Revista Sísifo. N° 12, Julho/Dezembro 2020. ISSN 2359-3121. www.revistasisifo.com
Ricciotto Canudo
Traduzido por Yves São Paulo
Ricciotto Canudo (1877-1923)
foi um poeta, romancista e crítico de cinema italiano, frequentemente
referenciado como o responsável pelo título de “sétima arte” ao cinematógrafo,
ainda nos idos da década de 1910. Seu ensaio de 1911, aqui reproduzido
integralmente em tradução inédita, faz parte de uma primeira compreensão de
Canudo sobre a nova arte, contando o cinematógrafo como sendo a sexta arte,
muito em inspiração do que haveriam feito filósofos como Kant e Hegel antes
dele, que listavam cinco artes. É
somente em 1923 que Canudo publicará seu Manifesto das Sete Artes, onde apontará o
cinema como sendo a sétima arte, incluindo à lista a dança faltante na primeira
incursão. Contudo, o leitor encontrará neste O Nascimento de uma Sexta Arte
um ensaio de fôlego, defendendo o Cinematógrafo como arte, própria ao mundo
moderno, realizando o exercício de pensar a novidade tanto em seu aspecto
estético, quanto ontológico,
oferecendo rico material aos estudiosos de filosofia da arte, e em particular
aos estudiosos da arte cinematográfica.
Yves São Paulo (tradutor)
I
É surpreendente
que todos os povos da terra, por fatalidade universal ou por telepatia
espiritual, não tenham senão a mesma concepção estética da natureza ambiental.
Em todos os povos, desde os mais antigos do oriente, até os mais recentemente descobertos pelos nossos heróis
geográficos, podemos notar as mesmas expressões do fantasma estético: a Música,
com seu complemento a Poesia, e a Arquitetura, com seus complementos, a
Escultura e a Pintura. Nestas cinco expressões da Arte se desenrola toda a vida
estética do mundo. É certo que uma sexta expressão da arte nos apareça de
imediato absurda, até mesmo inconcebível; nenhum povo pôde concebê-la, depois
de milhares de anos. Mas assistimos ao nascimento de uma sexta arte. Tal
afirmação, numa hora crepuscular como a nossa, vaga, ainda imprecisa como toda
época de transição, revolta os espíritos céticos. Vivemos entre dois
crepúsculos, aquele do anoitecer de um mundo, e aquele do alvorecer de outro. E
a luz do crepúsculo é imprecisa, e os contornos de todos os aspectos são
confusos, e aqueles de olhos afiados pela vontade de descobrir gestos
invisíveis e originários de seres e coisas, podem se orientar em meio à visão
embaralhada da anima mundi. Mas a sexta arte se impõe ao espírito
inquieto e escrutinador. E ela será a soberba conciliação dos Ritmos do Espaço
(as Artes plásticas) e os Ritmos do Tempo (Música e Poesia).
II
O teatro
realizou esta conciliação. Ela era efêmera porque a plástica teatral se
identifica àquela dos atores, sendo por consequência sempre diversa.
A nova expressão
da arte deveria ser, em realidade, precisamente uma Pintura e uma Escultura
se desenrolando no tempo, à maneira da Música e da Poesia, que não se
realizam senão ritmicamente no ar enquanto dura sua execução.
O Cinematógrafo,
de feio nome, indica o caminho. Um gênio, que é por definição um milagre, tal
como a beleza é surpresa, fará a obra de conciliação que hoje nos parece
concebível. Será ele quem encontrará os meios, até aqui inimagináveis, de uma
arte que por longo tempo ainda parecerá fabulosa [fabuleux] e grotesca.
É o desconhecido de amanhã que criará a enorme corrente de uma nova emoção
estética, de onde surgirá o mais absurdo dos triunfos, a Arte do plástico em
movimento.
III
O Cinematógrafo
é composto de elementos significativos, “representativos” no sentido
emersonianos e não no sentido teatral da palavra, e podemos desde já
classificá-los.
