Revista Sísifo. N° 12, Julho/Dezembro 2020. ISSN 2359-3121. www.revistasisifo.com
Bethânia Alves Pereira de Souza - Mestranda em
Filosofia na Universidade Federal da Bahia. Pesquisadora FAPESB. E-mail:
bethaniaspereirasouza@gmail.com
Karla Cristhina Soares Sousa - Doutoranda em Filosofia na Universidade Federal da Bahia. Pesquisadora FAPESB. E-mail: karlassousa28@gmail.com.
RESUMO O presente trabalho tem como objetivo discutir o
problema da identidade a partir da ótica de gênero, entendendo suas implicações
ontológicas para o pensamento político a partir da discussão feita em torno da
“performatividade de gênero”, elaborada pela filósofa Judith Butler em seu
livro, Problemas de gênero (1990), onde apresenta uma proposta de releitura dos
conceitos gênero e sexo. Um dos seus
questionamentos é direcionado para os limites da política feminista enquanto
política identitária, que tenha como foco a representatividade jurídica baseada
no conceito de mulher. A partir da
genealogia do gênero fica perceptível o motivo pelo qual a política feminista
não deve ser alicerçada por uma concepção estável da identidade mulher, pois
esta identidade excluí aqueles que não se encontram dentro das prescrições
desse conceito. Butler se propõe a mostrar os fundamentos metafísicos da gramática
que encerram o gênero em uma lógica binária, sustentada pela heterossexualidade
compulsória e o falocentrismo, regimes de discurso e poder. Assim, discutiremos
os seguintes pontos: qual o problema que circunda as questões de identidade
contemporaneamente? Como Butler concebe essas questões? O que a filósofa
compreende por performatividade de gênero? Quais as possibilidades e os limites
resultante da sua crítica ao sujeito?
PALAVRAS-CHAVE: Identidade; Gênero; Política; Poder.
ABSTRACT This paper aims to discuss the problem of identity
from the perspective of gender, understanding its ontological implications for
political thought based on the “gender performance”, elaborated by the
philosopher Judith Butler in Problems of gender (1990), where she presents a
proposal for a re-reading of the concept of gender. One of her questions is
directed to the limits of feminist politics as an identity politics, focuses on
legal representation based on the concept of women.The genealogy of gender
reveals why feminist politics should not be based on a stable conception of
women's identity, since this identity excludes who are not within the
prescriptions of that concept. Butler proposes to show the metaphysical
foundations of grammar that encapsulate gender in a binary logic, sustained by
compulsory heterosexuality and phallocentrism, regimes of discourse and power.
Thus, we will discuss the following points: what is the problem that surrounds
identity issues contemporaneously? How does Butler conceive these questions? What
does the philosopher understand by gender performance? What are the
possibilities and limits resulting from her criticism of the subject?
KEYWORDS: Identy; Gender; Politics; Power.
IDENTIDADE, SUBJETIVIDADE E POLÍTICA
A identidade nos atravessa e nos constitui
ontologicamente. Somos interpelados por esse movimento de categorização e
fixação da nossa mente. É um dizer sobre a realidade que está atrelado a uma
verdade graças ao seu caráter de mesmidade: permanecer o mesmo ao longo do tempo.
Contudo, ao longo do desenvolvimento do pensamento filosófico ocidental, a
identidade que estava atrelada a percepção da totalidade do real, passa a ser
elaborada como uma categoria ligada a construção subjetiva. O projeto moderno
sobre a ideia de sujeito surge a partir da filosofia cartesiana com a
descoberta da coisa pensante (res cogitans), este que foi o referencial
histórico para entender a identidade como o “Eu”, ou seja, como fonte de
produção de conhecimento sobre o mundo. Surge então um novo sujeito humano que
possuí uma identidade fixa e é suporte epistemológico do mudo.
