Revista Sísifo. N° 12, Julho/Dezembro 2020. ISSN 2359-3121. www.revistasisifo.com
Emanoel Luís Roque Soares - Prof. associado II, da UFRB/CFP, prof. do mestrado profissional em História da África UFRB. Ph.D. em educação UFC/FACED/2019, Ph.D. em Educação UFPB/FACED/2012, doutorado UFC/FACED/2008, mestrado UFBA/FACED/2004, especialização UFBA/FACED/2001. Bel em Filosofia UCSAL/1999. emares@ufrb.edu.br http://lattes.cnpq.br/3011122221
RESUMO O presente artigo traz uma visada nietzscheana e na
história da estética e a tentativa de resgatar o momento do declínio da
tragédia Ática e suas consequências, tanto para as artes como para as ciências,
nos dias de hoje. É também importante como resgate no sentido de atentarmos à
presença dos dois espíritos da obra de arte (Dionisíaco e Apolíneo), elementos
essenciais para todos, que trabalham com arte e educação, além de tratar das
influências morais do fim da tragédia Ática, reafirmando que a ética e a
estética andam juntas. Revelando que os princípios estéticos socrático e
platônico reduzem a arte a um racionalismo inteligível, consciente e bom que
mataram a tragédia e inauguram um novo período previsível, racional, de pouca
sensibilidade corpórea e de muita moralidade, é que empurram para fora da arte,
a embriaguez dionisíaca e o sonho apolíneo, que se complementa com a inversão
de valores do cristianismo religião mórbida e ascética que nega a vida e
inverte os valores da humanidade.
Palavras-chave –
arte, moral, embriaguez, inversão de valores, cristianismo
INTRODUÇÃO
Em dois momentos da história da
humanidade acontece uma arrefeção do espírito humano e em ambos os momentos,
tanto a arte quanto a ciência sofrem consequências desastrosas, pois é necessário,
para ambas, vigor e potência, de modo que gere um ambiente de harmonia dos
contrários, onde sempre ocorrerá intervertimentos que inclua sem perdas, sem
dicotomias, para que arte e ciência
floresçam com o esplendor humano.
Para o verdadeiro espírito
criador do artista é necessário o enlaçamento de dois deuses em harmonia, da
mesma maneira que para uma razão forte e virtuosa exigida nas descobertas
científicas é necessária uma inversão total dos valores de escravos que fomos
submetidos pelo cristianismo, pois nem a individualização apolínea, nem a moral
dos submissos são capazes de despertar a arte ou revitalizar as ciências.
Precisamos, pois reencontrar
estes elos perdidos, acordar o espírito dionisíaco que adormece escondido em
algum lugar excluso, sem, é claro, abrir mão do Apolíneo, além de libertarmos
nossos espíritos da estupidez ascética do cristianismo, para que, assim,
possamos ser espíritos livres e voarmos alto acima do bem e do mal, homens
fortes, ou melhor, super-homens que somos.
Que este olhar lançado sobre o
mundo helênico e o cristianismo nos sirva para que possamos compreender a
necessidade dos opostos na vida humana, que nos mostre a verdadeira existência
da vida humana sem pecados, desde quando tudo quanto é ato dos homens não pertencem
a divindades e, sim, ao próprio homem que traz consigo a ideia do divino, do
qual ele – o homem – é o inventor.
Um outro aspecto deste escrito é
mostrar como uma religião ascética é capaz de perverter, ou melhor, inverter
valores que diminuem a potência humana em nome do poder de uma instituição, ou
como diria Nietzsche, inventou-se o pecado para submeter o homem a padres.
Não poderíamos deixar de falar e
mostrar, também, o perigo que a surda revolução de escravos traz aos homens
livres, pois todo excesso de humildade tem cheiro de falsidade e essa humildade
falsa é sedenta de poder, que em nome de nosso Senhor Jesus Cristo já se matou,
saqueou, proibiu o crescimento e florescimento da humanidade, gerou os
preconceitos de gênero, raça e credo. Pois, o cristianismo, hoje, ressentido e
que, através da igreja, nos pede perdão, foi até pouco tempo atrás, o pior
carrasco da humanidade e o protestantismo em nome de Cristo vem extorquindo os
pobres de todo o mundo, tornando-se uma praga à proliferação das igrejas
protestantes que vendem a salvação instantânea, no meio da população excluída
financeiramente e carente de investimentos sociais.
