Revista Sísifo. N° 12, Julho/Dezembro 2020. ISSN 2359-3121. www.revistasisifo.com
Carlos Alberto Travessa Junior - Graduando em Ciências Biológicas (Licenciatura) pela Universidade Federal de Uberlândia, Campus Pontal. Bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET Bio Pontal). Atuou como bolsista no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID).
Maria Aparecida Augusto Satto Vilela - Docente do Curso de Pedagogia do Instituto de Ciências Humanas do Pontal e Coordenadora do Centro de Ensino, Pesquisa, Extensão e Atendimento em Educação Especial na Universidade Federal de Uberlândia, Campus Pontal.
Luciana Karen Calábria - Docente do Curso de Ciências Biológicas (Bacharelado e Licenciatura) do Instituto de Ciências Exatas e Naturais do Pontal na Universidade Federal de Uberlândia, Campus Pontal.
Resumo: O artigo
analisou a apresentação do núcleo diversificado dos Parâmetros Curriculares
Nacionais e o Tema 1: Ética, pautando a construção desta política pública
educacional sob a formação dos princípios éticos na sociedade brasileira e seus
produtos materiais/imateriais que (re)significam e mobilizam um agir social.
Assim, as reflexões foram fragmentadas em duas ópticas: os aspectos didáticos,
formativos e de aplicabilidade do conteúdo junto à prática docente na escola; e
a possível passividade da reprodução de um agir social, tomando a sociedade
como terreno de domínio, disputas e forças no estabelecimento dos enlaces entre
escolarização e formação dos sujeitos sociais. Para tal, é preciso que haja a
percepção de dinâmica social e a influência das necessidades e relações
estabelecidas dentro e fora do contexto escolar, para assim, fazer um diálogo
entre a diversidade social e a formação, aplicabilidade e a objetivação da
proposta junto a uma perspectiva de transformação e autonomia, na prática
coletiva, tendências de discussões globais e o processo de democratização das
últimas décadas. Agindo como ferramenta de formação e reparo social, os Temas Transversais
propõem uma formação humanística, crítica e cultural, que contraditoriamente
são destinados ao espaço escolar ainda constituído por blocos de conhecimento
verticalmente hierárquicos, mas que buscam a efetividade do processo formativo
e a transformação das práticas sociais que ainda reproduzem processos desiguais
e excludentes latentes na sociedade.
Palavras-chave:
Parâmetros Curriculares Nacionais. Transversalidade. Ensino Fundamental.
Abstract: This paper has
analyzed the presentation of the diversified nucleus of the National Curriculum
Parameters and the Theme 1: Ethics, guiding the construction of this
educational public policy under formation of the ethical principles in
Brazilian society and its material/imaterial products that (re)signify and
mobilize social action. Thus, the reflections were fragmented in two points of
view: the didactic, formative, and the applicability of certain aspects of the
proposal alongside with the teaching professional's performance in the school.
In addition to that, a reflection towards the possible passivity in the
reproduction of a social action, considering society as a domain of control, disputes, and forces in
the establishment of the links between the scholarization and formation of
social subjects. To accomplish that, the perception of social dynamics and the
influence and relationships established within and outside the school context
are necessary to establish a dialogue between social diversity and the
formation, applicability, and objectification of the proposal. It is also
important to merge this analysis with a perspective of transformation and
social autonomy allied to the collective practice, trends in global
discussions, and the concept of democracy adopted in recent decades. Acting as
a tool for social formation and repair, the Transversal Themes propose a
humanistic, critical, and cultural formation which are contradictorily destined
to the school space. Space that is still constituted by vertically hierarchical
blocks of knowledge, but which seek for the effectiveness of the formative
process and the transformation of social practices that still reproduce unequal
and exclusionary processes latent in society.
Keywords: National
Curriculum Parameters. Tranversality. Elementary School.
Introdução
A
sociedade, enquanto organização humana, transforma as relações interpessoais e
espaciais – homem(ns) e espaço(s), na perspectiva do materialismo histórico
dialético –, e procura suprir os meios de produção e as carências sociais
diante das necessidades que a retratam. Essas reverberam os ideais de
distribuição espacial e carregam traços de sua estruturação, uma vez que o
espaço evidencia singularidades sociais, caracterizando-se como um elemento que
condiciona as ações e a própria prática humana (SANTOS, 1977).
Jodelet
(1989) enfatiza que a construção da realidade comum a um grupo de pessoas
demanda um conhecimento elaborado coletivamente e compartilhado, como objeto de
reconhecimento e pertencimento, o qual organiza e direciona a interpretação do mundo
e a relação do indivíduo com ele, tais quais a língua, comunicação e cultura.
Já a constituição do ser social é imersa em valores éticos e morais que
garantem disciplinar e preparar o indivíduo para as segmentações sociais
(GIDDENS, 2003).
De tal
forma, é interessante frisar a dinâmica dessas práticas sob as particularidades
do espaço, desde a disponibilidade de recursos ao suprir as necessidades
sociais e a potencialidade a partir da impregnação de um valor, seja ele
econômico, de privilégio e/ou da posse, o dito capital, que, se perpetuado como
prática, ganha simbolicamente a denominação de capital cultural.
Tomando
as estratificações de uma sociedade capitalista, as classes sociais e relações
estabelecidas, do desempregado ao dono dos meios de produção, são palpáveis as
desigualdades de acesso e/ou posse (SANTOS, 1977; CATANI, 2011).
Num
estabelecer da óptica de dominantes/dominados e no satisfazer das necessidades
sociais donde impera o domínio, a reprodução do sistema capitalista, e por si
só, de suas práticas, é passível em sua totalidade. Isso porque (re)produz-se
no seu interior a partir da evolução do modo de produção e dos momentos
subsequentes, num ciclo. Em contrapartida, é suscetível a criação de novas
estruturas socioeconômicas que apresentem demandas e movimentos diferenciados,
deixando a estrutura à mercê da inconsistência e construindo períodos de crise
e expansão (SANTOS, 1977).
Retomando
a ideia de constituição social e o mergulho em valores éticos e morais, a
institucionalização da gestão da sociedade enquanto Estado, segundo Amorim
(2000), representa uma governabilidade na busca de garantir o bem-estar de
todos durante a vida coletiva. Sendo assim, a governabilidade é a representação
da construção, além de cultural e social, por meio da qual foi instituído a
sociedade, fazendo-se sua imagem e semelhança.
