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Formas do intangível: Carl Th. Dreyer e o conceito de “estilo transcendental”


Casper Tybjerg
Universidade de Copenhague

Tradução de Yves São Paulo
Doutorando em Filosofia. Editor da Revista Sísifo.
Still do filme A palavra, de C. Th. Dreyer.




Resumo
O livro Transcendental Style in Film, escrito em 1972 pelo futuro diretor de cinema Paul Schrader, oferece talvez a mais extensiva análise de como um estilo particular de filme pode ter uma significância religiosa específica. O artigo provê uma discussão crítica da teoria de Schrader, com foco particular nos filmes de Carl Th. Dreyer. As ideias de Schrader são comparadas a explicações alternativas das mesmas características estilísticas feitas por autores como David Bordwell e Torben Grodal. O artigo conclui que enquanto Schrader identifica um número pertinente de características estilísticas, o “filme transcendental” é mais bem compreendido como subconjunto dos filmes de arte. A descrição de Torben Grodal dos entrelaçamentos entre o efeito de um estilo saliente (e por vezes abstrato) e o conteúdo temático indicativo de maior significância, casado com a contribuição de um espectador bem disposto, é, o artigo argumenta, mais plausível que a análise de Schrader.
Palavras-chave: Carl Theodor Dreyer; Paul Schrader; Religião e filme; Estilo transcendental; Estilo fílmico; Teoria cognitiva de cinema.
Abstract
The book Transcendental Style in Film, written in 1972 by future film director Paul Schrader, offers perhaps the most extensive analysis of how a particular film style might have a specifically religious significance. The article provides a critical discussion of Schrader’s theory, with a particular focus on the films of Carl Th. Dreyer. Schrader’s ideas are compared to alternative explanations of the same stylistic features provided by David Bordwell and Torben Grodal. The article concludes that while Schrader Identifies a number of pertinent stylistic features, the ‘transcendental film’ is better understood as a subset of the art film mode. Torben Grodal’s description of the intertwined effect of a salient (often abstract) style and thematic content indicative of higher meaning, coupled with the contribution of a suitably disposed spectator, is, the article argues, more plausible
than Schrader’s analysis.
Keywords
Carl Th. Dreyer; Paul Schrader; religion and film; transcendental style; film style; cognitive film theory


É baseado em seu conteúdo que filmes são normalmente descritos como “religiosos” – são chamados de religiosos porque apresentam histórias bíblicas ou outras narrativas onde o divino ou o sobrenatural aparece diretamente; histórias sobre santos, padres ou outras figuras divinas; ou contos morais, onde uma doutrina religiosa é mais ou menos apresentada. É desta forma que André Bazin divide os filmes religiosos entre filmes bíblicos, filmes sobre santos e filmes sobre padres e freiras em um importante ensaio de 1951, “Cinema e teologia” (BAZIN, 2002). Mas o ensaio de Bazin também argumenta a respeito da significância do estilo em tais filmes. Apesar do exemplo de Bazin, autores posteriores tenderam a negligenciar a dimensão estética, como escreve Melanie Wright em sua recente introdução ao tema, em Religion and Film: “Tipicamente, a dimensão narrativa dos filmes estudados é enfatizada com pouca atenção à mise-en-scène [...], fotografia, edição ou som” (WRIGHT, 2007, p. 21). De acordo com este pensamento, o grande diretor dinamarquês Carl Th. Dreyer é identificado como um diretor “religioso” por ter feito filmes sobre santos ou filmes sobre milagres: A paixão de Joana D’Arc (1928), A palavra (1955).
Existem outros escritores, contudo, que exploraram com grande amplitude a dimensão estética dos filmes religiosos. Tais autores tendem a argumentar que há um conjunto específico de estilos apresentados particularmente apropriados para temas religiosos. O mais proeminente deles talvez seja Paul Schrader. Em seu livro Transcendental Style in Film: Ozu, Bresson, Dreyer (SCHRADER, 1972), Schrader sugere que o estilo de cada destes três diretores pode, com efeito, manifestar o divino. Esta afirmação vai de encontro à ideia de um efeito particular não podendo ter significado baseado unicamente em suas características inerentes, e por esta razão em especial, o livro de Schrader vale a pena de ser examinado mais de perto. Ao fazê-lo, focarei especificamente nos filmes de Dreyer, não apenas porque eles são claramente importantes para a discussão da existência dos estilos de filmes particularmente religiosos ou espirituais, mas também porque penso que eles melhor ilustram tanto as forças quanto as fraquezas das concepções de Schrader. Devo concluir que enquanto Schrader identifica um número pertinente de características estilísticas, o “filme transcendental” é melhor compreendido como uma variante do filme de arte; ao argumentar a este favor, estarei me aproximando da obra teórica de Torben Grodal, que mostra como estes filmes combinam procedimentos de tema e estilo para criar a impressão de “significado superior”, convidando, ou ao menos facilitando, interpretações religiosas.

