Da República dos turcos. E, quando a ocasião se oferecer, dos costumes e leis de todos os muhamedistas1, de forma sucinta.
Guillaume Postel
Tradução: Maria Célia Veiga França
Possui graduação em filosofia pela UFMG (2000), mestrado em filosofia sobre Rousseau pela UFMG (2003), doutorado em filosofia sobre Montaigne pela Université de Caen (2008) e pós-doutorado em filosofia sobre a Conquista da América pela UFMG (2011).
1Decidimos manter em português as diferentes fórmulas empregadas por Postel para se referir aos muçulmanos, já que, ao longo do texto, ele passa de uma expressão à outra, apesar de mencionar que eles preferem ser chamados de muçulmanos. Traduzimos as palavras muçulmano e turco para seus equivalentes em português, não utilizamos a palavra maometano, que não aparece no texto apesar de também existir em francês no período. Fizemos a tradução literal e mais próxima possível para as palavras que ele mais utiliza para se referir aos muçulmanos, que são “muhamedistas” e “muhamédicos”, na medida em que ele parece desejar utilizar palavras que se aproximem mais da fórmula turca ou árabe do profeta, Muhamed. E talvez por isto não tenha utilizado a fórmula mahométan - maometano utilizada por outros autores renascentistas.
Nota Introdutória
Guillaume Postel nasceu no norte da França, em 1510. Em 1535, foi escolhido para acompanhar Jean de la Forest, embaixador de Francisco I, à Constantinopla. Esta foi sua primeira viagem ao oriente, durante a qual passou pela Tunísia, Turquia, Síria e Egito, aperfeiçoando o conhecimento da língua árabe e começando o estudo do turco. Acreditava na existência de um substrato cristão tanto no islã como nas outras religiões orientais. Se tornou orientalista, filólogo e foi professor no College de France. Escreveu algumas obras sobre o oriente médio e sobre o islã, dentre as quais Da República dos turcos, da qual traduzimos aqui um trecho. Morreu em Paris, em 1581.
Sobre a tradução
Apesar da relevância desta obra de Postel para compreender a relação entre ocidente e oriente médio no século XVI, assim como o olhar europeu sobre os muçulmanos, não encontramos traduções para outras línguas nem no período renascentista, nem no período contemporâneo. Assim como não foi transcrita para o francês moderno. Tampouco tivemos acesso a textos de comentadores de Guillaume de Postel que, infelizmente, não parece ter tido a atenção que sua obra merece. A impossibilidade de cotejá-lo com outras traduções, acrescentada ao estado deteriorado do texto, datado de 1560, dificultou a tradução e ocasionou por vezes a necessidade de uma tradução demasiado literal. Informamos a paginação original da edição de Enguibert de Marnef, de 1559, no corpo do texto.
A Tradução
[1] Apesar de já ter visto alguns abordarem esse assunto, me pareceria supérfluo se ao escrever, não acrescentasse nada, e me limitasse imitá-los. Todos os que escreveram, na maior parte das vezes se referindo a livros desconhecidos ou desaprovados pelos adversários, falaram somente das coisas odiosas e dos vícios, sem nenhuma memória de virtude. O que não acontece de forma universal com nenhum povo, por mais bárbaro que seja. O douto, ao escrever sobre o inimigo, além dos vícios, deve descrever pelo menos alguma virtude ou ilustração dela. Isto incitaria os mortais a tirar algum fruto da imitação. Aos já virtuosos, incentivaria perseverar na virtude, aprovada até mesmo pelos maus. Aos viciosos, daria ao menos vontade de segui-los na virtude. Para evitar a repreensão, depois de uma boa inquisição, superarei os outros e não falarei somente de vícios, mas de vícios e de virtudes. Meu julgamento deve exigir todas as boas fontes de tal matéria, por duas razões. A primeira, para que os adversários conheçam nossa equidade [2] ao escrever sobre eles e saibam que não tomamos as coisas como juízes comprometidos, e sim a verdade, sem nada dissimular. Estando seguros conosco (pois duas partes que suspeitam uma da outra, sem acesso a uma verdade conhecida, nunca fazem um bom acordo), graças à nossa integridade, julgar-nos-ão dignos de comparação, e ao examinar-nos e a nossos costumes (pois entre eles nos julgam como nós os julgamos), apresentarão a mesma sinceridade que viram. A segunda, para que todos os que possuem um deleite pela história - que é verdade e conhecimento - tenham horror dos vícios e perseverança na imitação da virtude. [...]
[39] Da religião, em geral e em particular.
Como para nós o batismo, a entrada para a lei de Muhamed, ou do Alcorão, ou Alphurcan é a circuncisão universal a todos os mouros, turcos, persas, tártaros, os das Índias e a todos dessa lei, que ocupam mais de duas partes do mundo tripartite. Para incitar a essa religião, muito antes da circuncisão, eles fazem com que as meninas, os meninos e os escravos que desejam se converter levantem o dedo. Apontando o indicador e depois o polegar da mão direita, os fazem proferir o seguinte: L’allah illallah - não há Deus1 além de Deus. Ou assim: allah hu hallah, la allah illa lah - Deus é Deus, não há Deus além de Deus. Isto está no segundo capítulo do Alcorão, Humeram, e é repetido mil vezes ao longo do livro. Os outros acrescentam com frequência: allah hu allah la allahilla lah vemuhamed rassul allah - Deus é Deus, não há Deus além de Deus, Muhamed é o profeta de Deus. Se tais palavras forem ditas por uma mulher ou menina, ela é irremediavelmente turca. Pois as mulheres não possuem outra forma de declaração a não ser levantando o dedo. Quando eu digo turca, quero dizer muhamédica, de qualquer nação que seja.
