Neila
Roberta C. Ramos[1]
Intergaláctica, por Nilcley Santos Rocha. |
Resumo:
Este
estudo traz uma reflexão acerca dos aspectos do Afropolitanismo contidos na narrativa
de Chimamanda Ngozi Adichie, a fim de compreender como a escrita de Adichie
contribui para leituras mais plurais sobre o continente africano. Dessa
maneira, através da análise de personagens do livro de contos The thing
around your neck em diálogo com os conceitos de identidade, afropolitanismo
e cosmopolitismo vernacular cunhados por Achille Mbembe (2007;2009) e Homi
Bhabha (2000), pudemos compreender a importância de histórias diversas que
ajudam a compor, mas não a unificar, o conhecimento acadêmico, cultural e
político do continente sem cair nas armadilhas da universalização. O
Afropolitanismo de Adichie opera num campo discursivo que contribui para uma
forma contemporânea de leitura reconfigurando a nossa forma de pensar nas
histórias que nos são contadas, nos oferecendo uma visão que extrapola os
limites fundamentados em hierarquias e binarismos de gênero, raça, sexualidade,
geografia e etnia.
Palavras-chaves:
Afropolitanismo; Literatura nigeriana; Chimamanda Adichie.
Abstract:
This study reflects on the aspects of
Afropolitanism contained in Chimamanda Ngozi Adichie's narrative, to understand
how Adichie's writing contributes to more plural readings on the African
continent. Thus, through the analysis of characters from the short story book The
thing around your neck in dialogue with the concepts of identity,
Afropolitanism and vernacular cosmopolitanism coined by Achille Mbembe (2007;
2009) and Homi Bhabha (2000), we could understand the importance of diverse
stories that help to compose, but not to unify, the academic, cultural and
political knowledge of the continent without falling into the traps of
universalization. Adichie's Afropolitanism operates in a discursive field that
contributes to a contemporary way of reading, reconfiguring our way of thinking
about the stories that are told to us, offering us a vision that goes beyond
the limits based on hierarchies and binarisms of gender, race, sexuality,
geography and ethnicity.
Key-words: Afropolitanism, Nigerian
literature, Chimamanda Adichie
Stories matter. Many
stories matter. Stories have been used to dispossess and to malign, but stories
can also be used to empower and to humanize. Stories can break the dignity of a
people, but stories can also repair that broken dignity.[2]
A
escritora nigeriana Chimamanda Adichie acredita no poder das histórias. Para a autora,
as histórias importam porque através delas somos apresentados a pontos de vista
sobre lugares, pessoas e culturas. É nesse ato de narrar, ouvir, escrever e ler
histórias que podemos criar laços mais humanos uns com os outros. São as
histórias que nos conectam a uma rede de saberes que vai ao longo do tempo
constituindo nossas identidades e nossas perspectivas de mundo.
Talvez
uns dos grandes desafios de intelectuais africanas contemporâneas seja
justamente ajustar suas identidades num mundo marcadamente globalizado. Essa
dificuldade decorre do fato dessas intelectuais, escritoras e artistas fazerem
parte de um continente que, tendenciosamente, foi representado ao longo do
tempo através de um sentido de unidade que, por vezes, sobrepõe as suas
múltiplas atividades e até mesmo suas criatividades.
Para entendermos um pouco mais sobre a questão dessa identidade e intelectualidade africana podemos acionar o filósofo camaronês Achille Mbembe que tem desenvolvido pesquisas sobre as ciências sociais, história e política africanas. Mais precisamente, investigando a condição das sociedades no "pós-colônia", interessando-se pelo surgimento do que vem a chamar de uma "cultura afropolita", juntamente com as práticas artísticas que lhe estão associadas. No ensaio Africa modes of self writting, publicano no Volume 2 da revista Identity, Culture and Politics, no ano de 2001 [3], Mbembe tenta demonstrar que não há uma identidade africana que pode designar um termo único ou ser colocada sob um título. A identidade africana só existe como substância de uma série de práticas, incluindo aquelas de poder. Essas formas identitárias, segundo o autor, são móveis, reversíveis, instáveis. Portanto, não podem ser reduzidas a uma ordem puramente biológica, étnica ou geográfica. Elas, também, não podem ser encerradas em traduções, na medida que estas tradições são constantemente reinventadas.