Os “terríveis cromolitógrafos” de Dreyer
Schrader faz uma distinção precisa entre os filmes do estilo transcendental e os filmes mais convencionais que apresentam temas religiosos. Como o próprio Schrader pontua, filmes religiosos são feitos desde o princípio do cinema, mas ele dispensa quase todos eles porque seu estilo não é capaz de render uma manifestação de verdadeira espiritualidade. Seria interessante ouvir o que ele teria a dizer a respeito do único filme bíblico realizado por Dreyer, seu segundo filme, Blade af Satans Bog/Leaves from Satan’s Book (1919). Este filme é dividido em quatro partes, acontecendo em quatro épocas distintas. Em cada época, Satã, ordenado por Deus para tentar a humanidade a pecar, tenta manipular a vulnerabilidade individual dos sujeitos a cometer atos errôneos. O primeiro dos episódios mostra Judas traindo Jesus, começando logo depois da última páscoa judaica e terminando com a prisão de Jesus. Schrader, contudo, não menciona este filme em momento algum, provavelmente por não tê-lo visto.
Esta seção bíblica de Leaves from Satan’s Book exemplifica uma característica estilística que tem sido persistente em filmes bíblicos: o uso de famosas obras artísticas devocionais dos grandes mestres da arte ocidental como modelo para as imagens fílmicas. “Todos os filmes [sobre Jesus] se influenciam profundamente em obras familiares da arte ocidental”, escreve Adele Reinhartz (2007, p. 7) em seu excelente livro, Jesus in Hollywood, que apesar de seu título, inclui filmes europeus. Reinhartz faz apenas uma menção superficial de Leaves from Satan’s Book, mas seus apontamentos são certamente válidos também para esse filme. A cena da última ceia, em particular, usa os arranjamentos bem conhecidos da obra de Leonardo da Vinci: Jesus e seus discípulos estão sentados ao longo de cumprida mesa alocada em paralelo com o plano, com Jesus no meio. Apesar disso, existem várias diferenças; Dreyer não estava contente em apenas imitar a famosa pintura de Leonardo, por isso buscou outras variações. Uma nota manuscrita presente em sua cópia pessoa do roteiro, conservada no Instituto de Cinema Dinamarquês, também se refere a versões da cena pintadas por Ghirlandaio (em torno de 1480) e Eduard von Gebhardt (1870).
Dreyer apresenta uma iconografia familiar, mas com algumas variações interessantes. Mesmo assim, Dreyer mais tarde criticaria fortemente a sua própria obra. Em 1935, o diretor francês Julien Diviver fez o sombrio e ambicioso Gólgota, o primeiro grande filme sonoro sobre Jesus, focando sua paixão. Quando lançado na Dinamarca, o diretor A. W. Sandberg, que escrevia críticas na época, foi muito crítico da realização e sugeriu que Leaves from Satan’s Book era um filme sobre Jesus superior. Comparado a cena da última ceia de Duvivier, Dreyer
alcançou uma atmosfera muito mais poderosa na mesma situação com o filme Leaves from Satan’s Book; lá, tanto os tipos dos apóstolos, suas performances, a composição, o set, até mesmo a fotografia estavam de melhor acordo com o espírito do material. (SANDBERG, 1935).

Dreyer imediatamente escreveu uma carta a Sandberg (que mais tarde ele citaria em entrevista em 1954) onde dispensava seus próprios esforços, agradecendo a Sandberg, mas insistindo que os elogios eram completamente injustificados.
Devo definitivamente protestar contra esta colocação. Não vi o filme de Duvivier, mas conheço o meu próprio, dois terços do qual são pilhas e mais pilhas de excessos. O episódio de Cristo era o pior: uma terrível coleção de cromolitografias. Sou completamente contrário à revitalização destes tipos de erros de seu merecido esquecimento. (DREYER, 1954).

Esta atitude desdenhosa com relação ao imaginário tradicional não é, de modo algum, exclusiva a Dreyer. De fato, ela é compartilhada por Schrader, pelos críticos franceses influenciados por André Bazin, como pelo próprio. Bazin gentilmente dispensa filmes bíblicos como sendo “simplesmente variações amplificadas das Estações da Crucificação no Musée Grévin” (BAZIN, 2002), isto é, imagens devocionais de igrejas e exibições de peças de cera.
Mais recentemente, o tradutor de Bazin, Bert Cardullo publicou um artigo fortemente crítico d’A Paixão de Cristo (2004), de Mel Gibson, que ele acredita exemplificar a inescapável, patente inautenticidade dos filmes religiosos visualmente espetaculares:
O requerimento fundamental de um estilo espiritual autêntico, ou com alguma significância religiosa, é de que seja fundamentado em simplicidade naturalista, até mesmo abstração – não em pirotécnica em widescreen do tipo que pode ser encontrada naqueles épicos de areia-e-sandália como Quo Vadis? (1951), Os dez mandamentos (1956), e Ben Hur (1959).
O espírito, afinal de contas, reside intrinsecamente – é uma convicção interna – não um truque externo ou “efeitos especiais”. (CARDULLO, 2005).

Em Trancendental Style in Film, Paul Schrader tomou semelhante posição e seu livro apoia tais pensamentos com reivindicações sobre a própria natureza do cinema. O argumento é baseado na diferença entre dois tipos de meios [means] artísticos, meios “abundantes” e meios “esparsos”. Estes termos vêm do filósofo católico francês, Jacques Maritain (1882-1973). Em seu livro curto, Religion et Culture (1930), ele traça a distinção entre dois tipos de bons trabalhos: aqueles que sustentam a existência física e aqueles que sustentam o espírito. Porque o primeiro necessita de recursos tangíveis, Maritain os chama “meios temporais ricos” (“moyens temporels riches”); e porque o segundo aumenta a efetividade ao se desfazer de recursos materiais, ele os chama de “meios temporais pobres[esparsos[1]]” (moyens temporels pauvres”). Ainda que ambos sejam necessários, é evidente que o primeiro deve eventualmente servir ao segundo, o mais importante: “o meio abundante mantém o corpo vivo para que o meio pobre possa elevar a alma” (SCHRADER, 1972, p. 154).
Schrader começa explicando que a distinção também se aplica à arte; aqui, o meio abundante mantém os espectadores engajados, enquanto o esparso, novamente, eleva suas almas:
Os meios abundantes em arte [...] são sensuais, emocionais, humanísticos, individualistas. São caracterizados por linhas suaves, retratos realistas, profundidade, experimentação; encoraja empatia. [...] Os meios esparsos são frios, formalistas, hieráticos. São caracterizados pela abstração, retrato estilizado, superficialidade, rigidez; encorajam respeito e apreciação. (SCHRADER, 1972, p. 155)