[40] O seu maior empenho se dá em tentar, por qualquer meio, converter homens e mulheres de outra religião. Fazem-lhes levantar o dedo por ignorância, por sutileza, por promessa ou por vontade própria e, depois de testemunhá-lo, provam que prometeram converter-se, tenha isto sido voluntário, ou não. Desta forma, coagem os homens à circuncisão, as mulheres à observação das cerimônias e ao casamento com um turco. Se puderem provar ou inventar que alguém falou da lei ou do profeta, fazem a mesma violência, pois dizem que quem blasfema deve tornar-se muçulmano, ou seja, fiel à lei de Muhamet, já que Deus quis perdoar esse pecado (nem os turcos, nem os tártaros ouvem com boa vontade seus nomes, mas preferem ser chamados de muçulmanos, mussulmin, ou mussumanlar, que significa fiéis, como nós diríamos cristãos). Nesses dois pontos, os turcos e os tártaros fazem violência para trazer outros para sua religião, mas todos os muhamédicos têm o costume de pedir aos estrangeiros para tornarem-se muçulmanos. E quanto mais os amam, mais insistem. Já os mouros, os piores canalhas, mais infiéis e traidores dentre todos os muhamédicos, glorificam-se e presumem possuir mais santidade, por seus lugares santos, pela antiguidade do Caroan [sic], e pela sua preeminência na lei sobre as outras nações. E chamam os persas, os turcos e os tártaros, que poderiam ser seus senhores nas coisas do mundo, de imperfeitos na fé. [41] A lei dos mouros é a única que obriga os pobres escravos a abraçarem sua religião, com pauladas, arrancando e quebrando-lhes os dentes, batendo na planta dos pés a ponto dela se despedaçar, prendendo-os eternamente em uma cave com um punhado de farinha de cevada com metade de palha como alimento e meio copo de água por dia. Assim como outros infinitos martírios que não poderíamos mencionar, sem fazer cair lágrimas. A tal ponto que, não todos, mas a maioria, se converte. A razão para não fazerem a circuncisão ou caráter da fé antes de quatorze anos é que buscam o consentimento pleno e por livre arbítrio, pois se acontecer de alguém se renegar ou renunciar à religião, morreria irremediavelmente, ainda que se reconvertesse. Esta é a causa para vermos tão poucos fazerem-se cristãos, mesmo entre os sábios que possuem um grande amor pela religião cristã, que conhecem a vaidade da sua religião e o discernimento pobre que se encontra em sua base. A circuncisão é feita, portanto, depois de quatorze anos e antes de vinte e três ou vinte e cinco anos, semelhante à observada pelos judeus. A não ser que alguém, por devoção ou em perigo de morte, o faça antes dos quatorze anos. Uma grande assembleia bem ordenada acompanha a criança até a mesgeda, a cavalo ou a pé, em função da distância entre a casa e a mesgeda e da riqueza dos pais. O sacerdote chamado de leitor o recebe, perguntando se deseja ser muçulmano e se acredita no profeta de Deus Muhamed, que trouxe a lei dada por Deus [42]. Tendo respondido sim, o sacerdote o faz prometer que a conservará sempre; que será amigo de seus amigos e inimigo de seus inimigos. Terminada a cerimônia e tendo dito ia alla ia alla ó Deus ó Deus, cada um faz a sallach, ou oração. Uma vez que o jovem deixou parte de sua pele, volta acompanhado e fazem um grande banquete que dura um, dois ou três dias, dependendo do status da família. Os príncipes fazem cerimônias maiores do que para os grandes casamentos, e ambas são seguidas de torneios e de jogos. Ouvi dizer que algumas vezes a circuncisão pode ser feita em casa, como os judeus que, oito dias depois do nascimento, convidam seus amigos e parentes e fazem a circuncisão ordenada pelos antepassados, e que deles e de sua religião chegou aos muhamédicos. Mas o costume de ser circuncisado em casa não é provado, nem era observado antigamente, a menos que aconteça em lugares onde não haja uma mesgeda. Quando um cristão se torna turco, se for um homem rico ou o escravo de um homem rico, é levado à mesgeda bem acompanhado e depois de interrogado pelo sacerdote, como dito acima, é talhado e levado de volta. Se é um homem pobre que, por inquietação, por mortificação ou por coação se torna turco, seu padrinho coloca uma flecha em sua mão, que ele mantém para cima. Uns dizem que substitui o dedo para mostrar que só há um Deus lá em cima, outros pensam que indica que defenderá a lei com a flecha. E que por ela entende-se todas as armas. Seu padrinho carrega uma bacia [43] em meio ao povo, dizendo: Deus seja louvado, eis um novo muçulmano. Cada um lhe dá então um ou dois aspres, e ele recolhe em torno de cem, duzentos ou trezentos aspres. Em seguida lhe faz uma doação, o leva para jantar e fazem o banquete do cofre. As crianças muhamédicas são nomeadas assim que podem ouvir seu nome, que é repetido para elas na circuncisão, para interrogá-las. Os cristãos mudam os seus. Já os judeus, ouvi dizer que não os recebem como muçulmanos, sem antes terem se tornado cristãos, ou pelo menos antes de afirmarem terem se tornado tais. Isto eu não sabia quando escrevi essa história pela primeira vez. Em minha segunda viagem, soube por alguém que, como o judeu não crê que Jesus seja o verdadeiro Messias prometido no velho testamento, para que acredite verdadeiramente quando se tornar muçulmano, o forçam a dizer, além das palavras de costume: Issahac, ou seja, Jesus é verdadeiro e verdadeiro Messias, e verdadeiro doutor; o que escrevi em detalhes na primeira e nova parte. Fazem um discurso dizendo que Deus criador, depois de ter sido esquecido pelo homem que criou e por sua posteridade, deu aos judeus uma lei permeada por dois opostos: o bem e o mal, a grande pena e a recompensa, mas eles não quiseram observá-la e idolatraram. Em seguida, enviou uma outra lei pelo maior dos profetas, formada pelo Espírito Santo: Issa ou Jesus Cristo, que Muhamed ou autor do Alcorão chamava assim. Esta continha somente doçura, mas os homens, todavia, também não a quiseram [44] abraçar. Ele enviou então Muhamed com uma espada e com o rigor, para fazer as pessoas crerem em Deus pela força, para matar, ou para torná-las tributárias. Daí a opinião de que os judeus não devem pular a lei de Jesus Cristo, se quiserem se tornar de judeus, turcos. Estas são suas razões. Os nomes que atribuem significam sempre alguma coisa e costumam ser os seguintes: Muhamed-louvável, Mahmud-desejável, Ahmad-bom, Hamza-pronto, Pherhat-Yoyem, Homar-vivo, Humeram-vivo, Hamurat-vivo, Hah-alto, Selim-tranquilo, Seliman-pacífico, Ismael-ouvinte de Deus, Isupf-José crescente, Aiub-Jó maravilhoso, Sophi-santo, Mustapha-santificado, Burru-phyrrus, Scander-Alexandre. Como mostram esta pequena ilustração e a tradução que a acompanha, todos os seus nomes ou têm um sentido, ou são tomados dos antigos hebreus, como José, Jó e Ismael, ou dos gregos como Alexandre e Pirro. Antes de partir da mesgeda onde é feita a oração, devemos lembrar algo. Nos lugares bem habitados da Turquia, as belas igrejas ou mesgedas mais comuns têm o formato redondo, alto, sem pilares no meio, como vemos nas bases das igrejas matrizes na França. Seguem circularmente acima da base, como é a Notre Dame de Paris, a Sainte Croix de Orléans, e outras onde a base ou as travessas são arredondadas e sem pilares. Eu disse acima nos lugares bem habitados, pois nos vilarejos e onde a pobreza reina, elas são mal ordenadas, sem regra e com frequência nulas. Essas mesgedas são [45] muito belas, com grandes vitrais acima do primeiro andar, pois em volta tudo é redondo ou quadrado, com uma outra ordem de colunas, onde os vitrais seguem o mesmo equilíbrio. No interior das ditas mesgedas não há nada corpóreo pertencente ao mundo (fora seus componentes e sua construção) a não ser lâmpadas ardentes, todas em ordem, que ficam de preferência do lado em que fazem a oração, normalmente ao sul. Os mais sábios ou menos supersticiosos podem adorar em direção ao oriente ou em outra direção, lembrando que Mahumed