O ensaio de Mbembe é bem-vindo em vários aspectos. Não só por abordar com grande sutileza importantes questões sobre a construção da identidade e do eu na África pós-colonial, mas também por colocar questão mais gerais que desafiam e desestabilizam discursos nacionalistas, marxistas, nativistas e multiculturalistas. O autor chama a nossa atenção para algumas questões importantes sobre os desafios enfrentados pelos cientistas sociais, concernentes ao gerar formas de compreensão de identidade como central para a formação pessoal e de grupo evitando o essencialismo e como usar tags de grupo sem atribuir-lhes quaisquer características. Mbembe, que entende a identidade como substância constituída através de uma série de práticas, defende que a identidade africana não pode ser inteiramente entendida através de meta-narrativas que selecionam apenas alguns aspectos da história do continente.
Quando Adichie (2009) nos fala sobre as imagens pelas quais
a África é retratada, ela nos leva refletir que a narrativa constituída sobre o
continente contribuiu e muito para configuração desse imaginário. Esse olhar do
outro para uma civilização diferente da sua tende a uma representação que
reflete estranheza ao que se vê. O desafio seria entender que o diferente não é
necessariamente ruim. No momento em que hierarquizamos, que nos jugamos mais
civilizados que os outros, estamos colocando esse outro num lugar inferior.
Adichie acredita que essa imagem de uma África selvagem,
mítica, de religiões e crenças maléficas, sinônimo de miséria e doenças foi
construída em parte pela literatura ocidental. A literatura se mostra aqui como
um instrumento vinculador de ideais, capaz de propagar visões de mundo e criar
os mais diversos estereótipos sobre um determinado lugar. A literatura
produzida por Adichie se caracteriza por uma proposta contra hegemônica. Nesse
sentindo, a escritora nos apresenta as mais diversas personagens, com as mais
diversas características.
Ela retrata uma África caracterizada pela pluralidade. Ela
ainda lembra o momento que foi questionada na universidade pelo professor que,
ao ler seu romance, disse que esse não era autenticamente africano. “The professor told me
that my characters were too much like him, an educated and middle-class man. My
characters drove cars. They were not starving. Therefore, they were not
authentically African.”[4]
É essa suposta autenticidade africana que Mbembe (2001) pretende revogar nos seu ensaio ao criticar tendências intelectuais que tendem a privilegiar momentos específicos da história africana, a exemplo da escravidão, da colonização e do Apartheid para expressar todo o imaginário coletivo do continente e do eu africanos. Nessa visão, o eu africano é percebido e retratado como uma vítima. A conclusão lógica dessa premissa é que os africanos não tiveram participação até mesmo nas catástrofes que ocorreram e ainda ocorrem no continente. Um tipo de suposição que insiste em afirmar que a história foi, apenas, imposta à África.
Pensando na literatura produzida por Adichie percebemos que existe uma recusa por parte da escritora sobre as histórias únicas de África. As suas muitas histórias nos oferecem muitas versões possíveis sobre a Nigéria e o continente africano por extensão. As personagens que povoam o universo narrativo de Adichie estão dentro de uma dinâmica que dialoga com a constituição sempre fluida de identidades. Dentre dessa variedade de temas e personagens, Adichie rasura as imagens essencialistas comumente associadas à africanas de modo que a pergunta, "o que é ser africana?", dificilmente será respondida por suas leitoras. Nesse ponto, entendemos que Adichie mobiliza a literatura para desestabilizar construções hegemônicas que silenciam, estereotipam e desvalorizam um grupo de pessoas em detrimento de outro.
Nessa perspectiva, buscando localizar esse fazer intelectual de Adichie dentro da dinâmica africana, podemos mais uma vez dialogar com as ideias apresentadas por Achille Mbembe no seu ensaio Afropolitanism (2007). Nele, Mbembe retoma a discussão sobre os paradigmas mais influentes ao longo do século XX. O primeiro seria as variações de um nacionalismo anticolonial. Um pouco mais tarde, houve as variadas interpretações do marxismo das quais o socialismo africano se derivou. Finalmente, existiu a esfera pan-africana que influenciou dois tipos de solidariedade: a racial e transnacional e a internacional e anti-imperialista (MBEMBE, 2007, p. 26). Pensando no século XXI, o autor afimar que não necessariamente esses padrões se modificaram, embora outras configurações sociais e culturais estejam em progresso.
