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Butler e a perspectiva da performativa da identidade

 Revista Sísifo. N° 12, Julho/Dezembro 2020. ISSN 2359-3121. www.revistasisifo.com

Bethânia Alves Pereira de Souza - Mestranda em Filosofia na Universidade Federal da Bahia. Pesquisadora FAPESB. E-mail: bethaniaspereirasouza@gmail.com

Karla Cristhina Soares Sousa - Doutoranda em Filosofia na Universidade Federal da Bahia. Pesquisadora FAPESB. E-mail: karlassousa28@gmail.com.

 


 

 

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RESUMO O presente trabalho tem como objetivo discutir o problema da identidade a partir da ótica de gênero, entendendo suas implicações ontológicas para o pensamento político a partir da discussão feita em torno da “performatividade de gênero”, elaborada pela filósofa Judith Butler em seu livro, Problemas de gênero (1990), onde apresenta uma proposta de releitura dos conceitos gênero e sexo.  Um dos seus questionamentos é direcionado para os limites da política feminista enquanto política identitária, que tenha como foco a representatividade jurídica baseada no conceito de mulher. A partir da genealogia do gênero fica perceptível o motivo pelo qual a política feminista não deve ser alicerçada por uma concepção estável da identidade mulher, pois esta identidade excluí aqueles que não se encontram dentro das prescrições desse conceito. Butler se propõe a mostrar os fundamentos metafísicos da gramática que encerram o gênero em uma lógica binária, sustentada pela heterossexualidade compulsória e o falocentrismo, regimes de discurso e poder. Assim, discutiremos os seguintes pontos: qual o problema que circunda as questões de identidade contemporaneamente? Como Butler concebe essas questões? O que a filósofa compreende por performatividade de gênero? Quais as possibilidades e os limites resultante da sua crítica ao sujeito?

 

PALAVRAS-CHAVE: Identidade; Gênero; Política; Poder.

 

ABSTRACT This paper aims to discuss the problem of identity from the perspective of gender, understanding its ontological implications for political thought based on the “gender performance”, elaborated by the philosopher Judith Butler in Problems of gender (1990), where she presents a proposal for a re-reading of the concept of gender. One of her questions is directed to the limits of feminist politics as an identity politics, focuses on legal representation based on the concept of women.The genealogy of gender reveals why feminist politics should not be based on a stable conception of women's identity, since this identity excludes who are not within the prescriptions of that concept. Butler proposes to show the metaphysical foundations of grammar that encapsulate gender in a binary logic, sustained by compulsory heterosexuality and phallocentrism, regimes of discourse and power. Thus, we will discuss the following points: what is the problem that surrounds identity issues contemporaneously? How does Butler conceive these questions? What does the philosopher understand by gender performance? What are the possibilities and limits resulting from her criticism of the subject?

 

KEYWORDS: Identy; Gender; Politics; Power.


IDENTIDADE, SUBJETIVIDADE E POLÍTICA

 

A identidade nos atravessa e nos constitui ontologicamente. Somos interpelados por esse movimento de categorização e fixação da nossa mente. É um dizer sobre a realidade que está atrelado a uma verdade graças ao seu caráter de mesmidade: permanecer o mesmo ao longo do tempo. Contudo, ao longo do desenvolvimento do pensamento filosófico ocidental, a identidade que estava atrelada a percepção da totalidade do real, passa a ser elaborada como uma categoria ligada a construção subjetiva. O projeto moderno sobre a ideia de sujeito surge a partir da filosofia cartesiana com a descoberta da coisa pensante (res cogitans), este que foi o referencial histórico para entender a identidade como o “Eu”, ou seja, como fonte de produção de conhecimento sobre o mundo. Surge então um novo sujeito humano que possuí uma identidade fixa e é suporte epistemológico do mudo.