Existem dois
aspectos: um, simbólico, outro, real; todos os dois são bem
modernos, o que quer dizer que são possíveis somente em nossos tempos,
compostos por certos elementos essenciais ao espírito e à energia modernos.
O aspecto
simbólico é
aquele da rapidez. Uma sequência de combinações, de atividades combinadas, é
oferecida à rapidez que compõe um espetáculo, ou seja, de uma série de visões e
de aspectos ligados em um raio vibrante e visto como um organismo vivo. Este
espetáculo somente é obtido pelo excesso de movimento nos filmes, nas
misteriosas bobinas impressionadas pela própria vida. As histórias nas bobinas
de película se desenvolvem rapidamente em frente à, e na tela, e o espetáculo
dura o menor tempo possível. Nenhum teatro poderia oferecer com tal rapidez
vertiginosa a rapidez da mudança de cenários que oferece o Cinematógrafo, mesmo
dispondo das mais extraordinárias maquinarias modernas.
Mas mais do que
o movimento das imagens e do que a rapidez da representação, o que é
verdadeiramente simbólico em relação à velocidade é o gesto dos personagens.
Vemos o desenrolar das cenas mais tumultuosas com uma rapidez que parecer
impossível na realidade. Esta precipitação do movimento é regrada com uma
precisão matemática e mecânica tal que possa satisfazer os mais exasperados
corredores de distâncias. Por mil meios complexos e implacáveis, nosso tempo
destruiu o amor pela lentidão que é representada pelo cachimbo patriarcal
fumado junto à lareira doméstica. Mas quem pode hoje saborear esse cachimbo ao
lado de um fogo passivo, sem tremer os ouvidos com o barulho veemente dos
automóveis que se movem lá fora, noite e dia, em todos os sentidos, a nostalgia
irresistível dos espaços por conquistar? O Cinematógrafo pode conquistar o mais
veemente corredor. O automobilista que se detém, depois de uma corrida louca, a
assistir um destes espetáculos não será invadido pelo sentimento de lentidão:
as figurações da vida que lhe aparecem mais rápidas do que os espaços por ele
percorridos. O Cinematógrafo lhe dará também a visão de países longínquos, de
homens desconhecidos, de expressões humanas ignoradas, se movendo, se agitando,
palpitando perante o espectador acostumado à extrema rapidez da figuração. Este
é o segundo símbolo da vida moderna, representada pelo Cinematógrafo, um
símbolo “instrutivo” que encontramos em estado rudimentar na exibição dos
“fenômenos” de antigas feiras. É a destruição simbólica das distâncias, pelo
conhecimento imediato dos países mais diversos, similar à destruição real das
distâncias que os monstros de aço perseguem há um século.
O aspecto do
real do
Cinematógrafo é composto de elementos que interessam e maravilham a psicologia
do público moderno.
Parece cada vez
mais evidente que nossa humanidade procura ativamente em seus espetáculos a
representação mais significativa dela mesma. O teatro do eterno adultério, tema
único da cena burguesa, está enfim depreciado, e lutamos agora por um teatro
dos Poetas, novo, profundamente moderno com o renascimento da Tragédia, cujos
numerosos e vagos espetáculos ao ar livre representam até agora um intento
desordenado, incoerente, mas intensamente desejado. Inesperado, resumindo
imediatamente todos os valores de uma época ainda eminentemente científica,
entregue ao Cálculo e não ao Sonho, o Cinematógrafo se impõe ao se espalhar
singularmente, como um novo teatro, um tipo de teatro científico, feito de
cálculos precisos, de expressão mecânica. Nossa humanidade inquieta o recebeu
com alegria. E é este teatro da Arte plástica em movimento que parece nos
trazer a suntuosa promessa da Festa obscuramente esperada, a última evolução da
Festa antiga, que todos os tempos realizaram nos templos; nos teatros, nas
feiras. A tese é de que a Arte plástica em movimento criou a Festa. Ela foi
criada cientificamente e não esteticamente, e por isto mesmo ela triunfa
em nossa época, se desenvolvendo fatalmente, inelutavelmente, numa Estética
alcançada.