A questão em pauta no ensaio de Mbembe (2007) é a denúncia de que esses paradigmas intelectuais se tornaram institucionalizados e fossilizados num grau tão extensivo que hoje sejam capazes de tornar possível a análise das transformações que estão acontecendo em África, dificultando a renovação de uma crítica cultural, artística e filosófica no continente o que reduziria, segundo o autor, a habilidade em contribuir para um pensamento contemporâneo sobre a cultura e a democracia em terras africanas. Como uma alternativa a essas premissas intelectuais que sustentam ideias pautadas em apenas uma parte dos eventos históricos ocorridos na África para analisar a criatividade, a política, a economia e cultura africanas, Mbembe sugere que críticos africanos e também estrangeiros se distanciem, entre outras coisas, do que ele chama de "o reflexo nativista". Esse reflexo em sua forma suave aparece como uma ideologia que glorifica diferenças e luta para preservar costumes e identidades percebidos como ameaçados. Dentro dessa lógica nativista, questões identitárias e políticas são fundadas nas distinções entre aqueles que são de África e aqueles que são de fora. Os nativistas, segundo Mbembe, não consideram, no entanto, que as formas estereotipadas de costumes e tradições africanas foram frequentemente inventadas não pelos verdadeiros nativos, mas por missionários e conquistadores de terra (MBEMBE, 2007, p. 28).
A partir da crítica de Mbembe (2007) aos paradigmas intelectuais predominantes em África podemos nos questionar quanto a aplicabilidade de uma crítica pós-colonial focada no evento da colonização para uma leitura de sociedades africanas na esfera atual. Nesse sentido, entendemos que a literatura produzida por Adichie consegue transgredir os paradigmas apontados por Mbembe (2007). Afirmamos isso, por percebermos na escrita da nigeriana uma abordagem que trata das questões africanas negociando o passado colonial sem deixar de seguir em frente com outras questões contemporâneas que afetam diretamente a vida no continente. Adichie constrói uma imagem da África que respeita as tradições ao mesmo tempo em que reconhece as exigências de uma audiência cosmopolita e internacional. Recupera sua herança e, ao mesmo tempo, prediz e dirige mudanças construtivas enquanto se adapta a uma economia global. Adichie combina o antigo e o novo com a ajuda da história.
As histórias de Adichie abordam as preocupações
humanas de um local específico, mas que encontram uma ressonância no mundo
exterior. Embora todas pertençamos à mesma raça humana, a história e a política
nos afetam de maneiras diferentes. São histórias que nos conectam, preservam a
sabedoria das culturas do mundo e ajudam a explicar o nosso mundo e nosso lugar
nele. As histórias acendem em nós a capacidade de pensar e aprender
criativamente através das experiências compartilhadas.
As
muitas histórias contadas por Adichie mantêm viva a tradição africana de contar
histórias e não se perderão no labirinto de leitura teórica e releitura, mas
servirão para "instruir e deliciar" como ela acredita. Em seu retrato de vidas ordinárias vamos entendendo que, à
medida que o mundo muda, as vidas humanas não permanecem inalteradas, mas o que
resta são os valores compartilhados. Nesse ponto, entendemos Adichie como uma
escritora que consegue enxergar as frestas e rasuras do tempo presente se
tornando uma contemporânea desse seu próprio tempo. Enxergamos Adichie como uma
escritora de literatura nigeriana que consegue dançar pelas fronteiras
geográficas que supostamente poderiam servir como um entrave para sua
criatividade.
A atuação de Adichie enquanto uma intelectual na fronteira
nos permite compreender sobre o que nos fala Mbembe (2009) do que ele chama de
uma sensibilidade afropolita que seria aquela de reconhecer o entrelaçamento,
os mundos em movimento que existem em África e também fora dela. Que seria
também aquela que relativiza raízes primárias e associa com o conhecimento
completo de fatos. Aquela de estranheza sem perder a habilidade de converter
esses traços de afastamentos em traços de proximidade. A sensibilidade de
domesticar o infamiliar e trabalhar com que parece oposto (MBEMBE, 2007, p.
29).
