Revista Sísifo. N° 12, Julho/Dezembro 2020. ISSN 2359-3121. www.revistasisifo.com
Maria Clara Caetano Tavares
Monteiro - Graduanda em Filosofia pela UFPE.
E-mail: clara.caetanom@ufpe.br
Marcos Roberto Nunes Costa - Doutorado em Filosofia pela PUCRS, Pós-doutorado em Filosofia pela Universidade do Porto, professor efetivo do Departamento de Filosofia da UFPE. E-mail: marcosnunescosta@hotmail.com
Resumo: O presente artigo visa
examinar um dos importantes temas no pensamento da filósofa Edith Stein
(1891-1942), a saber, os papéis do homem e da mulher no seio da família. Para
tal, procuraremos demonstrar qual é a vocação do homem e da mulher fora e
dentro da relação familiar, quais são as características que diferem o ser
masculino do ser feminino no geral. Veremos que para a referida Filósofa, homem
e mulher possuem papéis específicos dentro das famílias e que justamente por
essas diferenças se fazem necessariamente complementares um para o outro na sua
relação amorosa e em seu papel de pais educadores.
Palavras-chave: Edith Stein; Gênero;
Família.
Abstract: This article aims to examine one of the
most important themes in the philosopher Edith Stein thought (1891-1942): the
roles of men and women within the family. For that, we will show what are men
and women's vocation outside and within the family relationship, what are the
characteristics that differ the being male from the female in general. We will
see that, for the Philosopher, men and women have specific roles within
families and precisely because of those differences, they are complementary to
each other in their loving relationship and in their role as educating parents.
Keywords: Edith Stein, Genre, Family.
Considerações iniciais
O presente artigo pretende
defender que, para os grandes males que assolam nossa sociedade contemporânea
na construção e no desenvolvimento de seres humanos, existe uma instituição que
pode nos ajudar que é a família. A busca pela renovação das forças da mesma e o
apelo para o reerguimento de sua estrutura entra em cena, então, como o cerne
desse trabalho, pois, acredita-se que grande parte dos problemas que atingem as
crianças, os adolescentes e os jovens de nossos dias se encontra justamente nas
falhas desse pilar.
Sendo assim, para a
realização deste estudo buscamos nos trabalhos da filósofa contemporânea Edith
Stein[1] as respostas para os
seguintes questionamentos: dentro da família existe um papel específico para o
homem e para a mulher? Se sim, quais são
esses papéis?
1 A “reciprocidade circular” da ciência filosófica com a teológica
Edith Stein afirma que o
ser humano é um ser chamado por Deus (a cada um de forma individual), e as
pessoas podem descobrir por meio de diversos caminhos a sua vocação. Confessa
que apesar de ser algo de difícil reconhecimento, a vocação do homem e da
mulher não é impossível de ser descoberta, porque o chamado divino pode ser
encontrado através de muitos caminhos, como ela mesma aponta: “[…] existem
muitos caminhos pelos quais o chamado nos alcança: Deus mesmo o pronuncia nas
palavras do Antigo e do Novo Testamento. Está inscrito na natureza do homem e
da mulher, a História no-lo revela e as necessidades de nosso tempo falam uma
linguagem insistente” (1999a, p.74). Além desses caminhos, para
construção de seu conhecimento acerca do homem e da mulher, a autora se utiliza
também do seu conhecimento literário como mostra em sua conferência: “A vida
cristã da mulher” e tantos outros que não abordaremos de perto neste trabalho.
Sobre a relação da palavra
divina com a vida humana, diz ela em seu texto “Vocação do homem e da mulher segundo a ordem natural e da graça”:
Tentando delinear a natureza do homem e da mulher segundo o
conhecimento natural, obtemos de um lado uma elucidação viva daquilo que nos é
dado a entender pela palavra de Deus; por outro lado, temos na palavra de Deus
um roteiro que nos ajuda a interpretar o material demonstrativo da vida (1999a,
p. 88).
Ao mostrar que, na maioria
das vezes, o seu conhecimento acerca de ambos os sexos parte também de
conhecimentos adquiridos pelas interpretações feitas das Sagradas Escrituras, a filósofa nos aponta para a própria beleza
que há na íntima relação entre os Textos
bíblicos com a vida do ser humano, e assim nos mostra que a religião por
ela assumida não é uma religião aquém da vida. E isto também podemos dizer do
método escolhido por ela (o fenomenológico), pois este visa encontrar
justamente o sentido e a verdade última das coisas nelas mesmas, investigando a
maneira como se mostram, revelando-se a nós, seres humanos, conforme veremos
mais adiante.
Sendo assim, o presente
trabalho pretende analisar a concepção steiniana as características próprias
dos sexos masculino e feminino. Defendendo que o caminho não perpassa pela
negação das diferenças naturais dos dois sexos, nem pela afirmação de um sobre
o outro, mas pelo acolhimento e respeito de ambos. De modo que na convivência
da relação familiar possam trilhar um caminho de superação dos seus respectivos
excessos ou falhas por uma conquista de uma semelhança cada vez maior com
Cristo, como nos afirma o pensamento da autora:
Quanto mais se progride nesse caminho, mais se fica parecido com
Cristo, e como Cristo representa o ideal da perfeição humana, no qual são
abolidas todas as unilateralidades e falhas, reunidas todas as qualidades da
natureza masculina e feminina, eliminadas as fraquezas, seus seguidores também
passam a ser elevados cada vez mais para além dos limites da natureza (1999a,
p. 103).
2 Apresentação do método fenomenológico
A fenomenologia, conhecida
por ela através do matemático e filósofo Edmundo Husserl (1859-1938), partia
para uma “busca das essências”, investigando o sentido das coisas através de
sua manifestação, observando como as entidades se dão para nós, os seres
humanos. No artigo filosófico “O que é a fenomenologia?”, traduzido no
Brasil pela Profa. Ursula Mattias, Edith Stein assim diz acerca da escolha do
nome “fenomenologia” e como ele muitas vezes ocasiona mal entendidos: “Ele é
uma verdadeira fatalidade, pois quase sempre dá motivo para mal-entendidos. De
fato, aos fenomenólogos não interessa os ‘fenômenos’ no sentido usual, as
“meras aparências”, mas, justamente, as essencialidades últimas objetivas”
(2018, p. 217)
Neste trecho podemos
observar que o significado do método fenomenológico não pode ser levado ao pé
da letra para explicitar aquilo que ele de fato é, mas pelo contrário, o estudo
da fenomenologia não é qualquer estudo dos fenômenos. A fenomenologia busca o
sentido último, a essência das coisas. Rumo a esse esclarecimento a respeito da
essência das coisas, Elisangela Machado, em seu artigo: “A fenomenóloga de
Göttingen: breve relato de trajetória da fenomenologia na vida de Edith Stein”
descreve:
O método fenomenológico no exercício de escavação rumo ao
essencial, deixa de lado o que é acessório e acidental para alcançar a verdade
vivida que brota da análise e de reflexões rigorosas. O sentido das coisas é
descrito mediante a capacidade humana de refletir diante do que lhe é mostrado,
como as coisas físicas e, ou abstratas. É esse método, ou melhor, esse estilo
de linha de pesquisa que irá acompanhar Edith Stein em todo desenvolvimento de
sua produção intelectual, obras e conferências (2017, p. 99).