Filmes parecem estar mais próximos da vida que as outras artes, mostrando pessoas reais se movimentando em tempo real, e é preciso, por sua própria natureza, sobrecarregar o privilégio dos meios abundantes: “de todas as artes, penso que o cinema é aquela mais difícil de ser utilizada de maneira espiritual, porque é tão cinética, tão visceral”, Schrader disse a um entrevistador (ASIKA, 2002). Similarmente, em sua introdução em vídeo à edição em DVD ao filme Batedor de carteiras (1959), de Robert Bresson, ele disse:
Cinema não é uma mídia muito espiritual, e se você quer transmitir transcendência ou quietude, o cinema realmente não é para você. Porque filme é a realidade filmada, são imagens, e suas imagens estão se movendo no tempo real, então o que é bom nele é empatia, evocar emoções e, é claro, movimento, de tal maneira que realismo psicológico é o forte do meio fílmico, sendo ação sua grande cartada. (SCHRADER, 2005).

O filme religioso convencional depende da emoção, ação e identificação: “Por uma ou duas horas, o espectador se transforma naquela pessoa santa a sofrer na tela; seus problemas pessoais, culpa e pecado são absorvidos em motivos humanos, nobres e purificadores” (SCHRADER, 1972, p. 164). Mas a experiência que tais filmes fornecem ao espectador não é espiritualmente autêntica; não eleva o espectador ao nível do sagrado, diminuindo o sagrado ao nível em que se encontra o espectador.
O entendimento de Schrader a respeito do sagrado provém em sua maior parte do teólogo alemão Rudolf Otto, cujo livro de 1917, The Idea of the Holy: na inquiry into the Non-Rational Factor n the Idea of the Divine and its Relation to the Rational, exerceu grande influência nos estudos de religião. Otto descreve sagrado como “das ganz anderes”, o completamente diferente. Está completamente além do mundano; não pode ser tomado pela razão humana, e não pode ser definido, aprendido ou propriamente descrito. Isso pode apenas ser sugerido através de respostas emocionais produzidas. Este mistério inexpressivo, este “Algo inominado”, é a essência da religião. “Não existe religião onde isto não viva no mais profundo de seu âmago, e sem isto nenhuma religião seria digna do nome” (OTTO, 1958, p. 6).
Enquanto este “completo diferente”, o “Transcendente”, não pode ser circunscrito pela mente humana, ele pode ser experimentado, uma experiência que Schrader se refere como sendo “transcendência”, - e é possível que atos humanos e seus artefatos sejam “transcendentais”, para expressar ou refletir ao menos parte de seu significado (SCHRADER, 1972, p. 5). Como Schrader seguirá por afirmar, falar de “arte transcendental” – arte que “expresse o Transcendente num espelho humano” – implica numa equivalência entre arte e religião: “Transcendência é a experiência imperativa; arte e religião são manifestações gêmeas” (SCHRADER, 1972, p. 5-6). E Schrader abraça essa equivalência na primeira página de seu livro, escolhendo como epigrama uma citação do teólogo holandês Gerardus van der Leeuw, o fundador da fenomenologia da religião: “Religião e arte são linhas paralelas que intersectam apenas no infinito e se encontram em Deus” (SCHRADER, 1972).

A ideia de um estilo transcendental
Ao argumentar que certos filmes são, de fato, arte transcendental e, portanto, podem, com efeito, funcionar como um tipo de religião alternativa, poderia parecer que Transcendental Style in Film (1972) nasceu do desencanto de Schrader com a religião organizada e a consequente perda de fé de seu autor. Um entrevistador apontou que o livro “oferece uma impressão de ser o trabalho de alguém que ainda é um crente”, ao que Schrader respondeu:
Mas um crente em espiritualidade, não um crente em qualquer noção sectária de Deus. Eu não era mais membro de minha igreja e crente em suas doutrinas. [...] O que me aconteceu foi que religiões desta natureza são realmente instituições sociais, não instituições espirituais, e que espiritualidade era apenas um adjunto ocasional de suas funções econômicas e sociais. (JACKSON, 1990, p. 28)