O desenvolvimento da subjetividade cartesiana
permite a estruturação do sujeito do iluminismo, bem como o sujeito coletivo e
cultural. O teórico cultural e sociólogo
jamaicano Stuart Hall assinala que ao longo do desenvolvimento da história moderna do
pensamento ocidental há uma descentralização do sujeito do iluminismo, por meio
do surgimento do sujeito pós-moderno. Stuart Hall mobiliza um debate acerca da
identidade, percebendo o sujeito contemporâneo como descentralizado e
fragmentado em múltiplas identidades, não possuindo uma essência e nem sendo
apenas produto de uma construção social. Portanto, é difuso e difícil de
encontrar porque radicalmente não existe enquanto substância. Hoje em dia, o
debate em torno da consciência e da identidade, nos coloca em um ponto onde não
podemos afirmar a mesmidade como um processo que se dá de forma coerente ou
linear. O processo de globalização foi fundamental para essa confusão identitária,
proporcionando uma nova configuração das identidades. Em consequência disso,
surgiram novas demandas políticas.
Segundo Hall, o feminismo contribui para
descentralização do sujeito, se articulando com mobilizações sociais, como a
luta pelos direitos civis, antibelicista, contraculturais etc. É um pensamento
e uma prática crítica à modernidade, que historicamente se caracterizou pela
marca da universalidade, representada, por exemplo, pelo sujeito branco, do
sexo masculino e heterossexual. A filósofa Judith Butler dialogando com os
debates contemporâneos sobre a identidade, propõe uma genealogia do gênero, com
intuito de fundamentar uma ideia de identidade fluída. Dessa forma, objetivamos
neste trabalho compreendê-la a partir do debate político/ontológico sobre o
sujeito do feminismo e a política feminista, enquanto política de identidade.
A relação entre identidade e política tem como seu
desdobramento a política de identidade, que constitui uma práxis cujo ponto de
partida é a experiência individual, tomada como uma leitura de mundo a partir
das diversas opressões sociais. Existe, entretanto, um equívoco de como essa
prática foi pensada dentro do seu contexto, e como ela foi cooptada pelas
malhas do poder, que se aproveitaram do seu potencial emancipatório.
O termo “política identitária” surgiu no debate
contemporâneo pelas vozes do coletivo Combahee River (CCR) (HAIDER, 2019, p
33), formado por militantes lésbicas e negras na cidade de Boston, em 1977.
Eram socialistas que criticavam tanto o racismo quanto o sexismo na esquerda,
pois consideravam que essas pautas não eram atendidas no socialismo
revolucionário. A prática política do CCR se concentrava em trazer a
necessidade de uma articulação de classe com seus atravessamentos da raça e do
gênero. Foram críticas do esvaziamento do conceito de classe, afirmando uma
política autônoma própria.
A Política radical surge quando as próprias
experiências particulares são postas no centro da análise, permitindo uma
práxis mais radical e profunda. Portanto, para o CCR a política não se reduzia
às identidades específicas, mas ao direito de construir práticas políticas
baseadas em suas realidades. O coletivo demonstrava sua perspectiva
revolucionária na formação de alianças, fazendo, por exemplo, participações em
piquetes durante as greves.
Apesar da promessa de construir uma política
socialista mais rica, diversa e inclusiva a “política identitária” virou um
mecanismo do direito no liberalismo clássico. Assim, a política de identidade,
tal como pensada pelo liberalismo, toma o indivíduo como sujeito jurídico ou de
direito. Os filósofos, Foucault e Butler, convergem na crítica à essas reduções
do sujeito à lei e a formação da identidade pelas instituições jurídicas.
“Nossa
capacidade de ação política através da identidade é exatamente o que nos prende
ao Estado, o que assegura nossa contínua sujeição” (Ibid., p. 35). Assim, como
nos indica Asad Haider, devemos rejeitar “raça, gênero e classe” como
categorias identitárias, tendo como tarefa trazer o aspecto de crítica social
radical da política identitária, recusando identidades fixas como ponto de
partida da análise e da política.