A fenomenologia traz em si
a rigorosidade do pensamento matemático já que foi criado por um, e uma análise
crítica diante daquilo que é escolhido como objeto de seu estudo. Buscando de
fato o que permanece velado por trás das coisas, ou seja, o seu sentido, a
verdade escondida por trás dos “fenômenos”.
Em seu texto, traduzido
pela Profa. Ursula Matthias, Edith Stein faz um elogio à objetividade do
conhecimento entrelaçado com a ideia de verdade absoluta demonstrada pelas Investigações Lógicas do seu mestre,
afirmando que, “o espírito encontra a verdade, ele não a produz. E ela é eterna
– se muda a natureza humana, se muda o organismo psíquico, se muda o espírito
dos tempos, então podem bem mudar as opiniões dos homens, mas a verdade não
muda” (2018, p. 217).
Assim, por exemplo, no que se refere à
questão de gênero, que será vista ao longo deste trabalho, a partir de sua
conferência: “O
ethos das profissões femininas” (1999b), podemos notar que Edith Stein se
inspirou no pensamento São Tomás de Aquino.
Ali, a filósofa diz que ao notar as diferenças corporais existentes de
um sexo para o outro, alerta que provavelmente deva haver também certo tipo
diferenciação no modo de pensar e de agir de ambos. E para isso se baseia no
princípio tomista: “anima forma corporis”, diz: “Onde as forças são tão diferentes, deve haver também um tipo de
alma diferente, apesar da natureza humana comum” (1999b, p. 57). Edith Stein observa que as forças masculinas e femininas se
distanciam entre si, e por isso, concorda com o pensamento de São Tomás ao
dizer que por essas diferenças, apesar da natureza humana comum, existem
realmente duas formas distintas nos seres humanos.
Tal pensamento também pode
ser mais bem complementado quando paramos para analisar o conceito “ethos” da
autora e a sua definição: “Ethos exprime algo duradouro que regula os atos
humanos, não se trata de uma lei imposta de fora ou de cima, é algo que atua
dentro do ser humano, uma forma interna, uma atitude da alma constante, aquilo
que a escolástica chama de hábito” (1999b, p. 55). Ou seja, para ela, o ethos é
como essa marca que já existe dentro do ser humano e que se externa em atitudes
constantes. Edith Stein também nos relata outros tipos de hábitos, como os
temperamentos (que já nascem dentro de nós, sendo “inatos”, como o da alegria
ou da melancolia) e outros como os que são adquiridos pelas nossas inclinações
pessoais, as aptidões. Assim, encontrará também os hábitos próprios da alma
masculina e feminina.
3 A vocação como expressão de um chamado divino
Em sua supracitada palestra
“Vocação do homem e da mulher segundo a
ordem da natureza e da graça” (1999a), Edith Stein apresenta um ponto de
vista um tanto “esquecido”, podemos assim dizer, e diferente daqueles vistos
nos tempos de hoje acerca do ser humano.
Antes de nos apontar para a
relação propriamente dita entre o homem e a mulher, Edith Stein apresenta uma
busca pelo sentido da palavra vocação, afirmando que “na linguagem comum, o
termo vocação conserva um sentido muito esmaecido de seu significado original”
(1999a, p.73). E aponta apenas duas formas que a palavra dita ainda guarda esse
“significado original”: A primeira se diz de uma pessoa que
“escolheu uma profissão” ou quando se fala de “profissão religiosa”. Afirmando
que em ambas as formas a profissão é “algo que supõe” vocação.
Ao longo do texto, a
filósofa chega a uma pergunta muito interessante que ela mesma responde: “Mas o
que significa ter vocação? Deve ter havido um chamado: de alguém, a alguém,
para algo, de uma maneira perceptível” (1999a, p.73). A autora vai nos dizer
que vocação, além do sentido de chamado do qual a palavra se originou, também
pode ser entendida como aquele reconhecimento de uma ou mais capacidades
encontradas no homem para realizar uma profissão. Fala também dos outros tipos
de vocação, as quais, tanto em um quanto no outro caso, ao descobrir sua
vocação, o homem e a mulher estão descobrindo o seu próprio modo de ser como
também o seu lugar no mundo.
Sendo assim, a Edith Stein
defende que o sexo de um determinado indivíduo não se trata de algo arbitrário,
mas é sustentado por uma escolha de um ser divino que, por sua vez, realiza a
sua criação e introduz no ser humano um chamado, uma vocação específica, ou
seja, uma identidade masculina ou feminina a fim de que possa sê-lo no mundo.
Portanto, afirma, “[…] é ele (Deus) que chama: toda pessoa para realizar algo
que é de sua vocação, cada um individualmente
para algo que é sua vocação toda particular e, além disso, o homem e a mulher, como tais, para
algo especial” (1999a, p.74 – destaque da autora).
Ou seja, reconhecer uma
vocação, antes de tudo, conforme o pensamento steniano, significa acreditar que
a existência não é e nem pode ser vista como acaso, onde eu faço o que desejo
com a minha vida, mas significa optar por um caminho, onde desejo descobrir a
verdade desvelada daquilo que sou. Assim, para Edith Stein, “a natureza humana
e o caminho da vida não são nem presente nem fruto do acaso, aos olhos da fé,
são obra de Deus” (1999a, p.74). A pergunta que devemos fazer agora é, será que
existe de fato um caminho, um curso, um rio, algo que nos guie para uma
identidade segura do nosso ser enquanto homens e mulheres?
Para chegarmos a alguma
clareza dessa resposta precisamos nos deter antes nas três fases da vocação que
a Autora apresenta em sua conferência: “A
vocação do homem e da mulher de acordo com a ordem natural e da graça”
(1999a).
