Nilo Henrique Neves dos Reis
Professor de Filosofia da UEFS
RESUMO
Trata-se
de ficção literária com forte influência de Platão e Thomas More, ainda que não
mencionados diretamente no decurso da "estória-filosófica", que se
centra na polarização indevida do diálogo político no mundo contemporâneo. O
escrito expõe o limite da não compreensão do outro em razão de os personagens
defenderem posições políticas absolutamente distintas, o que impossibilita
qualquer diálogo. A personagem Schibboleth (xibolete e Ciboleti), tomado como
uma metáfora da Bíblia, serve como contraponto às duas perspectivas, as
quais usam as mesmas palavras com significados diferentes. O propósito é o de
mostrar que nenhuma delas tem a capacidade de escutar a outra moderadamente.
PALAVRAS-CHAVE: Diálogo; Política; Polarização ideológica.
ABSTRACT
It is a literary fiction with a strong influence of
Plato and Thomas More, although it is not directly involved in the course of
"philosophical philosophy", which will be centered on the undue
polarization of political dialogue in the contemporary world. The writing
exposes the limits of not understanding as to why the characters defend
absolutely different political positions, or what makes any dialogue
impossible. The character Schibboleth (xibolete and Ciboleti), adopted as a
metaphor of the Bible, serves as a counterpoint of the two
perspectives, and which are the same words with different meanings. The purpose
is to show that none of them is able to listen to another moderately.
KEYWORDS: Dialogue; Politics; Ideological Polarization.
Quinta-feira, dezessete
horas e quatorze minutos e as pessoas louvam a si próprias ou acusam outras. É
sempre assim nas tardes nordestinas, principalmente em dias de reuniões
sindicais que são realizadas quando se acentua a escassez de chuvas. Por conta disto,
o calor ganha contornos inusitados nas mentes e corações humanos. Nestes
encontros que reúnem trabalhadores da mesma profissão, independentemente da
categoria, as emoções mais grotescas ganham espaços e exercem uma atração à
parte nas argumentações dos oradores. A cada pronunciamento, tem-se a sensação
de que a morte está chegando. A voz profética apregoa a boa vitória conquistada
com as últimas ações do grupo coeso, ao mesmo tempo em que profere que o
malogro total ocorreu pela não participação efetiva da maioria. Com estas
verdades, expõe os impuros e, igualmente, ensina-os a serem silentes quanto a
propostas divergentes da direção. Só os puros sabem o caminho da salvação. E
não há outro a quem se atribua mais valor do que o que dedica sua vida à causa
sindical.
O calor aumenta, o
ar-condicionado não suporta o número de participantes e o orador,
desconsiderando o mal-estar provocado pela temperatura elevada e pela falta de
chuva, mantém sua fala com vistas a educar, contando como os filiados cheios de
virtudes enfrentaram as forças de segurança, enquanto os impuros, em um ato de
total ingratidão com o esforço daqueles, decidem se saem agora ou daqui a pouco
da reunião.
Há três horas começaram
os informes da assembleia e Efraim e Gideão, por conta das concessões que só
uma amizade verdadeira proporciona, discutem perspectivas políticas, como se
estivessem em uma convenção imaginária, convidados pelos presentes para escutar
os fundamentos de suas próprias crenças.
— Você não tem
sensibilidade política, disse Efraim.
— Como não! Ao meu
sentir estético, eu diria que tu não percebes os paradoxos interiores de tua
perspectiva esquerdista de criticar a direita e gozar dos benefícios produzidos
pelo capital, respondeu Gideão.
— Que progresso
fantástico, ironizou Efraim, e retrucou: se a vida humana não fosse crítica e
completa neste sistema que prioriza apenas o lucro, eu seria obrigado a me ver
em uma inexorável não existência. Mas sendo crítico, fui levado a desnudar as
vestes que escondem a realidade que iludem meus olhos para perscrutar as
verdades das coisas que não aparecem diretamente às retinas. E ao descobrir que
uns têm acesso a todos os recursos naturais às custas de outros, no tribunal de
minha consciência, deixei de ser uma testemunha que favorece o lobo; deixei de
ser um operário que cuida do galinheiro para viver de sobras. Diferentemente de
ti, eu luto pelo homem individual, mas também por uma ideia universal de
humanismo transformador; uma que permita a distribuição igual de tudo para todos.
Espero que ao final desta batalha, o próprio sentido de ser humano consumido
pelo mercado deixe de existir e que, junto a meus companheiros, levemos uns à
morte para o bem de muitos, promovendo o renascimento de uma nova espécie de
ser.