escreveu no Alcorão que Deus pode ser tomado em qualquer direção e de todos os lados. Mas a maioria adora em direção do sul porque Muhamed lhes ordenou acreditar que sua lei é a de Abraão, e este fez seu sacrifício na Meca, em uma montanha voltada para o sul. [...] Do lugar do templo de Salomão Muhamed disse ter sido arrebatado e conduzido por Gabriel sobre o Alborac. E como ele orava em direção ao sul, ordenou que todos o imitassem, a menos em caso de necessidade, quando não fosse possível conhecer [46] a direção do sul, pois, como escrevem, Deus está ouvindo, vendo, sabe de tudo e toma a oração de qualquer lado. Eles têm a tal ponto horror das imagens e figuras das coisas que possuem vida, para evitar a idolatria, que por nada entrariam em uma mesgeda que tivesse uma imagem e acreditariam estar maculados se entrassem para orar em uma igreja grega. Com relação às imagens, ouço os gregos chamar-nos de grandes idólatras porque nós, do poente, ocidentais e sujeitos à Igreja Romana, temos estátuas elevadas, imagens, pratos ou efígies, enquanto eles só possuem as efígies. Ora, quando lhes objetamos suas imagens ou efígies, eles dizem que o povo simples não se engana com efígies, mas sim com estátuas, ainda que não pareça grande a diferença. E os turcos, pelo horror que possuem das imagens, destruíram o mosaico mais antigo que existia ao tomarem a Santa Sofia, a mais bela igreja do mundo no passado e antes de ter mudado para as suas mãos. O fizeram somente porque ele era pintado e feito em imagens de excelente beleza e inestimável riqueza, e fazem a mesma coisa em todas as igrejas onde constroem suas mesgedas. É impossível fazê-los compreender que nós não as adoramos, pois quando dizemos que nos servem como memória presente nos incitando a imitar sua virtude, eles respondem que os santos se fizeram tais unicamente mantendo a lei. Ora, só seremos como eles se conservarmos a lei, mas se a abandonarmos, as imagens não nos servirão para nada e rogarão Deus contra nós e não por nós. [47] Interroguei os mais capazes e sábios entre eles, que nunca consegui convencer, apesar de mostrarem muitos sinais de que eram impressionados pela religião cristã e de que desejavam ouvi-la. Suas mesgedas são pavimentadas com as mais belas lâminas de mármore ou de alguma pedra adornada e polida, onde fazem degraus ou dispõem tapetes estendidos para se colocarem de joelhos, porque todos os que entram deixam seus sapatos na porta e entram com pés descalços, ou com sapatilhas que ficam nos pés quando o sapato é deixado de fora. No interior e ao fundo de quase toda mesgeda matriz há um local de pedra instalado no alto, como um pequeno púlpito. Ali, por exemplo na sexta-feira, dia semanal de celebração, o sacerdote, dito Iman ou doutor, sobe para predicar ou para ler uma oração ou capítulo do Alcorão, segundo sua importância ou sua ordem. Ele fica no alto para ser visto e ouvido pelo povo. Quanto ao ornamento que costuma estar no exterior das mesgedas, não é preciso se afastar muito delas e mencionaremos uma torre redonda unida a ela, mais alta que a mesgeda, com a função de nossos campanários. Cinco vezes ao dia, na hora da oração, um ou vários homens jovens ou velhos com a voz inteira e forte que servirá de sino, sobem lá no alto dizendo e repetindo: ia halassala, ia halassala, ia halassala, a oração, a oração, a oração. [48] Algumas vezes começam com allah chebir, allach chebir, Deus é grande, Deus é grande, ou com outra coisa, segundo a vontade do gritador2 que o repete ao nascer do dia, ao meio-dia, às duas horas, com o sol se pondo e às três da madrugada. Os muhamedistas não contam o tempo ou as horas de outra forma que não seja por esses cinco termos. Em árabe e em turco dizem o fim da manhã subuh e sabah ou irteh, respectivamente. A aurora em árabe é becher e em turco dengleh. Meio-dia em árabe se diz duhur e em turco oyle e oyle nemazi. Entre duas e três, em árabe será hatzri e em turco ichindi e ichindi nemazi. O anoitecer em árabe se diz magrib e em turco agssam e agssam nemazi e a noite em árabe é haffa e em turco ietsy ou ietsynemahi. Esta é sua forma de contar o tempo. Quando ouvem a convocação para a oração, as pessoas devotas vão à todas as chamadas; os outros vão ao meio-dia, às duas horas ou ao anoitecer. Na sexta-feira, sua celebração semanal principal, quase todos vão pelo menos uma vez. Se um homem estiver pobre e necessitado, não o obrigam a fechar sua loja, qualquer sexta-feira que seja. Em muitas aldeias eles ainda não possuem uma mesgeda, e são ensinados a orar para Deus, presente em todo lugar, mas não contido em um lugar, a não ser por incitação à unidade. E os vemos em seus campos ou qualquer outro lugar se ajoelhar e orar a seu modo. Antes de fazer ou ir à oração [49], a religião exige que façam abluções, dizendo alguma oração. Falarei agora sobre isso. Ao fazerem sua ablução em casa, nos banhos ou na mesgeda, pois se lavam em qualquer lugar, dizem: Senhor Deus, peço a benção de sua direita para ser ajudado e guardado da esquerda e de sua ira. Pega água e lava a boca três vezes, o que chamam de inovação. E dizem: Senhor Deus, dá-me ajuda para ler a lei, ou Alcorão, e me lembrar sempre de você. E lava o nariz jogando água dentro dele. Diz: Senhor, permite-me sentir o cheiro de sua glória e contenta-te comigo. E com a voz mais alta: Senhor Deus, peço sua ajuda para ser defendido do cheiro do fogo e do mal em minha casa. Lava o rosto descendo as mãos desde a raiz dos cabelos e dizendo: Ó Deus, lava e purifica minha face com sua clareza no dia que clareará a face de seus amigos, e não escurece minha face no dia em que escurecerá a face de seus inimigos. Lava a mão direita e o braço e diz: Meu Deus, permita-me escrever bem com a mão direita e dá-me a facilidade com os números. Em seguida, lavando o braço esquerdo e a mão, diz: Deus, me ajuda e dá-me meu papel em minha esquerda. Lava a cabeça (todos a trazem raspada) dizendo: Senhor, cobre-me com sua misericórdia, envia sobre mim sua benção e faz de mim sombra sob seu trono no dia em que não houver outra sombra além da sua. Lava as orelhas dizendo: faz de mim um dos que escutam a sua voz e seguem [50] o melhor caminho. Ó Senhor, faz-me ouvir aqueles que falam no paraíso com os santos. Lavando o pescoço diz: Senhor, preserva meu colo do fogo, das correntes e dos estalos do inferno. Lava a perna e o pé direito e diz: Senhor, conforma-me o pé em tzirat (em retidão e firmeza da lei) no dia em que os pés dos maus pisarão no fogo. Em seguida a esquerda, repetindo a oração. Uma vez terminado, diz: Nós te santificamos, louvamos e adoramos, Senhor Deus, pois não há Deus além de você. Fiz o mal, maculei minha alma, peço perdão e rogo que me converta para você, me perdoe e coloque o arrependimento sobre mim, pois você é o verdadeiro conversor e misericordioso. Ó Deus, transforma-me em um dos arrependidos, em um dos purificados, faz de mim um dos seus bons servidores.
Abluções e orações terminadas, tem início a oração conjunta na mesquita, que começa pela oração que apresentarei na sequência. Aquele que não conhece outra, a repete muitas vezes. Os que conhecem muitas outras - presentes no final do Alcorão ou feitas pelos doutores -, fazem como quiserem, cada um do seu jeito. Trago a oração escrita no começo do Alcorão em árabe e francês, para que seja conhecida e ouvida por todos:
Elhemdu lillahi rabil alamine elrahmani elrachimi melichi iauani eldini eiache nahbudu, (v)eiache nestehinu. Ihdina elzzirata el mustekima, zzirata eladina eueamta halahim gairi il magdubi halahim (v)elal zaline. Amin.
E em francês: Louvor seja feito a Deus [51], Senhor dos séculos, o misericordioso, o piedoso e o rei do dia do julgamento. Ó bons humanos, se o servirmos, seremos auxiliados. Senhor Deus, dá-nos a verdadeira certeza dos que, por sua vontade, você aprova sem ira, e dos que não serão excluídos de sua graça. Amém.