IV
Uma consideração
de ordem psicológica geral não pode escapar ao observador atento, que buscará
em cada movimento das massas uma significação com algo de eterno, tanto
tradicional como novo, nele contido.
No teatro
cinematográfico como nas festas carnavalescas, a humanidade retorna à infância.
Os espetáculos se desenrolam entre os dois extremos patéticos da emotividade
geral: o muito comovente e o muito cômico. Os cartazes contêm
suas duas promessas de emoção, combinando-as. Os espíritos passam violentamente
de uma à outra, como na vida. E a humanidade criança se esquece, se deixando
levar no movimento de representações ultrarrápidas, com um abandono que
dificilmente se encontraria nas salas de espetáculos de encenação de prosa.
Tudo no
cinematógrafo é feito para reter a atenção ofegante, para não soltar o
espectador cujo espírito está atrelado à tela. O gesto rápido, que se afirma
com uma precisão monstruosa, como de um relógio, exalta o espectador moderno
habituado mais e mais a viver o mais rapidamente possível. A vida “real” é
representada assim de uma maneira suprema, ela é estilizada na rapidez.
Toco aqui no
grande ponto estético que me interessa trazer à luz.
A arte sempre
foi, essencialmente, a estilização da vida na imobilidade; um artista sempre
foi maior quando expressou maior número de estados típicos, quer dizer,
sintéticos e fixos, de almas e formas. O cinematógrafo faz, ao contrário, o
máximo de movimento na representação da vida. O pensamento que ele possa ouvir
no horizonte insuspeitado de uma arte nova, diferente de toda manifestação já
existente, se apresenta naturalmente a um espírito liberado de todas as
limitações tradicionais. Os desenhistas e gravuristas obscuros das cavernas
pré-históricas que reproduziam em ossos de rena os movimentos convulsivos do
galope do cavalo, ou os artistas que esculpiam as cavalgadas no Parthenon,
talvez tivessem também o desejo de estilizar alguns aspectos da vida num
movimento extremo. Mas o cinematógrafo não reproduz apenas um aspecto; ele
representa toda a vida em ação, e numa ação que, mesmo que ela se desenrole
lentamente na cadeia de seus aspectos típicos, se desenrola o mais rápido
possível.
É assim que o
Cinematógrafo exaspera o caráter fundamental da vida psíquica ocidental
manifesta na ação, assim como a vida oriental se manifesta na contemplação.
Todos os séculos da vida ocidental florescem num movimento característico de
nosso tempo. E a humanidade volta à infância em sua nova festa, felicitando-se.
Ela não poderia conceber um movimento mais complexo e mais seguro. Todo
esforço de seu pensamento científico, resumindo mil descobertas e invenções,
compôs para ela este espetáculo supremo dela mesma. E os fantasmas
cinematográficos passam perante seus olhos com todas as vibrações elétricas da
luz, e em todas as manifestações exteriores de sua vida íntima.
O cinematógrafo é
o teatro de uma nova Pantomima. Está dedicado à Pintura em movimento, e
apresenta a manifestação completa de uma criação singular, realizada por homens
novos. É a pantomima moderna, uma nova dança da expressão.
V
Agora, se faz
necessário perguntar se o cinematógrafo cai nos domínios das artes.