— E quem comandará esta
nova sociedade? Qual será a pedagogia ensinada às novas criaturas adâmicas?
— Primeiro, retrucou
Efraim, trata-se de um ser puro, sem qualquer vestígio de um criador
transcendente. Portanto, sem vícios. O arauto não carregará fardo algum da
tradição cristã.
— Como não? Por trás de
qualquer projeto HOMEM há sempre uma criatura primitiva escondida, vivendo nas
suas idiossincrasias e julgando que a maçã do vizinho é mais saborosa que a
sua. As relações sociais e a educação podem domesticar o homem, mas, no fundo,
abaixo do fundo, lá, bem abaixo do fundo, há arquétipos inconscientes que
teimam em renascer em cada criança que vem ao mundo, contestou Gideão.
— Tu não percebes a
essência da revolução, não sabes que a esquerda que represento tem um saber único
que foi inspirado pela verdade do tempo que descobriu que esta é mais uma
ilusão que o capital vende para a inação dos operários. Esta mentira difundida
pelas instituições burguesas leva o homem ao recolhimento de si, prendendo sua
existência à ideia de possuir coisas, sempre mais coisas, organizando sua vida
psíquica na idolatria de consumir produtos. Todavia, ao lado deste
desumanizar-se, põe-se em marcha a libertação do homem velho com suas fantasias
burguesas. Eu sou um gladiador da liberdade, mesmo que não entendas bem este
detalhe. E como gladiadores em tempos coevos, lutamos dentro do circo do
capital, sob o olhar dos romanos que se divertem com nossos embates contra suas
feras, que, na verdade, são nossos coirmãos usando suas fardas com armas, cassetetes
e sprays de pimenta contra seus libertadores. Tudo bem, eu aceito as
contradições deste mundo de conviver e lutar para libertar o homem em uma
situação em que o submetido à dependência do outro me oprime e não percebe que
é escravizado por outro, e que eu sou aquele que luta por seus direitos, aquele
que o liberta.No entanto, uma coisa é certa: a sorte do dinheiro está com os
dias contados!
— Não há dúvidas de que
muitos estabelecimentos hospitalares têm recolhido profetas com perturbações
mentais parecidas, ponderou Gideão.
— Louco? É assim que me
chamas? Mas quem alimenta o sistema que consome teu fígado és tu! Não percebes
esta realidade?
— Eu sou o realista
aqui! A humanidade é obrigada a reconhecer a inteligência da verdadeira mão que
a libertou dos mitos, das forças sobrenaturais e, a contragosto da esquerda
tosca e tonta, tem fornecido às pessoas um mundo cheio de prazeres perceptivos
a todos os anseios, permitindo, inclusive, que os loucos alimentem suas
próprias ilusões. E, continuou Gideão, foi a direita que gerenciou e criou o
mundo para as pessoas irem em busca de seus interesses, com suas verdadeiras
virtudes, e virtudes reais, e não este monte de palavras vazias que tu usas
para encantar ouvidos com todo o tipo de “neuronites” e outras patologias
utópicas que suscitam este drama de consciência nas almas despreparadas para
teu canto de sereia. Até mesmo o analgésico que te alivia as dores e o Rivotril
que me ajuda a conviver contigo são produtos da direita, que vive o mundo real
para que eu possa continuar te escutando e tu se enfureça na contradição
administrativa de tua irrealidade: até mesmo ela é permitida aqui. Somente este
estilo de vida te concede a liberdade que te damos para tramar contra nós.
— Enganas-te em
sustentar esta equivocada posição, disse Efraim. Claramente não entendes que a
missão do Estado que defendes é moldar as pessoas para que se sintam felizes e
boas, tornando-se, assim, cidadãos exemplares e inativos quanto às ações
políticas. É preciso compreender o sistema para entender como ele age no
psicológico dos indivíduos através das instituições, moldando um perfil
acrítico e passivo. Ao aceitar a existência das coisas como estão, começa-se a
imaginar que o mundo social obedece a uma ordem natural; logo, qualquer ação é
inútil.