É nessa sensibilidade estética, cultural e histórica que Adichie traz em suas muitas histórias a sua identidade
nigeriana em negociação constante com o mundo compartilhado pelas mais variadas
pessoas e histórias. Consideramos Adichie uma escritora afropolita, não apenas
por ela dividir sua casa entre Nigéria e Estados Unidos, mas por ser Afropolitanismo
“uma maneira de estar e ser africano no mundo recusando, a princípio, qualquer
forma de ressentimento e vitimização” (MBEMBE, 2007, p. 30).
O Afropolitanismo de Adichie opera num campo discursivo que contribui para uma forma contemporânea de leitura reconfigurando a nossa forma de pensar nas histórias que nos são contadas, nos oferecendo uma visão que extrapola os limites fundamentados em hierarquias e binarismos de gênero, raça, sexualidade, geografia e etnia. É o Afropolitanismo que também toma para si o poder de narrar que é capaz de operar mudanças, de mudar nossa percepção simbólica sobre lugares, pessoas e culturas. É imbuída do poder de narrar que Adichie pode contar a sua própria versão de história da Nigéria.
Em The
Thing Around Your Neck (2009),
livro de contos da escritora, somos apresentados a, pelo menos, dois exemplos da
escrita afropolita de Adichie. No conto Jumping Monkey Hill a Oficina de Escrita Criativa de Escritores
Africanos organizada por Edward Campbell, um britânico que estudou sobre
literatura africana em Oxford, na Inglaterra e que também já foi professor
universitário na Cidade do Cabo, África do Sul, reúne escritores africanos no
intuito de criarem contos para serem publicados. A temática é livre e seria de
se esperar histórias que narrem, de algum modo, a vivência deles em seus países.
Edward chewed at his pipe thoughtfully before he said
that homosexual stories of this sort weren’t reflective of Africa, really.
“Which Africa?” Ujunwa blurted out.
(…)
“This may indeed be the year 2000, but how African is
it for a person to tell her family that she is homosexual?” Edward asked.
The Senegalese burst out in incomprehensible French
and then, a minute of fluid speech later, said, “I am Senegalese! I am Senegalese!”[5]
No
trecho, um dos participantes, uma escritora senegalesa, lê uma cena da história
que está compondo na oficina comovendo-se à medida que vai chegando ao final do
excerto. Admirados, todos se calam, mas o organizador Edward, pontua que o
enredo que descreve uma relação lésbica, não poderia acontecer na “verdadeira
África”. Embora se defenda que não quer trabalhar com as ideias “ocidentais”
sobre o continente, ele deixa claro que sua visão de África, que deriva de uma
história única cuja cultura local está atrasada em relação ao mundo, tal
temática não seria possível. Tentando responder a personagem Ujunwa, ao
inquiri-lo de que África ele está falando, podemos dizer que é a África
caricata descrita por décadas, séculos pela hegemonia acadêmica ocidental que desconsidera,
assim como Edward, as vivências das próprias africanas..
Já no conto The headstrong historian,
Adichie é explicita ao descrever ao menos uma de suas personagens como
cosmopolita:
Ayaju’s long-limbed,
quick-moving body spoke of her many trading journeys; she had traveled even
beyond Onicha. It was she who had first brought tales of the strange customs of
the Igala and Edo traders, she who first told of the white skinned men who
arrived in Onicha with mirrors and fabrics and the biggest guns the people of
those parts had ever seen. This cosmopolitanism earned her respect, and she was
the only person of slave descent who talked loudly at the Women’s Council, the
only person who had answers for everything[6]
Ayaju encarna um senso
de Afropolitanismo pragmático. No mundo social de The headstrong historian é Ayaju, uma ex-escrava, cujo conhecimento
foi adquirido em viagens e intercâmbio, que conquista uma posição de prestigio
na aldeia. É ela também que é consultada por uma das protagonistas, Nwamgba,
para resolver uma questão de posse de terras. Ainda é Ayaju que convence
Nwamgba a mandar seu filho, Anikwena, para escola de missionários onde o seu
filho também já está aprendendo a língua dos brancos e seus “modos
estrangeiros”.
