significativos do ensaio “Da educação das crianças”. Primeiro, ao revelar seu método de escrita e, depois, ao revelar a essência de sua filosofia. Ambas as menções se direcionam suavemente à Arte Retórica.

Em relação à sua maneira de compor, ele diz claramente que está em posição de crítica acerca dos argumentos filosóficos, mas que não deixa de criticar a si mesmo, comparando aos seus, os argumentos alheios. E assim o faz com o propósito de “igualar-se aos seus plágios” (Cf. I, XXVI, p. 220), mesmo que indiretamente, para elevar a substância de sua obra. Isso não quer dizer, nem mesmo Montaigne diria isso sobre si mesmo – muito embora inúmeras vezes recorra ao lugar-comum da modéstia –, que se trata meramente de colocar-se abaixo de seus interlocutores ou, então, de um capricho ou de um recurso dialético, sem imaginação. Pelo contrário: “isso é graças tanto à minha aplicação como à minha imaginação e minha força” (I, XXVI, p. 220). Ou seja, ele apenas pode se utilizar dos recursos retóricos na medida em que os assimila em seu espírito, o que envolve sua imaginação e sua força.

A seguinte interpretação contemporânea, fundamentada em textos antigos, esclarece a importância da imaginação para a real assimilação dos pensamentos, pela ideia de eikonologuía, que significa o falar por imagens: “a tarefa retórica da eikonologuía é a de transferir para o terreno da uma imediação visível um conceito que não se consegue alcançar no plano lógico da verdade e da clareza conceitual, ou que, então, no plano lógico resultaria demasiado frágil e pouco eficaz” (EMANUELE, PLEBE, 1992, p. 58 – grifo nosso).

Em essência, Montaigne identifica sua maneira ao modo como faz uso da imaginação e da força. Esta que para Quintiliano traduz-se por dýnamis, consiste numa espécie de força interna ao sujeito e que se traduz em sua obra. Ela vincula-se ao pensamento e à imaginação: “[C] a força e os nervos não se emprestam; emprestam-se adornos e mantos” (I, XXVI, p. 258). Ou seja, mesmo que se faça uso da imitação, como veremos ser o caso de Montaigne, há um sentido do qual a construção da boa obra não escapa, que seria a real apropriação do assunto. De nada adianta, como diz Montaigne, decorar todas as regras da arte sem fazer nascer em si mesmo a força que conduzirá à criação e, do mesmo modo, às ações. A partir desse sentido de força, a filosofia e a retórica unificam-se. Os “mantos e adornos” que se emprestam são colocados como recursos retóricos dos quais os escritores podem apropriar-se para enfeitar seus discursos, porém, fazer o uso dos preceitos, cujos ensinamentos estão além da mera superfície, exige força para o pensamento e para a imaginação.

Neste sentido, a retórica para Montaigne adota contorno filosófico, na medida em que ela se liga tanto ao pensamento quanto à imaginação. E a própria prática de Montaigne guia-se por algo semelhante à dýnamis que define a Arte em questão. Assim, não apenas mostra o sentido filosófico da retórica, como enfatiza a imaginação como a responsável pelo discurso não apenas agradável, mas eficaz.

No ensaio “Sobre versos de Virgílio” Montaigne discorre inicialmente sobre a eloquência dos poetas Virgílio (70 a.C.-19 a.C.) e Lucrécio (99 a.C.-55 a.C.), e considera o pensamento como aquilo que promove o bom discurso, enquanto a imaginação amplia gentilmente o sentido das palavras. Entende-se que, mesmo que o pensamento e a imaginação operem juntos no que tange à vivacidade das formas, a expressão seria determinada pelo pensamento. Em seguida, pretende que em sua pintura, ou melhor, em seu autorretrato, os objetos sejam impressos na alma com vivacidade: “[B] nossa gente (seus contemporâneos franceses) chama de estilo o julgamento; e de belas palavras as concepções ricas. Essa pintura é conduzida não tanto pela destreza da mão como por terem o objeto mais vivamente impresso na alma” (III, V, p. 132 – grifos nossos). Montaigne sustenta a ideia de que seu estilo se compõe essencialmente pela eloquência e, por conseguinte, pelo pensamento. Porém, de fato, será a ligação com a imaginação a responsável pela vivacidade do pensamento.

E, assim, termina dizendo que suas palavras significam mais do que dizem, que seriam as próprias coisas diretamente impressas na alma: “Plutarco diz que compreendeu a língua latina por meio das coisas; aqui também: o sentido ilumina e produz as palavras; não mais de vento, e sim de carne e osso. [C] Elas significam mais do que dizem” (III, V, p. 132). Portanto, conclui-se justamente o esperado: Montaigne alega promover escritos nos quais a imaginação, cumprindo sua função, seria a faculdade que devolve as imagens das coisas para as palavras, causando suas vivas impressões na alma. O discurso forma-se pelas palavras, cujo sentido ou forma será iluminado por seu aspecto imagético. Ao contrário de alguns de seus contemporâneos, no entanto, compreende que o estilo ocorre pela conciliação desses dois elementos: retórica e filosofia, respectivamente, intelecto e imaginação. E dado que as coisas, após passarem pelo pensamento, onde são transliteradas, voltam a ter formas imagéticas, são impressas com mais força na alma. Assim sendo, o autor dos Ensaios não apenas oferece um novo estilo compatível à sua compreensão filosófica acerca das operações da alma, como também, em último grau, oferece sua própria imagem, que emana de seu autorretrato.