Neste momento,
Schibboleth Silva de Israel interrompe a discussão com as seguintes palavras:
—Amigos, por acaso viram
Stigmata das Leges por aqui? Na entrada, contaram-me que ele estava perto de
vós. Espero que ele retorne, pois, conversar com Stigmata é sempre uma
gratificante atividade intelectual para nós três. E como sabem, eu me encanto
com estas discussões filosóficas e acadêmicas. Por isso, assisto com gosto a
vossas posições e perspectivas, mas preciso apontar algo que me incomoda neste diálogo;
e, se insisto em dizer isto, não é para ofender ou abrir outras feridas entre
vós, senão pelo bem da verdade, posto que sou um fiel cativo das suas
consequências, mais que de floreios retóricos. Colocada esta ressalva, salvo
melhor juízo, não entendi bem quais são os paradoxos apontados por Gideão,
tampouco como a liberdade concedida pela direita a Efraim é um presente. Por
favor, poderiam me explicar o que cada um tem a oferecer ao outro em argumento
para defender suas posições políticas?
— Efraim não entende de
fatos, Chiboleti, disse Gideão. A esquerda adora a presença da idealidade, dos
sonhos e, com base neste pressuposto, corrompe gerações de jovens com a
verbalidadeesquerdoide. A direita lida com fatos. Não há nada além dos fatos em
suas argumentações! O mundo que temos só é bom, porque nós, a direita, lidamos
com o mundo real, enfrentando os problemas que se apresentam sem se furtar ao
combate. Nossa ingerência sobre as coisas exige que as estudemos em sua
plenitude. Os fatos são reais. Usamos réguas, matemática e concreto enquanto
Efraim usa palavras vazias que falham quando o invisível de sua retórica não
encontra precedente na história.
— Pode até ser, devolveu
Schibboleth. Não obstante, não quero defender uma neutralidade axiológica; sou,
provavelmente, um amante das palavras que louvam o mundo real e paquero as
quimeras por entender que o pensamento metafísico faz parte do mundo. A flor é
um fato, mas sem uma contribuição conceitual que alie fato a valor se perde
qualquer construção de beleza estética, e o mundo sem beleza merece ser
destruído. Busco uma sincronia entre o fato e o valor através dos conceitos,
pois só unindo palavras para empregá-las de modo eficiente nas relações humanas
há motivo para construir um novo mundo, como pensa Efraim. Não quero, porém,
edificar esta nova sociedade com sangue. Quero que minha voz leve a mensagem de
paz e mudanças, ou, melhor, mudanças e paz!
— Impossível, falou mais
alto Efraim. O espírito do novo é plasmado no sangue da burguesia!
— Pode até ser, disse
Schibboleth, mas uma coisa me preocupa muito no tocante a rupturas forjadas no
sangue: o ódio. Este deixa marcas insuspeitas que dormem na ingenuidade do
tempo; principalmente em alguns corações insurretos. Alterações bruscas e profundas
são semeadas com o adorno do ódio. E nada de bom, absolutamente nada, cresce se
fertilizado com este sentimento. Não digo que entre os revolucionários não haja
pessoas de valor, dispostas a contribuir com o próprio sangue para formar um
mundo novo; porém, toda revolução é feita de seres humanos contra seres
humanos. E a história já tem uma tradição que, ao fim e ao cabo, não é boa.
Entre tantos humanos, há sempre um conjunto de aventureiros que apenas seguem o
fluxo dos acontecimentos e se moldam à nova realidade para garantir suas
benesses. Desse modo, Efraim, peço prudência a ti. E quanto a ti, Gideão, o
mesmo. Os acréscimos de bens materiais são bem-vindos; contudo, se o sentido da
existência é o acúmulo de coisas, e, cá entre nós, supérfluas, não seria outra
ilusão viver na busca constante do consumo? De mais a mais, tantos entre novos
construtores, como os velhos dominadores, trazem consigo os instintos
primitivos que, mesmo vigiados por qualquer sistema eficiente, ao final, sempre
conseguem um jeito de colocar seus interesses em marcha, seja em qualquer
“ismo” que se organize à sociedade. Faz parte de nossa natureza humana
corromper qualquer criação, basta lembrarmos da expulsão do paraíso. Adão não
trazia uma história consigo; todavia, no seio de sua constituição, trazia a
concupiscência – imagine o mal que deixou de herança aos seus filhos? Desta
maneira, eu digo que até os melhores humanos se corrompem ao perceberem as
circunstâncias concretas das relações sociais e, mais ainda, ao entenderem que
os maus conseguem lidar melhor com os obstáculos da vida prática do que os
justos. E mesmo que a educação esteja voltada para valores supremos, ao final,
como cada criatura que vem ao mundo chega coberta de ignorância e impulsos
primitivos, o que exige uma educação constantemente diligente, sempre há quem
escape e não valorize bem o que é fundamental para todos, já que, graças ao
elemento primordial de nosso primeiro ancestral, somos incapazes de correção
moral. Daí que qualquer processo revolucionário é feito por homens falhos,
frutos de um ser decaído e amalgamado de luxúria, estando fadados ao pecado da
carne. E, cá entre nós, este apetite é impossível de ser saciado. Quanto a ti,
Efraim, continuou Schibboleth, consideras o que eu disse e se envergonhe de levantar
o punhal contra a multidão que queres salvar.