As
identidades são mobilizadas e produzidas pelas relações de poder e de saber, o
que implica exclusão e diferenciação. Aqui se instaura uma questão: no cenário político
contemporâneo a política identitária ocupa um cenário ambíguo, pois ao mesmo
tempo que busca garantir que as identidades subalternizadas tenham os seus
direitos garantidos, delimita o acesso àqueles que não correspondem a uma determinada
categoria identitária. Logo, o sujeito busca a afirmação de sua humanidade a
partir da sua efetivação enquanto sujeito jurídico, todavia, é produzido e
interditado por esse mesmo poder. Desta maneira, a luta política restrita a
identidade não subverte a subalternidade, se não a insere em uma outra posição
dentro dessa mesma relação de poder, sendo reformista e não revolucionária. É
uma liberdade monitorada pelos ganhos de direitos, enredo do pensamento
identitário liberal. Por conseguinte, se reduzirmos as lutas políticas às lutas
identitárias, restringimos as chances de emancipação e mudanças.
Por outro lado, como já salientamos outrora, a identidade nos atravessa
ontologicamente. Desta forma, emergem alguns questionamentos: em que medida a
identidade é um lugar de potência que pode tanto nos limitar quanto nos engajar
à uma luta política comprometida? Se a identidade já não pode ser pensada em
termos substancialistas, se ela se apresenta como uma ilusão, por que continua
a ser uma questão central para entender o cenário político contemporâneo? Se a
identidade é tão espinhosa, uma ficção, uma criação do poder, em que medida ela
nos interessa politicamente? É possível pensar de maneira subversiva ou
revolucionária por meio desta? De que modo as categorias identitárias podem
definir quem deve viver e quem deve morrer?
Por fim, as páginas seguintes serão dedicadas a
compreensão da crítica bluteriana ao sujeito identitário, mobilizando a questão
da relação entre identidade e política. Assim, na segunda parte vamos
desenvolver como a filósofa faz sua crítica à política de identidade; na
terceira, a apresentação da identidade enquanto performativa; e, por último, as
questões suscitadas pela sua tese.
PROBLEMAS
DE GÊNERO E A POLÍTICA DE IDENTIDADE
Problemas de gênero (1990)
proporcionou um debate crítico de ordem teórica, política e ética no que tange
as narrativas feministas contemporâneas. A
trajetória das lutas feministas mostra o quanto são inquestionáveis as suas
contribuições e a sua potência, elaboradas em um processo de resistência.
Porém, a filósofa chama atenção para pontos cegos presentes no pensamento
político feminista enquanto política identitária, levantando questionamentos
sobre a sua fundamentação ontológica. Butler assinala no prefácio que
“os debates feministas contemporâneos sobre os significados do conceito de
gênero levam repetidamente a uma certa sensação de problema, como se sua
indeterminação pudesse culminar finalmente num fracasso do feminismo” (BUTLER,
2019, p. 7).
O fato de o
conceito de gênero aparecer envolto em problemas não é ruim. O ruim talvez seja
ficar preso a problemas para não criar problemas. E problemas marcaram a
história de vida da filósofa Judith Butler, pois era vista como aquela que
criava problemas, o que lhe custou desconfortos, na medida em que esses
deveriam ser evitados. Contudo, os problemas existem e são produzidos por
aqueles que obstruem os questionamentos acerca das regras impostas. Ao sermos
impedidos de criá-los certamente somos silenciados, e de certo modo induzidos a
se adequar as normas sociais. A filósofa não quer o fracasso do feminismo, ao
contrário, oferece uma crítica para ampliarmos a forma como pensamos e
enxergamos o gênero, e consequentemente, o feminismo.
O cenário da política feminista dos anos 90, ano do
lançamento do livro, era de efervescência e de mudança, com reivindicações
distintas das outras ondas do feminismo. Dado esse
contexto histórico e político, Butler vai às bases teóricas do feminismo para
fazer uma crítica radical das ontologias do gênero. A pensadora propõe uma
outra ótica para se pensar o gênero, desconstruindo categorias centrais como:
sexo, gênero e desejo. Tradicionalmente, essas categorias são fundamentadas por
uma abordagem substancialista de identidade, em decorrência, Butler apresenta a
tese da performatividade do gênero, ou o gênero enquanto identidade
performativa.