Nós, pensadores livres, não
podemos deixar de combater todos os dualismos maniqueístas e maneiras de
exploração da humanidade, sobre pena de deixarmos amolecer o espírito e o vigor
do homem.
Mostrar percursos estéticos que
possam nortear as ciências para proveito e prazer humano é também função do
homem livre, que busca o voo alto para melhor observar a si próprio e compreender
a sua existência.
É sem dúvida na tragédia ática
que podemos encontrar ao mesmo tempo os espíritos apolíneo e o dionisíaco, pois
é na cultura helênica que estes dois espíritos estão engendrados, fundidos em
um só, lado a lado, em constantes contendas que são a gênese da criação das
mais belas obras de artes plásticas (apolínea) e musical (dionisíaca), é do
exercício do antagonismo que nasce o belo e forte na arte, assim como, na
dualidade dos gêneros se concebe a vida, pois é deste misto de guerra e paz,
bem e mal, masculino e feminino, verdade e falsidade, erro e acerto não só da
lógica ou matemática ou da embriagues que se promove a criação estética, é sim
deste conflito antagônico, dos diferentes, pois sem este duplo caráter não
haviam batalhas nem caos gerador.
Deste modo, podemos ver que no
artista, ou melhor, no gênio criador estão contido estes dois princípios e que
não é a sua maneira geometrializada de
pensar, nem tão pouco a sua forma racionalista de problematizar que é gerada a
obra de arte e, sim o seu conflito interior, seu deus e seu diabo que são
imprescindíveis na geração de tal evento.
Para percebermos a distinção
entre os dois espíritos tomaremos assim como Nietzsche duas atividades da vida
humana e fazendo a analogia entre elas evidenciaremos as suas vicissitudes e
diferenças. O primeiro, o apolíneo, que é um espírito do mundo dos sonhos e o
segundo, o dionisíaco, o espírito da embriaguez, como já dissemos antes, dois
instintos diferentes que se completam, que necessitam um do outro, para juntos
poderem atingir a perfeição, das mais puras manifestações artísticas, capazes
não só de transmitir um prazer estético pleno a quem as apreciam, mas, também,
de dar sentido as suas vidas cotidianas, além de eternizarem este fenômeno
antagônico e bipolar da criação da obra de arte.
É, no mundo dos sonhos da psique
onde aparecem as imagens cheias de ilusões que se manifesta o espírito
apolíneo, pois o mesmo carece de interpretações, diz Nietzsche:
A bela aparência do mundo do sonho, em cuja produção
cada ser humano é um artista consumado, constituía precondição de toda arte
plástica, mas também, como veremos, de importante metade da poesia. Nos
desfrutamos de uma compreensão imediata da figuração, todas as formas nos
falam, não há nada que seja indiferente e inútil. Na mais elevada existência
dessa realidade onírica temos ainda, toda via, a transluzente sensação de sua
aparência: pelo menos tal experiência, em cujo favor poderia aduzir alguns
testemunhos e passagens de poetas. (NIETZSCHE, 2001, p.28)
Na verdade, todo homem com um
pouco de imaginação que seja, desconfia e alguns até creem não ser esta
realidade por nós vislumbrada a nossa verdadeira realidade. Segundo o próprio
Nietzsche, a primeira não passa de uma aparição da segunda, quer dizer, é uma
máscara para velar a segunda, e desta maneira, é o sonho uma máscara que vela o
real e nos deixa intrigados e perplexos perante a nossa própria existência.
Para o artista grego é
necessário um estudo detalhado do mundo dos sonhos para que, através desta
investigação ele possa descobrir suas estruturas internas, suas imagens e tudo
que é de belo, alegre, feio, triste, etc., que o sonho encobre em seu interior.
Viver o sonho é uma condição sine qua non na vida do artista que prazerosamente
desfruta das novas formas e imagens contidas neste para originar suas obras. O
sonho é também necessidade do homem comum, pois sem ele não se reinventaria a
vida, tornando-a monótona, desprovida de novas invenções ou descobertas, sem
expectativas para o desvelar.
Sim, poder-se-ia
dizer de Apolo que nele obtiveram a mais sublime expressão a inabalável
confiança nesse principium e o tranquilo ficar aí sentado de quem nele está
preso, e poder-se-ia inclusive caracterizar Apolo com a esplêndida imagem
divina do principium individuationis, a partir de cujos gestos e olhares nos
falam todo o prazer e toda a sabedoria da “aparência”, juntamente com a sua
beleza. (NIETZSCHE, 2001, p.30).