Essa oração é muito comum no começo de qualquer ação, principalmente na oração das horas fixas e para ler o Alcorão. No começo de qualquer ação dizem ou escrevem: Bismilahi rachmani rahimi. Em nome de Deus, misericordioso e bom. Gostaria agora de mostrar seus costumes ao orar na mesgeda ou fora dela, pois fazem orações em todo lugar; os senhores em suas salas, os outros onde lhes agradar. Assim que chegam ao lugar de oração na mesgeda tiram os sapatos, mas não descobrem a cabeça. Levantam o rosto para o céu e, depois de estender as mãos, as trazem sobre o rosto, gesto que chamam de impetração de paz. Se inclinam, ajoelham, beijam o chão ou se prosternam duas vezes, voltam a ficar de joelhos com as nádegas apoiadas sobre os calcanhares e fazem a oração à sua devoção. No mais das vezes dizem a Alhammdu lillahi, como lembrado acima, levantam-se e o repetem quantas vezes desejarem. O mais comum é que façam duas orações pela manhã, cinco ao meio-dia (chind), quatro pela tarde e oito à noite ou na primeira vigília. Para cada oração há sempre o duplo beijamento ou inclinação, mas os mais devotos [52] fazem mais ou menos, como desejarem. O sacerdote, tido como testemunha do amor que têm por Deus, fica sentado onde acontece a oração na mesgeda, virado para o sul. Todos olham-no e ele só pronuncia uma palavra ou duas, depois que todos já tiverem orado. Ele diz: Deus os escuta, e alguns dizem amin, amém, assim seja. Em seguida o gritador3 ou o clérigo começa uma battalogia da oração alhamdu e diz alhamdu lillahi alhamd vinte ou trinta vezes, repetindo cada palavra duas ou três vezes, como preferir. Segundo o povo, a oração assim repetida desculpa a má oração de outros e a dos que não as disseram. A propósito de battalogia ou repetição viciosa, gostaria de mencionar o costume de certas orações mais frequentes entre os mouros do que entre os outros. À noite, próximos de alguma mesgeda, saem em grupos de dez, vinte, trinta, cem, às vezes mais, às vezes menos. Balançam juntos a cabeça e o corpo, dizendo um para o outro alla, alla, alla, alla, alla, tantas vezes e tanto tempo que caem no chão meio atordoados e dizem que seu espírito foi até Deus levar a lassala, ou oração. Na Síria e na Anatólia, ou Turquia, alguns rodam com tanta força dizendo alla, alla que nenhuma pirueta poderia imitá-los. Por fim, completamente tontos, permanecem como mortos e em êxtase. Dizem então que seu espírito foi até Deus.
Dentre todos os seus loucos ou religiosos, estes são considerados os mais santos. Segundo dizem adivinham, fazem curas e milagres. Alguns [53] cantam durante toda a noite, sem descansar, la alla illa la Muhumedi ressul alla, mas todas essas coisas são praticadas somente pelos idiotas. Não farei uma digressão sobre seus santos nem sobre suas peculiaridades, isto será feito em outro lugar. Depois de falar dos momentos e da forma de orar, falarei das celebrações nas quais as orações são observadas de forma mais rigorosa. A sexta-feira, como disse, é a celebração da semana em que todos devem comparecer à oração da mesjeda pelo menos uma vez; a menos que seja um homem pobre, ocupado a sustentar seus filhos. Mas se um rico costumar faltar e for surpreendido cometendo uma transgressão, será emprisionado. Ser-lhe-á recriminada a malversação e a negligência frente ao povo e aplicada uma multa: para o óleo da mesgeda, para os pobres ou para o hotel de Deus. Em certas aldeias, será levado em meio ao povo com uma pele de raposa nas costas, mas somente os muito incorretos sofrem esta vergonha. A oração de sexta-feira é, portanto, a principal, e quase todos estão presentes. Neste dia, o príncipe sai de seu harém em Constantinopla e percorre toda a cidade até a mesgeda de seu pai, o Sultão Selim, de seu avô Bayaseit [sic], ou de seu antepassado Sultão Mahmed, que tomou Constantinopla. Em outras circunstâncias, quase não é visto pela cidade. Aqueles que o encontram devem baixar a face em direção ao chão, fingindo não o ver. Os que estão acima fecham as janelas e não o olham, a não ser através da janela quase fechada ou do vitral. Ele é regularmente acompanhado por seu Paschia Visir, pelos Spachi, os Agas, e os Gingitzeri (comentarei estas palavras ao falar da guerra), além de quatrocentos ou quinhentos Solaclar ou guardas com arco, flecha e cimitarra, e costumam segui-lo também sete ou oito cavalos puxados, ornados de forma riquíssima, assim como alguns escravos ou crianças de honra. Uma vez terminada a oração, ele joga alguns aspres para Deus e vai embora.
Quem visse a modéstia, o silencio e a reverência que eles têm em suas mesgedas ou na oração deveria sentir vergonha ao pensar que as igrejas daqui fervem de conversa, de deslocamentos e de negociações, o que as torna espeluncas de ladrões. Às sextas-feiras na Santa Sofia ou na grande mesgeda dos turcos há um doutor na lei que interpreta para eles algumas passagens do Alcorão em forma de sermão. Por esta razão, todo o povo simples vem das aldeias se reunir ali; e por isto às sextas-feiras há um pregador na igreja matriz das cidades. Nas sextas-feiras em que o tempo não está bom, ou quando não é seguro, o Senhor vai somente na mesgeda de Santa Sofia, porque está próxima do harém. A de Bayazeit se encontra mais longe do que a de Muhamed e a mais distante é a do Sultão Selim, aonde ele vai pouco por ser muito longe do Harém. As abluções da sexta-feira são feitas com muita diligência: se um homem pensar ter cometido algum pecado entre duas orações, ele volta a se lavar quantas vezes forem necessárias antes da assala, o que em outro momento exigiria uma só ablução para o dia todo. [55] [...]
No período da quaresma, a oração e as abluções não são menos seguidas do que na sexta-feira. Algumas pessoas vigiam os bons e maus muçulmanos, e quem falta à oração ou come durante o dia, é estigmatizado de infame e de transgressor da lei. Em sua quaresma, que dura trinta dias ou um mês lunar (pois eles contam o ano por mês lunar e não por solar, como nós), imitam os cristãos da igreja primitiva e não comem até o cair da noite ou a chegada das estrelas. Com exceção dos maus e reputados infames, eles não comem durante toda a noite, como costumam nos dizer, ainda que o Alcorão permita comer até o nascer do dia.
O que vi entre os turcos é que comem sobriamente arroz, carne ou peixe, ou ambos, sem fazer nenhuma diferença entre as carnes; e bebem água. Mas os maus, os velhos mouros adoradores da religião, e os que mesmo sob a religião bebem vinho, são os que costumam passar toda a noite se empanturrando. O povo comum me parece ser muitíssimo rigoroso na observação da lei e a segue de forma mais severa do que o que está escrito. Portanto, devemos examinar não a religião, mas o povo que, se tivesse uma melhor, a observaria muito bem. Durante a quaresma, nas torres das mesquitas das cidades, [56] vemos durante toda a noite infinitas lâmpadas ardentes, parecendo até que a cidade está em chamas. Eles fazem questão disto, como dizem os mestres de cerimônia, para incitar o povo que agrada a Deus jejuando a também orar continuamente. Durante a quaresma, os grandes personagens deixam suas casas abertas à noite para todos os entrantes, principalmente para os doutores, os estudantes, os Cadis, as pessoas de letras e para todos os outros, até que as mesas estejam completas. No inverno, como no verão, são colocadas em belas galerias, cobertas no inverno por grandes tendas. Antes de passar da quaresma para a Páscoa, seria oportuno falar da caridade dos turcos e das grandes e ricas fundações criadas por eles. Eles dizem que há três formas de reconhecer o crente: pela oração e pelo jejum, dos quais falamos, e pela caridade, da qual falarei. Muhamed sempre ordena e fala da caridade. O Alcorão e os livros de cerimônia afirmam que o que mais agrada a Deus no mundo é a alzaché; por essa via pagam a quem devem e dão a quem não tem. As pessoas pobres que não têm o que oferecer, entendem a ajuda aos homens dizer respeito a qualquer outra necessidade, e não somente ao beber e o comer. Passam o tempo de suas vidas emendando os caminhos ruins, carregando pedras, madeira e areia se estiverem estragados, [57] concertando-os com degraus ou elevando-os. Outros dirigem riachos, córregos e fontes, trazendo-os até os caminhos, tiram água de poços ou de fontes e levam até algum casebre ou casinha pelo caminho. Eles convidam a beber com tal zelo que, se bebessem vinho, o encontraríamos em alguma fonte. Na Barbária, por causa da raridade da água perto das cidades, encontramos minas com água perpétua junto às sepulturas de alguns mouros. Mora aí um morabita ou eremita, sustentado por alguma fundação, para manter as cisternas sempre cheias de água e convidar e oferecer aos passantes, recomendando-lhes a alma do defunto e de seus parentes vivos. Essas minas de água potável nos caminhos costumam vir de pessoas pobres. Os ricos as fazem mais na Anatólia do que na Turquia e, observando vir os passantes, rogam por sua alma e convidam-nos a comer, beber e descansar em suas casas; e por isso não recebem um não de ninguém. O rico assim como o pobre nada pagam, mas fazem um grande agradecimento no dia seguinte, desejando que Deus devolva aos que os honraram. Estes são considerados os melhores muçulmanos, porque enviam sua caridade ao Paraíso antes deles, como escrito no livro das instruções. Quando dará a tzadaca, a caridade, dê do melhor que tem, e do mais excelente. Um pedaço do melhor é mais agradável a Deus do que cem escudos mal adquiridos, oferecidos depois da morte. Uma tâmara dada de bom [58] coração durante a vida vale mais do que mil depois da morte.