A proposta é fazer uma genealogia[1] do conceito de “mulher”, a fim de encontrar a configuração de poder que
coordena a produção linguística do sujeito mulher e do sujeito homem, o que
autora vai chamar de matriz de inteligibilidade de gênero. Pretende também
elaborar uma crítica que busque libertar a teoria feminista da necessidade de
construir uma base única e permanente. Butler assinala que existem duas questões que envolvem essa primeira discussão,
basilar para a compreensão da proposta em Problema de Gênero, “as ‘ficções
fundacionistas” que são a base da noção de sujeito e a suposição que o termo
mulheres denote uma identidade comum” (Ibid., p. 24).
A categoria
de mulheres constitui ‘o sujeito’ em nome de quem será pautada uma
representação política. Contudo, a política representativa está envolvida em
uma ambiguidade, à medida que visa garantir a visibilidade e a legitimidade às
mulheres, opera como uma função normativa da linguagem que revela, ou distorce
aquilo que é verdadeiro sobre tal categoria. Constatamos certa limitação na
possibilidade de uma representação efetiva, por isso é necessária uma
“crítica às categorias de identidade que as estruturas
jurídicas contemporâneas engendram, naturalizam e imobilizam” (Ibid., p. 24).
Butler sugere “que as supostas universalidades e
unidade do sujeito do feminismo são de fato minadas pelas restrições do
discurso representacional em que funcionam” (Ibid., p. 23). Em consequência
disso, “a insistência prematura num sujeito estável do feminismo, compreendido
como uma categoria una das mulheres, gera, inevitavelmente, múltiplas recusas a
aceitar essa categoria” (Ibid., p. 23). O que gera “domínios de exclusão” que
“revelam as consequências coercitivas e reguladoras dessa construção, mesmo
quando a construção é elaborada com propósitos emancipatórios” (Ibid., p. 23).
Assim, as conformações às exigências da política representacional, ao fazer um
apelo estratégico à categoria de mulheres, articulando o feminismo ao sujeito
estável, abre a guarda a acusações deturpadas devido à falta de intersecções.
Butler chega a seguinte asserção ou condição necessária para o avanço da luta
política:
“A identidade do
sujeito feminista não deve ser o fundamento da política feminista, pois a
formação do sujeito ocorre no interior de um campo de poder sistematicamente
encoberto pela afirmação desse fundamento. Talvez, paradoxalmente, a ideia de
“representação” venha realmente a fazer sentido para o feminismo quando o
sujeito “mulheres” não for presumido em parte alguma”. (Ibid., p. 25)
Como foi apresentado anteriormente, a crítica ao
sujeito está atrelada a narrativa que é desenvolvida no período do iluminismo
ocidental, e na modernidade. O sujeito enquanto universal é extremamente
problemático, porque quando olhamos criticamente a história e os contextos
políticos, verificamos uma construção epistemológica pautada em uma razão
imperialista.
Butler, inspirada pela crítica foucaultiana do
sujeito, desenvolve suas formulações abordando esta categoria como constituída
por exclusão e diferenciação. Desta maneira, as mulheres se tornam sujeitos
dentro de um modelo onde a fundamentação implica a exclusão das mesmas. Vejamos
sua argumentação.
“Qualquer tentativa de dar conteúdo universal ou específico à categoria
das mulheres, presumindo que a garantia de solidariedade seja exigida
previamente, irá necessariamente produzir facciosidade, e que “identidade” como
ponto partida não se sustenta como base segura para um movimento político
feminista. Categorias identitárias nunca são apenas descritivas, mas sempre
normativas e, como tal, excludentes.” (Id., 2018, p. 85)
A filósofa não pretende dizer que o termo
“mulheres” seja descartado, mas que os desacordos com relação ao conteúdo da
categoria devem ser valorizados. Desconstruir o sujeito do feminismo é abrir o
termo para múltiplas significações. Entretanto, ao liberar essa categoria surge
a questão da perda da agência e suas consequências políticas. Contudo, para a
filósofa esse movimento de desconstrução torna a ação verdadeiramente possível.
