Casper Tybjerg
Universidade de Copenhague
Tradução de Yves
São Paulo
Doutorando em Filosofia. Editor da Revista Sísifo.
Still do filme A palavra, de C. Th. Dreyer. |
Resumo
O livro Transcendental Style in Film, escrito em 1972 pelo
futuro diretor de cinema Paul Schrader, oferece talvez a mais extensiva análise
de como um estilo particular de filme pode ter uma significância religiosa
específica. O artigo provê uma discussão crítica da teoria de Schrader, com
foco particular nos filmes de Carl Th. Dreyer. As ideias de Schrader são
comparadas a explicações alternativas das mesmas características estilísticas
feitas por autores como David Bordwell e Torben Grodal. O artigo conclui que
enquanto Schrader identifica um número pertinente de características
estilísticas, o “filme transcendental” é mais bem compreendido como subconjunto
dos filmes de arte. A descrição de Torben Grodal dos entrelaçamentos entre o
efeito de um estilo saliente (e por vezes abstrato) e o conteúdo temático
indicativo de maior significância, casado com a contribuição de um espectador
bem disposto, é, o artigo argumenta, mais plausível que a análise de Schrader.
Palavras-chave:
Carl
Theodor Dreyer; Paul Schrader; Religião e filme; Estilo transcendental; Estilo
fílmico; Teoria cognitiva de cinema.
Abstract
The book Transcendental Style in Film, written
in 1972 by future film director Paul Schrader, offers perhaps the most
extensive analysis of how a particular film style might have a specifically
religious significance. The article provides a critical discussion of
Schrader’s theory, with a particular focus on the films of Carl Th. Dreyer.
Schrader’s ideas are compared to alternative explanations of the same stylistic
features provided by David Bordwell and Torben Grodal. The article concludes
that while Schrader Identifies a number of pertinent stylistic features, the
‘transcendental film’ is better understood as a subset of the art film mode.
Torben Grodal’s description of the intertwined effect of a salient (often
abstract) style and thematic content indicative of higher meaning, coupled with
the contribution of a suitably disposed spectator, is, the article argues, more
plausible
than Schrader’s analysis.
Keywords
Carl Th. Dreyer; Paul Schrader; religion and film;
transcendental style; film style; cognitive film theory
É baseado em seu conteúdo que filmes
são normalmente descritos como “religiosos” – são chamados de religiosos porque
apresentam histórias bíblicas ou outras narrativas onde o divino ou o
sobrenatural aparece diretamente; histórias sobre santos, padres ou outras
figuras divinas; ou contos morais, onde uma doutrina religiosa é mais ou menos
apresentada. É desta forma que André Bazin divide os filmes religiosos entre
filmes bíblicos, filmes sobre santos e filmes sobre padres e freiras em um
importante ensaio de 1951, “Cinema e teologia” (BAZIN, 2002). Mas o ensaio de
Bazin também argumenta a respeito da significância do estilo em tais filmes.
Apesar do exemplo de Bazin, autores posteriores tenderam a negligenciar a
dimensão estética, como escreve Melanie Wright em sua recente introdução ao
tema, em Religion and Film: “Tipicamente, a dimensão narrativa dos
filmes estudados é enfatizada com pouca atenção à mise-en-scène [...],
fotografia, edição ou som” (WRIGHT, 2007, p. 21). De acordo com este
pensamento, o grande diretor dinamarquês Carl Th. Dreyer é identificado como um
diretor “religioso” por ter feito filmes sobre santos ou filmes sobre milagres:
A paixão de Joana D’Arc (1928), A palavra (1955).
Existem outros escritores, contudo, que
exploraram com grande amplitude a dimensão estética dos filmes religiosos. Tais
autores tendem a argumentar que há um conjunto específico de estilos
apresentados particularmente apropriados para temas religiosos. O mais
proeminente deles talvez seja Paul Schrader. Em seu livro Transcendental
Style in Film: Ozu, Bresson, Dreyer (SCHRADER, 1972), Schrader sugere que o
estilo de cada destes três diretores pode, com efeito, manifestar o divino.
Esta afirmação vai de encontro à ideia de um efeito particular não podendo ter
significado baseado unicamente em suas características inerentes, e por esta
razão em especial, o livro de Schrader vale a pena de ser examinado mais de
perto. Ao fazê-lo, focarei especificamente nos filmes de Dreyer, não apenas
porque eles são claramente importantes para a discussão da existência dos
estilos de filmes particularmente religiosos ou espirituais, mas também porque
penso que eles melhor ilustram tanto as forças quanto as fraquezas das
concepções de Schrader. Devo concluir que enquanto Schrader identifica um
número pertinente de características estilísticas, o “filme transcendental” é
melhor compreendido como uma variante do filme de arte; ao argumentar a este
favor, estarei me aproximando da obra teórica de Torben Grodal, que mostra como
estes filmes combinam procedimentos de tema e estilo para criar a impressão de
“significado superior”, convidando, ou ao menos facilitando, interpretações
religiosas.
Os “terríveis cromolitógrafos” de Dreyer
Schrader faz uma distinção precisa
entre os filmes do estilo transcendental e os filmes mais convencionais que
apresentam temas religiosos. Como o próprio Schrader pontua, filmes religiosos
são feitos desde o princípio do cinema, mas ele dispensa quase todos eles
porque seu estilo não é capaz de render uma manifestação de verdadeira
espiritualidade. Seria interessante ouvir o que ele teria a dizer a respeito do
único filme bíblico realizado por Dreyer, seu segundo filme, Blade af Satans
Bog/Leaves from Satan’s Book (1919). Este filme é dividido em quatro
partes, acontecendo em quatro épocas distintas. Em cada época, Satã, ordenado
por Deus para tentar a humanidade a pecar, tenta manipular a vulnerabilidade
individual dos sujeitos a cometer atos errôneos. O primeiro dos episódios
mostra Judas traindo Jesus, começando logo depois da última páscoa judaica e
terminando com a prisão de Jesus. Schrader, contudo, não menciona este filme em
momento algum, provavelmente por não tê-lo visto.