Assim,
tanto para Nietzsche como para Schopenhauer, é este excesso de confiança em si
mesmo, esta passividade com determinação que caracteriza a individualidade
apolínea que provoca pavor no homem perante a derrota frente aos fenômenos,
pois o apolíneo não está preparado para perder de tão alto confiante que
é, não admiti exceção perante sua derrota,
dada sua necessidade da fusão com o espírito dionisíaco o que configura as
dificuldades encontradas pelas artes, ciências, etc., quando se afastam do
sensível, da possibilidade, do erro, da condição humana em nome da razão
perfeita, inequívoca das aparências, confiante e individualista.
Para melhorar a nossa compreensão, vejamos as
características do espírito dionisíaco que se apodera dos homens como força de
vontade de potência, vontade de renovação, que traz o homem para um convívio
consigo mesmo e com a natureza, gerando assim, a libertação do escravo e
proclamando a harmonia, divinizando o homem, levando-o a ter atitudes de um
Deus que antes este só via em sonhos e agora está livre, devido ao estado de
torpor, de embriaguez que transforma o artista na sua própria arte.
Assim é Dionísio ou Baco, o Deus do drama, da
dança, da música, do sofrimento, do instinto de aventura e da inspiração, da
reprodução, do vinho, da vida superior, do prazer pela ação e da emoção
arrebatada. Dionísio, um Deus estrangeiro, que penetra no mundo helênico para
dar-lhe o verdadeiro sentido da arte. Segundo Nietzsche, a melhor analogia para
compreendermos o estado dionisíaco é a embriaguez e a orgia, a beberagem com a
qual todos os povos cantam e se reproduzem primaverilmente, sem pudores,
humanizados a tal ponto, narcotizados a tal modo que o escravo se torna livre.
O culto da religião dionisíaca trazia novos valores
para a Grécia, que punha em xeque a individualização apolínea, o conhece a ti
mesmo promovendo a reconciliação do homem com a natureza, com os outros homens
e com o universo. Em vez do eu interior, ressentido, acanhado o dionisíaco era
orgulhoso e expansivo.
Os gregos,
fortes em seus instintos, encontram esta força na mistura entre intensa
sensibilidade para o sofrimento (o trágico) e uma magnífica sensibilidade
artística (otimismo). Esta sensibilidade intensa e o otimismo colocavam em
risco o povo grego, de modo que somente após a fusão com o pessimismo trágico
dionisíaco o povo grego vem superar este problema existencial. Este pessimismo fez-se
necessário devido a viverem da aparência gerada pelo espírito apolíneo e sua
imagem de perfeição da existência que o próprio grego criou quando imaginou a
perfeição do Olimpo, um mundo de sonhos onde tudo é divino, tanto o bem como o
mal, onde não existe lugar para obrigações, e sim exuberância e luxo,
vitalidade e triunfo, uma imagem de perfeição da existência, um véu, a
aparência da realidade.
Podemos ver que esta condição pessimista se junta
ao dionisíaco grego através do personagem lendário, o sábio Sileno, mudando de
enfoque quando acrescido ao espírito apolíneo a sátira dionisíaca.
Reza a antiga lenda que o rei Midas perseguiu na floresta, durante longo
tempo, sem conseguir capturá-lo, o sábio SILENO, o companheiro de Dionísio.
Quando, por fim, ele veio a cair em suas mãos, perguntou-lhe o rei qual dentre
as coisas era a melhor e a mais preferível para o homem. Obstinado e imóvel, o
demônio calava-se; até que, forçado pelo rei, prorrompeu finalmente, por entre
um riso amarelo, nestas palavras: - Estirpe miserável e efêmera, filhos do
acaso e do tormento! Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti mais
salutar não ouvir? O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter
nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo
morrer. (NIETZSCHE, 2001, p.36)
Satirizando
o seu próprio sofrimento, ou melhor, acrescentando o espírito dionisíaco ao
apolíneo os gregos saem do pessimismo existencial criando otimismo trágico e
assim os gregos conheceram e sentiram as angústias e os horrores da existência:
para lhe ser possível viver teve de gerar em sonho o mundo brilhante dos deuses
olímpicos tornando esta arte e religião mais humana. A sabedoria popular uniu
sua vida cotidiana ao Deus mais humano da embriaguez, Dionísio, capaz de rir da
própria existência, e justificando a existência do mundo, através do fenômeno
estético, de maneira que o artista passa a ser uma espécie de Deus, porém, um
Deus não moralista, para quem a criação ou a destruição, o bem ou o mal, sejam
manifestações, do seu arbítrio indiferentes e da sua onipotência. O grego com
seus dois estados de espíritos da decadência do pessimismo e da
superficialidade do otimismo ao otimismo trágico que é a característica do
homem forte que luta pela vida, mesmo com toda desgraça que esta possa
representar, sem desistir dela, este homem rir dos infortúnios e fortalece o
espírito com as tragédias.