Não é surpreendente que Schrader abrace as considerações fenomenológicas da religião oferecidas por Otto e van der Leeuw, onde os aspectos institucional, social e mesmo moral da religião ficam no banco dos fundos da experiência individual de espiritualidade.
Schrader identifica o estilo de criação fílmica que ele acredita mais próximo de oferecer este tipo de experiência espiritual como “estilo transcendental”. Em filmes que contam com o estilo transcendental, normalmente elementos significantes como “trama, atuação, figurino, trabalho de câmera, música, diálogo, edição” são todos “não-expressivos”, escreve Schrader, continuando: “o estilo transcendental estiliza a realidade ao eliminar (ou quase eliminar) aqueles elementos que são primariamente expressivos da experiência humana, assim roubando as interpretações convencionais da realidade de sua relevância e poder” (SCHRADER, 1972, p. 11).
Esta estilização procede em três passos progressivos ao longo do filme, durante o qual os meios abundantes são consequentemente trocados pelos meios esparsos. O primeiro passo é o chamado “cotidiano”: filmes com o estilo transcendental apresentarão “uma representação meticulosa do maçante, dos lugares-comuns banais da vida cotidiana” (SCHRADER, 1972, p. 39). Há pouca construção de crescimento dramático, porque os eventos e ações que vemos não realmente levam a lugar algum; elas ocorrerão novamente aproximadamente da mesma maneira, outro dia. A psicologia das personagens é submersa numa rotina onde nenhuma ação particular parece mais importante que a outra. A potencial empatia do espectador com as personagens é retida, e “ser esparsa” é alcançada ao “gradualmente roubar os meios abundantes de seu potencial” (SCHRADER, 1972, p. 160).
Estas características parecem se encaixar melhor nos filmes de Bresson que nos filmes tanto de Dreyer quanto nos de Ozu; certamente me soa estranho dizer que as personagens de Ozu “parecem ser autômatos” (SCHRADER, 1972, p. 44); esta descrição pode parecer mais apropriada às personagens de Dreyer de Gertrud (1964), com seus movimentos controlados e lentos, hieráticos padrões de fala, mas Schrader não considera esse como sendo um exemplo de estilo transcendental. Também parece difícil de afirmar que a psicologia das personagens é eliminada dos filmes de Dreyer, e Schrader reconhece este ponto; mas argumenta que a forma como os planos longos de A palavra permitem “o tempo para a personagem caminhar toda a distância de um cômodo e engajar numa conversação sem um corte” é um exemplo característico de técnica pertencente ao “cotidiano”: “ao sub-rogar as qualidades empáticas da vida natural e formalizando os detalhes factuais, o cotidiano cria uma fria estilização” (SCHRADER, 1972, p. 133).
O segundo passo é “disparidade”. Isto imerge porque o espectador gradualmente “sente que há sentimentos profundos, inexplorados logo abaixo da superfície” (SCHRADER, 1972, p. 44). A profundidade e força destes sentimentos parecem incompatíveis com a “fria e esparsa estilização” da superfície do filme (SCHRADER, 1972, p. 161). Isto provoca um sentimento de incômodo no espectador. A figura de Johannes em A palavra é, na perspectiva de Schrader, exemplar a este respeito: Johannes é uma personagem “que não tem qualquer causa psicológica (interna ou externa) para sua paixão alienada”; e algo de similar poderia ser dito a respeito de Joana d’Arc. (SCHRADER, 1972, p. 120). Particularmente na Paixão de Joana d’Arc, esta disparidade é reforçada pela estilizada tensão entre os “cenários naturalistas” e o “posicionamento e ângulo da câmera artificiais” (SCHRADER, 1972, p. 120). Eventualmente, o crescente senso de disparidade culmina numa “ação decisiva”:
Uma ousada chamada para ação que dispensa qualquer pretensão de realidade cotidiana. A ação decisiva quebra a estilização do cotidiano; é um evento incrível dentro da realidade banal que deve ser tomado pela fé. Em sua forma mais drástica, como em A palavra, de Dreyer, esta ação decisiva é um milagre, a ressurreição do morto. Em suas formas menos dramáticas, ainda assim não deixa de ser menos miraculoso: um evento emocional, não-objetivo, dentro de um ambiente factual desprovido de emoção. [...] O cotidiano denigre as emoções do espectador, mostrando que elas não serviam, numa disparidade que primeiro excita estas emoções, sugerindo que talvez viesse a encontrar espaço para elas, e então em sua ação decisiva de repente e inexplicavelmente demandando do espectador um completo resultado emocional. (SCHRADER, 1972, p. 46-47).

Ainda que Schrader veja o milagre em A palavra como sendo “uma ação decisiva por excelência”, penso que é de algum modo enganoso dizer que ela seja tanto inesperada ou implausível (SCHRADER, 1972, p. 134). O diálogo referencia constantemente a milagres, e a presença de uma figura semelhante à de Cristo como a de Johannes também ajuda a sugerir que um milagre seja possível; mais ainda, poucas pessoas vão assistir A palavra sem saber que o filme termina na culminação de um milagre – mesmo quando o filme foi lançado, espectadores dinamarqueses, ao menos, estavam bem cientes do final: a peça, afinal, era uma das peças mais bem conhecida de Kaj Munk, na época a figura literária mais famosa da Dinamarca por conta de seu assassinato pelas mãos da Gestapo durante a ocupação nazista.
Em segundo lugar, enquanto milagres são inerentemente implausíveis, toda a construção do filme é feita de tal maneira a superar esta impossibilidade. Numa nota ao final do roteiro, Dreyer escreve que os espectadores devem gradualmente e cuidadosamente ser colocados num estado emocional semelhante aquele de convidados de um funeral.
Uma vez trazidos a esta condição de reverência e introspecção, mais facilmente se deixarão ser induzidos a acreditar no milagre – pela única razão de que eles, sendo forçados a pensar na morte, também sejam levados a pensar em sua própria morte, e portanto (inconscientemente) esperar por um milagre, abandonando sua atitude normal de ceticismo. (DREYER, 1964, p. 294).