Esta seção bíblica de Leaves from
Satan’s Book exemplifica uma característica estilística que tem sido
persistente em filmes bíblicos: o uso de famosas obras artísticas devocionais
dos grandes mestres da arte ocidental como modelo para as imagens fílmicas.
“Todos os filmes [sobre Jesus] se influenciam profundamente em obras familiares
da arte ocidental”, escreve Adele Reinhartz (2007, p. 7) em seu excelente
livro, Jesus in Hollywood, que apesar de seu título, inclui filmes
europeus. Reinhartz faz apenas uma menção superficial de Leaves from Satan’s
Book, mas seus apontamentos são certamente válidos também para esse filme.
A cena da última ceia, em particular, usa os arranjamentos bem conhecidos da
obra de Leonardo da Vinci: Jesus e seus discípulos estão sentados ao longo de
cumprida mesa alocada em paralelo com o plano, com Jesus no meio. Apesar disso,
existem várias diferenças; Dreyer não estava contente em apenas imitar a famosa
pintura de Leonardo, por isso buscou outras variações. Uma nota manuscrita
presente em sua cópia pessoa do roteiro, conservada no Instituto de Cinema
Dinamarquês, também se refere a versões da cena pintadas por Ghirlandaio (em
torno de 1480) e Eduard von Gebhardt (1870).
Dreyer apresenta uma iconografia
familiar, mas com algumas variações interessantes. Mesmo assim, Dreyer mais
tarde criticaria fortemente a sua própria obra. Em 1935, o diretor francês
Julien Diviver fez o sombrio e ambicioso Gólgota, o primeiro grande
filme sonoro sobre Jesus, focando sua paixão. Quando lançado na Dinamarca, o
diretor A. W. Sandberg, que escrevia críticas na época, foi muito crítico da
realização e sugeriu que Leaves from Satan’s Book era um filme sobre
Jesus superior. Comparado a cena da última ceia de Duvivier, Dreyer
alcançou uma atmosfera
muito mais poderosa na mesma situação com o filme Leaves from Satan’s Book;
lá, tanto os tipos dos apóstolos, suas performances, a composição, o set, até
mesmo a fotografia estavam de melhor acordo com o espírito do material.
(SANDBERG, 1935).
Dreyer imediatamente escreveu uma carta
a Sandberg (que mais tarde ele citaria em entrevista em 1954) onde dispensava
seus próprios esforços, agradecendo a Sandberg, mas insistindo que os elogios
eram completamente injustificados.
Devo definitivamente
protestar contra esta colocação. Não vi o filme de Duvivier, mas conheço o meu
próprio, dois terços do qual são pilhas e mais pilhas de excessos. O episódio
de Cristo era o pior: uma terrível coleção de cromolitografias. Sou completamente
contrário à revitalização destes tipos de erros de seu merecido esquecimento.
(DREYER, 1954).
Esta atitude desdenhosa com relação ao
imaginário tradicional não é, de modo algum, exclusiva a Dreyer. De fato, ela é
compartilhada por Schrader, pelos críticos franceses influenciados por André
Bazin, como pelo próprio. Bazin gentilmente dispensa filmes bíblicos como sendo
“simplesmente variações amplificadas das Estações da Crucificação no Musée
Grévin” (BAZIN, 2002), isto é, imagens devocionais de igrejas e exibições de
peças de cera.
Mais recentemente, o tradutor de Bazin,
Bert Cardullo publicou um artigo fortemente crítico d’A Paixão de Cristo
(2004), de Mel Gibson, que ele acredita exemplificar a inescapável, patente
inautenticidade dos filmes religiosos visualmente espetaculares:
O requerimento
fundamental de um estilo espiritual autêntico, ou com alguma significância
religiosa, é de que seja fundamentado em simplicidade naturalista, até mesmo
abstração – não em pirotécnica em widescreen do tipo que pode ser encontrada
naqueles épicos de areia-e-sandália como Quo Vadis? (1951), Os dez
mandamentos (1956), e Ben Hur (1959).
O espírito, afinal de
contas, reside intrinsecamente – é uma convicção interna – não um truque
externo ou “efeitos especiais”. (CARDULLO, 2005).
Em Trancendental Style in Film,
Paul Schrader tomou semelhante posição e seu livro apoia tais pensamentos com
reivindicações sobre a própria natureza do cinema. O argumento é baseado na
diferença entre dois tipos de meios [means] artísticos, meios
“abundantes” e meios “esparsos”. Estes termos vêm do filósofo católico francês,
Jacques Maritain (1882-1973). Em seu livro curto, Religion et Culture
(1930), ele traça a distinção entre dois tipos de bons trabalhos: aqueles que
sustentam a existência física e aqueles que sustentam o espírito. Porque o
primeiro necessita de recursos tangíveis, Maritain os chama “meios temporais
ricos” (“moyens temporels riches”); e porque o segundo aumenta a efetividade ao
se desfazer de recursos materiais, ele os chama de “meios temporais pobres[esparsos[1]]” (moyens temporels
pauvres”). Ainda que ambos sejam necessários, é evidente que o primeiro deve
eventualmente servir ao segundo, o mais importante: “o meio abundante mantém o
corpo vivo para que o meio pobre possa elevar a alma” (SCHRADER, 1972, p. 154).
Schrader começa explicando que a
distinção também se aplica à arte; aqui, o meio abundante mantém os
espectadores engajados, enquanto o esparso, novamente, eleva suas almas:
Os meios abundantes em
arte [...] são sensuais, emocionais, humanísticos, individualistas. São
caracterizados por linhas suaves, retratos realistas, profundidade,
experimentação; encoraja empatia. [...] Os meios esparsos são frios,
formalistas, hieráticos. São caracterizados pela abstração, retrato estilizado,
superficialidade, rigidez; encorajam respeito e apreciação. (SCHRADER, 1972, p.