Rumo
ao final do conto somos apresentados a Grace, neta de Nwamgba. Apesar do nome
de batismo dado pelo pai que havia se convertido ao Cristianismo, ela a chama
de Afamefuma “Meu Nome Não Será Perdido” (ADICHE, 2009, p. 214). Os laços entre
avó e neta são estabelecidos logo no momento do nascimento da menina. “From the moment Nwamgba held her, the baby’s bright
eyes delightful focused on her, she knew that it was the spirit of Obierika
that had returned: odd, to have come in a girl, but who could predict the ways
of the ancestors?”[7] Inferimos que Grace, ao contrário do que
acredita Nwamgba, herdara não o espírito do falecido avô, e sim os modos da
avó. A menina aprende poesias com ela, escuta atentamente as suas histórias e,
quando adolescente, observa a avó moldar vasos de cerâmica com olhos atentos.
Por
imaginar que o espírito de seu falecido esposo estava em Afamefuma, Nwamgba
temia que o doutrinamento católico pudesse transformar a neta em uma pessoa de
“rígida falta de curiosidade” ou de uma “impotência mole” (ADICHIE,2009,
p.215), contudo essa vivência inicial que a garota tem com ela, possibilita que
Grace, ao contrário do pai, da mãe e do irmão mais velho, questione os
ensinamentos recebidos quando vai para escola.
Essa
vivência dupla permite a Grace, desde muito jovem, a questionar, inicialmente o
binarismo cristão, depois as histórias africanas criadas pelo imaginário
colonial ocidental que falava de um povo que não se assemelhava em nada com as
histórias e o convívio com sua avó. Apesar de todo seu estudo e influência
ocidental, a jovem se torna historiadora e renega essa versão oficializada de
seu povo e passa a pesquisar ela mesma sobre sua cultura em detrimento do
desinteresse que seu círculo social tinha sobre sua origem ou as histórias
únicas que eles criavam numa tentativa ainda mais clara, embora pouco arguida,
de ofuscar e/ou inferiorizar a África e sua pluralidade.
Adichie
traz esses questionamentos nos últimos parágrafos de The headstrong historian num ritmo insistente: quase todas as
sentenças começam com "It was Grace", como uma maneira de cobrir
várias décadas na vida da neta de Nwamgba. Foi Grace que, através de uma
resistência aos professores da missão, professores universitários e George
Chikadibia, seu marido educado em Cambridge, decide trocar a faculdade de
Química pela a de História. Foi Grace
que questionava as "santificações, as certezas severas" de seu pai e
dos homens tais como o "eminente" erudito Sr. Gboyega, um
"nigeriano de pele de chocolate" e especialista no Império Britânico
que, em 1950, renuncia ao ensino no University College em Ibadan quando a
história da África Ocidental é adicionada ao currículo, porque ele ficou
horrorizado que a história africana fosse até mesmo considerada um assunto. Foi
Grace que, como uma jovem acadêmica ponderando as histórias que ela não tinha
certeza de que acreditava faria um vínculo claro entre educação e dignidade,
entre as coisas óbvias e não óbvias que são impressas nos livros e as coisas
suaves que se alojam na alma (ADICHIE, 2009, pp. 216-17).
Mantendo
em equilíbrio os textos duros dos arquivos e as sutis lembranças do mundo de
sua avó, Grace e, por extensão, a própria Adichie, traz uma atemporalidade
cosmopolita da ficção histórica informada pela convergência de múltiplas
narrativas, muitas vezes contraditórias. O que chamamos dessa atemporalidade é
um modo ativo e estratégico de olhar através do tempo em busca de novas
definições. Adichie nasceu em 1977 e não viveu as eras descritas em The headstrong historian. No entanto,
como Grace, sua colaboração com a memória e a história recuperada mostra como a
prática de um “cosmopolitismo vernáculo” pode fornecer um método de leitura de
narrativas contemporâneas em sociedades que passaram pela experiencia colonial.
O que
entendemos como esse “cosmopolitismo vernáculo” deriva do que propõe o teórico
indiano Hommi Bhabha no seu ensaio Looking back, moving forward: Notes on
vernacular cosmopolitanism (2000).
Nesse texto, Bhabha nos conta sobre suas experiências enquanto um acadêmico
indiano estudando em uma universidade britânica e sobre as negociações que
precisou fazer durante sua trajetória intelectual. O que Bhabha vem a chamar
desse cosmopolitismo seria aquele que mede o progresso global através da
perspectiva de grupos minoritários. Seu clamor por liberdade e igualdade é
marcado pela ideia de um direito a diferença dentro da igualdade. (BHABHA,2000,
p.20).