O desenvolvimento da subjetividade cartesiana permite a estruturação do sujeito do iluminismo, bem como o sujeito coletivo e cultural. O teórico cultural e sociólogo jamaicano Stuart Hall assinala que ao longo do desenvolvimento da história moderna do pensamento ocidental há uma descentralização do sujeito do iluminismo, por meio do surgimento do sujeito pós-moderno. Stuart Hall mobiliza um debate acerca da identidade, percebendo o sujeito contemporâneo como descentralizado e fragmentado em múltiplas identidades, não possuindo uma essência e nem sendo apenas produto de uma construção social. Portanto, é difuso e difícil de encontrar porque radicalmente não existe enquanto substância. Hoje em dia, o debate em torno da consciência e da identidade, nos coloca em um ponto onde não podemos afirmar a mesmidade como um processo que se dá de forma coerente ou linear. O processo de globalização foi fundamental para essa confusão identitária, proporcionando uma nova configuração das identidades. Em consequência disso, surgiram novas demandas políticas.

Segundo Hall, o feminismo contribui para descentralização do sujeito, se articulando com mobilizações sociais, como a luta pelos direitos civis, antibelicista, contraculturais etc. É um pensamento e uma prática crítica à modernidade, que historicamente se caracterizou pela marca da universalidade, representada, por exemplo, pelo sujeito branco, do sexo masculino e heterossexual. A filósofa Judith Butler dialogando com os debates contemporâneos sobre a identidade, propõe uma genealogia do gênero, com intuito de fundamentar uma ideia de identidade fluída. Dessa forma, objetivamos neste trabalho compreendê-la a partir do debate político/ontológico sobre o sujeito do feminismo e a política feminista, enquanto política de identidade.

A relação entre identidade e política tem como seu desdobramento a política de identidade, que constitui uma práxis cujo ponto de partida é a experiência individual, tomada como uma leitura de mundo a partir das diversas opressões sociais. Existe, entretanto, um equívoco de como essa prática foi pensada dentro do seu contexto, e como ela foi cooptada pelas malhas do poder, que se aproveitaram do seu potencial emancipatório.

O termo “política identitária” surgiu no debate contemporâneo pelas vozes do coletivo Combahee River (CCR) (HAIDER, 2019, p 33), formado por militantes lésbicas e negras na cidade de Boston, em 1977. Eram socialistas que criticavam tanto o racismo quanto o sexismo na esquerda, pois consideravam que essas pautas não eram atendidas no socialismo revolucionário. A prática política do CCR se concentrava em trazer a necessidade de uma articulação de classe com seus atravessamentos da raça e do gênero. Foram críticas do esvaziamento do conceito de classe, afirmando uma política autônoma própria.

A Política radical surge quando as próprias experiências particulares são postas no centro da análise, permitindo uma práxis mais radical e profunda. Portanto, para o CCR a política não se reduzia às identidades específicas, mas ao direito de construir práticas políticas baseadas em suas realidades. O coletivo demonstrava sua perspectiva revolucionária na formação de alianças, fazendo, por exemplo, participações em piquetes durante as greves.

Apesar da promessa de construir uma política socialista mais rica, diversa e inclusiva a “política identitária” virou um mecanismo do direito no liberalismo clássico. Assim, a política de identidade, tal como pensada pelo liberalismo, toma o indivíduo como sujeito jurídico ou de direito. Os filósofos, Foucault e Butler, convergem na crítica à essas reduções do sujeito à lei e a formação da identidade pelas instituições jurídicas.

Nossa capacidade de ação política através da identidade é exatamente o que nos prende ao Estado, o que assegura nossa contínua sujeição” (Ibid., p. 35). Assim, como nos indica Asad Haider, devemos rejeitar “raça, gênero e classe” como categorias identitárias, tendo como tarefa trazer o aspecto de crítica social radical da política identitária, recusando identidades fixas como ponto de partida da análise e da política.