155)
Filmes parecem estar mais próximos da
vida que as outras artes, mostrando pessoas reais se movimentando em tempo
real, e é preciso, por sua própria natureza, sobrecarregar o privilégio dos
meios abundantes: “de todas as artes, penso que o cinema é aquela mais difícil
de ser utilizada de maneira espiritual, porque é tão cinética, tão visceral”,
Schrader disse a um entrevistador (ASIKA, 2002). Similarmente, em sua
introdução em vídeo à edição em DVD ao filme Batedor de carteiras
(1959), de Robert Bresson, ele disse:
Cinema não é uma mídia
muito espiritual, e se você quer transmitir transcendência ou quietude, o
cinema realmente não é para você. Porque filme é a realidade filmada, são
imagens, e suas imagens estão se movendo no tempo real, então o que é bom nele
é empatia, evocar emoções e, é claro, movimento, de tal maneira que realismo
psicológico é o forte do meio fílmico, sendo ação sua grande cartada.
(SCHRADER, 2005).
O filme religioso convencional depende
da emoção, ação e identificação: “Por uma ou duas horas, o espectador se
transforma naquela pessoa santa a sofrer na tela; seus problemas pessoais,
culpa e pecado são absorvidos em motivos humanos, nobres e purificadores”
(SCHRADER, 1972, p. 164). Mas a experiência que tais filmes fornecem ao
espectador não é espiritualmente autêntica; não eleva o espectador ao nível do
sagrado, diminuindo o sagrado ao nível em que se encontra o espectador.
O entendimento de Schrader a respeito
do sagrado provém em sua maior parte do teólogo alemão Rudolf Otto, cujo livro
de 1917, The Idea of the Holy: na inquiry into the Non-Rational Factor n the
Idea of the Divine and its Relation to the Rational, exerceu grande
influência nos estudos de religião. Otto descreve sagrado como “das ganz
anderes”, o completamente diferente. Está completamente além do mundano; não
pode ser tomado pela razão humana, e não pode ser definido, aprendido ou
propriamente descrito. Isso pode apenas ser sugerido através de respostas
emocionais produzidas. Este mistério inexpressivo, este “Algo inominado”, é a
essência da religião. “Não existe religião onde isto não viva no mais profundo
de seu âmago, e sem isto nenhuma religião seria digna do nome” (OTTO, 1958, p.
6).
Enquanto este “completo diferente”, o
“Transcendente”, não pode ser circunscrito pela mente humana, ele pode ser
experimentado, uma experiência que Schrader se refere como sendo
“transcendência”, - e é possível que atos humanos e seus artefatos sejam
“transcendentais”, para expressar ou refletir ao menos parte de seu significado
(SCHRADER, 1972, p. 5). Como Schrader seguirá por afirmar, falar de “arte
transcendental” – arte que “expresse o Transcendente num espelho humano” – implica
numa equivalência entre arte e religião: “Transcendência é a experiência
imperativa; arte e religião são manifestações gêmeas” (SCHRADER, 1972, p. 5-6).
E Schrader abraça essa equivalência na primeira página de seu livro, escolhendo
como epigrama uma citação do teólogo holandês Gerardus van der Leeuw, o
fundador da fenomenologia da religião: “Religião e arte são linhas paralelas
que intersectam apenas no infinito e se encontram em Deus” (SCHRADER, 1972).
A ideia de um estilo transcendental
Ao argumentar que certos filmes são, de
fato, arte transcendental e, portanto, podem, com efeito, funcionar como um
tipo de religião alternativa, poderia parecer que Transcendental Style in
Film (1972) nasceu do desencanto de Schrader com a religião organizada e a
consequente perda de fé de seu autor. Um entrevistador apontou que o livro
“oferece uma impressão de ser o trabalho de alguém que ainda é um crente”, ao
que Schrader respondeu:
Mas um crente em
espiritualidade, não um crente em qualquer noção sectária de Deus. Eu não era
mais membro de minha igreja e crente em suas doutrinas. [...] O que me
aconteceu foi que religiões desta natureza são realmente instituições sociais,
não instituições espirituais, e que espiritualidade era apenas um adjunto
ocasional de suas funções econômicas e sociais. (JACKSON, 1990, p. 28)
Não é surpreendente que Schrader abrace
as considerações fenomenológicas da religião oferecidas por Otto e van der
Leeuw, onde os aspectos institucional, social e mesmo moral da religião ficam
no banco dos fundos da experiência individual de espiritualidade.
Schrader identifica o estilo de criação
fílmica que ele acredita mais próximo de oferecer este tipo de experiência
espiritual como “estilo transcendental”. Em filmes que contam com o estilo
transcendental, normalmente elementos significantes como “trama, atuação,
figurino, trabalho de câmera, música, diálogo, edição” são todos
“não-expressivos”, escreve Schrader, continuando: “o estilo transcendental estiliza
a realidade ao eliminar (ou quase eliminar) aqueles elementos que são
primariamente expressivos da experiência humana, assim roubando as
interpretações convencionais da realidade de sua relevância e poder” (SCHRADER,
1972, p. 11).
Esta estilização procede em três passos
progressivos ao longo do filme, durante o qual os meios abundantes são
consequentemente trocados pelos meios esparsos. O primeiro passo é o chamado “cotidiano”:
filmes com o estilo transcendental apresentarão “uma representação meticulosa
do maçante, dos lugares-comuns banais da vida cotidiana” (SCHRADER, 1972, p.