— Como assim?
— Isto mesmo, tu queres
salvar o mundo matando parte das pessoas que contestam tuas posições políticas.
Este é o teu primeiro paradoxo: não aceitas o diferente! Tu consideras o homem
burguês domesticado pelo sistema, por conseguinte, degradado naquilo que tem de
mais humano; por isto, tu desejas uma mudança que só poderá ocorrer
eliminando-se instituições e pessoas contrárias ao íntimo de tuas convicções.
Tu és um mestre que liberta o escravo para escravizá-lo em tua nova corrente. E
a submissão será total; afinal de contas, qual é mesmo a tua posição e por que
julgas que a tua escravidão é melhor do que qualquer outra?
— Simples, disse Efraim,
quero o fim das instituições que prostituem o homem, fazendo-o vender seu corpo
e sua alma a um sistema econômico que apenas o explora, não lhe permitindo ser
um Homem Pleno.
— Bela propaganda de
esquerda! No entanto, como farás isto? Perguntam, ao mesmo tempo, Gideão e
Scibboleth.
— Primeiro, eliminamos
todos os burgueses. Depois, suas instituições. Ou, melhor, destruiremos tudo
conjuntamente!
— Só os burgueses? E
aqueles que não são burgueses, mas que defendem posições que justificam a
vigente sociedade? É preciso lembrar que eles foram domesticados para
reproduzir o que a sociedade lhes ensinou; assim, não podem ser apenados por
responder às forças que, desde a tenra idade, lhes conformaram para serem deste
jeito.
— Mandaremos para um
campo de treinamento educacional para libertá-los de suas ideias equivocadas,
asseverou Efraim.
— Há estudos e
investigações teóricas sobre o sucesso desta pedagogia? E quanto tempo dura
este ensino? Perguntou Schibboleth.
— O tempo que o
educador-moral julgar necessário para converter o aluno dos valores
equivocados.
— E quanto aos mais
resilientes? Os que não quiserem mudar? Indagou Schibboleth.
— Estes serão
encaminhados para um campo de trabalhos forçados até que, cansados, mudem de
ideia, ou, atendendo ao chamado dos seus antigos deuses, sejam conduzidos para
o descanso eterno.
— Este chamado será
natural? Interpelou Schibboleth.
— Na maior parte das
vezes, sim; todavia, em outras, como no caso dos perseverantes mais soberanos,
um projétil esférico e metálico poderá ser usado para a referida condução.
— Que belas palavras
para justificar o assassinato por disparo de arma de fogo, ironizou
Schibboleth.
— Já são 18h23 e até
agora não sabemos por que alguns são contrários à moção de apoio, disse Efraim.
Por que não aprovamos? Este pró-reitor de políticas afirmativas é de esquerda.
— Eu sou contra, confessou Gideão, justamente
porque ele é de esquerda.
— Então, afirmou
Schibboleth, vocês têm uma opinião contrária porque o sujeito é de esquerda.
Afinal de contas, o que é ser de esquerda?
— A esquerda é uma
patologia, manifestou Gideão. O contrassenso atrativo dela é igualar as pessoas
que são, por natureza, distintas. Basta conceder direito político para cada um;
os demais que consigam com suor e empenho.
— É uma ignorância quase
esquizofrênica, falou Efraim. Ser de esquerda é ser pelo fim das desigualdades
e, simultaneamente, promover ações que garantam condições sociais para que os
mais despossuídos tenham as mesmas chances dos favorecidos. Não é suficiente
apenas ter direitos políticos, é imprescindível abonar direitos sociais.
— Começou com as palavras bonitas para ouvidos
de uns e dores de outros, contestou Gideão; a cada vez que um governante cede
ao delírio destas palavras, eu sinto meu bolso sangrar com o desvio de meus
impostos. Eu acredito que a natureza tem sua própria maneira de agir,
permitindo que cada pessoa se realize pelo seu trabalho.