As identidades são mobilizadas e produzidas pelas relações de poder e de saber, o que implica exclusão e diferenciação. Aqui se instaura uma questão: no cenário político contemporâneo a política identitária ocupa um cenário ambíguo, pois ao mesmo tempo que busca garantir que as identidades subalternizadas tenham os seus direitos garantidos, delimita o acesso àqueles que não correspondem a uma determinada categoria identitária. Logo, o sujeito busca a afirmação de sua humanidade a partir da sua efetivação enquanto sujeito jurídico, todavia, é produzido e interditado por esse mesmo poder. Desta maneira, a luta política restrita a identidade não subverte a subalternidade, se não a insere em uma outra posição dentro dessa mesma relação de poder, sendo reformista e não revolucionária. É uma liberdade monitorada pelos ganhos de direitos, enredo do pensamento identitário liberal. Por conseguinte, se reduzirmos as lutas políticas às lutas identitárias, restringimos as chances de emancipação e mudanças.

Por outro lado, como já salientamos outrora, a identidade nos atravessa ontologicamente. Desta forma, emergem alguns questionamentos: em que medida a identidade é um lugar de potência que pode tanto nos limitar quanto nos engajar à uma luta política comprometida? Se a identidade já não pode ser pensada em termos substancialistas, se ela se apresenta como uma ilusão, por que continua a ser uma questão central para entender o cenário político contemporâneo? Se a identidade é tão espinhosa, uma ficção, uma criação do poder, em que medida ela nos interessa politicamente? É possível pensar de maneira subversiva ou revolucionária por meio desta? De que modo as categorias identitárias podem definir quem deve viver e quem deve morrer?

Por fim, as páginas seguintes serão dedicadas a compreensão da crítica bluteriana ao sujeito identitário, mobilizando a questão da relação entre identidade e política. Assim, na segunda parte vamos desenvolver como a filósofa faz sua crítica à política de identidade; na terceira, a apresentação da identidade enquanto performativa; e, por último, as questões suscitadas pela sua tese.

 

PROBLEMAS DE GÊNERO E A POLÍTICA DE IDENTIDADE

 

Problemas de gênero (1990) proporcionou um debate crítico de ordem teórica, política e ética no que tange as narrativas feministas contemporâneas. A trajetória das lutas feministas mostra o quanto são inquestionáveis as suas contribuições e a sua potência, elaboradas em um processo de resistência. Porém, a filósofa chama atenção para pontos cegos presentes no pensamento político feminista enquanto política identitária, levantando questionamentos sobre a sua fundamentação ontológica. Butler assinala no prefácio que “os debates feministas contemporâneos sobre os significados do conceito de gênero levam repetidamente a uma certa sensação de problema, como se sua indeterminação pudesse culminar finalmente num fracasso do feminismo” (BUTLER, 2019, p. 7).

O fato de o conceito de gênero aparecer envolto em problemas não é ruim. O ruim talvez seja ficar preso a problemas para não criar problemas. E problemas marcaram a história de vida da filósofa Judith Butler, pois era vista como aquela que criava problemas, o que lhe custou desconfortos, na medida em que esses deveriam ser evitados. Contudo, os problemas existem e são produzidos por aqueles que obstruem os questionamentos acerca das regras impostas. Ao sermos impedidos de criá-los certamente somos silenciados, e de certo modo induzidos a se adequar as normas sociais. A filósofa não quer o fracasso do feminismo, ao contrário, oferece uma crítica para ampliarmos a forma como pensamos e enxergamos o gênero, e consequentemente, o feminismo.

  O cenário da política feminista dos anos 90, ano do lançamento do livro, era de efervescência e de mudança, com reivindicações distintas das outras ondas do feminismo. Dado esse contexto histórico e político, Butler vai às bases teóricas do feminismo para fazer uma crítica radical das ontologias do gênero. A pensadora propõe uma outra ótica para se pensar o gênero, desconstruindo categorias centrais como: sexo, gênero e desejo. Tradicionalmente, essas categorias são fundamentadas por uma abordagem substancialista de identidade, em decorrência, Butler apresenta a tese da performatividade do gênero, ou o gênero enquanto identidade performativa.