Nos
enlaces da objetivação do Estado e as desigualdades do capitalismo, a busca
pela equidade social resvala na justiça social, a qual é entendida por Barzotto
(2003) como um mecanismo que busca o estreitamento dos espaços sociais, na
garantia do direito igualitário, independente das particularidades do
indivíduo, conferindo acesso aos insumos básicos para a sobrevivência, sendo de
responsabilidade Estatal o desenvolvimento e suprimento das políticas.
Nessa
perspectiva, sustentemos que “o hoje” e/ou presente, nas ideias de atual
conjuntura, é um produto da história social, cultural e política no território
brasileiro e que se estende às relações desiguais de poder/posse/consumo e/ou
de políticas públicas na sua manutenção (justiça social), um movimento de
conservação, reciclagem e reprodução de práticas e relações (LEDA, 2014).
Propor
permanências socioculturais no Brasil é recontar o movimento colonizador europeu,
os entraves e sobreposição das culturas (colonizadores e colonizados) e o
estabelecimento de padrões sociais que, nos séculos XIV e XV, eram um modelo de
desenvolvimento universal, representando as grandes descobertas e a expansão
territorial. O Hemisfério Norte era, e ainda é, espelho de desenvolvimento para
o resto do mundo (LEDA, 2014).
Nas
distâncias do padrão sociocultural europeu, patriarcal, branco e cristão,
negros e indígenas foram marginalizados, massacrados, explorados e
escravizados. O indígena, por exemplo, foi colonizado, catequizado e posto à
serviço da coroa portuguesa. Reafirmando um contexto de domínio, a negligência
em narrar o que era o Brasil pré-1500 revela um Brasil que só passou a existir
após a sua descoberta (LEDA, 2014).
A preocupação
em “levar o progresso” à antiga Terra de Vera Cruz, fez com que Portugal
reproduzisse no Brasil uma sociedade já fragmentada e desigual entre os
próprios portugueses (monarquia e clero, burguesia e trabalhadores).
Subalternos a essa hierarquia social estavam os negros e indígenas. Assim, as
diferentes instituições de poder e governo, desde a feitoria; as fazendas; os
engenhos; o Império; a República; e as províncias, permaneceram com as camadas
mais altas da sociedade, possuindo como característica a violência e a
perseguição (MARCHANT, 1943; DEL PRIORE; VENÂNCIO, 2010).
Genericamente,
essas figuras de gestão funcionam por duas dinâmicas de sistema institucional,
sendo a primeira condicionada à fragilidade e obsoletismo, na precariedade em
desenvolver, estruturar e gerir ações, criando espaços entre as instituições;
enquanto na segunda há uma grande ânsia e versatilidade na criação de medidas
imediatistas, no objetivo de suprir as necessidades atuais, majoritariamente
geradas entre uma instituição e outra, um movimento cíclico e muitas vezes
insuficiente na “reciclagem” das velhas instituições (MARCHANT, 1943; DEL
PRIORE; VENÂNCIO, 2010).
Para
ilustrar e evidenciar algumas dinâmicas para além da colonização e dos
governos, consideremos também a tardia libertação formal dos negros
escravizados e o despreparo social para a ressocialização, além das diferenças
de acesso à educação para mulheres, o êxodo rural intenso a partir da década de
1950 e a própria ditadura militar (1964-1985), fatos que pautam as discussões
acerca das permanências socioculturais do clientelismo, racismo, patriarcalismo
e, de forma geral, das desigualdades sociais no Brasil.
Pretensiosamente,
é oportuno que vislumbremos algumas dinâmicas sociais desses mais de 520 anos
de história, mas também que nos atentemos ao mais recente compromisso com a
formação de uma sociedade democrática, justa e igualitária, o qual foi
consolidado com a Constituição Brasileira de 1988 (DEL PRIORE; VENÂNCIO, 2010).
Promulgada na contramão dos primeiros flertes entre Brasil e neoliberalismo,
tendências que priorizam o crescimento econômico e o livre mercado (LIBÂNEO,
2012), reforçando a competitividade e a produção até mesmo nas mais diversas
estruturas do governo, como a educação (LIBÂNEO; FREITAS, 2018).
A
educação encarada como uma política pública e social também foi e é alvo de
disputas ideológicas e partidárias, em especial de dominantes num estabelecer
de suas necessidades. Configurando-se, assim, como um campo que confronta
ideários a fim de perpetuar as instituições, gerir ações e as estruturas
educacionais de um governo (LIBÂNEO, 2012).
Desta
forma, a educação fica à mercê de se (des)estabilizar diante de sistemas
econômicos, governos e/ou movimentos globais e sociais, seja nas perspectivas
da democratização ou no cumprir das resoluções da Declaração de Jomtien, donde
surge o Plano Decenal de Educação para Todos (1993-2003), tendo como objetivo a
aprendizagem de crianças, jovens e adultos da educação básica, estabelecendo
além de participação social, econômica e cultural, a inserção no mercado de
trabalho.
Nesse
sentido, o Plano Decenal demarca muito bem o processo de democratização e
acesso à educação, mas também os primeiros encontros entre escolarização e
trabalho, “perpassando” o cenário escolar de etapas/séries e ciclos para
efetivação de domínios cognitivos e compreendendo um ensino sustentado não
somente pelos conteúdos, mas pela liberdade social (BRASIL, 1993).
Posteriormente,
em 1996, a criação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN)
foi também um palco de disputas, como qualquer política de governo, marcando um
viés centralizador e neoliberal a partir do qual foi proposto (BOLLMANN;
AGUIAR, 2016). Na Lei, os princípios, os objetivos e a responsabilidade foram
descritos e compreendidos sinteticamente no Artigo 2º “como dever da família e
do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade
humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo
para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (BRASIL,
1996).
Sequente
à aprovação da Lei 9394/96, o Ministério da Educação e do Desporto, em 1997
lançou os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) que, por meio de diretrizes,
objetivou estabelecer orientações para o ensino fundamental, sendo dividido em
dois núcleos: o comum, como os componentes curriculares tradicionais (Língua
Portuguesa, História, Geografia, Matemática, Ciências Naturais, Arte, Educação
Física e Língua Estrangeira) e o diversificado, com a organização de temas
transversais (ética, educação ambiental, orientação sexual, pluralidade
cultural e saúde), com a proposta de garantir uma educação democrática,
tencionando a diminuição dos espaços e diferenças entre as classes sociais,
gêneros, etnias, entre outros (BRASIL, 1997) e contemplando não só uma formação
técnica, mas também humana.