Assim, podemos notar que a ingenuidade tanto na
arte, nas ciências ou na vida está representada pelo espírito da perfeição
apolíneo que é sem dúvida um véu da realidade e como diria Nietzsche, a
mentirosa aparência.
Pois, Apolo é o Deus da ética, como já foi dito,
dos limites do não a excessos, contrário a tudo que é bárbaro e desvairado que
é dionisíaco, tudo que é encanto e sedução, que através dos seus cânticos fez o
homem grego apolíneo conhecer a verdade real durante a embriaguez, que expõem o
sujeito a erros, desejos e sofrimentos puramente humanos e igual ao do Deus.
Diz Nietzsche:
A moral mesma – como? A moral não seria uma << vontade de negação
da vida>>, um instinto secreto de aniquilamento, um princípio de
decadência, apequenamento, difamação, um começo do fim? E, em consequência, o
perigo dos perigos?... Contra a moral, portanto, voltou-se então, com este
livro problemático, o meu instinto, como um instinto em prol da vida, e
inventou para si, fundamentalmente, uma contra doutrina e uma contra-valoração
da vida, puramente artística, anticristã. Como denominá-la? Na qualidade de
filólogo e homem das palavras eu a batizei, não sem alguma liberdade – pois
quem conheceria o verdadeiro nome do Anticristo? – com o nome de um deus grego:
eu a chamei dionisíaca. (NIETZSCHE,
2001, p.20)
E, desta maneira, o cristianismo que nega a vida,
tem ódio do mundo, medo da volúpia disfarçado em fé na busca esperançosa de uma
vida além morte, encontra um inimigo natural no Deus artista demasiadamente
humano embriagado de
imensa vontade de viver chamado Dionísio, que preza a vida não a achando
imoral como os cristãos e desejando-a a cada momento, vivendo-a, invertendo
assim, a sátira de Sileno, ou melhor, ao invés de morrer, morrer, viver, viver,
tornando a vida digna de ser desejada e instituindo novos valores para ela ser
vivida.
Para Baco, a existência é uma eterna festa sem pecados, com muita música, vinho e volúpia. Dionísio com a sua inquieta força masculina, contrastando com Apolo, a tranquila força feminina. No drama trágico grego, Dionísio inspirou o coro e Apolo, o diálogo, e assim permanecem juntos, música e poesia, na tragédia ática.
O DECLÍNIO E O FIM DA ARTE TRÁGICA
É certo que a tragédia ática na sua forma primeira
tinha como centro de sua forma a adoração apaixonada ao Deus Dionísio o qual
era seu único herói, e assim, ele perdurou, até Eurípedes, pois até então todos
os heróis eram apenas máscara do Dionísio.
Então, deste modo, podemos entender que por trás de
todo herói grego trágico está o Deus Dionísio e que este Deus aparece nos atos
e palavras deste herói e torna-se claro, graças a interpretação apolínea dos
sonhos que os fazem aparecer. Isto é o real e Dionísio, heróis (Édipo,
Prometeu, etc.) formas de Dionísio aparecer manifestar-se, quem o desvela o
torna aparente, Apolo, Deus da interpretação, da aparência simbólica, pois é
através de Apolo que o coro revela o seu estado dionisíaco de mistérios e
sofrimento.
É, sem dúvida, a paixão dionisíaca, ponto de
existente do terreno do humano e o apolíneo, a fonte da individuação e a origem
de todos os males.