A proposta é fazer uma genealogia[1] do conceito de “mulher”, a fim de encontrar a configuração de poder que coordena a produção linguística do sujeito mulher e do sujeito homem, o que autora vai chamar de matriz de inteligibilidade de gênero. Pretende também elaborar uma crítica que busque libertar a teoria feminista da necessidade de construir uma base única e permanente. Butler assinala que existem duas questões que envolvem essa primeira discussão, basilar para a compreensão da proposta em Problema de Gênero, “as ‘ficções fundacionistas” que são a base da noção de sujeito e a suposição que o termo mulheres denote uma identidade comum” (Ibid., p. 24).

A categoria de mulheres constitui ‘o sujeito’ em nome de quem será pautada uma representação política. Contudo, a política representativa está envolvida em uma ambiguidade, à medida que visa garantir a visibilidade e a legitimidade às mulheres, opera como uma função normativa da linguagem que revela, ou distorce aquilo que é verdadeiro sobre tal categoria. Constatamos certa limitação na possibilidade de uma representação efetiva, por isso é necessária uma “crítica às categorias de identidade que as estruturas jurídicas contemporâneas engendram, naturalizam e imobilizam” (Ibid., p. 24). 

Butler sugere “que as supostas universalidades e unidade do sujeito do feminismo são de fato minadas pelas restrições do discurso representacional em que funcionam” (Ibid., p. 23). Em consequência disso, “a insistência prematura num sujeito estável do feminismo, compreendido como uma categoria una das mulheres, gera, inevitavelmente, múltiplas recusas a aceitar essa categoria” (Ibid., p. 23). O que gera “domínios de exclusão” que “revelam as consequências coercitivas e reguladoras dessa construção, mesmo quando a construção é elaborada com propósitos emancipatórios” (Ibid., p. 23). Assim, as conformações às exigências da política representacional, ao fazer um apelo estratégico à categoria de mulheres, articulando o feminismo ao sujeito estável, abre a guarda a acusações deturpadas devido à falta de intersecções. Butler chega a seguinte asserção ou condição necessária para o avanço da luta política:

 

A identidade do sujeito feminista não deve ser o fundamento da política feminista, pois a formação do sujeito ocorre no interior de um campo de poder sistematicamente encoberto pela afirmação desse fundamento. Talvez, paradoxalmente, a ideia de “representação” venha realmente a fazer sentido para o feminismo quando o sujeito “mulheres” não for presumido em parte alguma”. (Ibid., p. 25)

 

Como foi apresentado anteriormente, a crítica ao sujeito está atrelada a narrativa que é desenvolvida no período do iluminismo ocidental, e na modernidade. O sujeito enquanto universal é extremamente problemático, porque quando olhamos criticamente a história e os contextos políticos, verificamos uma construção epistemológica pautada em uma razão imperialista.

Butler, inspirada pela crítica foucaultiana do sujeito, desenvolve suas formulações abordando esta categoria como constituída por exclusão e diferenciação. Desta maneira, as mulheres se tornam sujeitos dentro de um modelo onde a fundamentação implica a exclusão das mesmas. Vejamos sua argumentação.

Qualquer tentativa de dar conteúdo universal ou específico à categoria das mulheres, presumindo que a garantia de solidariedade seja exigida previamente, irá necessariamente produzir facciosidade, e que “identidade” como ponto partida não se sustenta como base segura para um movimento político feminista. Categorias identitárias nunca são apenas descritivas, mas sempre normativas e, como tal, excludentes.” (Id., 2018, p. 85)

 

A filósofa não pretende dizer que o termo “mulheres” seja descartado, mas que os desacordos com relação ao conteúdo da categoria devem ser valorizados. Desconstruir o sujeito do feminismo é abrir o termo para múltiplas significações. Entretanto, ao liberar essa categoria surge a questão da perda da agência e suas consequências políticas. Contudo, para a filósofa esse movimento de desconstrução torna a ação verdadeiramente possível.