Os temas
transversais foram criados com o objetivo de perpassar os componentes do núcleo
comum, sendo um dispositivo para tratar as demandas sociopolíticas emergentes
do período de sua criação, relacionados de modo geral à diversidade, acesso e
apropriação dos direitos sociais para instrumentalizar a transformação do
contexto social.
Contudo,
Santomé (2013) aponta que doses de apropriação e acesso podem desestabilizar a
segurança das relações entre uma classe social favorecida e viabilizar uma
articulação do movimento “popular” que as reivindicam, fazendo com que a classe
favorecida, em resposta, disponibilize dispositivos que contenham a ação para
tentar garantir a dinâmica de dominância, reafirmando cotidianamente as
segregações e obstáculos de trâmite social, na perspectiva neoliberal.
A
institucionalização da educação, a escola, deve ser encarada como o mar do
governo, donde há o desaguar das políticas educacionais, sendo uma instituição
formadora, mas principalmente socializadora, integrando “personagens sociais”,
alunos e professores, no ensinar-aprender, na instrumentalização e prática de
tudo aquilo que é proposto. Pensar especialmente na socialização da escola, é
pensar também nas desigualdades e nos conflitos do espaço, os quais se tornam
polarizados, sendo a representação do conhecimento e aprendizagem plena para a
classe alta, e o assistencialismo social em acolhimento aos pobres (LIBÂNEO,
2012).
Delimitando
a década de 1990 e as políticas neoliberais, é preciso pensar o processo
formativo nas instituições de ensino e o diálogo estabelecido entre educação e
trabalho, na produção de mão de obra barata e dita qualificada; nos currículos,
parâmetros e diretrizes “reformulados” perante a democracia e liberdade social;
na reciclagem de um modelo fabril de escola, um flerte entre tudo o que se
queria abandonar e tudo que se quer. Se estendendo às estruturas populares e ao
comércio livre, individual e “méritocrático”, num enfraquecimento do
significado das conquistas dos direitos e apropriações dos últimos séculos,
donde (re)significam justiça e solidariedade, como filantropismo e caridade,
uma polarização dos espaços e dos sujeitos (HYPÓLITO, 1991; SANTOMÉ, 2013).
Mas,
mesmo diante de tantas tensões sociais, a escola precisa se caracterizar como
espaço de integração social de diferentes indivíduos, com fundamentos
pedagógicos humanísticos que atendam as diferenças sociais, culturais e de
aprendizagem (LIBÂNEO, 2012). Neste contexto, mesmo com a implantação do PCN,
além de outros dispositivos de controle e reparo social na área da educação, na
tentativa (ou não) de diminuir as desigualdades estruturais reproduzidas, no
cumprimento (ou não) do seu objetivo de formação humanizada e libertária dos
sujeitos, pode alterar e/ou provocar, mesmo que minimamente, a dinâmica social.
Assim,
este estudo buscou discutir a Introdução aos Temas Transversais e o Tema 1:
Ética junto às dinâmicas do espaço escola, refletindo sobre a possível (re)produção
de práticas, tomando principalmente as disposições pedagógicas, a figura do
profissional docente e a ética como vertente libertadora e social da prática
humana.
Metodologia
Para
analisar e discutir os aspectos intrínsecos e extrínsecos da Apresentação aos
Temas Transversais dos PCN e os Temas Ética do primeiro ciclo e Trabalho,
Consumo e Cidadania do segundo ciclo do ensino fundamental, publicados pelo
Ministério da Educação e do Desporto (BRASIL, 1997; 1998), métodos qualitativos
e quantitativos foram utilizados. Assim, realizou-se a extração de dados,
reflexão e discussão de três problemáticas potencialmente identificadas no
conteúdo: (1) reflexões sobre a potencialidade de reprodução cultural
brasileira e sua herança histórica; (2) pertinência das disposições pedagógicas
na ação escolar e aplicabilidade; e (3) a prática docente, a responsabilidade
do ensinar.
No
aspecto qualitativo, a análise documental foi considerada, dando ênfase às
observações, descrições e análises do objeto de estudo, os quais não são
passíveis de reprodução, uma vez que não desconsideram a posição geral do
pesquisador, seus interesses, preconceitos, experiências, entre outros
(DAMATTA, 1981). No entanto, com a intenção de exercer transformações sociais,
o método qualitativo foi essencial, uma vez que esse proporciona a liberdade
intelectual e a autonomia, não só do objeto em estudo, mas daqueles que são
alvo deste objeto (causa/consequência). Optou-se por esse método porque,
genericamente, ele valoriza a interpretação heterodoxa sistematizada de
microprocessos sociais, sejam eles individuais ou comuns, além de estabelecer
conexões entre os dados obtidos e a realidade social, permitindo maior
apreensão e compreensão dos resultados (MARTINS, 2004).
Na
prática, a análise documental representou a verificação de uma manifestação do
conteúdo de uma mensagem (documento), num dado tempo/espaço e requereu um olhar
multifacetado para justificar-se sobre as palavras, trechos, títulos, mensagens
explícitas e implícitas (hermenêutica), não se restringindo apenas à semântica.
Desta maneira, como método flexível, a análise de conteúdo não se limitou
apenas ao qualitativo. O método quantitativo se mostrou presente a partir da
análise do registro da frequência de termos, número de páginas e títulos,
sustentando ainda mais as inferências (CAMPOS, 2004).
Desenvolvimento
1
Introdução aos temas transversais e Tema 1: Ética
1.1 Reprodução cultural
No
Brasil, de acordo com as justificativas dos PCN, “boa parte da população
brasileira não tem acesso a condições de vida digna, encontra-se excluída da
plena participação nas decisões que determinam os rumos da vida social”
(BRASIL, 1997, p. 19). As dificuldades e adversidades enfrentadas na/para
materialização dos direitos fundamentais, reconhecidas no Artigo 1º da Carta
Magna de 1988, podem colocar muitos brasileiros em situação de exclusão social,
uma vez que as ações governamentais realizadas não atingem todos/as os/as
cidadãos/ãs nas diferentes localidades e possibilidades no país.
Portanto,
não possuem cidadania plena, pois muitos têm seus direitos desconsiderados, a
justiça social em sua aplicação é seletiva, tem cor/etnia, classe social,
gênero, dentre outras características (BRASIL, 1997), refletindo os processos
excludentes e hierárquicos que constituíram o processo socio-formativo
brasileiro.
Como
grande parte da constituição da República foi pautado em ações antagônicas aos
princípios do Estado Democrático de Direito, incorpora à cultura social do
Estado as práticas sociais que retratam tais processos excludentes e
preconceituosos.