Não é arte ainda,
porque lhe falta a possiblidade da escolha típica de interpretação
plástica, e está a serviço da cópia de um tema, o que impede sempre a
fotografia de ser uma arte. Ao compor a forma de uma árvore sobre uma toalha,
um pintor compõe sem dúvida, e inconscientemente, numa forma determinada e
evidente, toda sua interpretação da alma vegetal, todos os elementos
espirituais deixados nas entranhas de sua alma criadora pela visão profunda de
todas as árvores que pôde ver durante sua vida “com seus olhos de sonho”, como
disse Poe. Em uma forma, ele faz uma síntese de almas análogas, e sua arte,
repito, será mais profunda quando o artista souber imobilizar o máximo
de alma das coisas e de suas significações universais numa forma determinada e
evidente. O mau pintor é aquele que se contenta em copiar as linhas de um
sujeito e de imitar suas cores; o grande artista estende uma parcela da alma
cósmica no aspecto de uma forma plástica.
Todas as artes
são maiores quando têm menos de imitação e mais sinteticamente de evocação.
Enquanto o fotógrafo não possui a faculdade de escolha e composição, o que é a
base da Estética; somente pode juntar as formas que quer reproduzir e, na
realidade, não as reproduzir, apenas cortar as imagens com a mecânica luminosa
de um vidro e de uma composição química. O Cinematógrafo não pode, então, ser
uma arte, hoje. Mas por muitas razões, o teatro cinematográfico é a primeira
casa de arte nova – de uma arte que apenas podemos conceber. Esta “casa” pode
se converter num “templo” para a estética?
Uma vontade de
organização estética empurra certas investigações de empreendedores de
espetáculos. Em um tempo sem imaginação, onde uma documentação ultrajante
escapa por todos os lados da criação artística e onde os jogos de paciência
triunfam sobre as expressões do talento criativo, num tempo semelhante e que é
o nosso, o cinematógrafo oferece o espetáculo paroxístico da vida exterior,
representada de uma maneira exterior por meio de uma mímica rápida e por meio
da documentação. As grandes fábulas do passado são reprisadas, imitadas por
atores ad hoc escolhidos entre as grandes vedetes. E se representa
sobretudo a realidade e não o sonho da vida contemporânea da pesca de sardinhas
no Mediterrâneo, aos festivais maravilhosos do aço alado da coragem humana
indomável das corridas do circuito de Dieppe ou da semana de aviação em
Reims...
Mas os
fabricantes de espetáculos já estão tentando outras coisas. Eles se inclinam em
direção à afirmação sempre forte da nova imitação representativa da “vida
total” e Gabriel d’Annuzio sonhou uma grande pantomima histórica italiana para
o cinematógrafo. Em Paris, como sabemos, existem sociedades que organizam entre
os escritores uma espécie de truste de espetáculos para a cinematografia. O
teatro oferecia, até agora, aos escritores, as possibilidades mais imediatas de
riqueza; mas o cinematógrafo demanda menos trabalho e pode render mais.
Centenas de cabeças de poetas se curvam na hora de apresentar sobre os papéis
destinados a um drama cinematográfico. Centenas de talentos fascinados pela
promessa do sucesso imediato e universal concentram suas forças em direção à
criação da Pantomima moderna. Ela sairá de seu trabalho obstinado e do gênio
provável de um deles. O dia em que lhe seja dado o mundo, será uma arte nova,
totalmente nova, que terá surgido.
VI
O cinematógrafo
não é somente o resultante perfeito da riqueza científica moderna que ele
admiravelmente resumiu. Ele representa também de uma maneira desconcertante e
importante o último produto do teatro contemporâneo. Esta não é a exageração de
um princípio, mas seu mais lógico e extremo desenvolvimento. Os dramaturgos
“burgueses”, todos os fazedores de “peças” deveriam naturalmente reconhecer no
Cinematógrafo seu representante mais discreto, e deveriam, por consequência, se
dispor a tê-lo a seu serviço, porque o drama dito psicológico, social, etc.,
não é outra coisa senão a degeneração do teatro cômico original, oposto ao
teatro do sonho e da elevação espiritual trágicas; o teatro de Aristófanes ou
Plauto. Vitruvio nos descreveu como arquiteto as diferenças de cenas que
envolvem ações antigas, falando da solenidade das colunas e dos templos do
teatro trágico, da madeira do teatro satírico, dos gestos selváticos, e das
casas burguesas onde se desenrolam as Comédias... Estas não eram mais
que a representação da vida cotidiana em suas fisionomias individuais e
coletivas, diríamos hoje psicológicas e sociais, de personagens e costumes.