39). Há pouca construção de crescimento dramático, porque os eventos e ações
que vemos não realmente levam a lugar algum; elas ocorrerão novamente
aproximadamente da mesma maneira, outro dia. A psicologia das personagens é
submersa numa rotina onde nenhuma ação particular parece mais importante que a
outra. A potencial empatia do espectador com as personagens é retida, e “ser
esparsa” é alcançada ao “gradualmente roubar os meios abundantes de seu
potencial” (SCHRADER, 1972, p. 160).
Estas características parecem se
encaixar melhor nos filmes de Bresson que nos filmes tanto de Dreyer quanto nos
de Ozu; certamente me soa estranho dizer que as personagens de Ozu “parecem ser
autômatos” (SCHRADER, 1972, p. 44); esta descrição pode parecer mais apropriada
às personagens de Dreyer de Gertrud (1964), com seus movimentos
controlados e lentos, hieráticos padrões de fala, mas Schrader não considera
esse como sendo um exemplo de estilo transcendental. Também parece difícil de
afirmar que a psicologia das personagens é eliminada dos filmes de Dreyer, e
Schrader reconhece este ponto; mas argumenta que a forma como os planos longos
de A palavra permitem “o tempo para a personagem caminhar toda a
distância de um cômodo e engajar numa conversação sem um corte” é um exemplo
característico de técnica pertencente ao “cotidiano”: “ao sub-rogar as
qualidades empáticas da vida natural e formalizando os detalhes factuais, o
cotidiano cria uma fria estilização” (SCHRADER, 1972, p. 133).
O segundo passo é “disparidade”.
Isto imerge porque o espectador gradualmente “sente que há sentimentos
profundos, inexplorados logo abaixo da superfície” (SCHRADER, 1972, p. 44). A
profundidade e força destes sentimentos parecem incompatíveis com a “fria e
esparsa estilização” da superfície do filme (SCHRADER, 1972, p. 161). Isto
provoca um sentimento de incômodo no espectador. A figura de Johannes em A
palavra é, na perspectiva de Schrader, exemplar a este respeito: Johannes é
uma personagem “que não tem qualquer causa psicológica (interna ou externa)
para sua paixão alienada”; e algo de similar poderia ser dito a respeito de
Joana d’Arc. (SCHRADER, 1972, p. 120). Particularmente na Paixão de Joana
d’Arc, esta disparidade é reforçada pela estilizada tensão entre os
“cenários naturalistas” e o “posicionamento e ângulo da câmera artificiais”
(SCHRADER, 1972, p. 120). Eventualmente, o crescente senso de disparidade culmina
numa “ação decisiva”:
Uma ousada chamada
para ação que dispensa qualquer pretensão de realidade cotidiana. A ação
decisiva quebra a estilização do cotidiano; é um evento incrível dentro da
realidade banal que deve ser tomado pela fé. Em sua forma mais drástica, como
em A palavra, de Dreyer, esta ação decisiva é um milagre, a ressurreição
do morto. Em suas formas menos dramáticas, ainda assim não deixa de ser menos
miraculoso: um evento emocional, não-objetivo, dentro de um ambiente factual desprovido
de emoção. [...] O cotidiano denigre as emoções do espectador, mostrando que
elas não serviam, numa disparidade que primeiro excita estas emoções, sugerindo
que talvez viesse a encontrar espaço para elas, e então em sua ação decisiva de
repente e inexplicavelmente demandando do espectador um completo resultado
emocional. (SCHRADER, 1972, p. 46-47).
Ainda que Schrader veja o milagre em A
palavra como sendo “uma ação decisiva por excelência”, penso que é de algum
modo enganoso dizer que ela seja tanto inesperada ou implausível (SCHRADER,
1972, p. 134). O diálogo referencia constantemente a milagres, e a presença de
uma figura semelhante à de Cristo como a de Johannes também ajuda a sugerir que
um milagre seja possível; mais ainda, poucas pessoas vão assistir A palavra
sem saber que o filme termina na culminação de um milagre – mesmo quando o
filme foi lançado, espectadores dinamarqueses, ao menos, estavam bem cientes do
final: a peça, afinal, era uma das peças mais bem conhecida de Kaj Munk, na
época a figura literária mais famosa da Dinamarca por conta de seu assassinato
pelas mãos da Gestapo durante a ocupação nazista.
Em segundo lugar, enquanto milagres são
inerentemente implausíveis, toda a construção do filme é feita de tal maneira a
superar esta impossibilidade. Numa nota ao final do roteiro, Dreyer escreve que
os espectadores devem gradualmente e cuidadosamente ser colocados num estado
emocional semelhante aquele de convidados de um funeral.
Uma vez trazidos a
esta condição de reverência e introspecção, mais facilmente se deixarão ser
induzidos a acreditar no milagre – pela única razão de que eles, sendo forçados
a pensar na morte, também sejam levados a pensar em sua própria morte, e
portanto (inconscientemente) esperar por um milagre, abandonando sua atitude
normal de ceticismo. (DREYER, 1964, p. 294).
Além disso, Inger, a mulher que é
trazida da morte, é uma personagem criada por Dreyer de forma tão viva, tão
carinhosa e cheia de bondade, tão importante para a felicidade de todos os
outros, que sua morte parece profundamente injusta e difícil de aceitar,
criando forte desejo emocional nos espectadores para que um milagre venha a
acontecer, não importando o quão inclinados estejam eles a acreditar na
impossibilidade de tal coisa vindo a acontecer.