O tema
transversal Ética nos PCN possibilita questionar a legitimidade de diversas
práticas e valores tradicionalistas, abre espaço para a criticidade das
relações grupais em suas dimensões, debatendo o sentido das escolhas, posições
e ações do ser, além das próprias convicções (BRASIL, 1997).
Nessa
perspectiva, considera-se a manifestação comportamental da sociedade, tendo
como base a escola, instituição destinada à plena experiência social, oferecendo
aos alunos a visão de que as atitudes supracitadas são viáveis e exequíveis,
criando possibilidades concretas de experimentá-las (BRASIL, 1997).
E sendo a
escola composta por frutos dessa sociedade tão bem caracterizada, não seria um
meio de reprodução de práticas neste contexto impugnadas? Nesse sentido, e em
consonância com os PCN analisados, vale destacar a reflexão de Bourdieu e
Passeron (1975, p. 295):
A sociologia da educação
configura seu objeto particular quando se constitui como ciência das relações
entre a reprodução cultural e a reprodução social, ou seja, no momento em que
se esforça por estabelecer a contribuição que o sistema de ensino oferece com
vistas à reprodução da estrutura das relações de força e das relações
simbólicas entre as classes.
Swartz
(1977) aponta a ligação entre o sistema educacional e a estrutura social a
partir de análise da reflexão feita por Bourdieu, acima citada, na qual se
transpõe as desigualdades sociais em desigualdades acadêmicas, na difusão de um
conjunto de práticas sociais que caracterizam um determinado grupo e detêm um
valor quando estabelecidas, também designado como capital cultural. Destaca-se
que, mesmo ocultada pela meritocracia pelos ditos talentosos e esforçados, a
estrutura social no espaço educacional é reproduzida pela dinâmica escolar.
Em
contrapartida, através da capacidade de autorreprodução e preocupação em
proteger a cultura escolar, o sistema educacional pode exercer certa autonomia
em relação às estruturas externas. O conhecimento, considerado como o produto
mais valorizado do capital cultural, confere resistência a esse sistema,
impedindo o detrimento do valor desse capital.
Referindo-se
a Durkheim, Bourdieu menciona a capacidade que o sistema educacional tem de
recrutar suas lideranças dentro de suas próprias fileiras ideológicas e
funcionalistas, para reforçar sua continuidade e estabilidade histórica,
aproximando o sistema educacional mais à Igreja do que ao mundo dos negócios ou
ao Estado (SWARTZ, 1977). Assim, em relação ao sistema educacional, essa
perspectiva confere a esses espaços uma formação sólida e estruturada, que
estabeleceu raízes e se difundiu socialmente.
Por meio
da reflexão sobre as condutas sociais, o Tema 1: Ética, se pauta em refletir
sobre “[...] as escolhas de critérios, valores, e, mais ainda, a impregnação de
relações hierárquicas entre esses valores para nortear as ações da sociedade”
(BRASIL, 1997, p. 69), estabelecendo normas e condutas, sendo reforçadas ou
repudiadas de acordo com a perspectiva da ética social ou da moral, a qual
muitas vezes é confundida e problematizada pelo moralismo por meio do emprego
da expressão conduta moral, no qual se definem as ações (BRASIL, 1997).
Por outro
lado, as desigualdades e representações sociais se manifestam também pelos
próprios recursos didáticos, impossibilitando a sua reflexão, uma vez que “a
análise crítica desse material pode representar uma oportunidade para se
desenvolverem os valores e as atitudes com os quais pretende trabalhar”
(BRASIL, 1997, p. 48).
No entanto,
os estímulos provocados pelos materiais didáticos podem estar dispostos a
legitimar uma prática ou refutá-la, dependendo da reflexão atribuída pelo
sujeito. A legitimação parte do reforço e dos estímulos com base em
pressupostos de “um projeto de Felicidade”, um projeto de vida que busca a
realização interpessoal, no qual o objetivo é a “vida boa”. Já a refutação
parte de ações que procuram excluir algumas práticas, seja pela punição/castigo
ou situação de exclusão, na manifestação de padrões sociais (BRASIL, 1997).
Assim, o desenvolvimento da racionalidade pode se dar num ambiente que estimule
o uso da razão. “A escola pode ser esse lugar. Deve sê-lo” (BRASIL, 1997, p.
87).
Um dos exemplos é a problematização na apresentação de papéis de
gênero no conteúdo analisado, das relações de trabalho ao contexto familiar
(BRASIL, 1997, p. 48), nos quais deve-se salientar a capacidade de análise
crítica e consciência para a mudança dessa prática, tendo em vista o reforçar e
padronizar um agir, uma heteronormatividade, uma feminilidade e/ou
masculinidade sob os gêneros. Como tratam Amazonas et al. (2008), na escola,
todos os componentes curriculares, avaliação, instrumentos de ensino e a
linguagem podem ser meios do reflexo e (re)produção de desigualdades. Por isso,
entende-se que desde a infância é preciso favorecer a construção de identidades
em que
[...] nossas posições de sujeito
e estas devem incluir mais que respeito e tolerância para com a diferença;
devem questionar e problematizar os processos sociais pelos quais as
diferenças, assim como as identidades, são produzidas e as representações
apresentados durante esse processo de formação social ganha significado e
símbolo, uma forma de interpretar e atribuir definição (AMAZONAS et al., 2008,
p. 237).
No mais, tais representações não se limitam apenas a descrever
práticas sociais, mas também são meios de (re)produção de significados e
representações, os quais direcionam as experiências e as identidades (AMAZONAS
et al., 2008) propondo a reflexão: que corpo é representado nos materiais de
apoio da escolarização? Como estão representados?
Em confronto com o colocado no “norteador” dos Temas Transversais,
a Ética, uma vez que “o objetivo é formar alguém que procure resolver conflitos
pelo diálogo, deve-se proporcionar um ambiente social que tal possibilidade
exista” (BRASIL, 1997, p. 86). Logo, se queremos formar um ambiente que
valoriza a igualdade de direitos, os símbolos utilizados não podem reproduzir
relações de poder que legitimam/naturalizem ações, diferenças de acesso e
desigualdade social. Pensando no processo de escolarização e na formação
social, quais são os impactos dessas afirmações nas representações de forças?
Como
salienta Silva (2002), “nenhum conhecimento é neutro, todo ele é produzido em
um campo de forças. Quem o produz está em uma posição de poder dizer: é isso, é
assim que as coisas são”. Nesse sentido, é necessário refletir acerca do
processo formativo, seus espaços e práticas, e o meio de reprodução,
problematizando os mecanismos que muitas vezes excluem e/ou incluem indivíduos,
influenciando diretamente a conquista da autonomia pelo educando e condições de
exclusão/inclusão social (AMAZONAS et al.,
2008).