Shakespeare, que
resumiu a arte teatral à vontade e ao esforço literários dos poderosos talentos
de sua raça que o haviam precedido, foi precursor de nosso teatro psicológico,
foi, sobretudo, um grande dramaturgo do teatro sem música. Tal teatro é absurdo
porque ele se aplica à Tragédia (e neste sentido, a arte muito importante, mas
não absolutamente genial, de Racine, a arte de Corneille, sem dúvida mais
profundamente trágica num sentido coletivo religioso, uma arte de degeneração).
Mas um teatro sem música não é absurdo se ele reproduz a vida efêmera, a vida
de cada dia para deter-se em alguns aspectos, sem querer ou de qualquer modo
sem poder fixar a “eternidade”, a alma profunda. Por isso a comédia, depois das
de Aristófanes àquelas de Becque, ou de Porto Riche e de Hervieu, vive e
agrada, e agrada mesmo nesta forma degenerada da comédia convertida em
“seriedade” e que se chama: drama. A base destes dramas é a representação da
vida ordinária contemporânea, e por isso esse teatro é essencialmente realista,
ou, como nos dizem os italianos, verdadeiro [vériste]. Todos os
nossos dramaturgos de sala fechada (em oposição à minúscula falange dos poetas
novos de ar livre) se esforçam por representar com a maior precisão a vida, ao
copiá-la. Os empreendedores de espetáculos, diretores de teatro, colocam o
princípio de dar maior atenção à decoração minuciosamente fotográfica, do que
às próprias peças.
Ora, o
cinematógrafo não faz mais que exaltar este princípio da representação da vida
em sua total e exterior “verdade” [verité].
Este é o triunfo
de Cézanne, nomeado com um desdém sagrado: o olho fotográfico.
VII
O cinematógrafo
agrega a este teatro o elemento da rapidez absolutamente precisa e
revela assim uma alegria nova que o espectador encontra na precisão extrema do
espetáculo. Com efeito, nenhum dos atores que se move na cena ilusória trairá
seu papel, ou perderá uma fração de segundo no desenvolvimento matemático da
ação. Tudo é regrado como o movimento de um relógio. A ilusão cênica é menos
palpitante e de certa maneira menos carnal, mas ela é terrivelmente cativante.
Esta vida regrada por um movimento mecânico de relógio faz pensar no triunfo do
princípio científico moderno como a uma nova dominação de Ahriman, o mestre de
um pensamento maniqueísta da mecânica do mundo.
A rápida
comunicação da vida entre os dois polos extremos, os dois opostos elementares
do muito emotivo e do muito cômico, descansa no espírito dos
espectadores. Tudo isto que na realidade é um obstáculo: a lentidão inevitável
dos movimentos e dos gestos no tempo e no espaço é suprimido no Cinematógrafo.
Além disso, o muito cômico descansa no espírito, aliviando a vida do
peso do tecido social, solene, envolto pelas milhares de convenções da
assistência coletiva e sobre as quais estão figuradas todas as hierarquias. O
cômico tem o poder de suprimir as hierarquias, de mesclar os seres mais
diversos, de dar a extraordinária impressão de misturas dos mundos mais
separados, os mais inflexivelmente separados na vida real. O cômico, sendo
essencialmente desrespeitoso, supõe um sentido profundo de alívio
perante as fronteiras sociais, tão bem demarcadas, oprimindo todos os instantes
da vida real. Esta sensação de alívio é um dos elementos deste movimento
nervoso convulsivo e expansivo que se chama: o riso. A vida é simplificada
por este grotesco que não é exatamente a deformação per excessum ou per
defectum das formas estabelecidas. O grotesco entendido, ao menos nesse
sentido, retira da vida a sua dureza inelutável, permitindo florescer no riso.