4 As três fases da vocação do homem e da mulher
Podemos notar que a vocação
do homem e da mulher, para a escritora, é lida e interpretada por três
pequenas, mas significativas “fases” encontradas na História da Criação,
(retiradas quase por inteiro do Livro do
Gênesis) de onde extrai uma boa parte da base e complemento do seu
conhecimento acerca do ser humano. É importante lembrar que cada fase diz algo
a respeito das características de ambos os sexos e que estas não podem ser
consideradas de forma passageira, mas essenciais para a sua constituição.
A primeira fase é vista
como aquela antes do pecado original, ainda quando Adão e Eva viviam no
Paraíso:
A primeira palavra da Sagrada Escritura que fala do ser humano
atribui ao homem e à mulher uma vocação comum. ‘Façamos o homem à nossa imagem
e semelhança; e que governe os peixes do mar e as aves do céu e toda a Terra e
sobre todos os répteis que se movem sobre a Terra’ (Gênesis 1,27) (1999a,
p.75).
Nesse momento podemos ver
que homem e mulher possuem a vocação comum de serem imagem e semelhança de
Deus, de dominarem a terra e de gerarem descendência. “Portanto, logo no
primeiro relato sobre a criação do ser humano fala-se da diferenciação entre
homem e mulher. Mas a tríplice tarefa é dirigida a ambos em conjunto” (STEIN,
1999a, p.75). Na primeira fase, então, ambos são chamados a desempenharem o
mesmo papel, e não encontramos diferença em suas vocações.
A segunda fase é marcada
pela escolha de Adão e Eva em desobedecerem a Deus. Agora, “o chamado de Deus
aos homens e a vocação dos homens aparecem essencialmente modificados depois da
queda” (STEIN, 1999a, p.77). Assim, após experimentarem desse conhecimento,
simbolizado pelo fruto da árvore proibida, toda a vocação do homem e da mulher
se modifica, de forma que, para o homem, “o castigo pela desobediência é a
perda do domínio absoluto sobre a terra e a disponibilidade das criaturas menos
nobres, a luta dura pelo pão de cada dia, as dificuldades do trabalho e a
pobreza do seu fruto” (STEIN, 1999a, p.77), e “a consequência da queda são as
dificuldades do parto para a mulher, assim como as dificuldades da luta pela
vida para o homem” (STEIN, 1999a, p.98).
Ou seja, a partir da
escolha do homem e da mulher pelo mal, podemos observar que essa tríplice
vocação originária se transforma radicalmente: “Desta maneira mudou a relação
dos seres humanos com a terra, com seus descendentes e entre si mesmos.”
(STEIN, 1999a, p.78)
Por fim, nasce a “terceira
e última fase”, que pode ser representada pelo acontecimento da redenção: a
vinda de Jesus Cristo concebido por Maria:
Assim como a tentação se aproximou primeiramente de uma mulher,
assim a mensagem da redenção de Deus chega em primeiro lugar a uma mulher, e
num como noutro caso é o sim saída da boca de uma mulher que define o destino
de toda humanidade (STEIN, 1999a, p. 80).
Embora dê capital
importância a mulher na fase da redenção, ressalta que a diferença de papeis
desta na primeira fase (criação) e na terceira fase (redenção), ao afirmar:
O que distingue o sexo feminino é o fato de ter sido uma mulher o
ser humano escolhido para ajudar a fundar o novo reino de Deus; o que distingue
por sua vez o sexo masculino é o fato de a redenção ter chegado pelo filho do
homem, o novo Adão (STEIN, 1999a, p. 80).
Assim, Maria passa a ser
vista como a nova Eva e Cristo passa a ser visto como o novo Adão,
restabelecendo a ordem originária.
Portanto, no evento da redenção,
associado a nova referência do ser homem e do ser mulher, a humanidade recebe
também, consequentemente, um novo exemplo do ser família.
Como o Prof. Juvenal Savian
Filho atesta em seu artigo, podemos ver que:
O modo como as características da espécie humana contraem-se em
uma mulher permite que ela tenha um modo de existir que é radicalmente
diferente do modo de existir de um homem, em quem as características da espécie
humana são contraídas de outra maneira. As possibilidades dadas a uma e a outro
são diferentes; e é a diferença quanto às possibilidades que interessa Edith
Stein (2018, p. 32).
Assim, veremos de que forma
esses dois modos de existir se correlacionam entre si, bem como de que forma
tais características nascem de uma maneira no sexo masculino e de outra maneira
no sexo feminino.
5 As vocações primárias e secundárias e a complementariedade na família
Por causa de suas
diferenças, homem e mulher assumem funções distintas de acordo com seus dons ou
inclinações pessoais no seio da família. Daquela vocação originária do homem e
da mulher, veremos que a submissão a terra e o cuidado com os descendentes
despontam preferencialmente em ambos em direções opostas. Enquanto na mulher
encontramos em sua vocação primária à maternidade, no homem, encontramos o
desejo pelo domínio da terra e, em suas “vocações secundárias”, encontramos
nela o dever de participação nesse domínio e nele a sua paternidade.
Podemos concluir que há uma
complementação: aquilo que falta à mulher na sua vocação de mãe, completa-se
com o auxílio masculino, e aquilo que falta ao homem no seu domínio da terra e
de todo o criado, a mulher o ajudará. Ambos, então, nascem para serem auxílios
recíprocos um para outro. Por causa de suas desigualdades e diferenças naturais
é que surge a igualdade, isto é: a necessidade de sua complementariedade dentro
da família. A autora se utiliza de uma passagem do Livro do Gênesis na qual podemos retirar uma justificativa à
necessidade de complementação entre ambos os sexos:
A segunda passagem, que trata mais detalhadamente da criação do
ser humano, diz um pouco mais sobre a relação entre o homem e a mulher. Fala da
criação de Adão, como ele foi posto no ‘paraíso de delícias’ para que o
cultivasse e o guardasse, como levou os animais para junto de Adão e como lhes
deu nomes [...]. Mas não se achava para Adão uma ajudante semelhante a
ele (1999a, p.75 – destaque nosso).
Comentado acerca do termo
supra destacado, Edith Stein conduz o leitor a duas interpretações para palavra
hebraica “eser kenego” ou “semelhante” (em português). A primeira seria voltada
para o sentido mais literal, então a mulher (Eva) seria para o homem (Adão)
como “um espelho” no qual ele poderia encontrar a própria imagem. Enquanto a
segunda interpretação alcança melhor aquele sentido que buscamos, pois diz a
filósofa: “Mas pode se pensar também numa contra-parte de modo que ambos se
assemelhem, mas não totalmente, que se complementem como uma mão a outra”
(1999a, p.76). Assim, podemos pensar o
homem e a mulher que apesar de serem diferentes (como uma mão é diferente da
outra), mas conseguem se complementar em uma união.