Essa problemática é fundamental e é um dos
principais pontos dos debates que vamos desenvolver melhor na parte final do
texto, onde elencaremos as questões que o sujeito butleriano suscita entre as
pensadoras feministas contemporâneas. Ademais, no próximo item desse texto
vamos procurar entender melhor qual a crítica que Butler faz a identidade de
gênero.
PERFORMATIVIDADE DE GÊNERO
O que
significa o gênero ser performativo? O que é a performance de gênero? Quais as
ações contra hegemônicas poderíamos exercer a partir dessa concepção? Essas
serão algumas questões que abordaremos nessa seção.
Para Butler, o gênero não é um substantivo, nem um atributo de conjunto
flutuantes, mas um efeito substantivo que é performativamente produzido
pelas práticas reguladoras de coerência do gênero. Primeiramente, é necessário
entender como o conceito de performance aparece no pensamento butleriano e qual
a sua fundamentação teórica.
Performance tem como origem latina a palavra
formare que pode significar criar, dar forma ou formar. Em
consequência, a sua associação à noção de criação é utilizada de forma
recorrente nos campos das artes. A palavra performance dá origem a dois outros
termos que, eventualmente, são confundidos, mas que diferem, são esses,
performático e performativo. Enquanto o performático está ligado ao campo das
artes, o termo performativo está associado as discussões nas áreas da
linguística e do gênero. A proposta da performance de gênero abordada pela
filósofa, está vinculada ao pensamento do filósofo franco-argelino Jacques
Derrida. Entender esse diálogo nos ajuda a compreender melhor o debate
conceitual desenvolvido por Butler sobre a performance.
Derrida trabalha com a distinção entre significado
e significante, com intuito de desconstruir a herança metafísica da linguagem.
Em corolário a essa desconstrução chega a concluí que não há significado por
trás do significante, e que o sentido é efeito constituído por uma cadeia de
significantes. Assim, como a desconstrução proposta por Derrida está para a
relação entre esses dois componentes linguísticos, a desconstrução de Butler
está para a relação do sexo e gênero. Portanto, como não existe um significado
absoluto ou verdadeiro em si, não existe uma identidade de gênero por trás das
expressões de gênero, pois este é produzido
discursivamente. É um efeito que tem seu fundamento na metafísica da
substância, a qual está presente na gramática. Não há uma substância, um a
priori, ou uma existência do sexo longe do âmbito social, da mesma maneira que
não há um corpo natural anterior à sua inscrição cultural. O gênero não é um
substantivo, um ser, ele é uma ação, um fazer, um verbo, que vai se realizando
por meio de uma sequência de atos.
Em vista
disso, a filósofa vai desestabilizar as nossas crenças metafísicas acerca
da identidade de gênero, evidenciando a lógica da heterossexualidade
compulsória, e a sua institucionalização como um regime de governo, que se
empenha em deixar estável a relação entre a nossa genitália, o nosso papel
social e político, e o nosso desejo.
A “matriz de inteligibilidade” é constituída pelas
normas culturais que fazem com que tenhamos gêneros inteligíveis que “em certo
sentido, instituem e mantém relações de coerência e continuidade entre sexo,
gênero, prática sexual e desejo” (Ibid., p. 43). Porém, quando a identidade é
assegurada por conceitos estabilizadores do sexo, a noção de pessoa daqueles
que fogem a essa coerência de gênero é questionada, bem como o status de
existência. As descontinuidades e incoerências, por sua vez, só são possíveis
em relação a existência de normas institucionalizadas que “buscam estabelecer
linhas causais ou expressivas de ligação entre o sexo biológico, o gênero
culturalmente constituído e a “expressão” ou “efeito” de ambos na manifestação
do desejo sexual” (Ibid., p. 43).
A partir da noção de metafísica da substância, que
é uma crítica da noção de pessoa psicológica como “coisa substantiva” (Ibid.,
p. 49), tendo como referencial teórico o pensamento Nietzschiano, Butler vai
pensar as identidades de gênero e como elas são um efeito de linguagem que se
materializa no corpo por meio do discurso. Por conseguinte, aborda a gramática
como porta de entrada para entendermos como a função linguística produz efeitos
que julgamos sob o estatuto de verdade, este que engendra a metafísica da
substância do gênero.