A caricatura se
baseia na exibição e na combinação sábia de lados mínimos da alma humana, dos
lados fracos onde jazem a ironia da vida social, que no fundo é suficientemente
irônica e louca. É através da ironia no movimento convulsivo do riso que a
caricatura desenvolve no homem este sentido supremo de ligeireza, a ironia
atirando sobre as costas endireitadas do homem o manto colorido de Zaratustra
“dançarino e risonho”.
Os antigos
sabiam que a ironia é o princípio da Sabedoria. Coroaram com o riso, com a
Farsa, o espetáculo trágico. De encontro aos antigos, procedemos de modo
contrário, a Farsa em direção ao espetáculo dramático, com o levantar da
cortina, porque nos esquecemos da significação de certas verdades encontradas
por nossos ancestrais; mas permanece a necessidade do espetáculo irônico.
E é a Farsa da Tetralogia de Orestes, de Ésquilo, a Farsa que já não mais se
encontra, que teria sido formidavelmente rica em risos, como para levantar o
espírito dos elegantes atenienses sobrecarregados pelo terror de Cassandra.
Pois bem, não conheço nada de mais soberbamente grotesco que os espetáculos muito
cômicos do cinematógrafo. Podem-se ver ali as aparições extravagantes que
nenhum prestidigitador poderia realizar; há transformações, que de tão rápidas
transformações de movimento de figurações, nenhum homem poderia criar perante
os homens, sem a ajuda da mistura impressionante de mecânica e química, deste
criador supremo de ilusão que é o cinematógrafo. Também é criado um novo tipo
cômico. É o homem errante e as metamorfoses inverossimilhantes, capaz de se
mostrar esmagado sob o armário, precipitando-se ao solo, atravessando quatro
andares de sua casa, quatro pisos perfurados com sua cabeça, para subir depois
através das chaminés e aparecer nos telhados, transformado numa verdadeira
serpente.
A complexidade
do novo espetáculo é maravilhosa. Ela é composta por todos os séculos de
atividade humana. Porque os artistas geniais deram a este espetáculo alguns
ritmos de pensamento e de arte, a nova estética mostrará ao teatro
cinematográfico alguns de seus aspectos mais significativos.
Porque o teatro
cinematográfico é o primeiro teatro novo, o primeiro teatro realmente e
profundamente de nosso tempo. Quando ele se tornar verdadeiramente estético e
for completado por uma música digna, executada por uma orquestra verdadeira,
mesmo não representando a vida real, parada de uma maneira efêmera pela
objetiva fotográfica, se poderá experimentar uma primeira emoção templária,
se poderá entrever um caminho dos espíritos em direção à visão deste templo
onde, uma vez mais, o Teatro e o Museu serão apresentados por uma nova
combinação religiosa do Espetáculo e da Estética. O teatro cinematográfico tal
como ele é hoje evocará para os historiadores do porvir a visão dos primeiros e
rudimentares teatros de madeira, onde se matou a cabra e se dançou a “ode à
cabra”, a “tragicomédia” primitiva, antes da apoteose de pedra que dedica
Licurgo ao teatro de Dionísio e também antes do nascimento de Ésquilo.
O público
moderno é um “abstrador” admirável porque ele pode disfrutar das abstrações
mais absolutas da vida. Podemos ver no Olympia, por exemplo, os espectadores
aplaudindo freneticamente o fonógrafo que estava na cena, revestido de flores e
cuja deslumbrante trombeta de cobre havia acabado de tocar um dueto de amor...
A máquina triunfou, o publico aplaudiu o fantasma sonoro de atores distantes ou
mortos. É com espírito similar que os espectadores vêm correndo ao teatro
Cinematográfico. Ademais, ele traz as menores aglomerações humanas, um
espetáculo de coisas alongadas, divertidas, emocionantes ou instrutivas,
generaliza a cultura e acentua em todas as partes o desejo eterno do espetáculo
da Representação da vida total.