O terceiro passo no progresso é “êxtase”
[stasis]. Na visão de Schrader, o não merecido, a característica arbitrária de
um ato decisivo – o modo como uma repentina onda emocional ocorre sem uma
justificação dramática ou psicológica – cria a contradição que não pode ser
resolvida, “o paradoxo do espírito existindo dentro do físico” e o espectador
devendo aceitar (ou rejeitar) “uma visão da vida que não pode abrigar a ambas”
(SCHRADER, 1972, p. 82). Êxtase [Stasis] continua; é uma cena congelada ao
final do filme, que “representa o ‘novo’ mundo em que o espiritual e o físico
não podem coexistir, ainda em tensão não resolvida, mas sendo parte de um
esquema maior na qual todo fenômenos é mais ou menos expressão de uma realidade
maior – o Transcendente” (SCHRADER, 1972, p. 83). Como exemplo, Schrader evoca
o plano, de mais de meio minuto de duração, da estaca nua e carbonizada depois
da morte de Joana ao final de O processo de Joana d’Arc (Robert Bresson,
1962); a estaca é “ainda uma entidade física, mas também é a expressão
espiritual do martírio de Joana” (SCHRADER, 1972, p. 83).
Em uma entrevista posterior, Schrader
resume a hipótese dos três passos do estilo transcendental de forma mais
sucinta:
O todo da hipótese do Estilo
Transcendental é de que se você reduzir sua ciência sensual rigorosamente e
por um bom tempo, a vontade interior irá explodir e irá ser pura porque não
será desviada por identificações fáceis ou explorativas; será refinada e comprimida
em direção a sua verdadeira identidade, o que Calvino chama de sensos
divitatus, o senso divino. (JACKSON, 1990, p. 28-29)
Como uma interpretação dos filmes de
Robert Bresson, novamente, parece ser uma afirmação bastante razoável, e
Schrader é capaz de mantê-las com citações extensivas de suas entrevistas.
Contudo, a hipótese de Schrader não
cabe aos dois outros diretores tão aproximadamente. Enquanto os filmes de Ozu
com frequência terminam em quietude, a afirmação de que esta seria uma
expressão do Transcendente, um estado espiritual, depende de uma compreensão do
Zen e da cultura japonesa que acadêmicos mais recentemente têm sido relutantes
em assumir. David Bordwell escreve em seu gigantesco estudo sobre Ozu que
“qualquer uso do Zen em Ozu é indireto, menos ainda se podendo dizer que é
diretamente religioso, sendo mediado por práticas históricas aproximadas”
(BORDWELL, 1988, p. 29).
Uma consideração crítica a esse
respeito pode ser encontrara no livro de Mitsuhiro Yoshimoto sobre Kurosawa.
Schrader, escreve Yoshimoto, “tenta dispensar qualquer coisa que não confirme a
imagem de Ozu como sendo um artista Zen” (YOSHIMOTO, 2000, p. 13). Schrader usa
Zen como uma palavra mágica para resolver qualquer contradição colocada pelo
amplo apelo do Japão nos filmes de Ozu – um apelo que poderia ser inexplicável
se os filmes suprimissem a identificação emocional do jeito que a teoria
requer. Ao invés disso, Schrader diz que “o conceito de experiência
transcendental é tão intrínseco à cultura japonesa (e oriental), que Ozu foi
capaz de tanto desenvolver o estilo transcendental quanto de se manter nas
convenções populares da arte japonesa” (SCHRADER, 1972, p. 17). Esta é apenas
uma tentativa transparente de não ter somente o passarinho na gaiola como
também pegar os passarinhos a voar, argumenta Yoshimoto; e é além disso baseada
numa concepção estereotipada do “oriental” como sendo naturalmente espiritual.
Estilo sem transcendência
Schrader reconhece que existem
dificuldades ainda maiores em descrever o estilo de Dreyer como sendo
transcendental. Não somente existem diferenças estilísticas consideráveis entre
os filmes de Dreyer, há também o fato de que nenhum de seus filmes aplica o
estilo transcendental do começo ao fim. Dreyer, escreve Schrader, “nunca foi capaz
de atingir o êxtase [stasis], o teste final da arte transcendental, no nível
alcançado por Ozu e Bresson porque, me parece, ele nunca se inclinou ao estilo
transcendental que os outros dois fizeram” (SCHRADER, 1972, p. 120). O levante
do povo ao final e A paixão de Joana d’Arc e a afirmação da vida ao
final de A palavra se afastam do reino do Transcendente, permanecendo no
mundo humano. Para os estudiosos de Dreyer, obviamente, isto limita o uso do
modelo de Schrader. Mesmo assim, sua análise identifica um número significante
de características estilísticas e provê uma sugestiva explanação de suas
funções.
É interessante comparar com uma análise
bem diferente das mesmas características encontrada no livro de David Bordwell Narration
in the Fiction Film (1985). Aqui, Bordwell descreve diferentes “modos” de
narração de filmes de ficção. Um deles é a narração paramétrica, que é uma
forma relativamente rara; sua característica principal é que certos padrões
estilísticos não são subordinados à demanda da narrativa, operando
“sistematicamente [...] ao longo do filme” de acordo com seus próprios
“princípios distintos” (BORDWELL, 1985, p. 281). Como exemplo, Bordwell
menciona o filme Viver a vida (1962), de Jean-Luc Godard, que é dividido
por intertítulos numerados de doze episódios. “Ao nível do estilo visual, cada
seguimento é caracterizado por uma ou mais variantes de possíveis relações
entre câmera/sujeito [subject]” (BORDWELL, 1985, p. 281). O ponto de Bordwell é
de que tais padrões estilísticos não precisam ser motivados “por considerações
temáticas apelativas”; ao invés disso, como na arte abstrata, “o significado
representacional pode ser diminuído ou retido, e uma ordem perceptual pura pode
ser fortemente recortada” (BORDWELL, 1985, p. 283). O sentido da ordem é o seu
próprio propósito.
Para que estes padrões fiquem visíveis,
o filme deve estabelecer um conjunto de parâmetros para variações estilísticas,
para que eles se tornem perceptíveis contra um pano de fundo estável. Bordwell
encontra duas estratégias bastante diferentes para isto acontecer. Uma, ele
chama de “repleto”, é exemplificado por Viver a vida: as “sequências bem
articuladas” desse filme “permitem uma clara comparação de opções
paradigmaticamente diferentes ao nível de estilo” – cada segmento usando um
estilo muito diferente para apresentar um sentido similar (BORDWELL, 1985, p.