Assim, quando recebem alguém em sua casa, o consideram como a si mesmos. Não acreditava isto ser verdade até Seraphin de Gozza de Raguza4 me contar o que viveu por mais de uma vez nas cercanias de Sérvia e Bósnia, dando-me coragem para investigar se também era assim nos outros países. Ao passar por países bastante mal habitados e pela Turquia, onde não há hotelarias nem tavernas, ele foi hospedado. Em uma casa isolada, bela para o país, ele viu um homem sentado na porta, que se levanta e vem cumprimentá-los dizendo, sapha gheldinis, sejam muito bem-vindos. Ele tinha três servidores franceses e um turco, para dirigir. E lhes disse: Alla severfis, gellumus, sis benun euea, bem berechet alla fisa veriam, scindi agssam, bir daheh eue bunda deil, fisum iola iachenda haheh eue varmez, bunda guzel ot, guzel taonc, gellumnissis mismillahi. O que significa, palavra por palavra: Deus ama-os, venham em minha casa e lhes darei a benção de Deus, ou seja, os bens que Deus me deu. Já é tarde, por aqui e perto de seu caminho não há outra casa. Aqui temos bom fogo e boas galinhas, venham, em nome de Deus.
Estas são as palavras que me reportou meu conhecido de Raguza, conhecedor de um pouco de turco. Quanto ao tratamento recebido, foram colocados sobre belos tapetes junto ao chão, à moda do país. Em seguida, acenderam um bom fogo para secá-los. Lhes trouxeram bolo e água açucarada, com algumas geleias feitas de vinho cozido. Beberam e comeram, [59] esperando a ceia, que consistia em dois tipos de arroz com carneiro cozido e assado, frangos e capados. Desta forma, em toda a Turquia, com exceção do vinho, não gastaram para nada o dinheiro que levaram. Para dormir os colocaram cada um em um enxergão, à moda do país. No dia seguinte, quando quiseram pagar, lhes disseram: benunianuamvar; alla seversis. Deseje para a minha alma e que Deus lhes devolva, ou os ame. Depois de tal recepção, fizeram um grande agradecimento, o que deveria incitar em nós uma maior e mais frequente caridade, quando o podemos. Eu sei bem que em se tratando de Barbária, nação belicosa e no mais das vezes contrária à humanidade, há mais pessoas más e menos pessoas boas do que por aqui. Mas se existem pessoas assim entre povos danados, os povos redimidos deveriam em muito superá-los. Gozzame foi recebido pelo imarach, que significa comendadoria quanto à equivalência, mas quanto à prática, não tem nada de semelhante com a nossa. Lá a renda e a caridade são para os indigentes, aqui elas são para os ricos e os que tem o suficiente para se contentar. Gostaria de falar sobre a prosperidade dos Sultões, Baschiats, Schiats, Maule, Ham e outros que fazem grandes liberalidades depois de sua morte, quando não podem mais exercer sua tirania. É um costume de quase todos os grandes ou ricos personagens muhamédicos fundar à sua morte uma mesgeda ou igreja em seu nome, na qual serão enterrados em alguma capela ou nicho. [60] Ali direcionam certo recurso à renda de doutores, pupilos ou leitores ditos muderis, para ler o Alcorão ou outras orações, certos dias, a certas horas. Eles creem que a leitura do Alcorão, ou lei, lhes torna mais merecedores do que qualquer outra oração. No que diz respeito à forma de suas igrejas, já o disse: as pequenas ou sepulcros são da mesma forma, com diferença quanto ao tamanho. Na cercania das igrejas mesgedas ou imarat, dependendo da riqueza do fundador, encontram-se cerca de cento e oitenta a duzentas pequenas casas ou quartos para alojar, por até três dias, os passantes que vão ou vem. As cozinhas são sempre guarnecidas nos horários das refeições para alimentar primeiramente os tais passantes, mas também os pensionários comuns e ordinários que são os doutores, os leitores e os pupilos, dos quais falei no quadro da alimentação das crianças. Em seguida, a caridade se estende a qualquer um que passe, seja turco, cristão ou judeu (ainda que entre os judeus ninguém tenha visto necessitados). Em um lugar onde os ricos não passassem de dez, não deixariam ninguém passar necessidade, principalmente de comida, ainda que os pobres fossem cem. E mantêm o preceito: não haverá mendicante entre vós. Isso me faz muitíssimo pensar que a intenção de todas as religiões do mundo seja a caridade; e mais ainda a nossa, na medida em que é mais perfeita. Representamos bem a parábola da criança pronta para fazer uma promessa, mas tardia para cumprir. E não temos vergonha por haver tantos milhares e milhares de pobres morrendo de fome - em razão dos grandes custos - em tantas províncias de nosso reino. [61] Saciando seu apetite, um usurário que pensa fazer uma bela obra quando é superior ou reitor de igreja, faz uma nova construção derrubando um templo, um alojamento ou outro edifício velho, belo, honrado e que duraria infinitos anos. Oferece cem ou dez mil escudos tirados por meio lícito e ilícito de viúvas e órfãos para começar a construir o edifício ou templo ricamente decorado, com o intuito de enfeitar o chão com seu nome e fazer gastar mais cem mil escudos àqueles que derem ouvidos a ele. Ó nós, miseráveis e surdos aos querer de Deus, e à intenção da direção desse mundo! Ó feliz Exuperi, bispo de Toulouse e tão louvado por São Jerônimo, por ter vendido cálice, patena, vestimentas da eucaristia e todas as riquezas eclesiásticas para alimentar os membros e templos vivos de Deus! Quão mais santo não foi ter guardado a santa hóstia e memória da morte e da paixão de seu mestre em um copo e uma pequena cesta, do que consagrar em vasos de ouro aquele que não liga para o ouro nem para o luxo, enquanto vê perecer de fome aqueles por quem ele morreu! Mas voltemos. Não encontrareis cidade na Anatólia onde não haja caridade, e fora das cidades os passantes encontram refeições frescas não só nos refúgios dos grandes caminhos, mas também nas casas privadas, tão frequentes na Turquia e na Anatólia. Em Constantinopla, onde atualmente se encontram o chefe do império e a residência dos senhores quando não estão em guerra, cada um de seus predecessores Muhamed, Baiazeid e Seliman fundou uma mais bela casa. [62] A de Muhamed possui em torno de sessenta mil ducados de renda por ano. Direi em seguida, ao mencionar as doutrinas, quão rica ela é. É quase igual em tamanho e forma à de Santa Sofia, tem nas cercanias por volta de cem casas redondas, cobertas de chumbo, para os peregrinos e os doutores. De fora do claustro há cento e cinquenta edifícios comuns para alojar a população pobre da cidade, à qual é oferecido um aspre por dia e pão à vontade, enquanto desejarem permanecer ali. Não creio haver ali patife que considere a ação de aceitar digna, pois eu só vi alojamentos vazios, ou com poucos habitantes.