Essa problemática é fundamental e é um dos principais pontos dos debates que vamos desenvolver melhor na parte final do texto, onde elencaremos as questões que o sujeito butleriano suscita entre as pensadoras feministas contemporâneas. Ademais, no próximo item desse texto vamos procurar entender melhor qual a crítica que Butler faz a identidade de gênero.

 

PERFORMATIVIDADE DE GÊNERO

 

O que significa o gênero ser performativo? O que é a performance de gênero? Quais as ações contra hegemônicas poderíamos exercer a partir dessa concepção? Essas serão algumas questões que abordaremos nessa seção.

 Para Butler, o gênero não é um substantivo, nem um atributo de conjunto flutuantes, mas um efeito substantivo que é performativamente produzido pelas práticas reguladoras de coerência do gênero. Primeiramente, é necessário entender como o conceito de performance aparece no pensamento butleriano e qual a sua fundamentação teórica.

Performance tem como origem latina a palavra formare que pode significar criar, dar forma ou formar. Em consequência, a sua associação à noção de criação é utilizada de forma recorrente nos campos das artes. A palavra performance dá origem a dois outros termos que, eventualmente, são confundidos, mas que diferem, são esses, performático e performativo. Enquanto o performático está ligado ao campo das artes, o termo performativo está associado as discussões nas áreas da linguística e do gênero. A proposta da performance de gênero abordada pela filósofa, está vinculada ao pensamento do filósofo franco-argelino Jacques Derrida. Entender esse diálogo nos ajuda a compreender melhor o debate conceitual desenvolvido por Butler sobre a performance.

Derrida trabalha com a distinção entre significado e significante, com intuito de desconstruir a herança metafísica da linguagem. Em corolário a essa desconstrução chega a concluí que não há significado por trás do significante, e que o sentido é efeito constituído por uma cadeia de significantes. Assim, como a desconstrução proposta por Derrida está para a relação entre esses dois componentes linguísticos, a desconstrução de Butler está para a relação do sexo e gênero. Portanto, como não existe um significado absoluto ou verdadeiro em si, não existe uma identidade de gênero por trás das expressões de gênero, pois este é produzido discursivamente. É um efeito que tem seu fundamento na metafísica da substância, a qual está presente na gramática. Não há uma substância, um a priori, ou uma existência do sexo longe do âmbito social, da mesma maneira que não há um corpo natural anterior à sua inscrição cultural. O gênero não é um substantivo, um ser, ele é uma ação, um fazer, um verbo, que vai se realizando por meio de uma sequência de atos.

Em vista disso, a filósofa vai desestabilizar as nossas crenças metafísicas acerca da identidade de gênero, evidenciando a lógica da heterossexualidade compulsória, e a sua institucionalização como um regime de governo, que se empenha em deixar estável a relação entre a nossa genitália, o nosso papel social e político, e o nosso desejo.

A “matriz de inteligibilidade” é constituída pelas normas culturais que fazem com que tenhamos gêneros inteligíveis que “em certo sentido, instituem e mantém relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo” (Ibid., p. 43). Porém, quando a identidade é assegurada por conceitos estabilizadores do sexo, a noção de pessoa daqueles que fogem a essa coerência de gênero é questionada, bem como o status de existência. As descontinuidades e incoerências, por sua vez, só são possíveis em relação a existência de normas institucionalizadas que “buscam estabelecer linhas causais ou expressivas de ligação entre o sexo biológico, o gênero culturalmente constituído e a “expressão” ou “efeito” de ambos na manifestação do desejo sexual” (Ibid., p. 43).