Tal
direito a diferença, segundo Bhabha, não requer a restauração de uma identidade
cultural ou de grupo original ou essencialista ou considera a igualdade a ser uma
neutralização de diferenças em nome de uma universalidade. O direito a
diferença na igualdade pode ser pensado como um desejo de revisar os
componentes de uma cidadania comum. O cosmopolita vernáculo vislumbra um
comprometimento que o direito a diferença na igualdade é um processo que
constitui afiliações e grupos, e tem menos a ver com a afirmação de origens e
identidades, e mais a ver com práticas políticas e escolhas éticas. São essas
afiliações e solidariedades que podem responder às falhas e aos limites de
representações, criando novos modos de agência, novas estratégias de
reconhecimento, novas formas de representações políticas e simbólicas. Esse
cosmopolitismo representa, assim, um processo político que trabalha em direção
a objetivos compartilhados de democracia (BHABHA, 2000, p. 23).
Pensamos
que a prática cosmopolita vernácula cria hábitos de pensamento como de mundos
que são imaginados, não no sentido de distanciamento, mas no processo de
definição: mundos em construção. Para Grace, que nasceu sob o domínio britânico
na Nigéria e que atingiu a maioridade nos anos 50 e 60 no limiar da
independência, o próprio conceito de imaginar um mundo era inseparável de
promover um sentimento de nacionalismo ou, pelo menos, habitando uma autêntica
identidade social na convergência do passado e do presente.
No seu
trabalho como historiadora, Grace precisa pesquisar, reimaginar mundos
anteriores para dar sentido ao atual - essas são as tarefas autoatribuídas de
historiadores obstinados que exemplificam a temporalidade cosmopolita. O
impulso para corrigir um erro percebido, ou para escrever um capítulo ausente é
também uma busca de conhecimento renovado. Uma faceta do cosmopolitismo,
escreve o filosofo ganês Kwame Anthony Appiah, "é o que os filósofos chamam
de falibilismo, a sensação de que nosso conhecimento é imperfeito, provisório,
sujeito a revisão em face de novas evidências" (APPIAH, 2006, p. 16). A
experiência de revisão é central para a carreira de Grace em The headstrong historian, não só em sua
pesquisa histórica, mas também na revelação do vazio: o processo gradual pelo
qual Grace repensa sua própria educação.
Essa
invocação envolve Grace nos anos ambivalentes, muitas vezes turbulentos, de
ambos os lados da independência nigeriana. Aqui, o passado é reativado e
revisto por seus absurdos e tragédias, pelas suas lições potenciais e por suas
possibilidades. Grace, a historiadora cabeça dura, olha para frente olhando
para trás. Para chegar ao amálgama do presente, no entanto, é necessário rever
os sinais - os discursos, os outros mundos.
Recordando as estranhezas de sua educação inicial, a
descaracterização dos nigerianos, os termos incompreensíveis de livros
didáticos como "dentes de leão", Grace desenha uma visão crítica de
refletir, com uma certa distância do mundo em que ela foi criada. Da mesma
forma, as distorções da vida universitária pré-independência na Nigéria, onde a
história africana é vista como um assunto irrelevante, produzem em Grace a
determinação de definir quem ela é em seus próprios termos: “It
was Grace who would begin to rethink her own schooling - how lustily she had
sung, on Empire Day, ‘God bless our Gracious King. Send
him victorious, happy and glorious. Long to reign over us.”[8]
Recordar
a repetição inquestionável desse hino, uma memória sujeita a escrutínio na
idade adulta, não é simplesmente reconsiderar um hábito juvenil com a vergonha
ou insight fornecido pela idade. A
canção fala de uma superestrutura política. Procurando em seu passado, Grace
descobre que as canções cantadas, as odes ao Império, soam dissonantes. A
revelação é impressionante: o que foi aprendido de coração tem de ser
desaprendido pela mente. O que foi dado como certo tem de ser desmontado. É
somente dentro dessas memórias ressurgentes, que também representam a colisão
dos marcos de referência colonial e nigeriano, que uma nova história pode ser
imaginada.