1 “Arrastados pelo entusiasmo por tudo o que era antigo, e pelo propósito consciente de imitar e fazer reviver o antigo saber e a literatura antiga, os estudiosos do Renascimento tiveram por tal literatura um interesse muito mais amplo do que qualquer outro estudioso medieval ou moderno”. Kristeller considera o período renascentista relativo à Europa ocidental como aquele que vai de 1300 a 1600, aproximadamente (Cf. KRISTELLER, 1954, p. 15).

2 Cícero considerava a retórica como “tópica, ou a arte de inventar”, (EMANUELE, PLEBE, 1992, p. 02).

3 Todas a citações dos Ensaios, aqui feitas, seguem a seguinte ordem “(Livro, Capítulo, Página)”, e a paginação refere-se à encontrada na edição brasileira: MONTAIGNE, Michel de. Os Ensaios. Tradução de Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.


4 Cf. Kristeller, 1954, capítulos 2 e 3.

5 “Górgias considerava que a retórica era um aspecto particular do raciocínio filosófico, por ele denominado loguismós. Assim, no prefácio do Elogio de Helena exprime sua proposta da seguinte forma: ‘deveria ser próprio de um mesmo homem dizer o que se deve de modo correto, ou confutar… Eu fornecerei, antes de mais nada, com a palavra, certo tipo de loguismós’ (Gorg., Hle., 2). Mas o Górgias de Platão sancionou, pela primeira vez na história do pensamento, o divórcio entre filosofia e retórica. Apesar de, mais tarde, Aristóteles ter jogado muita água no fogo dessa polêmica cisão, esse divórcio perdurou e continuou a atuar em profundidade” (EMANUELE, PLEBE, 1992, p. 17).

6 Conforme Kristeller (1954, p. 100), “os humanistas foram filólogos clássicos de grande valor. No campo dos estudos latinos, redescobriram muitos textos importantes pouco conhecidos durante a Idade Média. Também os autores latinos, já conhecidos na Idade Média, foram objeto de maior difusão e conhecimento graças aos humanistas, por meio de cópias manuscritas e edições impressas, interpretações gramaticais, comentários e aplicação assídua da crítica histórica e filológica. Mais notável ainda foi o impulso dado pelos humanistas aos estudos gregos”.

7 “[A] Demétrio o Gramático, encontrando no templo de Delfos um bando de filósofos sentados juntos, disse-lhes: ‘ou me engano ou, vendo vossa atitude tão tranquila e tão alegre, não estais em grande discussão entre vós.’ Ao que um deles, Heráclio de Mégara, respondeu: ‘os que precisam franzir a fronte ao conversarem sobre sua ciência são os que pesquisam se o futuro do verbo βαλλό (eu lanço) tem duplo λ, ou que procuram a derivação dos comparativos χεϊρου, (pior) e βελτϊον (melhor) e dos superlativos χεϊριστον (o pior, péssimo) e βελτιστου (o melhor). Mas, quanto às reflexões da filosofia, elas costumam alegrar e divertir os que as abordam, e não os amuar e contristar’ […] A alma que aloja a filosofia deve, por sua saúde, tornar sadio também o corpo” (I, XXVI, p. 241).

 

REFERÊNCIAS



MONTAIGNE, Michel de. Essais. Texte établi et annoté par Albert Thibaudet, Bibliothèque NRF de la Pléaide, Éditions Gallimard, 1950.



MONTAIGNE, Michel de. Os Ensaios. Tradução de Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.



MONTAIGNE, Michel de. Les Essais. Paris; Éditions Villey-Saulnier, 2004.


QUINTILIANO, M. Fábio. Instituições Oratórias. Tradução de Jerônimo Soares Barbosa. São Paulo: Edições Cultura, 1994.



QUINTILIANO, M. Fábio. Instituição Oratória/ TOMO I. Tradução, apresentação e notas de Bruno Fregne Basseto. Campinas: Editora da Unicamp, 2015.



QUINTILIANO, M. Fábio. Instituição Oratória/ TOMO II. Tradução, apresentação e notas de Bruno Fregne Basseto. Campinas: Editora da Unicamp, 2015.



QUINTILIEN. Institution Oratoire. Livres X et XI, Texte établi et traduit par Jean Cousin. Paris: Les Belles Lettres, 2016.


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EMANUELE, Pietro; PLEBE, Armando. Manual de Retórica. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1992.


KRISTELLER, Paul. Tradição clássica e Pensamento do Renascimento. Tradução de Arthur Morão. Lisboa: Edições 70, 1954.



MORÇAY, Raoul; MÜLLER, Armand. La Renaissance. Paris: Del DUCA Éditeur, 1967.







 

 

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