A partir da noção de metafísica da substância, que é uma crítica da noção de pessoa psicológica como “coisa substantiva” (Ibid., p. 49), tendo como referencial teórico o pensamento Nietzschiano, Butler vai pensar as identidades de gênero e como elas são um efeito de linguagem que se materializa no corpo por meio do discurso. Por conseguinte, aborda a gramática como porta de entrada para entendermos como a função linguística produz efeitos que julgamos sob o estatuto de verdade, este que engendra a metafísica da substância do gênero.

A noção de sexo na linguagem hegemônica como substância, como ser idêntico a si é uma aparência oriunda de um “truque performativo da linguagem e/ou do discurso, que oculta o fato de que “ser” um sexo ou gênero é fundamentalmente impossível” (Ibid., p. 46). Dado que, longe de ser algo que é anterior à linguagem e ao âmbito social, é um efeito de práticas discursivas. Dentro desse jogo em que o sexo é concebido como signo, cujo significado é ser um gênero e ter um desejo, temos esses elementos unificados pelo princípio da causalidade. É por meio da linguagem que Butler coloca o gênero enquanto uma categoria filosófica que compõe o quadro dos conceitos a prioris. Assim, as categorias gramáticas, sujeito e predicado, constituem uma relação de verdade que formam uma ilusão de identidade substancial. Os conceitos que envolvem a ideia de sujeito são transformados em substâncias fictícias, unidades que inicialmente só tem realidade linguística.

A constituição ontológica de homens e mulheres é elaborada por essa gramática binária, onde temos o gênero feminino e masculino como categorias metafísicas. Butler vai mostrar como toda essa construção se desenvolve em um contexto pré-feminista[2], onde o gênero “ingenuamente (ao invés de criticamente) confundido com o sexo, serve como princípio unificador do eu corporificado e mantém essa unidade por sobre e contra um “sexo oposto”, cuja estrutura mantém, presumivelmente, uma coerência interna paralela mas oposta entre sexo, gênero e desejo” (Ibid., p. 51).

Quando fazemos afirmações como “ser homem” e “ser heterossexual”, por exemplo, estamos expressando o efeito linguístico da metafísica da substância do gênero, onde a noção de gênero é subordinada à identidade sexual. Ter um pênis ou uma vagina, direciona o desejo: ser de um órgão “x” implica no desejo pelo órgão “y”. Destarte, o gênero é designado a uma pessoa em virtude do seu sexo que está diretamente ligado ao seu sentimento psíquico, expressado pelo desejo sexual. Dessa forma, teríamos um corpo anatômico “x” que culturalmente representa um gênero “x¹” e que teria seu desejo direcionado para o corpo de anatomia “y”.

Exemplificando, os enunciados “eu me sinto uma mulher”, proferido por uma mulher, ou “eu me sinto homem”, dito por um homem, dentro dessa coerência estabelecida por meio da ligação do sexo, gênero e desejo, não são “absurdamente redundantes” (Ibid., p. 51), pois o sentimento é uma disposição determinada pela genitália. Agora, se pensarmos o enunciado “eu me sinto uma mulher”, proferido por uma pessoa de uma anatomia diferente que não aquela que está posta na lógica substancialista, provavelmente geraria estranhamento. Por fim, após mostrar como a metafísica da substância tem seus efeitos na realidade discursiva sobre o gênero por meio da gramática, Butler afirma com base no pensamento nietzschiano que “não há identidade de gênero por trás das expressões do gênero; essa identidade é performativamente constituída, pelas próprias ‘expressões’ tidas como seus resultados” (Ibid., p. 56).

Como foi visto, a pensadora mostra como a identidade é efeito de um conjunto de práticas discursivas. Assim, não existe um sujeito que é anterior a sua inserção na linguagem e na cultura, pois é o resultado de um processo de atos ou práticas de significações.