E deste modo, a epopeia homérica apropriada do poema
trágico é o melhor do espírito dionisíaco fazendo os gregos transformar seus
heróis sonhados na realidade de seus antepassados. E a tragédia grega que vinha
passando por transformações que a levaram a seu fim, fim este que, segundo
Nietzsche não é um fim pomposo, merecido por uma grandiosa obra de arte e, sim,
o fim matado, ou melhor, um assassinato cometido principalmente por Eurípedes.
Diz Nietzsche:
O que pretendias tu, sacrilégio Eurípedes, quando tentaste obrigar o
moribundo a prestar-te mais uma vez serviço? Ele morreu sob tuas mãos brutais:
e agora precisas de um mito arremedado, mascarado, que, como o macaco de
Hércules, só saiba engalanar-se com o velho fausto. E assim como o mito morreu
para ti, também morreu para ti o gênio da música: e mesmo se saqueaste com
presas ávidas todos os jardins da música, ainda assim só pudeste chegar a uma
arremedada música mascarada, E porque abandonaste Dionísio, por isso Apolo
também te abandonou: afugenta todas as paixões de seu covil e as conjura em teu
círculo, afila e aguça como se deve uma dialética sofística para as falas de
teus heróis – também os teus heróis têm paixões arremedadas e mascaradas e
proferem apenas falas arremedadas e mascaradas.(NIETZSCHE, 2001, p.72)
O fim da tragédia, como já dissemos, foi trágico e
deixou um grande vazio no mundo grego helênico, um vazio de dor e angústia,
pois ela, a tragédia, não pode ver sua descendência, pois não acabou, ou
melhor, não morreu lentamente e sim, abruptamente, gerando um vácuo trágico na
história das artes e na maneira do conhecer humano, nas ciências e na
existência do homem, pois esta morte produziu uma impressão, comoção e silêncio
universal, segundo Nietzsche fazendo ressoar no mundo helênico este grito.
A tragédia está morta! Com ela perdeu-se a própria poesia! Fora, fora,
idevos, raquíticos e definhados epígonos! Ide para o Hades, para que lá possais
saciar-vos ao menos com as migalhas dos antigos mestres! (NIETZSCHE, 2001, p.73)
O que surge, em seguida, é uma outra forma
de arte concebida da luta travada entre a tragédia e Eurípedes que se chama de
nova comédia ática, na qual a imagem da tragédia foi degenerada, pois, como já
sabemos, o fim violento da tragédia gerou este vazio degenerativo, penoso
retrato da luta.
Eurípedes é o responsável pela subida do homem
comum ao palco, que antes era frequentado apenas por heróis, por deuses, agora
é o lugar da representação do drama, do sofismo, pois Eurípedes modificou a
linguagem da arte e do público, trazendo para cena no lugar do mito heroico
trágico a vida cotidiana desvelando seus segredos. Não havendo assim, na arte
grega mais o semideus, a embriaguez dionisíaca e a vida comum da família
burguesa grega que fez com que o povo passasse a comentar da vida comum dos
negócios públicos, da administração, tornando assim a arte trágica numa
educação para o povo grego que julgava Eurípedes ser necessário educar.
Deste modo, o povo grego que perdeu a
tragédia, também perde a sua fé na imortalidade, não mais via a sua existência
a igual semelhança da existência do divino caindo o mundo grego numa ataraxia
mole, pálida, digna dos doentes incapazes que eram de assumir
responsabilidades, além do cotidiano, esquecendo, assim, o período do século
sexto do nascimento da tragédia como se esta nunca estivesse existido em troca
de um sensualismo digno de escravos.
A comédia de Eurípedes preocupada em demasia com a
compreensão do público da obra de arte, abandonou a obra em si em nome de uma
compreensão fria e racional que menosprezava a capacidade de compreender do
público e tirava o brilho da surpresa que outrora a arte trágica grega
reservava.
Segundo Nietzsche, Eurípedes, o poeta da
consciência do povo que se sentia superior a seus espectadores é o Eurípedes
pensador que não compreendia bem as maneiras da tragédia grega e a estudava
profundamente, visando modificações que melhor as fizesse compreender
introduzindo assim nova linguagem, tanto oral como expressiva a seus
personagens, pois para ele o problema da moral não estava bem resolvido na
tragédia e a escuridão de algumas partes para ele era a certeza da utilização
de linguagem escandalosa e inexplicável.