— As diferenças são
abissais, disse Efraim; e sem a presença de um Estado intervencionista que
promova ações concretas para diminuir os obstáculos que o próprio sistema cria,
tais diferenças tendem a se agravar ainda mais, já que o lucro sempre segue o
dinheiro; este fica com poucos.
— Se entendi bem, pediu
a palavra Schibboleth, Gideão acredita que uma força interna organiza a
sociedade, e que não compete ao governo fazer ingerências para eliminar as
desigualdades, sendo necessário apenas que cada um se dedique a realizar seu
projeto pessoal que, no fim do processo, todos terão os benefícios que desejam.
Já Efraim acredita que o Estado serve aos que dominam a sociedade e, portanto,
é preciso tomá-lo e, da mesma maneira, promover o fim das desigualdades.
Correto?
— Concordo! Disseram os
dois em uníssono.
— Ótimo, é evidente que
cada um tem uma lógica para sua sociedade perfeita e que, no tocante ao resto,
não importa o quanto discutam, há um “solipsismo político e árdego, com
determinação psicológica recalcitrante” entre vocês!
— Que diabo é isso?
Perguntou Efraim.
— Não sei o que é isto!
Disse Gideão.
— É o resultado da minha
análise sociológica dos discursos de vocês, falou Schibboleth. A forma como
debatem suas opiniões está comprometida pelo entusiasmo que cada um tem pelo
som de suas próprias palavras e pela ojeriza aos vocábulos do outro. Por
conseguinte, não vejo como evitar a paixão que nutrem pelo chiado das letras
dos outros a ponto de usufruírem os benefícios de uma conversa entre vocês.
Vamos votar na pauta da moção?
— Sou contra, disse
Gideão.
— Sou a favor, falou
Efraim.
— Senhores, permitam-me
pensar em outro assunto.
— Sim! Responderam
juntos.
Então começou
Schibboleth:
— Gostaria de falar
sobre as moções. Assim, digo que qualquer um que explora com detida
atenção o espaço político sabe que as cartas são sabidas bem antes de colocadas
sobre a mesa. Os idealistas puros lutam por suas crenças, que, bem
compreendidas, não passam de juízos de valor alicerçados em sua imaginação.
Tanto a tradição quanto o mundo real escondem isto, porque querem colocar a
arte política como algo sem risco, algo que tem uma responsabilidade moral
transcendente. Mas, ao revisitar as particularidades do jogo político,
percebe-se que uns estão mais conscientes da competição e, assim sendo, não estão
ali por entretenimento. Outros idealistas puros (fundamentalistas) discutem
este assunto a partir de suas convicções sobre a natureza humana, bem como
sobre quais são as redes de obrigações e direitos que as pessoas têm entre si.
Suas muitas discordâncias lotam as bibliotecas das ciências humanas. A tradição
e o mundo real também escondem que este profícuo diálogo não importa no
ordenamento das vacas e no preço da carne no açougue. A humanidade,
dificilmente, identificará as diferenças sutis entre ideias e ações. E, sem
este entendimento, as próprias razões das coisas se ocultam...
— Que coisa bonita de
ouvir, disse Efraim.
— Concordo com Efraim,
balbuciou Gideão.
— Como sabem, a
moção é um instrumento proposto em uma assembleia que, uma vez aprovado, dirige-se
a favor ou contra uma pessoa ou causa. Então, trata-se de um objeto que visa
uma execução política, mas, ao mesmo tempo, cumpre uma função social e também
moral. Verifica-se que, nas entrelinhas do instrumento, pretende-se atacar,
agredir alguém ou algo com palavras escritas em um documento público. O
resultado depende, em grande parte, do insultado, pois, ofendido, pode revogar
alguma atitude anterior por receio da opinião pública, injúria ou
arrependimento. Enfim, sendo uma arma política, resulta numa ação de
responsabilidade, histórica, que nasce de uma oposição à concepção de homem ou
de tudo aquilo que se oponha ao projeto de humanismo cívico, sendo condição
ímpar para se conviver em sociedade. Nesses termos, mesmo havendo moção de
louvor, constitui-se numa inflexão decisiva; sua função é enaltecer algo que já
possui o julgamento favorável de outrem.
— Xibolete é de
esquerda, falou Efraim.
— Pelo contrário, senti
o discurso de conservador da direita, exprimiu Gideão.