 Isto posto, a identidade deve ser compreendida como um processo de significação. A teórica passa de uma explicação epistemológica para desenvolver a noção de práticas de significações, que é um processo regulador de repetição que possui efeitos substancializantes. A significação, enquanto um processo se constitui como um agir. Desta maneira, as regras ou normas que governam a identidade inteligível operam por repetição, o que situa a ação na “possibilidade de uma variação dessa repetição” (Ibid., p. 250). Logo, para além de restringir, as regras que compõe o ato de significação permitem a existência de “campos alternativos de inteligibilidade cultural”, ou a repetição subversiva, em consequência da convergência ou coexistência dos discursos, já que são produzidos historicamente, permitindo ressignificações e reposicionamentos.

Butler coloca o sexo como radicalmente distinto do gênero, visto como conjunto de práticas discursivas que não se encontra inscrito no corpo de forma anterior à sua significação. Por conseguinte, esse corpo é ressignificado a todo momento constituindo a identidade. No encontro entre essas duas categorias temos uma repetição ritualística, que pode ser subvertida quando a brecha entre a realidade do sexo e aquilo que é fantasiado sobre ele é evidenciado. A subversão da identidade aconteceria como uma repetição subversiva no interior das práticas significantes do gênero. A proposta subversiva butleriana corresponde às práticas parodísticas que permitem uma reconfiguração da lógica do gênero, possibilitando uma proliferação conforme vai ocorrendo a desnaturalização do mesmo. Por fim, em Problemas de Gênero não temos uma resposta de como constituir efetivamente uma paródia subversiva do gênero, o que abre espaço para críticas.

 Não existe um agente fixo por trás do ato. Contudo, como fica ação política? É possível uma ação sem agente? Esta concepção solapa a ação política? O reconhecimento de múltiplas identidades oferece uma perspectiva efetiva de justiça social? É possível falar da subversão de identidades sem falar das interseccionalidades?


POSSÍVEIS CONSEQUÊNCIAS DO DEBATE

 

As consequências políticas da discussão da performatividade do gênero estão atreladas à base do seu pensamento sobre o feminismo, que abarca concepções pós-estruturalistas de subjetividade, identidade e agência humana. Diante do cenário político atual há necessidade de falarmos de reconhecimento como justiça social? O reconhecimento subverte a política a perspectiva da política atual? Certamente essa são algumas das principais questões que aparecem nos debates feministas contemporâneos.

Em Debates Feministas: um intercâmbio filosófico (1995), temos um diálogo que ocorre entre Seyla Benhabib, Judith Butler e Nancy Fraser. Não será possível abordar o que cada uma dessas formulações traz de forma minuciosa, mas trataremos algumas questões oriunda dos desdobramentos das teses butleteriana acerca da identidade de gênero para o feminismo contemporâneo.

 A abordagem epistemológica e teórica da filósofa Judith Butler, se opõe a diversas correntes, como é o caso da filósofa Seyla Benhabib, que defende um feminismo baseado na Teoria Crítica, e em diálogo com conceitos como: autonomia, crítica e utopia. Benhabib questiona Butler sobre a possibilidade de agência, haja vista que sua concepção de sujeito é desprovida de qualquer realidade metafísica. Aqui segue um questionamento: essa posição de Butler desautoriza a agência e até mesmo a possibilidade do feminismo?

Segundo Benhabib, a ligação entre o feminismo e o pós-estruturalismo é impossível, pois as teses que baseiam uma posição pós-estruturalista solapam a possibilidade do feminismo, dado que não é viável pensar uma teoria social que compactue com a tese da morte do sujeito, da história e da metafísica. Por outro lado, Butler vai argumentar que tal proposição implica “um fundacionalismo autoritário”, pois dessa narrativa resultaria um sujeito que tem a possibilidade de ser tornar universal de forma totalitária.   