Quando toda a renda não é gasta aí, a oferecem ao hotel de Deus dos doentes, ou dos dementes. Pois quando há um louco prejudicial, ou desavergonhado, ele é levado à força e o tornam inofensivo pela castração ou pela prisão. Quanto aos saqueadores que, por fingimento ou por desespero, se dedicaram à mendicância, como faziam os falsos carniceiros e os doentes de São João e de São Main (que enchiam as cidades da França antes da imagem da igreja primitiva começar a ser restituída pela caridade paroquial), estes não têm lugar. É bem verdade que existem alguns que, sob a sombra da religião, pedem pelo país. Mas quando os turcos vêm à Itália, principalmente em Veneza, ficam admirados com este mistério. E nos nomeiam gaours, cristãos ou infiéis: as pessoas mais cruéis do mundo, que toleram que coisa tão lamentável [63] seja vista publicamente. E vão em segredo sob o duliman jogar-lhes aspres nas pontes, tão secretamente, que realmente podem ver nisso a prática do que dizia Jesus Cristo: que não saiba a direita o que faz a esquerda. As outras Imarats ou comendadorias seguem a mesma forma, mas a do Sultão Bayazeit - que possui trinta mil ducados de fundação - não é tão rica nem tão grande, pois é a que seu bom filho Selim mandou fazer depois de ter envenenado o pai e o tirado do poder, para esconder a suspeita da morte que causou. Mas temo demorar recitando no inimigo a principal virtude desse mundo, que consiste no único meio de imitarmos a assistência divina. Deixo os cristãos nessa reflexão e concluo a quaresma para recitar as cerimônias pascoais. Uma vez terminado o jejum de trinta dias ou de uma lua, eles convêm da sexta-feira ou Ciumah ghun mais próxima da meia lua e fazem a oração de meio-dia especialmente prolixa na mesgeda onde fazem suas orações anuais. O sacerdote lê diversas Suratas ou capítulos do Alcorão. Durante a leitura do terceiro e principal, chamado el meide - ou refeição - turcos, persas e tártaros beijam as mãos uns dos outros. Os outros se beijam na boca. E dizem entre si: Deus te dê a boa páscoa. Em turco alla chais behiram versina. Em árabe: teib behiram leche. Todo homem que possui um inimigo, antes de beijar sua mão ou sua boca, é obrigado a pedir-lhe perdão [64] e o outro a lhe conceder. De outra forma, seu behiram ou páscoa não significarão nada e, se for sabido que não o fizeram, serão excomungados. Vemos com isto que tomaram o perdão (sem o qual não acontece a unidade ou a salvação) da igreja primitiva cristã. Na qual, antes de se unir no sacramento ou símbolo da união, era necessário pedir perdão a todos os seus inimigos e perdoá-los. Os muhamedistas pedem perdão não somente no dia de Páscoa, mas também todas as sextas-feiras quando vão à mesgeda. E não ousariam deixar de perdoar, ou pelo menos de fingir para seu inimigo, sob pena de haram, que significa grande pecado ou excomunhão. Assim, os maus que não querem perdoar vão à mesgeda poucas vezes, pois uma vez que perdoaram, se fizerem uma ofensa ao outro em razão da antiga disputa e a parte interessada puder provar que tinham se perdoado, o agressor incorre em uma pena maior do que por qualquer outra ofensa. Isto acontece porque, segundo eles, quem o faz zomba de Deus e dos homens. Chegamos à grande Páscoa cuja celebração dura dois dias. Durante esse tempo e nos sete dias seguintes, os turcos fazem infinita caridade e matam muitos carneiros, pois é a carne que mais apreciam e consomem. Eles anunciam a todos os pobres trabalhadores que venham buscar seu behiram ou Páscoa, que são: [65] carne, pão, aspres, etc. Visitam os doentes e socorrem os órfãos. Outros vão ao túmulo de seus mortos e por suas almas dão comida para os pobres sobre ele. Enfim, é extraordinário ver as manifestações exteriores de sua caridade. Diversos capítulos em sua lei e em seus livros de cerimônia lhes sugerem essa obrigação e por isso vou escrever alguns. Aquilo que desejam recomendar diligentemente, fingem ter sido comandado ou aconselhado por Gabriel - que revelou a lei ao profeta Muhamed -, dizendo: Gabriel deu aos filhos de Adão sete tipos de ações a serem louvadas. A primeira é orar a Deus e fazer a lassalla cinco vezes por dia; de preferência começando antes dos outros e terminando por último. A outra é reverenciar os sábios, e conviver com eles. A terceira visitar os doentes. Fazer caridade. Visitar e consolar os órfãos, porque Deus disse a Gabriel: eu farei chorar no inferno quem fez chorar os órfãos e colocarei no paraíso quem os fez rir. Regenerar os caminhos é a sexta. Acompanhar os mortos até a sepultura é o último. Em um outro lugar, eles escrevem: faz tudo o que faz para Deus (ele quer dizer pelo amor de Deus) com pureza, pois Deus não recebe nada se não for feito rigorosamente e de bom coração. Volto ao meu assunto e depois de falar da grande Páscoa, lembro que a distância da pequena ou segunda para a grande são oitenta ou noventa dias, ou três luas [66]. Diferente da grande, na qual o jejum era obrigatório, nessa jejua quem o desejar. Os devotos jejuam pelo menos quinze dias na frente. Acontecem aqui as mesmas cerimônias, caridade, celebrações e perdões citados acima, mas não são tão solenes ou importantes. Não existem outros jejuns ordenados a todos no ano. Depois do Ramadham, que é o mês da quaresma, os devotos ainda jejuam seis dias de ssual, pois os juízes de mérito escrevem que jejuar os seis dias de ssual além do Ramadham equivale a ter jejuado o ano todo. Outros ainda jejuam nos dias brancos de cada mês, que são o décimo terceiro, décimo quarto e décimo quinto, acreditando ter o mérito de todo o ano. Muitos fanáticos árabes observam isto. A condição do jejum que eles ordenam é a seguinte: Deus regozijará com quem jejuar no Ramahdam e se abster de haram, pecado de crime ou falso testemunho: as portas do paraíso se abrirão e as do inferno se fecharão. As celebrações observadas por todos os muhamedistas, que eu saiba, se limitam à sexta-feira, ao dia de Páscoa e à Páscoa menor, mas cada um pode seguir outras específicas de seu país. Os mouros observam a zilssede, mais ou menos no mês de maio, já que seus meses atualmente correspondem aos nossos. Eles se reúnem nas cidades, cobrem um camelo com tecido e saem rodando com muitos outros camelos pelos campos e no entorno da cidade. Dizem que celebram o dia em que a mulher de Muhamed [67] se perdeu ou vagava e que, ao ir procurá-la, ele a encontrou. Os mouros parecem os mais loucos nas cerimônias e os mais frios na caridade, pois com frequência deixam seu vizinho ou próximo morrer de fome, sem socorrê-lo. São os mais traidores, falsários e brutais sodomitas que conheci em todo o mundo. Por causa deles aceito o argumento da desonestidade desta malévola religião, da qual são os primeiros e mais antigos observadores e os que mais se glorificam, como já disse ao falar de sua santidade. Os turcos observam amiúde cerimônias que não são das igrejas, nem para Deus, mas para o retorno do príncipe de alguma viagem distante, para o dia de sua circuncisão ou do nascimento de seus filhos. Nestas cerimônias, que não duram menos de três ou quatro dias, é preciso fechar as lojas, banquetear e festejar, cada um à sua moda e segundo sua possibilidade. Eis o que tínhamos a dizer quanto às celebrações, jejuns, e caridade que os muhamédicos comumente observam. Quando a ocasião aparecerá, diremos o resto. Antes de falar da soma de sua lei e no que eles creem ou não creem, direi que a conduta entre eles e com os estrangeiros que não são desta religião se deve menos à obrigação da lei do que à religião e ao temor de Deus, que não se distingue das leis coercitivas que compõem a justiça. O farei principalmente para ensinar aos estrangeiros como devem se comportar com eles. O que leva a julgar equivocadamente e atribuir crueldade [68] aos turcos, lhes conferindo o nome de tão grande infidelidade, é que quase todos experimentaram seu domínio (e não vou dizer vivência) pelo cativeiro ou por uma fortuna adversa. Isto faz sem dúvida considerar todas as coisas com amargor, ainda mais frente à diferença da religião que eles adotam. Não podendo conceber uma opinião boa sobre eles, julgaram universalmente serem bárbaros intratáveis e indignos do convívio humano ou com as pessoas do poente. Quem quiser julgar a verdade de um assunto como um bom juiz, deve despojar-se de qualquer paixão e se encontrar em uma situação na qual a fortuna adversa não possa tirar ou mudar a cor e o gosto das coisas. Eu não posso, assim como nenhum homem do mundo, negar que onde há uma regra pior, os homens sejam piores, e que onde há mais permissividade e oportunidade, haja maior frequentação do pecado; já que todos os homens são inclinados para o mal e para o pior caminho; tanto mais quanto menos instruídos forem. Todavia, acontece comumente que os muhamédicos tenham entre eles mais jovens maus, quanto aos estrangeiros, do que nós temos aqui. Digo quanto aos estrangeiros pois, entre eles, certamente não possuem o décimo daqui: com exceção dos mouros. Mas o que contarei diz respeito aos mais comuns, deixando de fora a frequentação da corte que, por todos os séculos e em todo o mundo, é governada da mesma forma. Tanto é que aquele que quer ser homem de bem, de acordo com o satírico, deve se retirar da corte. Deixarei de lado também os que são consumidos pelas cidades, a quem a justiça [69] exige satisfação. E farei ainda abstração das duas extremidades do mundo: necessidade ou pobreza e grande riqueza ou tirania, ambas não sujeitas à lei, uma por não poder e a outra por não desejar. Quanto aos mouros, os retratei o bastante, pois a experiência me confirmou que a fé púnica5 dos antigos que lhes é atribuída se desenvolveu entre eles graças a um bom cultivo. Os turcos já são o contrário, e nada neste mundo conta tanto para eles como a palavra dada a qualquer um. Eu confiaria muito mais na simples fé de um turco natural do que em um grã-fino ou uma testemunha jurada daqui. Lá, se o homem for mau, lhe darão culpa ou razão na primeira instância. Aqui, lhe farão gastar o restante dos seus bens um depois do outro; como diz o provérbio: jogar o machado depois do cabo. Suas mercadorias e trabalhos são feitos de forma tão refinada e tão durável (com exceção das casas), que não têm nenhuma comparação com os daqui. As coisas estavam em melhores termos antes dos judeus serem caçados da Espanha e da Provence com sua técnica lamentável, pois lhes ensinaram a falsificar sua arte, sua mercadoria, sua moeda, além de terem encarecido tudo. Já os turcos fazem um mesmo preço para os seus, para os judeus e para os cristãos. Quanto à convivência entre eles, são incrivelmente equitativos. E se não o fossem, e amassem a república, a punição seguiria incontinente. No séquito do príncipe, ainda que lá muitos o frequentem, [70] não vemos tantos sanguessugas e usurários recolhendo riquezas em um ano ou dois, como um Cresso. A permissão para cada um ganhar pelo roubo, quer dizer, pelo comércio, que acontece aqui sob a bondade de um príncipe, faz com que, no mais das vezes, a condição de guerra seja mais desejável do que a paz. Pois esses ladrões, assim que a instauração da paz o permite, entregam as provisões aos confederados e encarecem o pão e o vinho do povo, o que nem a guerra nem o inimigo permitiam fazer. A iniquidade dos dirigentes das cidades que desejam sua parte do ganho possibilita, por todos os meios, abusar do querer de um bom príncipe que se fia à aparência exterior. Ó miseráveis de nós que carregamos a peste em nosso seio! Faz conosco o que o inimigo não consegue fazer. Eu ouço contar que os ricos e senhores devem vender o trigo a um preço alto. Então me calo vendo que, dizendo a verdade, só posso irritar outrem e incitar contra mim as vespas - o ruído popular me incitou a dizê-lo. Mas para vos dar com um exemplo ideia da inocência dos velhos turcos, ou da Anatólia onde habitaram em primeiro, escreverei o que vi entre eles. Estava no país dito da Anatólia e, por causa de uma tempestade, fui obrigado a ficar no alojamento por muito tempo. Os turcos vinham ao meu alojamento tão amistosamente como se estivessem no deles, sem dizer outra coisa além de seu salem alec, ou Deus te guarde, e vinham aproximar-se do fogo, ou sentar-se. Surpreso com tal familiaridade eu dizia: me fizum edat sugle varmec dahe euea, bouguzel ioctur: ou seja, [71] que costume é esse de entrar assim em casas estranhas, isso não é certo. Eles me responderam todos Corcma cardach, bisum edar suyle varbiz bizdam corcmessis: meu amigo, ou irmão, não tenha medo, nosso costume é de não temermos uns aos outros. Para fazer a experiência, enviei minha gente pelas aldeias a duas, três ou quatro milhas, para conseguir provisões: como capados, frango, ovos, carneiro ou outra coisa (pois, assim como aqui, na Turquia não faltam as coisas necessárias à vida humana, com exceção do vinho, que é um pouco caro). Por todo lado viram a mesma coisa, ou seja, que não era proibido nem estranho entrar em qualquer lugar, pois as casas nas aldeias ficam comumente abertas e se fecham somente à noite. Com isso conjecturo a grande inocência ou respeito que eles têm uns pelos outros. Digo os turcos naturais e pessoas simples, pois os cidadãos e os cortesãos são o contrário. Os turcos só consideram estranhas as roupas daqui à moda dos soldados leves, cortadas curtas, com franjas, cintura, bordados e com braguilha, como estávamos vestidos. Pois os turcos, os persas, os tártaros, os sírios (de forma geral todo muhamédico), os moscovitas, os armênios, os cercássios, os gregos, os valáquios, os polacos, os húngaros e todos os cristãos que se encontram entre eles se vestem com roupas feitas como o corpo, que descem à quatro dedos do solo. A coisa que eles consideram mais estranha entre nós é que troquemos de roupa com tanta frequência [72]. E julgam irracional e inadequado rasgar e cortar o tecido ou seda feitos para durar e para servir a um mais pobre, quando o rico não mais o quiser. Por isso nos chamam de dely e maschara, que quer dizer loucos e impertinentes, já que estragamos o que a república deve e quer manter. As braguilhas são para eles muito suspeitas, devido a um extremo ciúme, pensando que um estábulo tão grande seja argumento para igual cavalo. Aquele que deseja conviver com segurança com eles deve primeiro vestir uma roupa longa e colorida, à moda do país, um chapéu dasap ou aventureiro: alto, em tecido, com orelhas abertas na lateral que descem até os ombros, que tanto os turcos como os cristãos podem usar. Deve ir ao país aquele que sabe falar eslavo, grego ou turco, pois essas são as principais línguas conhecidas em toda a Turquia até o Karaman ou Cilicia, onde começam a falar o árabe vulgar. Por toda a Turquia, Tartária, Pérsia, Síria, Arábia, Egito, Barbária e Índia, a língua árabe gramatical é compreendida, por causa do Alcorão e das leis judiciais, que por ali são recebidas como por aqui a latina o é na Áustria, Hungria, Polonia, Alemanha, Suécia ou Gotlândia, Inglaterra, França, Espanha e Itália. Acontece que os maus façam injúrias todos os dias, como por exemplo pegar um homem sozinho em algum deserto, sem testemunha, e vendê-lo como escravo [73] antes que o pobre homem possa encontrar um juiz para fazer sua queixa e ter ajuda da justiça. Se for um homem bem montado, como na Turquia não há correios e os servidores do Turco têm ordem de pegar cavalos onde os encontrarem para levar seu correio (o que ocasiona a execução de mil injúrias), podem pegar seu cavalo e levá-lo durante um, dois ou três dias. O quanto quiser o malvado, se o pobre homem não o comprar por alguns ducados, para possivelmente tê-lo imediatamente tomado por um pior, pois ali podemos praticamente dizer o diabo das melhores pessoas da corte, quando têm a oportunidade de fazer o mal.