No tópico
“A Perspectiva da Autonomia” do Tema 1: Ética, é apontado que
[...] não existe a autonomia
pura, como se fosse uma capacidade absoluta de um sujeito isolado, apesar do
objetivo ser pela conquista da autonomia. Nesse sentido, trata-se da
perspectiva da construção de relações de autonomia, sendo possível ser
realizada como processo coletivo que implica relações de poder não-autoritárias
(BRASIL, 1997, p. 46).
Apesar
dos PCN apresentarem a capacidade de contestação de crianças e adolescentes
sobre os conteúdos a serem “transmitidos” ao afirmar que “o fato de os alunos
serem crianças e adolescentes não significa que sejam passivos e recebam sem
resistência ou contestação tudo o que implícita ou explicitamente se lhes quer
transmitir” (BRASIL, 1997, p. 47), acredita-se que em totalidade as informações
recebidas são questionadas e contestadas, possibilitando frequente reflexão e
garantindo uma transformação social.
No
entanto, desconsidera-se o potencial de passividade no ensino, a reafirmação de
práticas sociais que se pretendem excluir através do reforço na representação
do conteúdo, sua simbologia e reflexos nos primeiros processos de formação
social. O
[...] processo de mutação social
que constitui a “sociedade escolarizada”, ou seja, a educação escolar como
ferramenta essencial para a sobrevivência do indivíduo moderno no mundo (habilidades,
conhecimentos e saberes, competência para uma melhor participação na esfera
pública e afirmação de sua autonomia como sujeito), produz uma enorme crise das
possibilidades de mobilidade social ascendente via escola pela escassa
capacidade de absorção no mundo do trabalho dessa população escolarizada. As
transformações estruturais nas últimas três décadas provocaram, entre outros
efeitos, o desassalariamento e o desemprego. (SPOSITO, 2003, pp. 219-220).
Esse
contexto, segundo Freire (1997), constitui a educação bancária, uma
possibilidade de mercantilização do saber, de alguém que tem a concepção de
deter maior conhecimento sobre o outro, difundindo em ideologia opressora. Essa
manifestação instrumental perpetua a ignorância, identificada sempre a outrem.
Um ensino dominador, que garante a continuidade de um processo alienador e
mecanizado. A libertação propriamente dita advém de educadores e educandos na
práxis conjunta, ação e reflexão que transformam e libertam. O educador passa a
ser reeducado, educando, desatando os nós do individualismo e garantindo um
processo formativo comunitário (FREIRE, 1997).
No
documento, as experiências formativas são tratadas como tendências de formação
moral implementadas no Brasil e/ou no exterior e são pautadas por tendências
filosóficas; sendo estas: cognitivista, afetivista, moralista e da escola
democrática (BRASIL, 1997, p. 89-92) – esta última se constitui enquanto o
objetivo principal do PCN, conferindo bases democráticas e libertadoras a todo
o processo formativo. A tendência ainda apresenta a escola como espaço para as
primeiras vivências democráticas. Em conflito a isso, a “[...] necessidade de
deixar claro alguns valores centrais, a apreensão racional da moral e a base
efetiva de sua legitimação” (BRASIL, 1997, p. 92) no processo formativo são
extremamente importantes, mesmo que estes valores ofereçam meios de reprodução
da desigualdade.
Pensando
na libertação, um sexto Tema é apresentado após um ano da divulgação dos cinco
Temas Transversais aqui discutidos, com o título provisório “Trabalho, Consumo
e Cidadania” (BRASIL, 1998), nas entrelinhas do documento físico analisado.
Apesar da
formulação tardia, o anexo renomeado para Tema transversal “Trabalho e
cidadania” provocou discussões acerca da dinâmica social do trabalho como
ferramenta de alavanca social e liberdade, além do valor do capital de consumo,
o mercado, viabilizando também a discussão de distribuição de renda e acesso.
Para a caracterização de trabalho, é de suma importância
diferenciar os conceitos e aplicações da palavra. Segundo Braverman (1983),
trabalho fundamentalmente é definido pela atividade e possibilidade de
transformação do material em estado natural (matéria prima) para uma melhor
utilização e exploração. Para distinguir assim o trabalho humano do trabalho
animal e vegetal (natureza), o uso ou não (instinto) da consciência é um dos
critérios, ao passo que a utilização da consciência caracteriza a mecanização e
propósito do processo humano.
As
relações estabelecidas pelos seres humanos produzem práticas e modos de se
viver. Essas práticas são um conjunto de bens e/ou serviços que são
imprescindíveis para a vida ou sua manutenção, e podem ser usufruídos a partir
de um valor de compra, o consumismo. A realização do trabalho ocorre a partir
de relações e condições que são frequentemente descartadas pela afirmação de
livre escolha do trabalho e consumo, desconsiderando, assim, as desigualdades
de acesso ao trabalho e à distribuição do capital (BRASIL, 1998). Na educação,
Entende-se a escola como uma
organização que trabalha — que trabalha com uma tarefa específica e que, com
seu trabalho, prepara futuros trabalhadores —, reproduzindo parcialmente as
representações, valores e condições de trabalho mais gerais, a hierarquia, a
especialização, a precarização do trabalho formal, o impacto das novas
tecnologias. Está, portanto, condicionada por fatores estruturais. (BRASIL,
1998, p. 344).
Ou seja,
o consumo e as relações de trabalho exercem um papel de reforço a um
determinado grupo que, hierarquicamente, ocupa um espaço de poder, garantindo a
reprodução. Para Oliveira e Duarte (2005), uma das representações da
desigualdade se dá pelo acesso ao consumo, no qual, entre as décadas de 1980 e
1990 com a crise do capitalismo contemporâneo e as mudanças no piso salarial,
foram criados projetos e programas de renda mínima inseridos pontualmente nas
discussões de agendas políticas, considerando a precarização das relações de
trabalho e o desemprego.
Neste
contexto, o Brasil foi registrado pelo Relatório do Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (2004) com a pior desigualdade na distribuição total do
rendimento ou consumo (índice de Gini)
das Américas, caracterizando seu espaço desigual, o qual afeta o sistema
educacional e condiciona o processo formativo de muitos sujeitos.