Além disso, Inger, a mulher que é trazida da morte, é uma personagem criada por Dreyer de forma tão viva, tão carinhosa e cheia de bondade, tão importante para a felicidade de todos os outros, que sua morte parece profundamente injusta e difícil de aceitar, criando forte desejo emocional nos espectadores para que um milagre venha a acontecer, não importando o quão inclinados estejam eles a acreditar na impossibilidade de tal coisa vindo a acontecer.
O terceiro passo no progresso é “êxtase” [stasis]. Na visão de Schrader, o não merecido, a característica arbitrária de um ato decisivo – o modo como uma repentina onda emocional ocorre sem uma justificação dramática ou psicológica – cria a contradição que não pode ser resolvida, “o paradoxo do espírito existindo dentro do físico” e o espectador devendo aceitar (ou rejeitar) “uma visão da vida que não pode abrigar a ambas” (SCHRADER, 1972, p. 82). Êxtase [Stasis] continua; é uma cena congelada ao final do filme, que “representa o ‘novo’ mundo em que o espiritual e o físico não podem coexistir, ainda em tensão não resolvida, mas sendo parte de um esquema maior na qual todo fenômenos é mais ou menos expressão de uma realidade maior – o Transcendente” (SCHRADER, 1972, p. 83). Como exemplo, Schrader evoca o plano, de mais de meio minuto de duração, da estaca nua e carbonizada depois da morte de Joana ao final de O processo de Joana d’Arc (Robert Bresson, 1962); a estaca é “ainda uma entidade física, mas também é a expressão espiritual do martírio de Joana” (SCHRADER, 1972, p. 83).
Em uma entrevista posterior, Schrader resume a hipótese dos três passos do estilo transcendental de forma mais sucinta:
O todo da hipótese do Estilo Transcendental é de que se você reduzir sua ciência sensual rigorosamente e por um bom tempo, a vontade interior irá explodir e irá ser pura porque não será desviada por identificações fáceis ou explorativas; será refinada e comprimida em direção a sua verdadeira identidade, o que Calvino chama de sensos divitatus, o senso divino. (JACKSON, 1990, p. 28-29)

Como uma interpretação dos filmes de Robert Bresson, novamente, parece ser uma afirmação bastante razoável, e Schrader é capaz de mantê-las com citações extensivas de suas entrevistas.
Contudo, a hipótese de Schrader não cabe aos dois outros diretores tão aproximadamente. Enquanto os filmes de Ozu com frequência terminam em quietude, a afirmação de que esta seria uma expressão do Transcendente, um estado espiritual, depende de uma compreensão do Zen e da cultura japonesa que acadêmicos mais recentemente têm sido relutantes em assumir. David Bordwell escreve em seu gigantesco estudo sobre Ozu que “qualquer uso do Zen em Ozu é indireto, menos ainda se podendo dizer que é diretamente religioso, sendo mediado por práticas históricas aproximadas” (BORDWELL, 1988, p. 29).
Uma consideração crítica a esse respeito pode ser encontrara no livro de Mitsuhiro Yoshimoto sobre Kurosawa. Schrader, escreve Yoshimoto, “tenta dispensar qualquer coisa que não confirme a imagem de Ozu como sendo um artista Zen” (YOSHIMOTO, 2000, p. 13). Schrader usa Zen como uma palavra mágica para resolver qualquer contradição colocada pelo amplo apelo do Japão nos filmes de Ozu – um apelo que poderia ser inexplicável se os filmes suprimissem a identificação emocional do jeito que a teoria requer. Ao invés disso, Schrader diz que “o conceito de experiência transcendental é tão intrínseco à cultura japonesa (e oriental), que Ozu foi capaz de tanto desenvolver o estilo transcendental quanto de se manter nas convenções populares da arte japonesa” (SCHRADER, 1972, p. 17). Esta é apenas uma tentativa transparente de não ter somente o passarinho na gaiola como também pegar os passarinhos a voar, argumenta Yoshimoto; e é além disso baseada numa concepção estereotipada do “oriental” como sendo naturalmente espiritual.