Para
uma mulher curiosa, que passa a vida entre livros e artigos acadêmicos, Grace é
pragmática: sua justiça encontra uma voz em textos de história e recomendações
de políticas claras. Ao longo de sua carreira, a conexão de Grace com Nwamgba,
que representa uma visão enraizada, talvez idealizada do passado, é uma
presença duradoura e inspiradora. Dirigindo-se de volta para uma visita a seu
pai envelhecido, Grace seria assombrada pela imagem de uma aldeia destruída e
iria para Londres, Paris e Onicha, peneirando arquivos mofados, reimaginando as
vidas e cheiros do mundo de sua avó, para o livro que ela escreveria chamado Pacifying with bullets: A reclaimed history
of Southern Nigeria.[9]
Com
seu título estridente, Grace toma posse da história da Nigéria e reintegra
Nwamgba, que de outra forma teria sido esquecida, juntamente com sua poesia de
pergunta e responde. Mesmo que Pacifying
with bullets implique em uma certa violência, com o ímpeto das frases de
Adichie e no contexto da reconfiguração da identidade social - inclusive em
nome de figuras como Nwamgba, que ficaram para trás - a história recuperada é
também um corretivo triunfante. Para utilizar o termo de Bhabha, Grace é uma
"cosmopolita vernácula”, aquela que "faz um encontro com a tradução
cultural como um ato de sobrevivência e cujas histórias específicas e locais,
muitas vezes ameaçadas e reprimidas, são inseridas” (BHABHA, 2000, p. 139).
Nos
últimos anos de sua vida, Grace, sentindo-se "um velho
desarraigamento", vai para o tribunal em Lagos e muda seu nome para
Afamefuma “My Name Will Not Be Lost”. Com esse ato decisivo de recuperação
pessoal, Grace procura resolver a tensão de viver em e através de épocas de
mudança e distorção, estabelecendo-se afirmativamente sobre um nome do passado
e trazendo esse mesmo nome para o futuro. Esse futuro é intelectual. Seus
livros, seus relatórios para organizações internacionais são sua procriação.
Inspirada pela poesia de sua avó, mas perturbada pelas lacunas na história da
Nigéria, ela encontrou sucesso na academia.
Em The headstrong historian, um mundo é
restaurado. Ou, se não um mundo, Adichie oferece um texto para construir mundos
novos. Tal texto é o produto de uma visão de mundo afropolita. Anunciado pelo
ritmo do penúltimo parágrafo, The
headstrong historian, tendo percorrido praticamente toda a vida de Grace,
retorna a Nwamgba. Naquele dia, quando Grace visita a avó no leito de morte,
ela "was not contemplating her future. She simply held her grandmother’s hand, the palm
thickened from years of making pottery.”[10]
Nessa
conclusão emocionante, Adichie propõe uma visão de Grace e Nwamgba como idosas
ao mesmo tempo. Conectadas pelos fios da memória, e após o longo recital do
despertar de Grace, é impossível não imaginar esta frase entregando
simultaneamente duas dimensões do tempo: primeiro, a ação física da visita de
Grace como uma adolescente; em segundo lugar, em seus anos mais velhos, a
imagem indelével que Grace carrega de Nwambga e de si mesma. Essa imagem não
recua na história. É o material da história. A temporalidade afropolita habita
esse espaço entre realidades vivas e visões lembradas, entre os impulsos da
vida contemporânea e a orientação dos antepassados. The headstrong historian, portanto, ilustra como, na confluência de
múltiplas gerações em um país onde as versões disputadas da história nacional
são contadas e recontadas, um nome não é perdido e, uma voz nova, mas de alguma
forma reconhecível, pode ser ouvida.
O
lugar na fronteira, o estar fora de lugar são espaços em que Adichie habita.
Entendemos que sua intelectualidade é atravessada por encontros, convergências
e é também marcada pelo fato de ela ser uma mulher negra africana. O continente
africano tem produzido as mais variadas histórias tão diversas quanto as
múltiplas nações que o compõe. Dessa maneira, percebemos que qualquer estudo
sobre a África precisa estar atento aos perigos das universalizações.
Compreendemos que a ideia de uma suposta autenticidade africana não se sustenta
perante todo imaginário que circunda a vivência em África do mesmo modo que
concluímos que, as identidades africanas estão em constante fluidez.