De modo geral, por meio de
vivências pessoais e da escolaridade nos primeiros ciclos, o aluno já traz um
conhecimento sobre a relação entre produção e comercialização, entre trabalho e
remuneração, sobre o sistema de compra-venda e trocas monetárias, conseguindo
recompor determinadas cadeias produtivas e visualizando a relação entre estas
fazendo aproximações ao conceito de sistema produtivo. Relacionando as diversas
atividades — da extração da matéria-prima ao consumo —, as variações de
configuração econômica em sua dimensão histórica, cultural e social,
trabalhadas pelas diversas áreas e temas transversais, começa a compreender as
relações que os diversos grupos sociais estabelecem entre si (BRASIL, 1998, p.
363).
Numa
perspectiva de reparo, as políticas públicas têm o propósito de amenizar a
situação de vulnerabilidade dos trabalhadores excluídos do acesso ao emprego ou
complementação aos precarizados, na tentativa de atender aos fundamentos do
Estado Democrático de Direito (BRASIL, 1988).
No
entanto, o principal objetivo das políticas sociais é dual, mesmo que
represente uma justiça social por meio da redistribuição de recursos e promoção
da transformação social, paralelamente garante a manutenção e reprodução da
classe operária, agindo na sobrevivência deste grupo com base no
assistencialismo (LIMA; FREITAS, 2013).
De modo
geral, as estruturas do Estado reproduzem as relações hierárquicas presentes na
sociedade, justificando a necessidade de garantir a perpetuação do sistema e
estabelecer controle. A oferta minimalista é a perspectiva de justiça social,
de modo a “preparar” o indivíduo para o trabalho e não seu desenvolvimento
integral. A garantia, nesse contexto, é o de igualdade perante a lei,
estruturando a livre competição no mercado de trabalho (LIMA; FREITAS, 2013).
Diante do
processo formativo, considerando a oferta minimalista e o preparo para o mundo
do trabalho, o objetivo geral do PCN adotado é construir uma formação cultural
consistente, visando desenvolver as habilidades, o conhecimento e as atitudes
de cooperação, solidariedade e justiça do indivíduo, bem como contribuir para a
inserção no mercado de trabalho e “a formação de uma consciência individual e
coletiva dos significados e contradições presentes no mundo do trabalho e do
consumo, das possibilidades de transformação.” (BRASIL, 1998, p. 344).
Contudo,
o indivíduo inserido no atual sistema capitalista ainda se tornará refém da
dinâmica de trabalho que determinará o seu comportamento, suas expectativas, seus
projetos para o futuro, sua linguagem, seu afeto, impregnando significados e
valores, limitando a obtenção da autonomia e o levando à alienação. Assim,
“se o sistema gera alienação, não
precisamos ter necessariamente operários alienados, porque juntamente com
alienação o sistema gera revolta, a exploração de classe determina o
desenvolvimento de uma nova consciência de classe e a luta por um novo sistema
social.” (CODO, 1989, p. 142).
Salientando
a revolta e o desenvolvimento social, Oliveira e Duarte (2005) pontuam que a
regulamentação do trabalho para o emprego se deu por meio de lutas sociais
intermináveis, atribuindo valor ao processo de trabalho pelo operário e o
previdenciário, denominado agora assalariado, garantindo a possibilidade de sobrevivência
através da venda da força de trabalho, procurando sempre a obtenção de um
trabalho formal, regulamentado e estável.
Assim,
reforça-se a reflexão da dinâmica de trabalho, da alienação, do sistema que
gera revolta e da organização da classe para o estabelecimento de políticas que
garantem o desenvolvimento e a “ascensão social”.
1.2 Disposições pedagógicaS
O PCN
valoriza a transversalidade, que é definida pela possibilidade de trabalhar
diferentes temáticas de forma contínua e integrada, sem reter-se apenas a um
componente curricular ou área convencional. É uma forma de possibilitar a
comunicação de diferentes áreas sem sobreposições, colocando em xeque questões
atuais e convenientes de discussão (BRASIL, 1997).
A
proposta incumbe ao professor “mobilizar tais conteúdos em torno de temáticas
escolhidas, de forma que as diversas áreas não representem continentes
isolados, mas digam respeito aos diversos aspectos que compõem o exercício da
cidadania” (BRASIL, 1997, p. 38), responsabilizando-o pela fundamentação
construtivista dos Temas Transversais, bem como pela profundidade das
discussões e dos conteúdos. Em outras palavras, o trabalho sistemático e
contínuo durante toda a escolaridade, possibilitando o aprofundamento das
questões eleitas (BRASIL, 1997).
Ainda no
documento, a definição de interdisciplinaridade apresentada busca a garantia da
transversalidade. No entanto, para melhor diferenciação de etimologia da
palavra, interdisciplinaridade questiona a discussão compartimentalizada de
diversos conteúdos, não apresentando inter-relação e influência. No mais, o
próprio conteúdo expresso no documento não garante a transversalidade, de modo
que no subtópico Orientações didáticas
instruem o professor a tratar o Diálogo
(um subtópico de ética) nos conteúdos convencionais de Língua Portuguesa e
Matemática, colocados na significação de interdisciplinaridade. Contudo, não
garante o estabelecimento de vínculo de comunicação entre as discussões, o que
seria próprio da transversalidade, apresentando assim as possibilidades e não
os meios.
Ainda, em
detrimento da definição de transversalidade, a apresentação dos ciclos
formativos dos Temas Transversais está disposta em blocos, reunindo os diversos
conteúdos em função dos principais temas de cada eixo (BRASIL, 1997). Apesar da
disposição ser base para norteamento do profissional docente, é também
antagônico ao conceito apresentado e representa algo processual e limitado, sem
detalhes e maiores informações de organização.
Outra
manifestação processual dos Temas Transversais é colocada ao final da discussão
do Tema 1: Ética, Conteúdos de Ética
para o primeiro e segundo ciclos do ensino fundamental, compilando a extensa
discussão sobre ética em dois grandes blocos: um de base de discussão (respeito
mútuo e justiça) e outro que o complementa e o aprofunda (diálogo e
solidariedade) (BRASIL, 1997, p. 102).
O mesmo
acontece com as considerações gerais para avaliação, nas quais é destacada como
uma exigência e ferramenta para garantia de continuidade da proposta e
direcionadora de discussões e de responsabilidade do educador, não sendo
caracterizada por um método.
Neste
contexto, o meio de avaliação deve existir, se atentando nas formas de
aplicação para não reafirmar questões de rótulos e estereótipos que impeçam o
desenvolvimento social e educacional do aluno, trazendo uma qualificação
negativa ou positiva, estigmatizando-os (BRASIL, 1997) e procurando responder
qual(is) é(são) o(s) produto(s) dessa transversalidade e do conteúdo
trabalhado. As observações e percepções necessárias para os Critérios de
avaliação ao final do Tema 1: Ética reforçam a necessidade de mecanismos
concretos para a avaliação, não garantindo a uniformização do processo,
coerência e efetividade da proposta.