Estilo sem transcendência
Schrader reconhece que existem dificuldades ainda maiores em descrever o estilo de Dreyer como sendo transcendental. Não somente existem diferenças estilísticas consideráveis entre os filmes de Dreyer, há também o fato de que nenhum de seus filmes aplica o estilo transcendental do começo ao fim. Dreyer, escreve Schrader, “nunca foi capaz de atingir o êxtase [stasis], o teste final da arte transcendental, no nível alcançado por Ozu e Bresson porque, me parece, ele nunca se inclinou ao estilo transcendental que os outros dois fizeram” (SCHRADER, 1972, p. 120). O levante do povo ao final e A paixão de Joana d’Arc e a afirmação da vida ao final de A palavra se afastam do reino do Transcendente, permanecendo no mundo humano. Para os estudiosos de Dreyer, obviamente, isto limita o uso do modelo de Schrader. Mesmo assim, sua análise identifica um número significante de características estilísticas e provê uma sugestiva explanação de suas funções.
É interessante comparar com uma análise bem diferente das mesmas características encontrada no livro de David Bordwell Narration in the Fiction Film (1985). Aqui, Bordwell descreve diferentes “modos” de narração de filmes de ficção. Um deles é a narração paramétrica, que é uma forma relativamente rara; sua característica principal é que certos padrões estilísticos não são subordinados à demanda da narrativa, operando “sistematicamente [...] ao longo do filme” de acordo com seus próprios “princípios distintos” (BORDWELL, 1985, p. 281). Como exemplo, Bordwell menciona o filme Viver a vida (1962), de Jean-Luc Godard, que é dividido por intertítulos numerados de doze episódios. “Ao nível do estilo visual, cada seguimento é caracterizado por uma ou mais variantes de possíveis relações entre câmera/sujeito [subject]” (BORDWELL, 1985, p. 281). O ponto de Bordwell é de que tais padrões estilísticos não precisam ser motivados “por considerações temáticas apelativas”; ao invés disso, como na arte abstrata, “o significado representacional pode ser diminuído ou retido, e uma ordem perceptual pura pode ser fortemente recortada” (BORDWELL, 1985, p. 283). O sentido da ordem é o seu próprio propósito.
Para que estes padrões fiquem visíveis, o filme deve estabelecer um conjunto de parâmetros para variações estilísticas, para que eles se tornem perceptíveis contra um pano de fundo estável. Bordwell encontra duas estratégias bastante diferentes para isto acontecer. Uma, ele chama de “repleto”, é exemplificado por Viver a vida: as “sequências bem articuladas” desse filme “permitem uma clara comparação de opções paradigmaticamente diferentes ao nível de estilo” – cada segmento usando um estilo muito diferente para apresentar um sentido similar (BORDWELL, 1985, p. 285). A outra opção é chamada por Bordwell de “ascética” ou “esparsa”, na qual o filme limita sua norma a um alcance restrito de procedimentos que são codificados por normas extrínsecas”; isto é, o alcance das escalas de planos, ângulos de câmera ou composições empregadas pode ser drasticamente limitada em comparação com o cinema mainstream – Bresson, por exemplo, “fica confinado ao uso contínuo do plano-médio, frequentemente de partes do corpo” (BORDWELL, 1985, p. 185).
Os principais praticantes desta abordagem esparsa terminam por ser os mesmos três diretores que Schrader discute em seu livro: Bresson, Ozu e Dreyer, ainda que Bordwell também adicione Mizoguchi e (em parte) Tati. Vale a pena apontar que Bordwell considera os modelos de narração descritas por ele, incluindo a paramétrica, como “transcendendo gêneros, escolas, movimentos, e cinemas nacionais” (BORDWELL, 1985, p. 150). Isto é muito semelhante à suposição de Schrader de que há “formas artísticas de representação comuns compartilhadas por culturas divergentes” (SCHRADER, 1972, p. 9). O estilo transcendental que ele descreve é, claro, uma destas formas.
Bordwell nunca se refere a Schrader em seu Narration in the Fiction Film. Ele não partilha do interesse de Schrader por espiritualidade, e sua discussão sobre o filme paramétrico enfatiza que sua “riqueza de textura [...] resiste a interpretação”; querendo dizer, “em um grande sentido, não significando – mais próximo da música do que da novela” (BORDWELL, 1985, p. 289, 306). Ainda, Bordwell reconhece que este tipo de ordem sem significado “atormenta” os espectadores (BORDWELL, 1985, p. 305), tentando-os a projetar um esquema interpretativo em padrões estilísticos impessoais, às vezes compreendendo-os como sendo uma expressão da espiritualidade:
É significante que os mais celebrados expoentes do estilo paramétrico esparso – Dreyer, Ozu, Mizoguchi, e Bresson – sejam frequentemente vistos como criadores de filmes misteriosos e místicos. É como se um estilo autossustentável evoluísse, em suas pontas, eludindo a fantasmas de conotações, enquanto o espectador tenta uma significação depois da outra numa estrutura impassível. O reconhecimento de ordem desencadeia uma busca por significado. Esquemas não cinemáticos, com frequência religiosos, podem assim ser trazidos como motivadores de estilo para tais obras. (BORDWELL, 1985, p. 289).

Mas para impor tal recorte sobre significação, para insistir que o não-significativo deveria levar a interpretação, escurecendo os refinamentos de estruturas estilísticas, Bordwell sugere que se deveria resistir a uma tal imposição [de buscar significado[2]].
Para fazê-lo não é fácil: a presença de personagens humanas irresistivelmente leva os espectadores a perguntar sobre suas histórias, ao invés de fazer uma apreciação do filme num nível puramente abstrato; como Schrader aponta, o público “tem o impulso natural de participar nas ações e cenários presentes na tela” (SCHRADER, 1972, p. 160). Torben Grodal ofereceu uma análise sofisticada desse impulso e o modo como isto é manipulado por diferentes tipos de filmes.
A premissa central da teoria de Grodal é que o engajamento do espectador em narrativas fílmicas convencionais é baseada numa simulação imersiva das preocupações e tendências de ação do protagonista: “Se, por exemplo, a personagem na tela toma controle da situação e dribla os obstáculos apresentados, então o espectador indiretamente experimenta uma atividade motor voluntária, dirigida a objetivos” (GRODAL, 2006, p. 6). Isto não significa que haja qualquer “confusão de ego” (GRODAL, 2001, p. 117) – não nos confundimos com a personagem. Ao invés disso, “é como se tanto o cérebro quanto o corpo fossem projetados ao mundo externo do filme” (GRODAL, 2006, p. 5).
Por exemplo, em muitas ocasiões ao longo de O código Da Vinci (Ron Howard, 2006), o herói Robert Langdon (Tom Hanks) é posto sob ameaça de arma de fogo pelos vilões. Ao ver isso, os espectadores tensionam seus músculos, simulando a prontidão a desviar da bala ou pular em direção ao atirador. Estas ações não são necessariamente aquelas que o espectador deverá adotar em tal situação, mas são as ações que eles esperam que um herói de cinema adote. Como se termina por ver, o cerebral Langdon conta muito mais com suas espertezas e boa sorte do que com força ou agilidade para superar os vilões, soltando-se das situações que lhe ameaçam a vida de maneira nem sempre previstas pelos espectadores. Mesmo assim, nós indiretamente experimentamos alívio e satisfação ao emergir seguros do perigo.
Em muitos tipos de filme, contudo, “tendências de ação como estas são bloqueadas” (GRODAL, 2006, p. 6). Isto acontece quando as personagens se transformam em vítimas passivas de forças para além de seu alcance, como é o caso de muitos melodramas, tragédias e filmes de horror. Há pouco o que as personagens possam fazer, mas se suas preocupações se tornam importantes para o espectador, ele ou ela irá experimentar uma grande dose de pressão emocional. A realização de que as personagens não têm poder frente as forças que os vitimam pode levar o espectador a experimentar respostas autônomas involuntárias como chorar ou tremer ou acompanhar emoções como pena ou medo, provendo alívio da tensão emocional (GRODAL, 2007, p. 143-146).
Tendências de ação indiretas também podem ser bloqueadas de outras maneiras. A realidade concreta que os filmes narrativos tradicionais apresentam tipicamente confortam os protagonistas com problemas práticos e não abstratos que podem ser acionados e superados por meio de ação direta. Muitos filmes de arte, contudo, apresentam realidades que divergem do concreto aqui-e-agora. Eles sugerem categorias amplas, abstratas ou níveis de significação que existem apenas de forma desencarnada, como “Humanidade” ou “Amor” ou, até mesmo, “o Transcendente”; elas podem enfatizar memórias ou sonhos, estados de realidade que não são aqui-e-agora; ou, como uma terceira opção, elas podem apresentam um aqui-e-agora sem realçar aqueles aspectos do que possuem uma relevância pragmática aos objetivos do protagonista, sugerindo ao invés disso um “fluxo de percepção” indiferenciado – a vida observada ao invés de participação nos eventos da vida (GRODAL, 2000, 36, 47).
Estas diferentes maneiras de engajar os espectadores estão frequentemente conectadas a diferenças na saliência do estilo. Em filmes do mainstream como O código Da Vinci, “o estilo serve para dar textura às ações concretas e suas emoções correlatas” (GRODAL, 2000, p. 36). Espectadores, portanto, frequentemente não percebem a orquestração estilística das cenas; como Stephen Prince aponta, citando diversos estudos empíricos, “espectadores tendem a atribuir detalhes de estilo a áreas de conteúdo, assimilando-as em seus esquemas pré-existentes de personagem e situação” (PRINCE, 2006, p. 21). Contudo, em alguns tipos de filmes – particularmente filmes de arte – o estilo é usado de tal maneira que a atenção do espectador é direcionada para que se torne “saliente” ao espectador sem que fique muito fortemente ligado à história. De acordo, diferente das características estilísticas em filmes mainstream, este estilo saliente não pode “ser plenamente transformado em informação para a história”:
Características estilísticas, portanto, ativam sentimentos e emoções indicando “significado” que não pode ser plenamente conceituado pelo espectador. O espectador, portanto, tem um sentimento/uma emoção de que deve haver algum significado profundo em meio às características salientes de estilo, porque a motivação emocional de encontrar o significado destas características salientes não é desligada. (GRODAL, 2000, p. 50).