Dentre os muros
destas salas, se veem, às vezes, descrições que lembram as últimas etapas de
uma invenção singular que precipita o conhecimento dos eventos universais e,
por todas as partes da vida e da sensação da vida, depois de 1830 até hoje e
entre os últimos heróis: Regnault, Edison, Lumière, os irmãos Pathé... Mais que
o espetáculo, o que se impõe característico, significativo, é a vontade dos
espectadores, que são compostas de seres de todas as classes, desde os mais
rudes aos mais intelectuais.
É a vontade de
uma Festa nova, de uma nova unanimidade feliz, realizada em um
espetáculo, em um lugar onde homens se encontram em conjunto, onde eles possam,
em maiores ou menores proporções, esquecer sua individualidade isolada. Este
esquecimento, alma de toda religião e sentimento de toda estética, triunfará um
dia superiormente. E o Teatro que contém a promessa ainda certamente muito vaga
que os homens nunca sonharam: a criação de uma sexta arte, da arte plástica
em movimento, criada a partir da Pantomima moderna rudimentar.
A vida moderna
se dispõe a esse triunfo.
O último dos
Franconi, o último herói do circo, lamentava o declive certo do Circo pela
paixão do teatro cinematográfico de números mais expressivos que aqueles do
circo e dos music-halls. É a psicologia coletiva movida pelos esportes que ela
vive violentamente, cuja vida real ela complicou, tornando-a especialmente numa
indústria. Nosso tempo criou assim a indústria heroica, onde a mais
chamativa é a da aviação. Nossos desportistas já não consideram o esporte
somente como um prazer, o mais violento e mais são dos prazeres. Um círculo de
ouro, mais rígido que o ferro, o círculo dos negócios, os retém com seu abraço
implacável. Portanto, por que sentar-se numa poltrona, assistir as acrobacias e
volteios dos demais, sem oferecer ao espetáculo uma imagem débil do que a
existência de todos os dias dispensa com uma fervorosa prodigalidade de mil
formas, de todos os esportes modernos?
Em resumo, a
representação imóvel de um gesto, de uma atitude, de uma composição de gestos,
de atitudes, de algumas figurações significativas de seres e de coisas, tudo isto
pode ser encontrado na pintura. Mas quem poderia ter sonhado em fixar a
representação encadeada de uma série sucessiva de quadros [tableaux]?
Uma série sucessiva de quadros [tableaux], quer dizer, de certos estados
da alma dos seres e das coisas agrupadas numa ação, é sem dúvida a vida. Cada
minuto que passa composto, decomposto, transformado, perante nossos olhos num
número incalculável de quadros [tableaux]. O triunfo do
cinematógrafo às detém, e ele pode reproduzi-las indefinidamente. Ao detê-las,
ele realiza este ato que estava reservado à pintura, ou a esta frágil e
mecânica imagem da pintura que é a fotografia. Apresentando uma sucessão de
gestos, de atitudes, de figurações, como a vida transportando uma imagem do
espaço onde estava o imóvel, durando num tempo onde se mostra e se transforma,
o Cinematógrafo nos força a sonhar no que ele pode vir a ser se uma ideia
diretora verdadeiramente superior mantivesse em uma linha ideal e profundamente
significativa uma ideia central e estética dos quadros que se desenrolam.
Podemos sonhar com a criação de uma Arte plástica em movimento, da sexta arte.
Quem poderia ter sonhado antes dos nossos tempos? Ninguém, porque a evolução
espiritual dos homens não havia ainda alcançado o cumprimento violento da
conciliação entre a Ciência e a Arte para a complexa representação da vida
total. O Cinematógrafo renova a cada dia, cada dia com mais força, a promessa
desta grande conciliação não somente entre a Ciência e a Arte, mas entre os
Ritmos do Tempo e os Ritmos do Espaço.
Ricciotto Canudo
Paris, 25 de outubro de
1911.
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