Enquanto a vocação primária
do homem se encontra na relação de domínio para com a terra, a da mulher pode
ser vista naquela vocação a maternidade e de cuidado em relação aos filhos,
pois nele desponta preferencialmente a luta pela vida, a conquista pela terra,
já nela o cuidado e a preocupação com a prole. Por isso, ele recebe a função de
ser o “cabeça” da família e ela a responsabilidade principal na educação dos
seus filhos. Acredita-se que justamente por ser o primeiro na ordem da Criação,
recebendo com isso a sua função de ser a “cabeça da família”, também recebe a
responsabilidade pela proteção e sustento da vida de sua mulher e de seus
filhos.
Comparando a natureza
feminina com a masculina, Edith Stein escreve:
A natureza da mulher mostra-se exatamente paralela. Segundo a
ordem original, seu lugar é ao lado do marido, no empenho de submeter a terra e
de cuidar dos descendentes. Mas seu corpo e sua alma se prestam menos à luta e
à conquista e mais à prática de cuidar, guardar e conservar. Ao que tudo
indica, essa atitude está ligada à sua função de cuidar da prole e de
promovê-la: trata-se de uma percepção especial da importância do orgânico, do
todo, dos valores específicos, do individual. Desta maneira, ela se revela
sensível e atenta a tudo que quer vir a ser, crescer, desenvolver-se e que, por
isso mesmo, exige consideração para com as suas próprias leis (1999a, p. 91).
Assim, podemos destacar
três dons que caracterizam as mulheres: o dom de ter um olhar voltado para o
“todo integral”, e consequentemente também para a “pessoa vivente” (como esse
todo vivente) e por último o “olhar respeitoso” diante das coisas. Destaca-se
assim, aquelas características próprias do ser da mulher. E, diz Edith Stein,
das
três atitudes básicas diante do mundo – conhecer, desfrutar e
criar – ela prefere normalmente a segunda; parece que ela é mais capaz de
alegrar-se, respeitosamente, com as criaturas do que o homem (considerando
sempre que essa alegria respeitosa pressupõe o conhecimento específico dos bens
[…] (STEIN, 1999a, p.91).
A mulher está atenta a tudo
que está ao seu redor, se importando com todos aqueles com quem mora ou
trabalha, e o faz naturalmente. Por ter em si esse olhar voltado para a
importância do todo, do orgânico, ela consegue ter um olhar especial para com
todas as coisas e seres da terra, os sabendo respeitar, pois conhece as suas
leis, um conhecimento que é próprio dela. Consequentemente, por ter esse olhar
voltado para o “todo integral”, receberá a sua função principal de formadora de
seus filhos. Pensamento este que ecoa na Encíclica
“A dignidade da mulher”, de João Paulo II: “Considera-se
comumente que a mulher, mais do que o homem, seja capaz de atenção à pessoa
concreta, e que a maternidade desenvolva ainda mais esta disposição” (PAULO II, 1988).
Dons esses que são capazes
de beneficiar não somente os filhos, mas todas as criaturas, inclusive o seu
próprio marido. Ou seja, não costumando viver unicamente para si, a mulher
possui a capacidade de sempre se dirigir a outrem, sejam a seus filhos, ou ao
seu marido; abrangendo assim, com seus dons e suas potencialidades todos que
estão a sua volta, os formando, os ajudando a crescer. Também confirmam isso, a
Profa. Ursula Matthias e Moisés Farias: “Segundo Edith Stein, a mulher tem uma
predisposição maternal que se une à de ser companheira. A alegria, a felicidade
da mulher consiste justamente em dividir, compartilhar com outra pessoa de si
mesma” (2006, p.189).
E esse seu ser sempre
voltado aos outros é o que a faz exercer tão bem a sua vocação secundária, que
é a participação neste domínio sobre a terra (vocação que desponta
primeiramente no homem). A esse exercício também corresponde a sua capacidade
de ter um olhar voltado para a percepção do todo e de sua harmonia, sendo capaz
de olhar para cada humano sem ser de forma interesseira, mas como um ser que
possui complexidade e valor. Por exemplo,
ao olhar para a natureza reconhece a autêntica beleza e necessidade e
finalidade de cada ser, reconhecendo que cada um tem a sua importância no todo
orgânico. É capaz de olhar para todos os detalhes e reconhecer a importância da
vida que se desenvolve a sua frente, seja ela do reino animal, vegetal e
inclusive, do humano. Revela-nos, a filósofa, que tal predisposição está
intimamente atrelada a sua maternidade:
Com sensibilidade e compreensão, consegue aprofundar-se em temas
que, de per si, lhe são estranhos e com os quais nunca se preocuparia se não
fosse um interesse pessoal que a pusesse em contato com eles. Esse dom está
intimamente ligado à sua predisposição maternal (STEIN, 1999b, p. 58).
Acreditamos que todos os
seus dons vocacionais sejam atrelados a esta simples causa: a de ser mãe, de
ter em si essa capacidade e predisposição natural. E é por isso mesmo que cabe
a ela a responsabilidade principal na educação e formação dos seus filhos.
Podemos constatar isso mais claramente quando João Paulo II, na sua supracitada
Encíclica, pronuncia:
A análise científica confirma plenamente o fato de que a
constituição física da mulher e o seu organismo comportam em si a disposição
natural para a maternidade, para a concepção, para a gestação e para o parto da
criança, em consequência da união matrimonial com o homem. Ao mesmo tempo, tudo
isso corresponde também à estrutura psicofísica da mulher (PAULO II, 1988).
Ao dizer que a mulher é
responsável pela educação dos filhos não quer dizer que o homem possa se
ausentar dessa atividade, cabendo também a sua participação desse domínio, mas
quer dizer tão somente que tais responsabilidades cabem principalmente a ela,
porque possui em si mesma esses dons naturais.
Constatamos aqui uma tese
profundamente pensada e defendida pela autora a respeito da unicidade e
integralidade do ser humano, quando São João Paulo II afirma que uma capacidade
física natural da mulher também traz uma estrutura psíquica correspondente a
essa capacidade. Ou seja, se o corpo da mulher revela a capacidade biológica
para ser mãe atrelada a ela está à capacidade psíquica para essa realização,
bem como a força interior em sua alma para suportar as exigências desta ação.