— Gostaria de continuar,
disse Schibboleth. De modo ilustrativo, vejam como as
assembleias de estudantes agem com aprovações de moções contra os professores e
contra o governo. As dos docentes: aprovam moção contrária à reitoria e à
política educacional da administração. As dos portuários: moção adversa ao
ministro do meio ambiente, objetando as novas medidas do ministério. As das
igrejas católicas: desfavoráveis ao “liberalismo” (sem conotação econômica) das
novas eras. As das igrejas pentecostais: contrárias à tolerância às religiões africanas.
As dos amados abandonados: avessas à dominação do amado que, em seguida à
sujeição conquistada, abandona o amor. As dos esportistas: contra as
inconveniências às regras do jogo. As dos...
— Em geral é desse
jeito, declarou Efraim.
— Por conseguinte,
continuou Schibboleth, estes exemplos comprovam o argumento
de que a confecção do texto atende exclusivamente ao proponente da moção. Pelas
próprias razões do público que forma as reuniões, o alvo da moção não pode se
incomodar com esse ato unilateral, pois sabe que as palavras estão enraizadas
na crença de que o poder está legitimado em mãos do grupo que controla a
multidão da assembleia e, em simultâneo, sente que este é o ato mais efetivo da
sujeição dos dominados: solicitar consciência do uso do poder ao dono do poder.
Voltemos ao primeiro parágrafo; não, vamos continuar.
— Gostei de sua lucidez,
Chiboleti, declarou Gideão.
— De qualquer modo ou
aspecto que se analise a aprovação de uma moção, disse Schibboleth, se bem
entendido, o tópico segue sempre a ideia de contrariedade, uma espécie de
instrumento que procura inutilizar uma ação, vingar, de delatar uma atitude da
governança. Em bases finais: vomita uma insatisfação de um grupo contra outrem.
Fora os gracejos e até mesmo a pilhéria sobre um tema seriíssimo, muitas vezes
a moção perde seu significado, porquanto se tornou uma troça, uma brincadeira.
Imaginem se, de repente, algum partido de fascistas assumisse a direção de um
país com poderes totais ou, mesmo, democráticos; imaginem, ainda, que um
indivíduo que sempre ocupou posições privilegiadas dentro do partido
conservador, e que agora foi afastado por seu comprometimento com essas forças,
solicitasse uma moção de repúdio contra o seu estado de desemprego atual. Afora
a inversão estranha de valores deste sujeito colocado à margem da política, com
um conservador se queixando contra o governo (cuja política liberal defendia a
dinâmica do antigo governo), e outro (cujo programa protegia o trabalhador) sem
dar importância a este pedido. A grande retórica começa a mostrar sua face por
trás deste ‘instrumento’, cujo crédito ganha contornos inusitados nas mãos dos
idealistas puros e extra puros. Voltando ao caso acima, tal moção deveria ser
encaminhada aos novos líderes que compõem o governo e que, porventura, poderiam
solucionar a celeuma do desempregado. Pergunta-se: qual seria o espanto e, por
conseguinte, a atitude do destinatário? Acredito que seja desnecessária
qualquer especulação moral quanto ao assombro do sujeito que não teve, sequer,
uma resposta respeitável para sua missiva por parte do governo recém-empossado.
Questiona-se então: qual o desempenho deste organismo, ou melhor, qual sua
interpretação?
— Agora eu fiquei
confuso, Chiboleti, declarou Gideão.
— Isto mesmo, ficou
confuso porque sentiu na pele o que sua gente faz cotidianamente com as
reivindicações dos trabalhadores, expressou-se Efraim.
— Senhores, calma.
Atenção ao assunto, continuou Schibboleth. Sendo
assim, as moções deveriam ser abandonadas?
— Evidentemente
que não! Respondeu Efraim.
—
Contudo, retomou a palavra Schibboleth, é preciso repensar o tema e seu limite
em provocar litígios. Fracionar a infelicidade que se transformou num relevante
utensílio é desembaralhar o seu próprio valor. Afinal, não sabemos o que é mais
importante: descobrir por que uma moção será feita, ou entender por que a moção
não cumpre seus objetivos. Em troca, podemos renovar o papel da ferramenta.
— Você tem razão,
concordou Gideão.
— Por
sua natureza, prosseguiu Schibbolet, as moções são redigidas em folhas de papel
e, destarte, seria interessante aos edificadores de moções ter conhecimento de
quantas folhas de celulose são necessárias (ou gastas) para confeccionar atos
contrários. Talvez, até uma moção contra as moções, tendo em vista que algumas
árvores são mortas todos os dias para poderem se transformar em folhas de papel
que serão utilizadas de várias maneiras – algumas nobres, outras, não. Existe
um crime ecológico por trás de muitos documentos e talvez aqui esteja mais um,
mas alguns adeptos de moções ainda precisam se conscientizar contra os seus
inimigos, contra os seus contras.