Apesar de
falta de direcionamento mais eficaz na apresentação dos Temas, as orientações
didáticas presumem a participação social para uma efetiva prática cidadã e
democrática, na qual “a escola será um lugar possível para essa aprendizagem,
se promover a convivência democrática no seu cotidiano, pois aprende-se a
participar, participando” (BRASIL, 1997, p. 59). O material salienta, ainda,
que a negação deste processo tem como produto final o “ensino passivo, a
indiferença e a obediência cega” (BRASIL, 1997, p. 59), alicerçando suas bases
democráticas.
Acerca
das responsabilidades, dos conteúdos, da sistematização, da aplicação e da
avaliação, apesar de condicionadas ao professor como mencionado pelo documento,
caberá a ele “mobilizar tais conteúdos em torno de temáticas escolhidas, de
forma que as diversas áreas não representem continentes isolados, mas digam
respeito aos diversos aspectos que compõem o exercício da cidadania” (BRASIL,
1997, p. 38), despertando a provocação. Mas, caso haja falha no processo, a
culpa será atribuída somente a esse profissional?
Sobre a questão, Charlot (2008) relata que a grande pressão social implicada aos professores deve-se ao fato de que os resultados escolares são sociais e fruto de trabalho e dedicação profissional. A própria desvalorização salarial pontuada possibilita a visualização da dinâmica da relação oferta e demanda empregatícia, colocando outras áreas profissionais em cobiça no mercado, promovendo a desvalorização formativa e o enfraquecimento da rotatividade mercantil. Esta desvalorização chega até o espaço escolar e coloca em questionamento as práticas pedagógicas e a eficácia do ensino ofertado, produzindo discursos negativistas, tanto sobre a profissão quanto sobre a prática.
1.3 Ética profissional na conduta docente
O
documento emprega 147 vezes, e em todas as suas páginas, a palavra “professor”,
não utilizando “docente” e “magistério”. O uso da palavra “professor” remete a
duas significações: as relações (cabendo relação professor-aluno, comunidade
escolar e relações sociais) e as práticas pedagógicas. Essa análise possibilita
a visualização da dependência da aplicação da proposta sobre o profissional
docente em decorrência da utilização de 75% da palavra sobre a aplicação de
ações, no que se remete ao infinitivo dos objetivos do desenvolvimento das práticas
pedagógicas em relação aos Temas Transversais.
Contudo,
25% do documento também apresenta o termo descrevendo as relações sociais que
marcam o processo formativo (relação aluno-professor, comunidade escolar e
sociedade), pontuando o enfraquecimento das relações possíveis ao professor,
desconsiderando a ação de mediador no ensino-aprendizagem, marginalizando-o
enquanto profissional e utilizando-o somente como um instrumento que
possibilite o cumprimento do currículo.
Esse dado
salienta a responsabilidade que o Estado incumbe à prática docente e à ética
profissional em seus conteúdos, se fazendo necessário retomarmos a Charlot
(2008) no que se refere à discussão das consequências sociais dessa
hiper-responsabilização do sucesso/fracasso escolar.
A dinâmica
do neoliberalismo, junto às condições de acesso ao trabalho, garantiram uma
importância do histórico escolar, de forma geral do desempenho e conclusão. A
configuração socioescolar assim disposta considera apenas o sistema avaliativo
da aprendizagem escalonado de 0 a 10, muitas vezes adotando um único método
avaliativo e colocando em posição de exclusão/fracasso os alunos que não
obtenham notas altas. A escola torna-se, então, um espaço de competitividade.
No
entanto, esses resultados escolares também são importantes para a comunidade
escolar, no que se refere aos pais e familiares, e são utilizados para
sustentar discursos ligados à escola e, sobretudo, aos professores, colocando
em xeque a sua prática e efetividade e podendo marginalizar esses profissionais.
Tais processos constituem práticas de desvalorização profissional, em evidência
a salarial, desestabilizando a sua importância social, competência para
cumprimento de função e disponibilidade de profissionais aptos a ocuparem a
vaga docente.
Apesar da
recente expansão escolar para as camadas sociais populares, permitindo o acesso
à educação básica e até mesmo ao ensino superior, a garantia do número de
pessoas aptas a ensinar é também ponto de contradição, uma vez que permeia o
espaço escolar e reproduz os significados que desestabilizam a função docente,
como discutido anteriormente. Essa força de tensão cria questões referentes à
metodologia do ensino tradicional na formação de professores utilizada durante
séculos.
As professoras ensinam em escolas
cuja forma básica foi definida nos séculos XVI e XVII: um espaço segmentado, um
tempo fragmentado, uma avaliação que diz o valor da pessoa do aluno. Essa forma
escolar condiz com a pedagogia tradicional. É nela que a professora é convidada
a ser construtivista e a usar o computador e a Internet (CHARLOT, 2008, p. 26).
Mesmo que
desenvolvendo projetos, pesquisas e uma avaliação formadora, a exigência da
nota pela direção ao final do bimestre ou ano letivo põe a figura do professor
na tomada de decisão de dar a mesma nota a todos os alunos e ser questionado
por tal ou promover a nota diferente, gerando classificações, uma
problematização ao sistema avaliativo e à gestão escolar. Assim, o motivo de
desenvolver as atividades não é a sua conclusão, mas a conquista da nota
(CHARLOT, 2008).
Outro
ponto de reflexão é o uso da ética na atuação profissional, o compromisso com o
processo formativo escolar enquanto um ato de resistência, pois, segundo
Mateiro (2003), quando se assume as delimitações do espaço do processo
formativo docente e também de atuação do profissional, se condiciona a
reprodução ideológica que se pratica, bem como seus processos de exclusão e
desigualdades. Como já apresentado, a ética é o resultado de valores e
princípios adotados por um determinado grupo durante um tempo. O
estabelecimento dessa legitimidade advém de reforço da prática, a qual tem
dimensões intrínsecas e não se desvinculam de sua fonte (sujeito). Além da
ética pessoal, quando o indivíduo é inserido no mundo do trabalho, sua dinâmica
e ações caracterizam sua ética profissional. Não visto como algo dual, mas como
projeção da ética pessoal a ponto de constituírem um todo, essas implicam na
dificuldade de dissociação e estruturalmente da própria mudança lenta e
difícil.