Por isso, quem não fizer toda a viagem por mar, deve fazer o que segue. Quando se coloca os pés na Turquia sem trocar a vestimenta da cabeça, é preciso dizer-se de um país do qual se conheça os caminhos e as línguas (pois eles são muito suspeitosos em caso de espiões, e pessoas que vão para observar). Deve-se atentar ainda para que o país ao qual diz pertencer seja confederado, amigo, sujeito dos turcos, ou pertença a outro príncipe bárbaro. Em seguida, convém dizer-se um mercador desejoso de buscar, trazer ou conduzir mercadorias (os embaixadores e mensageiros são pessoas privilegiadas, mas que andam pouco pelo país sem homens do Turco ou sem salvo-conduto), expondo todas as razões, fazendo reverência e oferecendo algum presente ao Sangeac. Este é o capitão do país onde se encontrará e quem pode te dar o salvo-conduto para ir aonde quiser, sem nenhum impedimento. [74] Além disso, se você aceitar e em troca de salário, ele fornecerá o homem de algum senhor que te conduzirá até onde quiser, assim como um dragman, ou intérprete. Se tiver sido por algum tempo residente no Cairo, em Constantinopla ou em alguma cidade, poderá ir aonde quiser por navio ou com as caravanas e companhias de mercadores. Não se pode entrar em suas megesdas ou igrejas, pois eles te farão turco ou de sua religião. Só fale de sua religião em bem, ainda que te perguntem o que te parece. Se disser mal dela ou de seu profeta, te farão turco ou te matarão. Não pergunte sobre os assuntos do príncipe ou do reino, a menos que seja sobriamente e a um grande amigo. O seu pescoço depende disso e, nesses assuntos, sob a menor suspeita eles fazem morrer um homem.
Encontrará aí todo o necessário para a vida humana, menos o vinho e o porco. O vinho ou o licor grego pode ser encontrado na casa dos judeus e o porco e o vinho na casa dos cristãos; ambos em abundância. Em qualquer lugar poderá ir às cerimônias e missas, como por aqui, pois os turcos não impedem ninguém de viver a sua fé. Se algum vilão te fizer algum impedimento, pode entrar com uma ação junto ao juiz do lugar. Em Constantinopla e em Pera, que antigamente era uma parte daquela, acontecem as missas dos gregos todos os domingos, e algumas celebrações, uma vez por dia. Os armênios também possuem várias celebrações, mas antes de dizer a missa jejuam um dia e se abstêm durante três dias de suas [75] mulheres, como os gregos (pois todos os sacerdotes do mundo, com exceção dos da igreja Romana, são casados). Em Pera, encontramos ainda franciscanos, dominicanos e beneditinos, que cantam à moda franca ou à romanesca. Eis o meio usual de conviver com os turcos, como comumente vivem entre si, e como um estrangeiro deve viver. Lá são faladas todas as línguas do mundo, pelo fato de seus cativos virem de todo lugar, mas as principais são, como já disse, o grego vulgar, o turco e o eslavo, pois quase não encontrará pessoas que não saibam falar pelo menos duas línguas. São muitos, portanto, os dragmans ou intérpretes, necessários àquele que deseja comercializar. No que diz respeito aos judeus, sabem quase todos o espanhol, o grego e o turco. Quem quiser fazer algum tratado, terá êxito facilmente se for cuidadoso e se esforçar.
A língua latina não tem lugar ali. A grega gramatical bem pouco, somente entre alguns sacerdotes e monges do patriarcado e no Monte Santo ou Monte Atos, onde há alguns religiosos de São Basílio trazidos de toda a Grécia, onde são todos doutos como os sacerdotes comuns daqui. Mas demoramos muito na conduta geral. Passemos então à sua lei e crença, o que será mais bem feito se começarmos pela origem de sua lei ou religião. O que foi escrito até agora sobre seu Muhamed, que eles chamam de profeta, é em parte diferente do que eles têm por escrito. [76] Depois de ter lido diligentemente em seus livros, escreverei. Fazendo isso e trazendo as coisas à luz, penso que frente a sua loucura se refutarão melhor por eles mesmos, do que por alguma ficção ou confrontação com uma história que eles não aceitam. Acredito que um bom espírito, ao ver tais asneiras, não poderá considerá-las senão como bobagens e fantasia. Eles possuem muitos livros pertencentes à sua religião, mas, entre todos, o mais estimado é o Alcorão. O outro, apócrifo, que está sempre nas mãos do povo (como é comum que se prometa as maiores bobagens aos mais bobos), é a doutrina de Muhamed que chamam de ta alimelnebi. Doutrina do Profeta onde estão contidas as mais fanáticas loucuras que o espírito poderia imaginar ou fabricar e que me horrorizaram por sua tolice e blasfêmia. O terceiro mais frequente é o haditb elnebi, ou história do profeta, onde narram sua vida e morte, segundo os seus livros. O conjunto possui o mesmo estofo que os anteriores. Os livros das leis civis são interpretações do Alcorão, mas não ligam a pecado mortal, pois dizem respeito às penas civis e públicas. Quanto à louca bobagem e às blasfêmias que se encontram no Alcorão, mostrá-las-ei na sequência, mas primeiro transmitirei a vida desse fino profeta, com seus livros próprios. À imitação do que fazemos com Jesus Cristo no Evangelho, eles forjaram uma genealogia desde Adão até o tal Muhamed.
Referência
bibliográfica
Postel, Guillaume (1510-1581). De la république des Turcs : & là où l'occasion s'offrera, des moeurs & loy de tous les Muhamédistes. Editor Enguibert de Marnef, Poitiers, 1560.
1 Apesar da evidente incorreção em traduzirmos a divindade muçulmana por Deus, manteremos essa forma em virtude de o autor já fazê-lo em francês. Na medida em que ele faz inúmeras referências em turco ou em árabe, consideramos pertinente mantermos as formas que que representam uma escolha do autor em deixar o termo em língua francesa.
2 Muezim.
3 Muezim.
4 Dubrovnik.
5 Má fé.
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