Abrimos um parêntese para
comentar a respeito da unicidade que a autora traz em seu pensamento do corpo,
da alma e do espírito humano. Para ela, não somos somente corpo, ou somente
alma, ou somente espírito, mas cada homem e mulher são íntegros, trazendo em si
todos esses componentes. Elucida melhor sobre isso, o Prof. Juvenal Savian
Filho:
Para Edith Stein, porém, o ser humano não é a soma de um corpo,
uma alma e um espírito (mente, intelecto ou qualquer outro nome que se queira).
O que ela chama de corpo (a materialidade), alma (força vital) e espírito
(vigilância e abertura, capacidade de sair de si, permanecendo em si) não são
‘partes’ justapostas de um todo, mas dimensões de um ser uno, o ser humano. O
corpo humano não é matéria animada por uma alma; é um corpo de uma alma, um
corpo típico de ser humano, dotado da possibilidade de ver-se a si mesmo e ver
a alteridade (2018, p. 29).
Edith Stein traz o conceito
de “espécie” não como sinônimo da
espécie humana (homem e mulher) no geral, mas tal conceito é representado como
essa “marca homogênea” que envolve cada ser masculino e feminino, em suas
formas de ser distintas. Podemos enxergar melhor isso no seguinte fragmento:
“[…] à espécie feminina corresponde à
unidade e a integridade de toda a personalidade psicofísica, o desenvolvimento
harmonioso das forças; a espécie masculina
se destaca pela potencialização máxima de forças isoladas” (1999c, p. 206). E
mais adiante completa:
Segundo a minha convicção, a espécie humana se desdobra na espécie
dupla de homem e mulher, de modo que a essência do ser humano, em que não deve
faltar nenhum traço de um ou de outro lado, se manifesta de dupla maneira
revelando-se a marca específica em toda a estrutura do ser (Ibid.).
Edith Stein traz uma
diferença específica do comportamento das forças masculinas e femininas,
enquanto que a primeira tem a sua potencialidade mais impulsionada em campos
mais restritos ou até mesmo em um único campo, a feminina se desenvolve de
forma mais harmoniosa, no todo.
Nisso, podemos concordar
com Prof. Juvenal Savian Filho, quando diz: “O homem, por sua vez, […] tende a
concentrar-se na objetividade das relações, conseguindo a proeza de distinguir
aquilo que a mulher vive de maneira intrinsecamente unida, quer dizer, aspectos
físicos, psíquicos e espirituais” (2018, p. 28). Ou seja, enquanto na estrutura
da mulher existe essa harmonia, essa união das forças, voltada para o todo, no
homem existe um olhar mais objetivo voltado para as coisas isoladas.
Ao dizermos que o homem tem
a sua vocação primária no domínio para com a terra queremos dizer que, dentro
da família, ele exercerá essa responsabilidade sendo o “cabeça da família”. E
como este, ele possui a obrigação de auxiliar a sua família no desenvolver de
seus dons e potencialidades, assumindo também um compromisso fundamental para
com as suas vidas, como bem diz a autora:
[…] será função dele dirigir essa pequena imagem do grande corpo
místico, para que cada membro possa nele desenvolver plenamente seus dons e
alcançar a redenção. O homem não é Cristo, nem tem o poder de conceder dons.
Mas tem o poder de desenvolver os dons existentes (ou de sufocá-los), na medida
em que um ser humano é capaz de ajudar ao outro a desenvolver seus dons. Sua
sabedoria consiste em contribuir para que esses dons não definhem e, sim, se
desenvolvam para a redenção do todo (STEIN, 1999a, p. 85).
O que Edith Stein quer
dizer então quando coloca o homem como o “cabeça da família”? Observamos que dizer que o homem é o cabeça
da família automaticamente incluímos a ele a responsabilidade de um cuidado e
proteção (não somente material ou meramente superficial) para com seus filhos e
sua esposa, mas a devida atenção para com o crescimento de cada um, dando
suporte e apoio aonde for necessário, interferindo também quando for preciso e
dando total liberdade para que todos os dons e forças que despontem em seus
familiares possam crescer da melhor maneira possível. Ou seja, ele é o
responsável pelo desenvolvimento de todos. No entanto, para fazer tudo isso,
não esquece a autora de lembrar que o homem precisa da ajuda de sua mulher,
visto que em muitos casos, passará a cumprir melhor as suas obrigações
trazendo-a para perto de si, escutando-a e ouvindo os seus conselhos: “Sua
máxima sabedoria pode consistir em permitir que suas próprias imperfeições
sejam compensadas pelos dons do membro complementar” (STEIN, 1999a, p.85)
Podemos ver então que os
ensinamentos da filósofa têm coerência, visto que enxerga na vida de cada uma
as responsabilidades que possuem de acordo com suas próprias potencialidades
naturais, potencialidades que já nascem em suas “espécies”, próprias do ser homem e do ser mulher, conforme palavras
de Ursula Matthias e Moisés Farias:
Edith Stein usa o conceito de espécie a modo próprio, para
descrever aquilo que todas as mulheres têm em comum e todos os homens têm em
comum, respectivamente. Isso de maneira alguma destrói o conceito de que tanto
o homem como a mulher estão inseridos no conceito de que tanto o homem como a
mulher estão inseridos no conceito de espécie humana, consagrado pela
antropologia (2006, p. 191-192).
Ainda sobre o conceito “espécies”, o Prof. Juvenal Savian Filho
também esclarece:
Ela [Edith Stein] pensa em modos
de existir, em modos de ser totalmente individuais, embora a
individualidade seja uma forma de realizar o que há de comum na espécie humana.
A individualidade, numa palavra, contrai o universal da espécie em unidades
tipicamente femininas e tipicamente masculinas (2018, p. 29).
Tais diversidades também
podem serem atestadas na própria história da evolução humana na ciência
biológica (quando verificamos a história da evolução humana os homens por conta
do seu “porte físico” eram mais aptos para a caça e assim eram os responsáveis
pela proteção e sustento da família e a mulher pelo seu físico apto para a
amamentação dos filhos era responsável pelos filhos). Logo, podemos constatar
que os estudos stenianos nos remetem ao “material da vida”, observando aquilo
que faz parte da própria história humana e assim, o exalta, o enobrece, fazendo
os seus leitores compreenderem que de fato, existe uma diferença entre os sexos
e que dessas diferenças retiramos os seus papéis e funções específicos dentro
da família natural.