— Agora que você
levantou a questão, é verdade – manifestou Efraim –, um verdadeiro crime
ecológico.
— Dir-se-á,
seguiu Schibboleth, nesse aspecto, que alguns membros que partilham destas
ideias são favoráveis ao conservadorismo, que optam por uma ditadura, que
preferem o silêncio diante da exploração ao futuro incerto pela mudança. Talvez
alguns não consigam enxergar que o tema foi exaustivamente mal explorado e que
pela primeira vez se solicita a abolição de uma prática tão equivocadamente
interpretada. Dir-se-á, também, que o pensamento não suporta mais o famoso:
FORA, FORA JÁ, Fora, fora, fora... Já é manifesto que algumas categorias
sofreram uma perda considerável dos seus quadros, pois não suportam a
discussão, a ditadura de algumas facções, a imensa maioria que controla as
assembleias, porquanto não entenderam que a democracia é a vontade da maioria,
mas que essa vontade tem que respeitar as minorias, ou, então, torna-se
totalitarismo de uma certa maioria.
— Tenho que concordar
contigo, resignado falou Efraim. De fato, sou culpado deste crime. Tenho
promovido estranhas perversões com alguns colegas que aparecem nas reuniões.
Longe de ser alheio aos seus sentimentos, sou até nocivo na escolha de minhas
palavras, embora, ao ouvido descuidado, soe adventício: “você aqui? O que tá
fazendo!?”.
— Maldade, pura maldade,
recuperou o discurso Schibboleth. Aliás, aproveitando sua confidência de culpa,
creio que, antes de qualquer coisa, é
necessário realizar uma avaliação das assembleias, dos chefes, dos limites, da
constituição dos quadros e do inimigo que se enfrenta. Mais do que nunca, é
preciso expulsar a ideia de que não pode ocorrer uma luta intestina nos painéis
das assembleias. E mais: é imperioso banir os discursos megalomaníacos que
caracterizam algumas reuniões, até mesmo a ordem das falas (note que sempre são
as mesmas e numa ordem quase combinada).
— Agora que disseste
isto, se bem que não havia tanta precisão, parece-me que é assim mesmo como
descreves. Sempre são as mesmas pessoas que falam em uma espécie de ordem,
comentou Gideão.
— Voltemos o foco para
as moções e a forma como ocorrem as assembleias, principalmente o debate com as
vozes discordantes da direção sindical. É imperativo
encarar tais discussões nesse mesmo espaço, pois é o único lugar no qual a
transformação ocorrerá; nesse sentido, seja experienciada a duplicidade do
sentimento, em conviver com a utilidade e a inutilidade da assembleia.
— Sou de acordo, disse
Gideão.
— Também concordo,
afirmou, com uma voz fina, Efraim.
— Se a gente olha com a
merecida atenção, constata-se que muitas pessoas não diferem tanto na defesa
das mesmas conquistas; as diferenças acontecem na escolha dos meios de luta, o
que mostra que as vozes publicizadas não são proferidas com vieses ideológicos
da direita. Por exemplo, não escutei Gideão ou qualquer outro defender uma
perspectiva de direita abertamente na assembleia, prosseguiu Schibboleth. Isso
exposto, vive-se na dicotomia das esquerdas, pois em assembleias só existem
esquerdas e é preciso modificar o ambiente privativo da reunião em espaço
público, findando a elitização de grupos conservadores no local, por
excelência, revolucionário.
— Concordamos, disseram
Efraim e Gideão.
— Que coisa engraçada,
falou Schibboleth. Vocês tiveram a mesma opinião; e o mais estranho foi que
usaram o plural sem combinar antes; que coisa!
— Quanto aos debates,
retomou Schibboleth, não se pode exclui-los das assembleias; é natural, é
benéfico e engrandecedor para o espírito crítico. Além disto, se há direita, há
esquerda. Uma não vive sem a outra! Tampouco há um
elixir ou qualquer espécie de medicamento miraculoso que possa solucionar a
questão. Só mesmo delirando na duplicidade – em meio aos “foras”, distribuídos
por aqueles que só seguem as ladainhas unilaterais de egos hiperdesenvolvidos,
ou seja, no meio daqueles que não exercitaram os tímpanos para perceber o
diferente, e no seio do público privatizado dos grupos e apaixonados em
salvaguardar uma nova era, que servem ao serviço de êxodo das assembleias –
poderemos mudar alguma coisa.