A noção de
sexo na linguagem hegemônica como substância, como ser idêntico a si é uma
aparência oriunda de um “truque performativo da linguagem e/ou do discurso, que
oculta o fato de que “ser” um sexo ou gênero é fundamentalmente impossível”
(Ibid., p. 46). Dado que, longe de ser algo que é anterior à linguagem e ao
âmbito social, é um efeito de práticas discursivas. Dentro desse jogo em que o
sexo é concebido como signo, cujo significado é ser um gênero e ter um desejo,
temos esses elementos unificados pelo princípio da causalidade. É por
meio da linguagem que Butler coloca o gênero enquanto uma categoria
filosófica que compõe o quadro dos conceitos a prioris. Assim, as categorias
gramáticas, sujeito e predicado, constituem uma relação de verdade que formam
uma ilusão de identidade substancial. Os conceitos
que envolvem a ideia de sujeito são transformados em substâncias fictícias,
unidades que inicialmente só tem realidade linguística.
A constituição ontológica de homens e mulheres é
elaborada por essa gramática binária, onde temos o gênero feminino e masculino
como categorias metafísicas. Butler vai mostrar como toda essa construção se
desenvolve em um contexto pré-feminista[2],
onde o gênero “ingenuamente (ao invés de criticamente) confundido com o sexo,
serve como princípio unificador do eu corporificado e mantém essa unidade por
sobre e contra um “sexo oposto”, cuja estrutura mantém, presumivelmente, uma
coerência interna paralela mas oposta entre sexo, gênero e desejo” (Ibid., p. 51).
Quando fazemos afirmações como “ser homem” e “ser
heterossexual”, por exemplo, estamos expressando o efeito linguístico da
metafísica da substância do gênero, onde a noção de gênero é subordinada à
identidade sexual. Ter um pênis ou uma vagina, direciona o desejo: ser de um
órgão “x” implica no desejo pelo órgão “y”. Destarte, o gênero é designado a
uma pessoa em virtude do seu sexo que está diretamente ligado ao seu sentimento
psíquico, expressado pelo desejo sexual. Dessa forma, teríamos um corpo
anatômico “x” que culturalmente representa um
gênero “x¹” e que teria seu desejo direcionado para o corpo de anatomia “y”.
Exemplificando,
os enunciados “eu me sinto uma mulher”, proferido por uma mulher, ou “eu me
sinto homem”, dito por um homem, dentro dessa coerência estabelecida por meio
da ligação do sexo, gênero e desejo, não são “absurdamente redundantes” (Ibid.,
p. 51), pois o sentimento é uma disposição determinada pela genitália. Agora,
se pensarmos o enunciado “eu me sinto uma mulher”, proferido por uma pessoa de
uma anatomia diferente que não aquela que está posta na lógica substancialista,
provavelmente geraria estranhamento. Por fim, após mostrar como a metafísica da
substância tem seus efeitos na realidade discursiva sobre o gênero por meio da
gramática, Butler afirma com base no
pensamento nietzschiano que “não há identidade de gênero por trás das
expressões do gênero; essa identidade é performativamente constituída,
pelas próprias ‘expressões’ tidas como seus resultados” (Ibid., p. 56).
Como foi
visto, a pensadora mostra como a identidade é efeito de um conjunto de práticas
discursivas. Assim, não existe um sujeito que é anterior a sua inserção na
linguagem e na cultura, pois é o resultado de um processo de atos ou práticas
de significações.