Contudo, Nancy Fraser reconhece que o debate entre Butler e Benhabib coloca uma polaridade que implica em uma falsa antítese, pois ambas não trazem resoluções efetivas. Para Fraser, as feministas contemporâneas precisam desenvolver uma conceitualização que seja alternativa à ideia de sujeito, e que, portanto, integre as duas propostas. Dessa forma, para Fraser é mais aceito efetivamente, uma perspectiva de comunhão entre a compreensão crítico-teórico de Benhabib, e a compreensão pós-estruturalista de identidade e agência humana de Butler.  Nancy Fraser, ao contrário da perspectiva de Butler, salienta que a teoria da linguagem não consegue provocar mudanças políticas efetivas, pois o problema da agência limitada à teoria da linguagem é insuficiente para subverter a estrutura social.

Dito isto, as visões contemporâneas do movimento feminista, são atravessadas por uma concepção de justiça social por vias de reconhecimento, mas também de distribuição. Fraser, quando fala sobre a ampliação do conceito de justiça social, situa o debate pela noção de “paridade de participação”, compreendendo a justiça por “arranjos sociais que permitam a todos os membros (adultos) da sociedade interagir uns com outros como parceiros” (FRASER, 2007, p. 118). Dessa forma, visualiza duas condições possíveis para essa ampliação: a primeira, denominada de objetiva, é que a “distribuição dos recursos materiais deve dar-se de modo que assegure a independência e voz dos participantes” (Ibid., p. 119); a segunda, denominada de intersubjetividade, ou reconhecimento, “requer que os padrões institucionalizados de valoração cultural expressem igual respeito a todos os participantes e assegurem igual oportunidade para alcançar estima social” (Ibid., p. 119). Consideramos que a discussão de Judith Butler, por frisar o aspecto do reconhecimento de identidade múltiplas, e subversão política por meio da crítica à linguagem, não consegue abranger o aspecto da distribuição material, deixando de lado pautas emergentes ao movimento feminista. Como, por exemplo, pautas levantadas pelas intelectuais negras, como Ângela Davis, bell hooks e Kinberlé Crenshaw. À vista disso, acreditamos que a partir dessa concepção se perde uma potencialidade política.     

O feminismo é um movimento radical que surge a partir da luta por justiça social. Segundo Ângela Davis (DAVIS, 2016), foi por meio da luta abolicionista que as mulheres passaram a aprofundar a reflexão sobre a condição de opressão, e a estruturação da mobilização política. Ressaltamos isso, pois é o cenário político de discussão dos debates feminista dos anos 80 e 90, bem como é o cenário da construção intelectual de Judith Butler. A ideia de representação do movimento feminista, criticado pela filósofa Judith Butler, se constitui com base numa noção de mulher restrita e universalista, portanto abstrata. Contudo, a concepção do sujeito defendido pela teórica, resulta também numa abstração, quando não oferece um olhar sensível as questões de distribuição material, que assegure uma vivência mais justa aos atores sociais.  Assim, certamente a discussão é empobrecida, pois somos atravessados pelos marcadores raciais, e de classe.

 

 

REFERÊNCIAS

 

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. 17ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.

______________. Fundações contingentes: feminismo e a questão do “pós-modernismo. In: Debates Feministas: um intercâmbio filosófico. Traduzido por Fernanda Veríssimo. São Paulo: Editora Unesp, 2018. pg. 85.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe.1ª ed. Traduzido por Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016.

FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética? Lua Nova, São Paulo, n. 70, p. 101-138, 2007.

HAIDER, Asad. Armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje. Tradução de Leo Vinicius Liberato. São Paulo: Veneta, 2019.

HALL. Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: Lamparina, 2019. 12ª ed



[1]A genealogia é uma reflexão histórica elaborada pelo filósofo Friederich Nietzsche, que busca trazer um olhar perspectivo, se distanciando do modo de pensar e fazer história tradicional, e que não tem pretensão de buscas pela origem dos eventos, mas trazer à superfície as histórias não contadas. O filósofo Michael Foucault, herdeiro dessa tradição, apresenta as premissas da genealogia nietzschiana em Nietzsche, a genealogia e a história, 2016.

[2]Butler utiliza esse termo para situar um momento em que ainda não havia no pensamento filosófico uma crítica a categoria de sexo e gênero.

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