285). A outra opção é chamada por Bordwell de “ascética” ou “esparsa”, na qual
o filme limita sua norma a um alcance restrito de procedimentos que são
codificados por normas extrínsecas”; isto é, o alcance das escalas de planos,
ângulos de câmera ou composições empregadas pode ser drasticamente limitada em
comparação com o cinema mainstream – Bresson, por exemplo, “fica
confinado ao uso contínuo do plano-médio, frequentemente de partes do corpo”
(BORDWELL, 1985, p. 185).
Os principais praticantes desta
abordagem esparsa terminam por ser os mesmos três diretores que Schrader
discute em seu livro: Bresson, Ozu e Dreyer, ainda que Bordwell também adicione
Mizoguchi e (em parte) Tati. Vale a pena apontar que Bordwell considera os
modelos de narração descritas por ele, incluindo a paramétrica, como
“transcendendo gêneros, escolas, movimentos, e cinemas nacionais” (BORDWELL,
1985, p. 150). Isto é muito semelhante à suposição de Schrader de que há
“formas artísticas de representação comuns compartilhadas por culturas divergentes”
(SCHRADER, 1972, p. 9). O estilo transcendental que ele descreve é, claro, uma
destas formas.
Bordwell
nunca se refere a Schrader em seu Narration in the Fiction Film. Ele
não partilha do interesse de Schrader por espiritualidade, e sua discussão sobre
o filme paramétrico enfatiza que sua “riqueza de textura [...] resiste a
interpretação”; querendo dizer, “em um grande sentido, não significando
– mais próximo da música do que da novela” (BORDWELL, 1985, p. 289, 306).
Ainda, Bordwell reconhece que este tipo de ordem sem significado “atormenta” os
espectadores (BORDWELL, 1985, p. 305), tentando-os a projetar um esquema
interpretativo em padrões estilísticos impessoais, às vezes compreendendo-os
como sendo uma expressão da espiritualidade:
É significante que os
mais celebrados expoentes do estilo paramétrico esparso – Dreyer, Ozu,
Mizoguchi, e Bresson – sejam frequentemente vistos como criadores de filmes
misteriosos e místicos. É como se um estilo autossustentável evoluísse, em suas
pontas, eludindo a fantasmas de conotações, enquanto o espectador tenta uma
significação depois da outra numa estrutura impassível. O reconhecimento de
ordem desencadeia uma busca por significado. Esquemas não cinemáticos, com
frequência religiosos, podem assim ser trazidos como motivadores de estilo para
tais obras. (BORDWELL, 1985, p. 289).
Mas para impor tal recorte sobre
significação, para insistir que o não-significativo deveria levar a
interpretação, escurecendo os refinamentos de estruturas estilísticas, Bordwell
sugere que se deveria resistir a uma tal imposição [de buscar significado[2]].
Para fazê-lo não é fácil: a presença de
personagens humanas irresistivelmente leva os espectadores a perguntar sobre
suas histórias, ao invés de fazer uma apreciação do filme num nível puramente
abstrato; como Schrader aponta, o público “tem o impulso natural de participar
nas ações e cenários presentes na tela” (SCHRADER, 1972, p. 160). Torben Grodal
ofereceu uma análise sofisticada desse impulso e o modo como isto é manipulado
por diferentes tipos de filmes.
A premissa central da teoria de Grodal
é que o engajamento do espectador em narrativas fílmicas convencionais é
baseada numa simulação imersiva das preocupações e tendências de ação do
protagonista: “Se, por exemplo, a personagem na tela toma controle da situação
e dribla os obstáculos apresentados, então o espectador indiretamente
experimenta uma atividade motor voluntária, dirigida a objetivos” (GRODAL,
2006, p. 6). Isto não significa que haja qualquer “confusão de ego” (GRODAL,
2001, p. 117) – não nos confundimos com a personagem. Ao invés disso, “é como
se tanto o cérebro quanto o corpo fossem projetados ao mundo externo do filme”
(GRODAL, 2006, p. 5).
Por exemplo, em muitas ocasiões ao
longo de O código Da Vinci (Ron Howard, 2006), o herói Robert Langdon
(Tom Hanks) é posto sob ameaça de arma de fogo pelos vilões. Ao ver isso, os
espectadores tensionam seus músculos, simulando a prontidão a desviar da bala
ou pular em direção ao atirador. Estas ações não são necessariamente aquelas
que o espectador deverá adotar em tal situação, mas são as ações que eles
esperam que um herói de cinema adote. Como se termina por ver, o cerebral
Langdon conta muito mais com suas espertezas e boa sorte do que com força ou
agilidade para superar os vilões, soltando-se das situações que lhe ameaçam a
vida de maneira nem sempre previstas pelos espectadores. Mesmo assim, nós
indiretamente experimentamos alívio e satisfação ao emergir seguros do perigo.
Em muitos tipos de filme, contudo,
“tendências de ação como estas são bloqueadas” (GRODAL, 2006, p. 6). Isto
acontece quando as personagens se transformam em vítimas passivas de forças
para além de seu alcance, como é o caso de muitos melodramas, tragédias e
filmes de horror. Há pouco o que as personagens possam fazer, mas se suas
preocupações se tornam importantes para o espectador, ele ou ela irá experimentar
uma grande dose de pressão emocional. A realização de que as personagens não
têm poder frente as forças que os vitimam pode levar o espectador a
experimentar respostas autônomas involuntárias como chorar ou tremer ou
acompanhar emoções como pena ou medo, provendo alívio da tensão emocional
(GRODAL, 2007, p. 143-146).