Isto posto, a
identidade deve ser compreendida como um processo de significação. A teórica
passa de uma explicação epistemológica para desenvolver a noção de práticas de
significações, que é um processo regulador de repetição que possui efeitos
substancializantes. A significação, enquanto um processo se constitui como um
agir. Desta maneira, as regras ou normas que governam a identidade inteligível
operam por repetição, o que situa a ação na “possibilidade de uma variação
dessa repetição” (Ibid., p. 250). Logo, para além de restringir, as regras que
compõe o ato de significação permitem a existência de “campos alternativos de
inteligibilidade cultural”, ou a repetição subversiva, em consequência da
convergência ou coexistência dos discursos, já que são produzidos
historicamente, permitindo ressignificações e reposicionamentos.
Butler coloca
o sexo como radicalmente distinto do gênero, visto como conjunto de práticas
discursivas que não se encontra inscrito no corpo de forma anterior à sua
significação. Por conseguinte, esse corpo é ressignificado a todo momento
constituindo a identidade. No encontro entre essas duas categorias temos uma
repetição ritualística, que pode ser subvertida quando a brecha entre a
realidade do sexo e aquilo que é fantasiado sobre ele é evidenciado. A
subversão da identidade aconteceria como uma repetição subversiva no interior
das práticas significantes do gênero. A proposta subversiva butleriana
corresponde às práticas parodísticas que permitem uma reconfiguração da lógica
do gênero, possibilitando uma proliferação conforme vai ocorrendo a
desnaturalização do mesmo. Por fim, em Problemas de Gênero não temos uma
resposta de como constituir efetivamente uma paródia subversiva do gênero, o
que abre espaço para críticas.
Não existe um agente fixo por trás do ato. Contudo, como fica ação
política? É possível uma ação sem agente? Esta concepção solapa a ação
política? O reconhecimento de múltiplas identidades oferece uma perspectiva
efetiva de justiça social? É possível falar da subversão de identidades sem
falar das interseccionalidades?
POSSÍVEIS CONSEQUÊNCIAS DO DEBATE
As consequências políticas da discussão da
performatividade do gênero estão atreladas à base do seu pensamento sobre o
feminismo, que abarca concepções pós-estruturalistas de subjetividade,
identidade e agência humana. Diante do cenário político atual há necessidade de
falarmos de reconhecimento como justiça social? O reconhecimento subverte a
política a perspectiva da política atual? Certamente essa são algumas das principais
questões que aparecem nos debates feministas contemporâneos.
Em Debates Feministas: um intercâmbio filosófico
(1995), temos um diálogo que ocorre entre Seyla Benhabib, Judith Butler e
Nancy Fraser. Não será possível abordar o que cada uma dessas formulações traz
de forma minuciosa, mas trataremos algumas questões oriunda dos desdobramentos
das teses butleteriana acerca da identidade de gênero para o feminismo
contemporâneo.
A abordagem epistemológica e teórica da filósofa
Judith Butler, se opõe a diversas correntes, como é o caso da filósofa Seyla
Benhabib, que defende um feminismo baseado na Teoria Crítica, e em diálogo com
conceitos como: autonomia, crítica e utopia. Benhabib questiona Butler sobre a
possibilidade de agência, haja vista que sua concepção de sujeito é desprovida
de qualquer realidade metafísica. Aqui segue um questionamento: essa posição de
Butler desautoriza a agência e até mesmo a possibilidade do feminismo?
Segundo Benhabib, a ligação entre o feminismo e o
pós-estruturalismo é impossível, pois as teses que baseiam uma posição
pós-estruturalista solapam a possibilidade do feminismo, dado que não é viável
pensar uma teoria social que compactue com a tese da morte do sujeito, da
história e da metafísica. Por outro lado, Butler vai argumentar que tal
proposição implica “um fundacionalismo autoritário”, pois dessa narrativa
resultaria um sujeito que tem a possibilidade de ser tornar universal de forma
totalitária.
Contudo, Nancy Fraser reconhece que o debate entre
Butler e Benhabib coloca uma polaridade que implica em uma falsa antítese, pois
ambas não trazem resoluções efetivas. Para Fraser, as feministas contemporâneas
precisam desenvolver uma conceitualização que seja alternativa à ideia de
sujeito, e que, portanto, integre as duas propostas. Dessa forma, para Fraser é
mais aceito efetivamente, uma perspectiva de comunhão entre a compreensão
crítico-teórico de Benhabib, e a compreensão pós-estruturalista de identidade e
agência humana de Butler. Nancy Fraser,
ao contrário da perspectiva de Butler, salienta que a teoria da linguagem não
consegue provocar mudanças políticas efetivas, pois o problema da agência
limitada à teoria da linguagem é insuficiente para subverter a estrutura
social.