REFERÊNCIAS:
ADICHIE,
Chimamanda. The Danger of a Single Story. TEDTalks.
2012.Disponível em: < https://goo.gl/3BdPCc>. Acesso em: 22 set. 2016.
ADICHIE,
Chimamanda. The Thing around Your Neck, Fourth Estate, London, 2009.
BHABHA, Homi. The Vernacular Cosmopolitan. In:
Ferdinand Dennis and Naseem Khan (eds.), Voices of the Crossing (London: Serpent’s
Tail), 2000.
MBEMBE, Achille. Africa Modes of Self Writing. Google
Books. 2007. Disponível em:< https://goo.gl/NNkCdv> Acesso em: 19
mar.2017.
______. Afropolitanism.
Google Books.2007 Disponível em: < https://goo.gl/jAHB3C> Acesso em. 25
mar.2017.
[1] Neila Roberta é docente do
Departamento de Educação da Universidade do Estado da Bahia-UNEB-Campus XIV.
Graduada em Letras- Lingua inglesa e suas literaturas pela UNEB. É mestre em
Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e doutoranda no
Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura (UFBA). Desenvolve pesquisas
nas áreas de Literatura, Cultura, Raça/ Etnia, gênero.
[2] Histórias
importam. Muitas histórias importam. Histórias são usadas para desapropriar e
maldizer, mas histórias também podem ser usadas para empoderar e humanizar.
Histórias podem ser usadas para arruinar a dignidade de um povo, mas histórias
também podem ser usadas reparar essa dignidade perdida. (ADICHIE, 2009, Tradução nossa). Disponível em: < https://goo.gl/3BdPCc>.
Acesso em: 22 set. 2016.
[4] O professor me disse que minhas
personagens eram muito parecidas com ele, um homem educado de classe média.
Minhas personagens dirigiam carros. Elas não estavam famintas. Portanto, não
eram autenticamente africanas. (ADICHIE, 2009, tradução Nossa).
[5] Edward
roeu seu cachimbo pensativamente antes de dizer que histórias homossexuais
desse tipo não refletiam a verdadeira África.
“Que África?” Ujunwa
deixou escapar.
(…)
“Podemos, de fato,
estarmos em 2000, mas quão africano é para uma pessoa dizer a sua família que é
homossexual?” perguntou Edward.
A senegalesa desatou a
falar num francês incompreensível e, então, depois de um minuto falando sem
parar, disse: “Eu sou senegalesa! Eu sou senegalesa!” (ADICHE, 2009, p.
108, tradução Nossa)
[6] Os membros compridos de Ayaju e seu corpo de movimentos
ágeis falavam de suas viagens como vendedora; ela viajou para além de Onicha.
Foi ela quem primeiro trouxe histórias sobre os costumes estranhos dos
mercadores de Igala e Edo, a primeira a contar sobre o homem de pele branca que
chegou em Onicha com espelhos e tecidos e as maiores armas que as pessoas
daquela parte jamais tinham visto. Este cosmopolitanismo garantiu-lhe respeito
e ela era a única pessoa descendente de escravos que tinha voz ativa no
Conselho de Mulheres, a única pessoa que tinha respostas para tudo. (ADICHIE,
2009, p.204, tradução nossa)
[7] No momento que Nwangba a segurou, os olhos brilhantes da
criança se fixaram nela; ela teve certeza que era o espirito de Obierika que
tinha retornado; estranho ter vindo como uma menina, mas quem poderia prever as
vontades dos ancestrais? (ADICHIE,2009, p.214, tradução nossa)
[8] Foi Grace quem começaria a repensar sua própria
formaçao - quão lustrosamente ela cantara, no Dia do Império, 'Deus abençoe
nosso Gracioso Rei. Mande-o vitorioso, feliz e glorioso, para por muito tempo
reinar sobre nós. (ADICHIE, 2009, pp. 216-17, Tradução Nossa)
[9] Pacificar
com Balas: Uma História Reclamada do Sul da Nigéria. (ADICHIE, 2009, p.217, tradução nossa)
[10] Não estava contemplando seu futuro. Ela
simplesmente segurou a mão de sua avó, a palma engrossada por anos de fazer
cerâmica. (ADICHIE, 2009, p.218, tradução nossa)
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