O reconhecimento dessas
diferenciações, não atrapalha, pelo contrário, ajuda tanto o homem quanto a
mulher a se reconhecerem enquanto tais. Como comentam a Profa. Ursula Matthias
e Moisés Farias: “A mulher, para Edith S., para ser mulher precisa
reconhecer-se diferente do homem. Tal constatação, porém, em nenhum momento
deve inferiorizá-la como ser humano” (2006, p. 200). Da mesma forma podemos
dizer que o homem para ser homem precisa reconhecer-se diferente da mulher,
como assim escreve a filósofa:
Só quem estiver ofuscado pela paixão da luta poderá negar o fato
óbvio de que o corpo e a alma da mulher foram formados para uma finalidade
específica. A palavra clara e incontestável da Escritura expressa aquilo que
nos está ensinando a experiência diária, desde o início do mundo: a mulher é
destinada a ser a companheira do homem e a mãe dos seres humanos. Para isso
está preparado seu corpo, é a isso que corresponde igualmente sua peculiaridade
física. A existência dessa peculiaridade psíquica é, outra vez, um fato
evidente da experiência; mas, é também uma conclusão que se tira do princípio
tomístico da anima forma corporis.
Onde as forças são tão diferentes, deve haver também um tipo de alma diferente,
apesar da natureza humana comum (STEIN, 1999b, p. 57).
Nesse parágrafo, vemos que
Edith Stein remete o seu pensamento à objetividade da vida como é próprio do
método fenomenológico, bem como a história da vida humana, e por último no
princípio tomístico para fundamentar o seu pensamento de que homens e mulheres
trazem em si características diversas tanto no corpo e em suas estruturas
psíquicas.
Para a filósofa, podemos
dizer que existem então dois “modos de vidas” do ser humano que se desenvolvem
no ser homem e no ser mulher (e dentro deles muitos outros que são trazidos por
sua individualidade), no entanto, é preciso tomar cuidado para que tais
conceitos não sejam enrijecidos ao ponto de dizermos que homens e mulheres
nascem com todas as suas características prontas. Por isso, concordamos com o
Prof. Juvenal Savian Filho, quando afirma:
Por outro lado, não é porque parece coerente falar de alma
feminina que se tem fundamento para afirmar que todas as mulheres desenvolverão
necessariamente especificidades femininas, pois suas almas podem ser mais
masculinas, valendo o inverso para os homens. Mas não parece justo, segundo
Edith Stein, cair no reducionismo da identificação pura e simples entre
natureza feminina e natureza masculina (2018, p. 32).
Ou seja, apesar de estarmos falando aqui das características que
se desenvolvem claramente de formas distintas entre os sexos, não podemos
enquadrar a existência humana nesses conceitos, não só pelo conhecimento de que
cada um é único, ou seja, tem a sua particularidade própria e o seu modo único
de ser, mas também porque um homem pode desenvolver em si características
femininas e vice-versa. Sem que isso seja um problema, pelo contrário, o
complemento de suas existências enriquece a humanidade como um todo.
Como vimos anteriormente, a
vocação primária da mulher é definida pelo dom de sua maternidade, ao passo que
a do homem se define pelo seu domínio em relação à terra. Na vocação
secundária, a mulher tem a sua participação nesse domínio terrestre. Desse
modo, a mulher auxiliará o homem em todas as suas atividades ao passo que o
homem irá também exercer a sua paternidade, auxiliando a mulher no crescimento
sadio de seus filhos:
[…] sob esse aspecto, destaca-se com bastante clareza a
complementariedade do homem e da mulher, prevista pela ordem original da
natureza: no homem aparece em primeiro lugar a vocação dominadora e, em segundo
lugar a da paternidade (que não é nem subordinada nem complementar à dominação,
devendo antes ser integrada a ela); na mulher a vocação à maternidade que
predomina, enquanto a participação no domínio aparece como secundária) (STEIN,
1999a, p.92).
Isto exposto, podemos dizer
que o pensamento da autora forma um todo coerente capaz de nos fazer vislumbrar
aquilo que seria o tema central desse trabalho: a família vista à luz do
pensamento de Edith Stein dada pela complementariedade dos sexos. Onde as suas
vocações mesclam-se em um único todo, formando assim a unicidade da estrutura
familiar.
Por terem suas diferenças
como complemento um para o outro, descobrimos que com o passar do tempo, na
medida em que crescem em unidade e santidade tais características vão sendo
apreendidas do homem para a mulher e vice e versa como nos afirma à filósofa:
Por isso, verificamos em homens santos a suavidade e bondade feminina
e uma preocupação verdadeiramente maternal com as almas que lhes são confiadas,
e em mulheres santas encontramos coragem, proficiência e determinação masculina
(1999a, p.103).
Ou seja, na vida
comunitária, na família, por exemplo, ambos adquirem e aprendem a desenvolver
em si as qualidades naturais do outro por terem como objetivos de suas vidas um
objetivo comum que é a santidade, a semelhança cada vez mais próxima de Cristo,
de forma que tais diferenças vão sendo superadas ao longo do caminho. Assim, a
mulher aprenderá com o homem a sua firmeza e objetividade e o homem aprenderá
com a mulher a capacidade de ser terno e a importância do outro.
A partir disso, podemos
enxergar que o convívio social entre eles se torna quase que necessário para a
sua humanização. A mulher com a sua facilidade de olhar para a importância do
todo, humanizará o homem, bem como o homem a ajudará a não cair em seus
excessos, a ensinando os caminhos da objetividade.
6 Os desvios de suas capacidades
Porém, é necessário que
ambos saibam utilizar bem e não de forma exagerada os seus dons, tendo um
devido equilíbrio para com essas qualidades naturais, pois, ao mesmo tempo em
que tais características contribuem para o seu desenvolvimento vocacional,
humano e familiar, podem ser também causas de grandes males para eles e para
toda a família.
Para que possa ter um amor
equilibrado pelas pessoas de modo que não recaia em excesso naquilo que é
próprio de sua natureza feminina quando se trata do zelo pelo seu marido e pelos
seus filhos, é importante que cada mulher tenha um trabalho específico seu.
Dessa forma, defende a autora: “Para contrabalançar naturalmente essa tendência
perigosa de se dedicar excessivamente à vida dos outros e nela se perder
recomenda-se o trabalho próprio, só que esse acarreta por sua vez o risco
oposto de trair a sua vocação feminina” (1999a, p. 97).
Recomenda-lhe o trabalho
próprio como remédio para combater a tendência feminina de uma atenção
exagerada à vida dos outros a ponto de perder a si e a própria individualidade
do seu ser. Desse modo, se torna fundamental que a mulher também exerça
trabalhos capazes de cultivar a sua própria individualidade, de modo que não
paralise a sua vida no cuidado para com os outros, levando uma vida exclusivamente
em função disso.