Dito isto, as visões contemporâneas do movimento
feminista, são atravessadas por uma concepção de justiça social por vias de
reconhecimento, mas também de distribuição. Fraser, quando fala sobre a
ampliação do conceito de justiça social, situa o debate pela noção de “paridade
de participação”, compreendendo a justiça por “arranjos sociais que permitam a
todos os membros (adultos) da sociedade interagir uns com outros como
parceiros” (FRASER, 2007, p. 118). Dessa forma, visualiza duas condições
possíveis para essa ampliação: a primeira, denominada de objetiva, é que a
“distribuição dos recursos materiais deve dar-se de modo que assegure a
independência e voz dos participantes” (Ibid., p. 119); a segunda, denominada
de intersubjetividade, ou reconhecimento, “requer que os padrões
institucionalizados de valoração cultural expressem igual respeito a todos os
participantes e assegurem igual oportunidade para alcançar estima social”
(Ibid., p. 119). Consideramos que a discussão de Judith Butler, por frisar o
aspecto do reconhecimento de identidade múltiplas, e subversão política por
meio da crítica à linguagem, não consegue abranger o aspecto da distribuição
material, deixando de lado pautas emergentes ao movimento feminista. Como, por
exemplo, pautas levantadas pelas intelectuais negras, como Ângela Davis, bell
hooks e Kinberlé Crenshaw. À vista disso, acreditamos que a partir dessa
concepção se perde uma potencialidade política.
O feminismo é um movimento radical que
surge a partir da luta por justiça social. Segundo Ângela Davis (DAVIS, 2016),
foi por meio da luta abolicionista que as mulheres passaram a aprofundar a
reflexão sobre a condição de opressão, e a estruturação da mobilização
política. Ressaltamos isso, pois é o cenário político de discussão dos
debates feminista dos anos 80 e 90, bem como é o cenário da construção
intelectual de Judith Butler. A ideia de representação do movimento feminista,
criticado pela filósofa Judith Butler, se constitui com base numa noção de
mulher restrita e universalista, portanto abstrata. Contudo, a concepção do
sujeito defendido pela teórica, resulta também numa abstração, quando não
oferece um olhar sensível as questões de distribuição material, que assegure
uma vivência mais justa aos atores sociais.
Assim, certamente a discussão é empobrecida, pois somos atravessados
pelos marcadores raciais, e de classe.
REFERÊNCIAS
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da
identidade. Tradução de Renato Aguiar. 17ª ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2019.
______________. Fundações contingentes: feminismo e a questão do
“pós-modernismo. In: Debates Feministas: um intercâmbio filosófico.
Traduzido por Fernanda Veríssimo. São Paulo: Editora Unesp, 2018. pg. 85.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe.1ª ed. Traduzido por Heci
Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016.
FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética? Lua Nova, São Paulo, n.
70, p. 101-138, 2007.
HAIDER, Asad. Armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje.
Tradução de Leo Vinicius Liberato. São Paulo: Veneta, 2019.
HALL. Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: Lamparina, 2019. 12ª ed
[1]A genealogia é uma reflexão histórica
elaborada pelo filósofo Friederich Nietzsche, que busca trazer um olhar
perspectivo, se distanciando do modo de pensar e fazer história tradicional, e
que não tem pretensão de buscas pela origem dos eventos, mas trazer à
superfície as histórias não contadas. O filósofo Michael Foucault, herdeiro
dessa tradição, apresenta as premissas da genealogia nietzschiana em Nietzsche, a genealogia e a
história, 2016.
[2]Butler
utiliza esse termo para situar um momento em que ainda não havia no pensamento
filosófico uma crítica a categoria de sexo e gênero.
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