Tendências de ação indiretas também
podem ser bloqueadas de outras maneiras. A realidade concreta que os filmes
narrativos tradicionais apresentam tipicamente confortam os protagonistas com
problemas práticos e não abstratos que podem ser acionados e superados por meio
de ação direta. Muitos filmes de arte, contudo, apresentam realidades que
divergem do concreto aqui-e-agora. Eles sugerem categorias amplas, abstratas ou
níveis de significação que existem apenas de forma desencarnada, como
“Humanidade” ou “Amor” ou, até mesmo, “o Transcendente”; elas podem enfatizar
memórias ou sonhos, estados de realidade que não são aqui-e-agora; ou, como uma
terceira opção, elas podem apresentam um aqui-e-agora sem realçar aqueles
aspectos do que possuem uma relevância pragmática aos objetivos do
protagonista, sugerindo ao invés disso um “fluxo de percepção” indiferenciado –
a vida observada ao invés de participação nos eventos da vida (GRODAL, 2000,
36, 47).
Estas diferentes maneiras de engajar os
espectadores estão frequentemente conectadas a diferenças na saliência do
estilo. Em filmes do mainstream como O código Da Vinci, “o estilo
serve para dar textura às ações concretas e suas emoções correlatas” (GRODAL,
2000, p. 36). Espectadores, portanto, frequentemente não percebem a
orquestração estilística das cenas; como Stephen Prince aponta, citando
diversos estudos empíricos, “espectadores tendem a atribuir detalhes de estilo
a áreas de conteúdo, assimilando-as em seus esquemas pré-existentes de
personagem e situação” (PRINCE, 2006, p. 21). Contudo, em alguns tipos de
filmes – particularmente filmes de arte – o estilo é usado de tal maneira que a
atenção do espectador é direcionada para que se torne “saliente” ao espectador
sem que fique muito fortemente ligado à história. De acordo, diferente das
características estilísticas em filmes mainstream, este estilo saliente
não pode “ser plenamente transformado em informação para a história”:
Características
estilísticas, portanto, ativam sentimentos e emoções indicando “significado”
que não pode ser plenamente conceituado pelo espectador. O espectador,
portanto, tem um sentimento/uma emoção de que deve haver algum significado
profundo em meio às características salientes de estilo, porque a motivação
emocional de encontrar o significado destas características salientes não é
desligada. (GRODAL, 2000, p. 50).
Este é o impulso de criar significado
que Bordwell acredita dever ser resistido.
Acredito que Bordwell esteja certo ao
dizer que alguns cineastas brincam com elementos estilísticos por eles mesmos. Viver
a vida é um exemplo disso; Good morning (1959), de Ozu é outro, como
a análise do “jogo paramétrico” feita por Bordwell mostra (BORDWELL, 1988,
354). E Bresson, numa entrevista de 1957, afirma que o cinema deveria se
expressar “não através de imagens, mas através da relação de imagens”. Ele
elabora:
Da mesma maneira que o
pintor não expressa a si mesmo através das cores, mas através da relação das
cores; a cor azul é azul por si mesma, mas se posta próximo ao verde, ou ao
vermelho, ou ao amarelo, não é mais azul: ela muda. Devemos chegar ao ponto em
que os filmes joguem com suas relações entre as imagens; há uma imagem, então
outra que tem valores relacionas, o que significa dizer que a primeira é neutra
e de repente, em presença de outra, ela passa a vibrar, a vida salta em sua
direção: e não tanto a vida da história, das personagens, é a vida do filme. A
partir do momento em que a imagem vive, você faz cinema. (BRESSON, 1957, p. 4).
Permitir que a “vida do filme” preceda
“a vida da história” poderia quase se dizer ser a definição da narração
paramétrica. O problema do impulso de criação de significação continua,
contudo. Os sofisticados diretores com os quais estamos lidando até aqui
estavam perfeitamente cientes deste fato; sabiam que a maioria dos espectadores
iriam ficar procurando algum tipo de significado por trás da superfície
estilística. E, ao menos no caso de Dreyer, argumentaria de que é precisamente
o que ele tem como objetivo.
A função da abstração
Em 1955, pouco antes de Bresson fazer
sua afirmação sobre a importância entre as relações de cores e imagens, Dreyer
vociferou semelhantes ideias, também comparando filme e pintura, em um ensaio
publicado em inglês com o título Color and color films [Cor e filme
em cores], e em dinamarquês numa versão um pouco diferente com um título
que literalmente traduz por Filme em cores e filmes coloridos [Color
film and colored film]. Dreyer aponta interrelações e a importância de
valores abstratos de composição:
Em filmes em preto e
branco a luz é lançada contra a escuridão, e linha contra linha. Em filmes em
cores a superfície é lançada contra superfície, forma contra forma, cor contra
cor. O que o filme em preto e branco expressa em mudança de luz e sombra, em quebrar
as linhas, pode, em filmes em cor, ser expressado em constelações de cores
(DREYER, 1955, p. 166).
O uso da cor não deveria ser limitado
pelas restrições de naturalismo, diz ele. “Apenas assim as cores terão a chance
de expressar o inexpressável, i. e., de expressar aquilo que somente pode ser
percebido” (DREYER, 1955, p. 166). Na versão dinamarquesa do texto, a última
parte da sentença lê “expressando [...] aquilo que não pode ser explicado, mas
apenas sentido” (DREYER, 1973, p. 171).
O propósito do estilo esparso empregado
nos filmes tardios de Dreyer parece ser o propósito a alcançar estes desígnios:
o ritmo lento e deliberado; os movimentos de câmera cuidadosamente
coreografados; a entrega medida dos diálogos; o que Schrader caracterizava como
“sub-rogação”, a substituição, dos “detalhes empáticos da vida natural”
(SCHRADER, 1972, p. 133) – todas estas características estilísticas juntas
formam um forte estilo esparso saliente, mas elas não têm um significado
conceitual óbvio. Elas não criam o tipo de ambiguidade narrativa encontrada em
muitos filmes de arte, tipicamente motivados como reflexão da realidade
existencial, da memória e outros processos psíquicos, ou como um comentário
simbólico (cf. CORDWELL 1979, 2008; GRODAL, 2000). As histórias de Dreyer não
são difíceis de acompanhar – todos seus filmes tardios são baseados em peças
com construções clássicas.