Deve trabalhar, porém, sem
que esse trabalho se torne o centro de sua vida, acima de sua família e da
educação dos seus filhos. Torna-se necessário assim a construção de uma
vivência equilibrada de modo que não possa cair em excessos, tanto em suas
funções trabalhistas quanto nas que comportam o seu meio familiar, como alerta
a Adson Silva em seu texto “O sentido da
pessoalidade da mulher em Edith Stein”:
[…] a inserção da mulher na vida social não pode ferir sua essência – o que Edith Stein chama de natureza – ao ponto de comprometer aquilo que faz parte de sua pessoalidade, isto é, o amor, acolhimento. Ao mesmo tempo isso não pode ser pretexto para que a mulher não tenha seu direito ao exercício social reconhecido (2014, p. 35).
É importante notar que
tanto em relação ao homem quanto em relação à mulher, a autora defende que os
trabalhos externos precisam ser de forma que não atrapalhem o exercício de suas
vocações dentro de casa, demonstrando que aquilo que é importante (como o trabalho)
não deve nunca superar o que é essencial (as suas vocações à paternidade e à
maternidade) em suas vidas. Ou seja, Edith Stein não desconsidera a importância
de seus trabalhos profissionais, os considerando, inclusive, necessários para
ambos, entretanto, alerta que o trabalho não pode nunca atrapalhar a
convivência da vida familiar.
Assim, para a filósofa, a
realização da plenitude das forças femininas não deve ser resumida apenas aos
seus trabalhos domésticos, o que a história e os acontecimentos do século
passado com a saída das mulheres de suas casas já mostraram, sendo necessário
que a mulher também tenha outros trabalhos capazes de desenvolverem suas outras
habilidades pessoais, e isto tanto para o seu próprio bem quanto para o bem de
sua família.
Igualmente o homem, assim
também como a mulher, possui em si o risco de tomar posse das coisas de uma
forma desequilibrada e sem limites. E quando o seu desejo não é freado, pode
avançar sobre todas as coisas não respeitando os limites que a natureza lhe impõe,
desejando saber de tudo de uma forma desenfreada; o que o impede de desfrutar
contemplando a riqueza própria e o mistério das coisas que lhe foram dadas.
Sobre isso, escreve Edith Stein:
Em consequência da natureza corrompida, até mesmo o empenho unilateral
se transforma facilmente em empenho degenerado: o conhecimento não para
respeitosamente diante dos limites que lhe são impostos, antes tenta rompê-los
à força; ele frustra até o acesso ao que não lhe é vedado em princípio porque
se nega a aceitar as leis das coisas tentando apoderar-se delas de uma maneira
arbitrária ou deixando que desejos e anseios lhe turvem a clareza de seu olhar
espiritual. Analogamente, impõe-se na relação com os bens materiais uma certa
senhorilidade degenerada; em vez de alegria reverente, com a criação a ser
conservada e desenvolvida, verifica-se uma exploração ávida que chega às raias
da destruição ou um apossamento irracional que impede que os bens adquiridos
sejam desfrutados da maneira adequada (STEIN, 1999a, p. 89).
Nesse trecho talvez
possamos enxergar uma crítica à atitude de milhares de homens que, ao longo dos
séculos, empolgados pela exploração de novas terras e pela riqueza que os
trariam, destruíram milhares de faunas e floras. Ou seja, em vez de ser, por
assim dizer, “rei de todas as coisas da terra”, e de exercer de forma adequada
o seu domínio, o homem pode atrofiar essa capacidade natural em meras ações de
brutalidade e desrespeito diante à própria natureza.
Tal degeneração também pode
vir a acontecer em seu relacionamento com sua mulher, como atesta o mundo de
hoje, onde vemos acontecer milhares de casos de violência verbal e física dos
homens para com as mulheres. Assim, a relação que era para ser de
companheirismo entre ambos é transformada em relação de domínio e sujeição.
Nesses casos, a mulher é vista apenas como um meio para um fim, ou seja, para
obtenção de desejos, tal como também se perde de vista a importância de seus
dons naturais.
Se o homem retirar as
possibilidades de sua mulher de expandir os seus dons, ele mesmo também será
responsável por todos os desvios e consequências que poderá ocorrer com ela.
Pois faz parte de sua vocação a responsabilidade por sua mulher no sentido de
auxílio e proteção para que a mesma não decaia em algumas consequências como o
“definhamento de uma vida mais elevada, por distúrbios doentios, por uma
fixação excessiva no marido e nos filhos e que estes passam a sentir como peso
e pelo vazio que lhe restará quando um dia ficar sozinha” (STEIN, 1999a, p.
95).
Cabe também ao homem
ajudá-la não somente por ser essa “a sua responsabilidade”, como “cabeça da
família”, mas também porque possuindo a mesma natureza humana, quando um sexo é
prejudicado ou atingido na sua própria integridade toda a natureza também se
torna ameaçada. Colocar “em jogo” o valor das mulheres com qualquer tipo de
violência que venha a ser exercida é concomitantemente retirar de si o seu
próprio valor. Confere-se isso na seguinte frase de João Paulo II:
“Efetivamente, em todos os casos em que o homem é responsável de quanto ofende
a dignidade pessoal e a vocação da mulher, ele age contra a própria dignidade
pessoal e a própria vocação” (PAULO II,
1998). A filósofa ainda atesta que nessas circunstâncias, onde há
dificuldade entre ambos:
Recomenda-se a cooperação, de modo que a mulher pudesse
desenvolver seus dons ao lado do homem a serviço de objetivos comuns, e que o
homem fosse preservado dos excessos de unilateralidade em virtude do
desenvolvimento mais harmonioso das forças da mulher (STEIN, 1999a, p. 89).
Sendo assim, podemos ver
que de acordo com essa desigualdade existente entre o homem e a mulher, ambos
se fazem dependentes um do outro. Trata-se
então da busca e do anseio do coração de ambos por uma relação de equilíbrio,
complementariedade e força de união, para que nem ele nem ela possam recair
sobre o cônjuge com um desejo de dependência e escravidão deformando assim a
beleza do relacionamento.