— Concordamos contigo!
— Parece que, enfim,
estamos superando os chiados que meu nome ganha com suas falas e, por
conseguinte, vencendo o “solipsismo político e árdego, com determinação
psicológica recalcitrante” que impedia o bom uso sonoro das palavras que une em
harmonia lábios e ouvidos. O teórico e o prático, o realista e o idealista
fazem bom uso das palavras. A força dos vocábulos leva a uma boa produção de
emoções e a transcendência de ações que transformam o mundo. Começo a ter um
otimismo em vós.
— Bem lembrado,
interrompeu Efraim, tu não disseste o que significa este conceito tão estranho.
— Daqui a pouco direi,
retomou Schibboleth, mas, pensando nos vieses ideológicos negados nas
assembleias, antes de recorrer a uma droga que
realize a despersonalização das assembleias e possa colocar as verdadeiras
questões que unem as classes em torno de uma questão, aparentemente, só
restaria a violência; este, contudo, não é o caminho aconselhável e, tampouco,
criativo; no entanto, com discursos do tipo FORA e, sobretudo, elaborados por
sonhos pequeno-burgueses não se consolidará muita coisa.
— Concordamos contigo.
— Por fim, reconquistou
o discurso Schibboleth, cabe lembrar que algumas lutas
necessitam de bandeiras e também de símbolos que representem suas pugnas. Assim
como o futuro representa um horizonte a ser palmilhado na construção
democrática, que alhures patrocinará condições econômicas estáveis, segurança,
educação e outras cositas más, é preciso entender que alguns partidos
que hoje se encontram no poder têm seu lado público pautado em belos símbolos
da natureza, mas, em seus gabinetes, desvelam o verdadeiro emblema quinhoeiro
no lápis. Afinal, com uma borracha do lado se apaga tudo com “quilate”.
— Isto é verdade pura –
avançou. Temos os trabalhadores no poder local, mas no que diz respeito ao
compromisso fundamental com a classe trabalhadora, quer se trate das leis
aprovadas, de diálogo, de valores, quer se trate de palavras comuns, vivemos
distantes. É de boa-fé que alguns companheiros ainda acreditam que eles
representam o povo; e outros digam que não.
Portanto, caros, antes de mover moções do tipo contrário a alguma coisa ou ato,
pensem nas árvores, no crime ecológico e, especialmente, no destinatário da
queixa, pois tanto a tradição como o mundo real têm uma ideia confusa quanto ao
uso do instrumento. Uma coisa é certa: sem moções, as assembleias terminam mais
cedo.
— Concordamos, disseram
juntos mais uma vez.
— E o que é solipsismo
político e árdego, com determinação psicológica recalcitrante”? Querem saber?
— Como não?! Falaram
juntos mais uma vez.
— Este conceito se
parece mesmo com meu nome em vossos lábios. Meus pais me chamam de Scibboleth,
mas tu Efraim, diz Xibolete; já tu, Gideão, pronuncias Chiboleti.
— Não é a mesma coisa?
Falaram juntos.
— Antes, uma pergunta:
já se decidiram sobre o voto da moção?
— Eu sou a favor,
respondeu Gideão.
— Eu sou contra,
retorquiu Efraim.
— O significado do meu
nome seria importante se suas falas fossem desinteressadas e em busca de
objetividade. No entanto, as simplificações não servem aos interesses de suas
polêmicas, assim, vos digo que Schibboleth, xibolete e Chiboleti é a próxima
dança do carnaval baiano. Ela procura separar as comunidades por conta dos
chiados na pronúncia dos “xis”. Se duvidam, um após o outro, falem esta palavra
em alto som. Vamos deixar esta assembleia? Vamos saborear uma cerveja? Este
ponto da moção ainda está em discussão e não será tarefa nossa eliminá-lo. Tal
como um Schibboleth/Xibolete/Chiboleti, é fácil diagnosticá-lo, mas os riscos
para abandonar nossas convicções constituem uma estranha e perturbadora força
que, já presente no interior do homem adâmico, perpetua-se independentemente
das vestes que use.
Referências
Bibliografia
consultada/ serviu de inspiração
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da Sociedade Bíblia Ibero-Americana & Abba Press no Brasil. São Paulo: Abba
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STALIN, Joseph. Em Marcha para o
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