Deste modo, Eurípedes procurou de
maneira puramente didática esclarecer todas as dúvidas e falas da tragédia não
deixando obscuridades, nem entrelinhas, para que o povo tentasse decifrar, esta
didática errônea tirou o encanto da surpresa e emoção da tragédia ática,
tornando-a um espetáculo meramente previsível, excessivamente apolíneo, o que
enfraquecia também a posição de Apolo, além de deixar a obra teatral grega sem
o enigma.
E assim,
tornou o mundo trágico num mundo sem sombras, sem obscuridades, muito claro e
explicado de uma imensa compreensão, para o qual não cabiam perguntas ou
esclarecimentos, pois tudo estava metodicamente dado, tão claro e de tamanha
luminosidade que não deixa margens para descobertas, conduzindo a arte grega
para um racionalismo e logicismo que também influenciou toda a vida, religião e
ciência da Grécia e, consequentemente, do mundo ocidental, eliminando o erro, o
trôpego, o deslize fazendo com que, devido ao grau de acerto a arte, a vida, a
ciência fique sem graça e desinteressante.
Diz Nietzsche, que na falta do entendimento,
Eurípedes começou a consultar a opinião de outros que não lhes davam a resposta
desejada e que também não lhes confessavam a incompreensão, até que sua voz fez
eco com a de Sócrates e aí começou a oposição do seu conceito sobre o que era a
tragédia grega, a sua forma original através da criação por parte de Eurípedes
de novas obras totalmente diferentes da antiga e tradicional tragédia grega
que, como já sabemos, encontramos inconciliáveis a presença do coro e do herói,
os dois espíritos, as duas tendências artísticas geradoras de uma só arte que
são os instintos apolíneo e dionisíaco.
A intenção
de Eurípedes era, segundo Nietzsche, de reconstruir um teatro para a arte, a
moral e a mundivisão, o que nos deixa claro a sua opção de excluir o elemento
dionisíaco que não goza destas características. Com o afastamento violento do
dionisíaco o que era apolíneo perdeu sua força e o que passa a falar através de
Eurípedes é o socrático, responsável direto pela falência da tragédia grega.
O socratismo tem como essência a compreensão, pois
para Sócrates, segundo Nietzsche tudo deve ser inteligível para ser belo e só é
virtuoso quem é ciente. É a partir destas bases que Eurípedes vai regular todos
os elementos da arte trágica grega de modo que além de destruir a presença dos
dois espíritos vai conduzir o teatro grego a uma cegueira racionalista na qual
não estão presentes a beleza e embriaguez da música e a força das estruturas
arquitetônicas, renunciando assim as surpresas que é o efeito artístico da
imprevisibilidade do erro.
Na tragédia original existia um prólogo onde as
indicações eram suficientes para que a plateia pudesse compreender o enredo, a
trama, através destas pistas que encobria o formal e descobria o casual, porém
Eurípedes julgava que esta introdução causava comichão, inquietação, sofrimento
no público, pois ele não conseguia ver nenhuma beleza poética neste estilo, aí
criou um narrador que, após o prólogo esclarecia aos espectadores.
Diz Nietzsche:
Por isso
introduziu o prólogo antes da exposição e na boca de uma personagem a quem se
devia conceder confiança: uma divindade precisava, em certa medida, garantir ao
público o desenrolar da tragédia e tirar toda dúvida quanto à realidade do
mito: mais ou menos como Descartes só conseguiu demonstrar a realidade do mundo
empírico apelando para a veracidade de Deus e a sua incapacidade para a
mentira. Essa mesma veracidade divina é utilizada por Eurípedes mais uma vez no
encerramento de seu drama, a fim de salvaguardar perante o público o futuro de
seus heróis: é a tarefa do famoso deus ex machina. Entre a visão épica do antes
e a do depois, encontra-se o presente lírico-dramático, o «drama » propriamente
dito (NIETZSCHE, 2001, p.82)
Esta é a vontade de Eurípedes, por ordem em tudo,
explicar e esclarecer, bem traduzida segundo F. Nietzsche nas palavras de
Anaxágoras, “no princípio tudo estava juntado: aí veio a inteligência e criou
ordem” (NIETZSCHE, 2001, p.82) e esta vontade de pôr ordem em
tudo foi contra a embriaguez, ao sonho, querendo tornar o poeta um consciente e
racional, acabando assim com a poesia, a arte, a música, a ciência.