Este é o impulso de criar significado que Bordwell acredita dever ser resistido.
Acredito que Bordwell esteja certo ao dizer que alguns cineastas brincam com elementos estilísticos por eles mesmos. Viver a vida é um exemplo disso; Good morning (1959), de Ozu é outro, como a análise do “jogo paramétrico” feita por Bordwell mostra (BORDWELL, 1988, 354). E Bresson, numa entrevista de 1957, afirma que o cinema deveria se expressar “não através de imagens, mas através da relação de imagens”. Ele elabora:
Da mesma maneira que o pintor não expressa a si mesmo através das cores, mas através da relação das cores; a cor azul é azul por si mesma, mas se posta próximo ao verde, ou ao vermelho, ou ao amarelo, não é mais azul: ela muda. Devemos chegar ao ponto em que os filmes joguem com suas relações entre as imagens; há uma imagem, então outra que tem valores relacionas, o que significa dizer que a primeira é neutra e de repente, em presença de outra, ela passa a vibrar, a vida salta em sua direção: e não tanto a vida da história, das personagens, é a vida do filme. A partir do momento em que a imagem vive, você faz cinema. (BRESSON, 1957, p. 4).

Permitir que a “vida do filme” preceda “a vida da história” poderia quase se dizer ser a definição da narração paramétrica. O problema do impulso de criação de significação continua, contudo. Os sofisticados diretores com os quais estamos lidando até aqui estavam perfeitamente cientes deste fato; sabiam que a maioria dos espectadores iriam ficar procurando algum tipo de significado por trás da superfície estilística. E, ao menos no caso de Dreyer, argumentaria de que é precisamente o que ele tem como objetivo.

A função da abstração
Em 1955, pouco antes de Bresson fazer sua afirmação sobre a importância entre as relações de cores e imagens, Dreyer vociferou semelhantes ideias, também comparando filme e pintura, em um ensaio publicado em inglês com o título Color and color films [Cor e filme em cores], e em dinamarquês numa versão um pouco diferente com um título que literalmente traduz por Filme em cores e filmes coloridos [Color film and colored film]. Dreyer aponta interrelações e a importância de valores abstratos de composição:
Em filmes em preto e branco a luz é lançada contra a escuridão, e linha contra linha. Em filmes em cores a superfície é lançada contra superfície, forma contra forma, cor contra cor. O que o filme em preto e branco expressa em mudança de luz e sombra, em quebrar as linhas, pode, em filmes em cor, ser expressado em constelações de cores (DREYER, 1955, p. 166).