Ainda sobre essa rivalidade existente entre os dois sexos, Adson
Silva comenta sobre “as novas tendências na abordagem dos assuntos referentes à
mulher”:
Uma das primeiras tendências sublinha fortemente a condição de
insubmissão da mulher, procurando criar-lhe sempre uma atitude de contestação:
a mulher, para ser ela mesma, apresenta-se com ideias incompatíveis às do
homem. Esse é um processo que leva a uma rivalidade entre os sexos, através do
qual a identidade e o papel de um são assumidos em prejuízo do outro, com a
consequência de introduzir na antropologia uma nociva confusão, que tem o seu
revés mais imediato e nefasto na estrutura da família […] (SILVA, 2004, p. 44).
Sabemos que a solução para
os problemas existentes entre ambos não encontra autenticidade nesse caminho de
rivalidade, onde a mulher, para provar que tem os mesmos valores e dignidade que
o homem precisa se apresentar sempre o contestando ou até mesmo criando uma
imagem generalizada e negativa do seu ser, como alguns pensamentos populares
que dizem que “todo homem é ruim”; da mesma forma que o caminho para acharmos
uma solução não encontra a sua resposta na tentativa extremada de igualdade
anulando toda e qualquer diferença existente entre ambos, mas sim no respeito
por suas diferenças e no reconhecimento por sua dignidade humana.
No contexto dessa reflexão,
concordamos com o Prof. Juvenal Savian Filho quando afirma que
“Edith Stein sabia bem que o mais importante era defender a igualdade de
dignidade e direitos entre homens e mulheres, mas não às custas de um
aplainamento das variações ônticas” (2018, p. 32). Sabemos que na ciência
filosófica o ôntico se refere ao ser e as suas características, então a ideia
que o autor traz nessa frase é a afirmação de que Edith Stein defendia a
igualdade de direitos para os sexos, mas que a defesa steniana não partia por
uma tentativa exagerada de igualar o ser de ambos, excluindo qualquer diferença
entre eles, afinal, a filósofa não temeu em clarificar com muita precisão em
seus estudos essas divergências.
Por fim, o relacionamento
do casal também se desemboca no trabalho educacional para com os seus filhos,
isso quer dizer que também dependerão um do outro para realizar o cuidado
destes:
A degeneração do relacionamento ente homem e mulher está ligada à
degeneração das relações com a descendência. Originalmente, a reprodução era
tarefa conjunta de ambos. Se a sua constituição desigual os faz dependerem da
complementação mútua, mas ainda repercute essa necessidade de complementação na
relação com os descendentes […] (STEIN,
1999a, p. 90).
Dessa forma, quando a
relação de ambos estiver deformada ou sofrendo por causa de seus excessos, isso
também acarretará em consequências prejudiciais na sua relação com os a
educação de seus filhos.
Considerações finais
Embasando-se no olhar
fenomenológico tomista daquilo que a experiência viva pode nos ensinar, bem como
no decorrer dos acontecimentos históricos à luz da palavra divina, Edith Stein
chega a tais conclusões, conclusões essas que serviram e servem até hoje para
milhares de pessoas que desejam desbravar os caminhos do ser masculino e
feminino e o seu relacionamento dentro da família. De tal forma, concordamos
com o Prof. Juvenal Savian Filho quando afirma referente ao pensamento
steniano, que “seja como for, o motor de sua antropologia
filosófica era, sem dúvida, chegar ao que distingue mulheres e homens para
superar as desuniões práticas que se interpõem entre eles e para propor uma
visão mais coesa do ser humano” (2018, p. 33).
Sendo assim, podemos chegar
à conclusão de que “no dizer de Edith Stein, os indivíduos
têm em comum tudo o que é próprio da espécie humana, mas vivem de um modo
inteiramente único aquilo que é comum” (SAVIAN FILHO, 2018, p. 31-32). Por
causa do seu ser feminino a mulher terá como responsabilidade principal o
exercício de sua maternidade e o homem por sua vez, tem por responsabilidade a
dominação sobre as coisas da terra, e como vocação secundária a mulher tem a
responsabilidade de participar desse domínio ao lado dele, e o homem tem o seu
dever da paternidade ao lado dela. Mas ambos possuem a mesma vocação de serem
imagem e semelhança de Deus, de dominarem a terra e de gerarem filhos.
Com Edith Stein,
constatamos que mesmo possuindo uma natureza humana e uma tríplice vocação em
comum, homens e mulheres possuem, por sua vez, prioridades distintas
principalmente no seio familiar. Prioridades essas que correspondem ao seu
próprio ser masculino e feminino, mas que vão se complementando.
Podemos reconhecer também que suas diferenças
(corporais, psíquicas e espirituais) trazem uma necessidade de complementação,
visto que os dons que as mulheres possuem naturalmente, os homens não possuem e
vice-versa. E somente andando juntos é que ambos podem aprender um com o outro.
E as suas diferenças apontam um caminho único pelo qual se abre toda
oportunidade de companheirismo na relação familiar. A colaboração harmoniosa
entre homem e mulher acontece de forma principal e fundamental para a sociedade
nas famílias e assim, se tornam necessários auxiliadores um para o outro.
Configurando seu pensamento
na passagem bíblica: “Já não se distingue judeu e grego, escravo e livre, homem
e mulher, pois com Cristo Jesus sois todos um só” (Gal3, 26-28) (cf. 1999a,
p.97), Edith Stein vai nos mostrar que sendo Cristo a busca e realização de
todo ideal humano, quanto mais progridem em seu caminho de santidade, mais ainda
homem e mulher anulam as suas próprias imperfeições. Dessa forma, as diferenças
entre homens e mulheres acabam ficando em uma espécie de “segundo plano”.
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[1]Edith
Therese Hedwing Stein nasceu no ano de 1891 na cidade da Alemanha, em Breslau, em uma família judia. No entanto, com o passar dos anos foi
se distanciando da religião na qual havia sido criada. Em 1913, Edith Stein se
muda para Gottingen, onde será acolhida em um círculo de estudos que almejava
aprofundar um novo pensamento que começava a desabrochar na época: a
fenomenologia, desenvolvida pelo filósofo Edmundo Husserl. Edith Stein se
aproxima do seu pensamento, tornando-se sua discípula e posteriormente sua assistente. E também se
apaixonando por suas obras. Posteriormente, também se envolverá com grande
admiração pelo pensamento de São Tomás de Aquino (1225-1274), fazendo uma
complementariedade entre a filosofia de ambos os pensadores. Depois de
converter-se ao cristianismo, a filósofa abandona a sua carreira acadêmica aos
42 anos e pede para entrar no Carmelo, de onde
continuará escrevendo suas obras. Por fim, aos 51 anos é levada para o campo de
concentração nazista, de onde tem a sua vida retirada.
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