Pois, o princípio estético socrático e platônico
reduz a arte ao racionalismo inteligível, consciente e bom que são os
princípios que matam a tragédia e inauguram um novo período previsível,
racional, de pouca sensibilidade corpórea e de muita moralidade que empurra
para fora da arte, a embriaguez dionisíaca e o sonho apolíneo.
Eurípedes, através dos seus próprios prejuízos,
julgava que arte grega era um caos, uma desordem e que ela clamava por ordem e
esclarecimentos, pois acreditava ele que a qualidade da obra conferia-se na sua
clareza e ordenamento e como Sócrates acreditava que o belo é o compreensível,
por isto pensando está fazendo um favor aos gregos livrou-se da embriaguez e do
estado caótico que conferia a beleza ímpar da tragédia ática.
Diz Nietzsche:
Eurípedes se
encarregou, como também Platão o fizera, de mostrar a contraparte do poeta
«irracional»; o seu princípio estético: «tudo deve ser consciente para ser belo
», é, como já disse, o lema paralelo ao princípio socrático: «Tudo deve ser
consciente para ser bom». Em consequência disso, Eurípedes deve valer para nós
como o poeta do socratismo estético. Sócrates, porém, foi aquele segundo
espectador, que não compreendia a tragédia antiga e por isso não a estimava;
aliado a este, atreveu-se Eurípedes a ser o arauto de uma nova forma de criação
artística (NIETZSCHE, 2001, p. 83).
Foi Sócrates que por também não
compreender a tragédia a desmerecia, que aliado com Eurípedes criou a nova arte
matando a velha tragédia grega. E, também é Sócrates quem expulsa Dionísio da
arte da poesia, consequentemente do mundo ocidental. Ele, que junto com
Eurípedes, pois eram tão juntos que para os gregos tornavam-se uma só pessoa e
que juntos trataram de acabar com a tragédia, pois julgavam que estivessem consertando
erros e dando forma perfeita e bela à arte.
Foi o mesmo, Sócrates que
ironicamente dizia que nada sabia e ao mesmo tempo era julgado pelo oráculo de
Delfos como o homem mais sábio do mundo, que decidiu, segundo Nietzsche
consertar o mundo esclarecendo e tornando tudo compreensível e racional,
abrindo assim um caminho para as ciências lógicas e racional, caminho este que
vai custar muito caro à própria ciência, pois um futuro não muito distante a
própria ciência vai compreender que sua própria existência está intimamente
ligada ao erro, ao sensível ou irracional, a embriaguez e ao acaso, que tanto
Sócrates condenou quando expulsou o espírito dionisíaco e a sua embriaguez da
tragédia ática
Sócrates era o sabujo que não
parava de farejar em busca da verdade do que fosse útil, para ele, poesia e
arte eram para os pobres de espírito, eram divertimentos, o que não continham
nada de verdadeiro ou filosófico e por isto não era útil. É interessante notar
que música e poesia eram as principais forças moderadoras da alma para os
sofistas inimigos mortais de Sócrates e Platão e, talvez, por causa desta
querela da época a poesia trágica tenha encontrado em Sócrates seu feroz algoz
que conseguiu transformar toda trama emocionante da tragédia dionisíaca em
naturalismo, em razão natural humana, quando leva o otimismo para o interior da
tragédia.
Diz Nietzsche:
Basta
imaginar as consequências das máximas socráticas: « Virtude é saber; só se peca
por ignorância; o virtuoso é o mais feliz»; nessas três fórmulas básicas jaz a
morte da tragédia. Pois agora o herói virtuoso tem de ser dialético; agora tem
de haver entre virtude e saber, crença e moral, uma ligação obrigatoriamente
visível; agora a solução transcendental da justiça de Ésquilo é rebaixada ao
nível do raso e insolente princípio da
«justiça poética» com seu habitual deus ex machina (NIETZSCHE, 2001, p.89)
Desta maneira, o coro, a emoção
dionisíaca da música é substituída pela fala dos atores que agora coordenam o
coro que logo a seguir é manipulado, pois para Sócrates era necessário
livrar-se do conhecimento trágico em nome da lógica, que mais tarde o homem das
ciências vai perceber que o erro de Sócrates foi querer a todo custo se livrar
do erro e não perceber que ciência e arte são indissociáveis, pois sem o velamento
e a obscuridade do mundo trágico da arte não haveria possibilidade de uma
ciência, pois tudo já estaria dado e claro. É este ponto de vista socrático que
vai acabar com a era da harmonia grega entre apolíneo e dionisíaco que vai
servir como uma luva para dicotomia cristã do corpo e alma.