O uso da cor não deveria ser limitado pelas restrições de naturalismo, diz ele. “Apenas assim as cores terão a chance de expressar o inexpressável, i. e., de expressar aquilo que somente pode ser percebido” (DREYER, 1955, p. 166). Na versão dinamarquesa do texto, a última parte da sentença lê “expressando [...] aquilo que não pode ser explicado, mas apenas sentido” (DREYER, 1973, p. 171).
O propósito do estilo esparso empregado nos filmes tardios de Dreyer parece ser o propósito a alcançar estes desígnios: o ritmo lento e deliberado; os movimentos de câmera cuidadosamente coreografados; a entrega medida dos diálogos; o que Schrader caracterizava como “sub-rogação”, a substituição, dos “detalhes empáticos da vida natural” (SCHRADER, 1972, p. 133) – todas estas características estilísticas juntas formam um forte estilo esparso saliente, mas elas não têm um significado conceitual óbvio. Elas não criam o tipo de ambiguidade narrativa encontrada em muitos filmes de arte, tipicamente motivados como reflexão da realidade existencial, da memória e outros processos psíquicos, ou como um comentário simbólico (cf. CORDWELL 1979, 2008; GRODAL, 2000). As histórias de Dreyer não são difíceis de acompanhar – todos seus filmes tardios são baseados em peças com construções clássicas.
O espectador é, assim, apresentado a história que parece direta e plenamente compreensível, mas também com um estilo de forte intensidade austera não completamente motivada pela narrativa. Esta parece uma ótima maneira de exprimir o inexprimível, de criar um sentido de que há algo mais, algo que não é visto, algo que não pode ser capturado diretamente por palavras ou imagens. O crítico católico Amédée Ayfre expressou esta ideia belamente em ensaio de 1964: “o que o corpo é para a alma, o que os sacramentos são para a graça, o que a palavra é para o pensamento – isto é o que os filmes de Dreyer são para um mundo misterioso que normalmente nos escapa” (AYFRE, 2004, p. 205). É evidente tanto no ensaio sobre o filme em cores e os filmes de que Dreyer tinha um forte interesse em padrões estilísticos, mas não seguia estes padrões apenas por um desejo próprio – eles serviam à função dos filmes.
Acredito, contudo, que é um erro impor um significado particular no sentido do inexpressível ou inefável que Dreyer cria. Isto é, claro, o que Schrader faz quando identifica estes padrões com o Transcendente; mas neste sentido penso que é muito revelador apenas mencionar Gertrud (1964) de modo superficial. Ele chama o filme de “kammerspiel” (uma das categorias estilísticas que ele usa para descrever os filmes de Dreyer), um estilo diferente do estilo transcendental; por implicação, Gertrud não é um filme no estilo transcendental. Ainda assim, inclui muitas das características salientes do estilo esparso que podemos encontrar em A palavra, sendo ainda mais estático e anti-naturalista. Há um ato aparentemente decisivo próximo ao fim, neste filme – Gertrude rejeitando todos seus amantes – e a cena final de êxtase [stasis]. Por que Schrader não o considera como sendo um filme transcendental?
Schrader provavelmente argumentaria que a decisão de Gertrud de se afastar não é um “ato decisivo”. Em seus termos: “um evento incrível [...] que deve ser tomado amplamente pela fé” (SCHRADER, 1972, p. 46); ao contrário, toda a história é construída para defender esta decisão psicologicamente. Penso, contudo, que outra razão para a exclusão de Gertrud de suas considerações seja a falta de religiosidade explícita no filme. É uma história secular, diferente dos filmes de Bresson (se se aceita a reinvindicação de Schrader de que eles seriam imbuídos de Zen) e também diferente de Ozu. O que sugere que também Schrader está mais disposto a encontrar o estilo transcendental em filmes que também contêm elementos temáticos de conotação religiosa.
Isto não é surpreendente, estando de acordo com a descrição de Torben Grodal de que os “melhores filmes de arte” empregarão “dois procedimentos entrelaçados” para a criação de significado mais “profundo” (superior): proverão “uma representação ‘simbólica’ de alguns campos de significados acima do ‘nível básico’” como também “uma série de características estilísticas salientes” que parecem relativamente isoladas de qualquer “função narrativa transparente” (GRODAL, 2000, p. 50). O vago sentido de um sentido profundo criado pelas características estilísticas, como vimos, “tantaliza” o espectador e encoraja sua tentativa de fazer sentido: elementos temáticos podem sugerir alguns tipos de significado mais do que outros, mas eles irão permanecer como construções do espectador.
Para Schrader, é a obra de arte que tem o potencial de revelar o divino; o espectador precisa meramente abrir seus olhos e sua mente para isso. Parece mais provável, ao menos para mim, que aqueles que experimentam o “algo” inefável sugerido pelos estilos esparsos de Dreyer e outros autores como sendo intimações do divino são os tendentes a fazer tal leitura. Como Astrid Söderbergh Widding aponta em breve, mas incisiva discussão sobre Schrader em seu artigo intitulado Manifesting the invisible in the medium of the visible:
O que Schrader tende a negligenciar, contudo, é que à medida que estes estilos abrem espaço para uma dimensão transcendental nos filmes, é em medida semelhante através do olhar do espectador que este mesmo fenômeno passa a existir. Não é, portanto, suficiente para colocar tanto estética e temática na equação. Em grau igual, se trata de matéria para a participação do espectador e sua contribuição criativa durante o processo de assistir o filme. (SÖDERBERGH WIDDING, 2005, p. 83).

Uma das forças do modelo de Grodal é nos permitir compreender como a mente do espectador faz sua contribuição criativa.

Conclusão
Para a compreensão dos supostos filmes “transcendentais”, acredito que o modelo de Grodal oferece um instrumento analítico superior ao de Schrader. A descrição de Grodal do efeito de entrelaçamento do estilo saliente (frequentemente abstrato) e o conteúdo temático indicativo de significado mais profundo, casado com a contribuição de um espectador adequadamente disposto, parece (para mim) mais plausível que a crença de Schrader no Transcendente e num estilo particular que eventualmente converge em sua direção. Dito isto, caso se desconsidere as premissas transcendentalistas da obra de Schrader, pode-se encontrar nela muito que é perspicaz e sugestivo. As características estilísticas identificadas e descritas por ele são altamente relevantes para a compreensão dos filmes em questão. Por fim, contudo, o “filme transcendental” é melhor compreendido como uma subcategoria dos filmes de arte descritos por Grodal.




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[1] Nota do tradutor.
[2] Adição do tradutor.
Este artigo foi originalmente publicado em Northern Lights: Film & Media Studies

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