O espectador é, assim, apresentado a
história que parece direta e plenamente compreensível, mas também com um estilo
de forte intensidade austera não completamente motivada pela narrativa. Esta parece
uma ótima maneira de exprimir o inexprimível, de criar um sentido de que há
algo mais, algo que não é visto, algo que não pode ser capturado
diretamente por palavras ou imagens. O crítico católico Amédée Ayfre expressou
esta ideia belamente em ensaio de 1964: “o que o corpo é para a alma, o que os
sacramentos são para a graça, o que a palavra é para o pensamento – isto é o
que os filmes de Dreyer são para um mundo misterioso que normalmente nos
escapa” (AYFRE, 2004, p. 205). É evidente tanto no ensaio sobre o filme em
cores e os filmes de que Dreyer tinha um forte interesse em padrões
estilísticos, mas não seguia estes padrões apenas por um desejo próprio – eles
serviam à função dos filmes.
Acredito, contudo, que é um erro impor
um significado particular no sentido do inexpressível ou inefável que Dreyer
cria. Isto é, claro, o que Schrader faz quando identifica estes padrões com o
Transcendente; mas neste sentido penso que é muito revelador apenas mencionar Gertrud
(1964) de modo superficial. Ele chama o filme de “kammerspiel” (uma das
categorias estilísticas que ele usa para descrever os filmes de Dreyer), um
estilo diferente do estilo transcendental; por implicação, Gertrud não é
um filme no estilo transcendental. Ainda assim, inclui muitas das características
salientes do estilo esparso que podemos encontrar em A palavra, sendo
ainda mais estático e anti-naturalista. Há um ato aparentemente decisivo
próximo ao fim, neste filme – Gertrude rejeitando todos seus amantes – e a cena
final de êxtase [stasis]. Por que Schrader não o considera como sendo um
filme transcendental?
Schrader provavelmente argumentaria que
a decisão de Gertrud de se afastar não é um “ato decisivo”. Em seus termos: “um
evento incrível [...] que deve ser tomado amplamente pela fé” (SCHRADER, 1972,
p. 46); ao contrário, toda a história é construída para defender esta decisão
psicologicamente. Penso, contudo, que outra razão para a exclusão de Gertrud
de suas considerações seja a falta de religiosidade explícita no filme. É uma
história secular, diferente dos filmes de Bresson (se se aceita a
reinvindicação de Schrader de que eles seriam imbuídos de Zen) e também
diferente de Ozu. O que sugere que também Schrader está mais disposto a
encontrar o estilo transcendental em filmes que também contêm elementos
temáticos de conotação religiosa.
Isto não é surpreendente, estando de
acordo com a descrição de Torben Grodal de que os “melhores filmes de arte”
empregarão “dois procedimentos entrelaçados” para a criação de significado mais
“profundo” (superior): proverão “uma representação ‘simbólica’ de alguns campos
de significados acima do ‘nível básico’” como também “uma série de
características estilísticas salientes” que parecem relativamente isoladas de
qualquer “função narrativa transparente” (GRODAL, 2000, p. 50). O vago sentido
de um sentido profundo criado pelas características estilísticas, como vimos,
“tantaliza” o espectador e encoraja sua tentativa de fazer sentido: elementos
temáticos podem sugerir alguns tipos de significado mais do que outros, mas
eles irão permanecer como construções do espectador.
Para Schrader, é a obra de arte que tem
o potencial de revelar o divino; o espectador precisa meramente abrir seus
olhos e sua mente para isso. Parece mais provável, ao menos para mim, que
aqueles que experimentam o “algo” inefável sugerido pelos estilos esparsos de
Dreyer e outros autores como sendo intimações do divino são os tendentes a
fazer tal leitura. Como Astrid Söderbergh Widding aponta em breve, mas incisiva
discussão sobre Schrader em seu artigo intitulado Manifesting the invisible
in the medium of the visible:
O que Schrader tende a
negligenciar, contudo, é que à medida que estes estilos abrem espaço para uma
dimensão transcendental nos filmes, é em medida semelhante através do olhar do
espectador que este mesmo fenômeno passa a existir. Não é, portanto, suficiente
para colocar tanto estética e temática na equação. Em grau igual, se trata de
matéria para a participação do espectador e sua contribuição criativa durante o
processo de assistir o filme. (SÖDERBERGH WIDDING, 2005, p. 83).
Uma das forças do modelo de Grodal é
nos permitir compreender como a mente do espectador faz sua contribuição
criativa.
Conclusão
Para a compreensão dos supostos filmes
“transcendentais”, acredito que o modelo de Grodal oferece um instrumento
analítico superior ao de Schrader. A descrição de Grodal do efeito de
entrelaçamento do estilo saliente (frequentemente abstrato) e o conteúdo
temático indicativo de significado mais profundo, casado com a contribuição de
um espectador adequadamente disposto, parece (para mim) mais plausível que a
crença de Schrader no Transcendente e num estilo particular que eventualmente
converge em sua direção. Dito isto, caso se desconsidere as premissas
transcendentalistas da obra de Schrader, pode-se encontrar nela muito que é
perspicaz e sugestivo. As características estilísticas identificadas e
descritas por ele são altamente relevantes para a compreensão dos filmes em questão.
Por fim, contudo, o “filme transcendental” é melhor compreendido como uma
subcategoria dos filmes de arte descritos por Grodal.
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[1] Nota do tradutor.
[2] Adição do tradutor.
Este artigo foi originalmente publicado em Northern Lights: Film & Media Studies
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