Ao educador a
primazia ao elemento apolíneo-racional, Sócrates destruiu a tensão entre este
elemento e o dionisíaco-irracional quebrando assim a própria harmonia. Com
isso; o que ele fez foi moralizar, escolasticizar, intelectualizar a concepção
trágica do mundo da Grécia antiga (JAEGER, 1986, p.496)
Deste modo, a tragédia ática tem
o fim de seus dias na era socrática e as teorias dualistas e as deficiências
das ciências e artes modernas vem a florescer com o mesmo.
A INVERSÃO DOS VALORES VIA CRISTIANISMO
Cabe a nós espíritos livres resgatarmos o espírito
dionisíaco de seu exílio, trazendo à tona os mitos heroicos gregos e a música
ditirâmbica, espelhando-nos, pois no que tem de virtuoso da cultura e arte
helênica para com a companhia do verdadeiro anti-cristo combatermos esta religião mórbida e ascética que nega a vida e inverte os
valores da humanidade.
Somente com a música embriagada do coro, Dionísio
pode voltar e através da sua embriaguez em conjunto com a perfeição apolínea
possa trazer de volta a harmonia da arte.
Cantemos espíritos livres, pois só através da
música poderemos novamente ser fortes e vencermos o que existe de negação da
vida, e, assim, fazermos cumprir a ordem de condenação do cristianismo,
proposta por Nietzsche, pois a igreja que “de cada valor fez um não valor, de
cada verdade uma mentira, de cada retidão uma baixeza de alma” (NIETZSCHE,
1988,p.130) há de cumprir a sua condenação, libertando assim, a humanidade da
sua dominação.
Cantemos, espíritos livres, pois temos que combater
a castidade que é uma característica não humana, não natural que vai de
encontro a vida e a existência humana.
Cantemos, pois nós espíritos livres não podemos
sentir vergonha de nossa coragem na luta por uma vida melhor e não podemos
esperar por essa vida melhor depois da morte.
Cantemos e nos embriaguemos, pois o
mais importante é o amor do homem pelo homem que gera a vida.
Cantemos embriagados, pois a nossa salvação está em
Dionísio e só ele é capaz de dar as nossas vidas o delicioso prazer sem
pecados, sem medos ou culpas.
E então, os nossos instintos estarão livres e a
nossa virtude será plena, pois a harmônica arte helênica será plasmada por nós
e seu gozo estético poderá ser novamente sentido.
Cantemos para que o espírito humano fique
fortalecido e possa criar e descobrir novas técnicas e que estas técnicas
estejam sempre a serviço do homem.
Cantemos e embriaguemo-nos, pois a fartura não pode
ser um pecado, ou melhor, o pecado não existe, o que existe é um jogo de poder
do qual devemos nos libertar.
Cantemos, pois cantando não teremos tempo para a
misericórdia que nos torna fraco de espírito e em vez de livres, escravos.
Cantemos e embriaguemo-nos para podermos participar
da festa que é a vida e não ficarmos perplexos perante a sua finitude, que é
certa e degenerativa.
Cantemos em louvor a Dionísio, o deus grego da
desordem, do erro, da Eros, do caos, pois só assim poderemos dar um sentido a
nossas existências, sem dualismo e de uma maneira trágica, tornamo-nos parte do
todo.
Cantemos, pois o espírito da música que fala do
indizível, não precisa de conceitos ou teorias para nos libertar das
aparências, do individualismo da mesquinhez do “eu”, do solipsismo que só me
deixa ver o meu próprio umbigo, cantemos para um mundo do nós, da comunidade do
outro meu igual.
REFERÊNCIAS
BIBLIA SAGRADA, Tradução L. Garmus (Coordenação Geral). 37ª ed.,
Petrópolis: Vozes e Santuário, 1982.
JAEGER, Werner. Paidéia, Tradução Artur M. Parreira. 4ed., São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem
e do Mal. Tradução: Marcio Pugliesi. São Paulo: Hemus, 1977.
____________________. Anti-Cristo.
Tradução: Carlos Grifo. Lisboa: Presença, 1988.
____________________. O Nascimento da Tragédia. Tradução: J. Guinburg. 2ed. São Paulo: Cia das Letras, 2001.
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