Mais do que visar a mudança de
princípios e valores, os discursos sobre formação parecem privilegiar uma
perspectiva contextualizada e consequencialista, de desenvolvimento
profissional, embora com diversidade de propostas que apontam para a reflexão
sobre situações concretas (metodologia de projeto, uso de narrativas,
dramatizações e debates), sem descurar linhas de estudo sobre normativos e
fundamentos éticos e linhas de reflexão conceptual (CAETANO; SILVA, 2009, p. 53).
Ainda,
segundo Charlot (2008), no que se refere às dimensões éticas de formação de
professores, os bombardeios conteudistas depositados sobre os graduandos em
licenciatura acentuam referências formativas vagas que não contemplam o papel
formativo à nível ético, considerando autores e títulos como simbolismos
generalistas de ética e a própria estrutura familiar como fonte do
desenvolvimento ético.
Diante do
apresentado, a experimentação para construção do conceito de ética apontada no
documento proporciona o estabelecimento de critérios e regras que fazem o
professor ser o ponto chave de uma reprodução cultural possível ou de uma
autonomia social visada, tendo em vista as demandas da classe trabalhadora
marginalizada e o próprio processo formativo já discutido e precarizado no que
tange a ética profissional de professores.
O
fragmento abaixo caracteriza a imposição para a conquista do respeito mútuo:
“Basta que o professor deixe clara tal razão de ser dessas regras, ou seja,
deixe claro que não ‘caem do céu’, que não representam uma tirania de alguém
que quer impor sua vontade” (BRASIL, 1997, p. 80). Essa condição permite a
reflexão acerca da culpabilidade social empregada aos professores inclusive nos
dias atuais e como esse processo foi construído, não apenas nos discursos
populares, mas alicerçados pelos discursos políticos, como este em questão, que
reforçam essa prática, a marginalização do profissional e a consequente
desvalorização da Educação.
Por outro lado, vislumbra o processo formativo de professores e a ética profissional, a necessidade não apenas de uma fundamentação teórica consistente; mas, propiciar práticas e experiências, construindo assim uma identidade docente compromissada e não responsabilizada integralmente por seu desempenho profissional.
Considerações finais
Os conteúdos
produzidos, como formação familiar heteronormativa, os discursos de gênero e de
modo geral um padrão de “normalidade/naturalização e domínio”, dentre outros,
carregam seus direcionadores éticos, morais e buscam justificar suas ações.
Nessa perspectiva, a sociedade brasileira e o seu núcleo legislativo
educacional produziram e produzem documentos que reforçam os fatores
estruturais sociais e culturais na qual se constituíram.
A escola,
em especial a pública, sendo um espaço alvo desse núcleo legislativo e de
intervenção de políticas educacionais, é bombardeada pelas diferentes
perspectivas de educação adotadas durante os governos, mas também é um rico
espaço de experimentação onde as mais distintas representações sociais se
deparam num mesmo ambiente e tencionam-se ao ponto de estabelecer uma
homogenia, uma identidade orientada. Mesmo que a apresentação dos temas remeta
a uma autonomia reflexiva e libertadora, não apresenta os microprocessos
sociais e seus espaços diversos na qual o “projeto de Felicidade” fica difuso e
reverbera as diferentes fisionomias, parâmetros e ópticas do que é ter uma
“vida boa” e ainda, para quem essa vida boa é projetada.
Da
aplicação à prática escolar, a produção e reprodução dos significados perpassam
as práticas diárias de alunos e professores e, dentro da dinâmica social
neoliberal, apresenta competitividade e sede de resultados, na qual o fracasso
marginaliza e o sucesso ascende, a quem assim o conquistar. Os critérios variam
numa curta escala de algarismos determinantes, fator que fundamenta o ensino
passivo e a obediência cega para a conquista da nota. O final do processo
educacional escolar, como dito, resulta em rótulos aos quais também está
condicionado o profissional docente, colocado como figura mais próxima e responsável
não só pelo êxito, mas pela atual sociedade, que é produto desse processo
formativo e que também marginaliza as discussões do professorado e suas
metodologias, propondo em contraposição as reflexões sobre: Qual o papel do
poder público para que esse êxito seja alcançado? É possível pensar em
princípios democráticos com relações autoritárias, excludentes e que negam os
direitos humanos?
Mesmo que
o Tema Transversal Ética dos PCN
defenda uma concepção de democracia e uma educação humanística, também se
sustenta em uma escolarização que se subsidia em uma perspectiva tecnicista de
currículo educacional, sendo meio de reprodução de uma cultura difusa e
complexa e dando continuidade às relações de força e símbolos sociais que
estruturam a sociedade.
O conteúdo
espelha a problematização metodológica para a conquista da transversalidade,
sendo esta colocada apenas como objetivo e exigindo sua reformulação para
aprimorar as possibilidades da proposta. Ainda, amplia o campo de discussão e
estratégias de sua aplicabilidade para então cumprir as premissas de sua
implementação e agir como um instrumento importante para a formação social,
considerando as diferenças, a diversidade, os princípios éticos, a pluralidade
de ideias, de culturas, dentre outros valores e características. Vale ressaltar
aqui, como foi exposto antes, que a escola não muda a sociedade; mas, pode
“compartilhar” seus princípios democráticos para constituir-se como espaço de
(re)produção e transformação.
Compreende-se
também que o discurso sobre a atuação do profissional docente exige, numa
perspectiva freiriana, a práxis em conjunto aluno e professor enquanto sujeitos
que têm a potencialidade de alterar uma dinâmica social. Isto é, não retendo a
prática apenas ao primeiro e nem incumbindo ao docente a posição de instrumento
de transformação, já que este também é fruto de relações sociais. Isso reforça
a necessidade de reflexões na formação profissional docente e do trabalho
coletivo e integrado na busca de uma prática educativa libertadora e autônoma.
Apesar de
sempre tensionado a firmar o compromisso para/com a democracia e o sucesso, o
documento assume que está sujeito a erros, pois expõe a possibilidade de
fracasso da proposta, reafirmando a subjetividade da política social às
relações humanas. O documento, então, no cenário de aprovação da nova Base
Nacional Curricular Comum, se constitui(u) singularmente como orientador de
práticas reflexivas de temáticas sociais emergentes e torna(ou)-se
superficialmente um dispositivo que busca o reparo social, a fim de provocar
ações positivas e/ou negativas nas dinâmicas sociais/escolares e ampliar as
concepções plurais que não podem ser negadas, sejam elas socioeconômicas ou
culturais.
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