Oxum e
a iniciação feminina
por Liliana
Liviano Wahba
como citar: WAHBA, Liliana
Liviano. Resenha: Oxum e a iniciação feminina. Revista Sísifo. Nº 10, v.
1. Julho/Dezembro 2019.
FERNANDES,
Ermelinda Ganem. Oxum e a iniciação feminina. Salvador: Editora Gato
Preto, 2019.
A autora parte da relação eu outro e da natureza interior
do eu, uma busca incessante, sem derivar para fórmulas prontas de autoajuda,
particularmente proliferando na produção de escritos sobre o que seria
entendido como a real natureza feminina. A mulher na sociedade patriarcal
acordou de seu estado lunar, de sua condição refletida, e encontra seu brilho
próprio.
Ermelinda Ganem conduz o imaginário para a descoberta do
esplendor de ser mulher. Teorias pós-modernas afastam-se de essencialismos,
pois o ser humano não é dado a priori, ele se faz nas relações e
circunstâncias, assim o homem e a mulher. Entretanto, para a mulher, o que lhe
é próprio confunde-se ainda com o que lhe é negado e, em reposta, o que ela se
nega a si continua vigorando na sociedade patriarcal.
Se não há essências pré-determinadas para contingenciar
como se faz a mulher, há interditos que regulam relações e repelem
reconhecimentos, entre eles, a natureza de cada um, moldada por emoções,
pulsões, motivações instintivas.
No livro apresentam-se potências: maternidade, sedução,
criatividade fecundante biológica e espiritual. A iniciação é ricamente
descrita, assim como as fúrias que pertencem àquilo que é vivo, indomado, e que
podemos notar em mulheres inconscientes de sua força, acometidas por furores
inesperados e que oscilam entre a vítima e a destruidora. O ritual de lavar as
impurezas dos braceletes aponta em parte para esse desafio e cuidado.
Também se ressalta o sacrifício em rumo à possibilidade de
integração, da mulher, e do feminino no homem, sacrifício este que remete à
perda da docilidade submissa, seja de esposa ou de mãe e - note-se - no mito
morre a esposa do rei, mas a filha gestada é salva, o que aponta para a nova
mulher renascida. Toda iniciação é um renascimento, de possibilidades, de
potências, de transformações.
Em linguagem mitopoética, Ermelinda nos leva a
interioridades potentes e reveladas que escapam a teorias construtivistas
focadas na abertura da liberdade. Contudo, a liberdade consiste em acolher
aquilo que inspira, e Oxum é apresentada como pura inspiração. Sem ser um modo
único de ser mulher, é potencialmente um deles, e tantas meninas e mulheres da
atualidade o desconhecem, inconscientes de seus corpos e desejos, de sua
vitalidade e fluidez vigorosa que movimenta, irradia e ressoa, como os
braceletes de Oxum.
Autora da resenha
Liliana Liviano Wahba é
analista junguiana, membro da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica,
professora doutora em Psicologia da PUC-SP.
Alex
Simões – Trans-formas-são
por Laurenio
Sombra
como citar: SOMBRA, Laurenio.
Resenha: Alex Simões, Trans form ação. Revista Sísifo. Nº 10, v. 1.
Julho/Dezembro 2019
SIMÕES, Alex. Trans formas
são. Salvador: Organismo, 2018.
O
livro Trans formas são, de Alex Simões, começa já com uma epígrafe
curiosa: um trecho da letra Memória da pele, de Wally Salomão – Wally
cujos poemas Alex tantas vezes interpretou -, mas deixando claro que com as
vogais de Maria Bethânia: “baaaaaaate é na memória da minha pele...”. Aqui,
alguns avisos já são dados para o leitor desavisado. Vem aí um livro de poemas
que também é “memória da pele”, que transa ao mesmo tempo com o lirismo e o
humor, e que não tem medo de um sentimento desavergonhado. Mas cuja emoção
esconde outras coisas: enquanto anuncia esse esparramar, ele também realiza
seus detours, segue por outros caminhos, dialoga com poetas, reflete a
própria poesia e constrói “grafismos” que entortam a leitura fácil, como se por
trás do lirismo viessem outras caixinhas escondidas.
De
um lado, ele promete um “poema chã”, já que “meus versos não vão além / daqui e
da ágora” (p. 17). Assim, ele fala do sentimento da morte do pai e do coma da
avó; curte “tapioca e café todos os dias” (p. 13)
e brinca com o hashi japonês – pauzinho ou ponte? – para derivar numa poesia
erótica e divertida: “assim como nós dois / com dois pauzinhos, que às vezes se
esfregam aligeirados, e outras / se atravessam como ponte” (p. 21). Erotismo
que se repete e se mistura (inclusive graficamente) em “fundirpalavregozo / comer com
glandes olhos / prender-se em tom jocoso” (p. 22).
Mas
a “terra chã” pode trafegar por caminhos bem mais longos. O inesquecível início
da Divina comédia de Dante, “nel mezzo del cammin di nostra vita”, pode tornar-se “nel mezzo
do in-between”, e o meio do caminho pode ser entre Itaparica e Itapuã, mas pode
cruzar outros tempos e espaços, entre a Itabira de Drummond e a Ítaca de
Odisseu. Faltas, saudades e buscas parecem se cruzar em várias terras, com o
poeta tentando atravessá-las.
Ou
a “memória-rã”, numa piscada de olho gaiata, com a dificuldade de “deletar / os
seus arquivos da memória”. No final, “a ponte atravessando: rio à toa” (p. 32). Mas a memória surge
novamente nos “des-dísticos” (estrofes com dois versos). Neles, a pergunta
filosófica e fundamental: “memória e corpo há / distintos um do outro?” (p.
38). Como seria possível separá-los “se antes do começo / lavei meu rosto num
espelho leto- [que evoca o rio Lethe do Hades grego, o rio do
esquecimento]/fluvial-narcisístico e se o gesto / inaugural do mito encharca o
resto?” (p. 38).
Em algum momento, Alex dialoga com um
possível crítico da sua poesia: “você pode, e com razão, / ver que me faltam
boas ideias / e que tendo a apelar pros grafismos / como forma de expressão”
(p. 33). Mas desconfio que ele também esconde o jogo quando, evocando o mesmo
derramamento do Wally via Bethânia da epígrafe, reivindica apenas “o rufo tosco
e bem batido / deste pobre / coração” (p. 33). O coração está lá, na sua terra
chã, claro, mas esta camada sempre dá saltos para outras que pensam e elaboram,
que criam formas inesperadas, cujos “grafismos” evocam diálogos mais
sofisticados.
É o que parece acontecer também quando, a
propósito de uma leitura do livro O demônio da teoria de Compagon, Alex
evoca toda uma classificação de poetas ruins, aqueles que buscam “o joio
travestido de frumento [uma espécie de trigo selecionado]”, listando-se entre
aqueles que têm vocação “para gambiarra”, dos que sabem “lançar mão do que está
ao seu alcance, / fazer do que é ruim necessidade,” a ponto, espertamente de
fazer-se personagem “que vive a farsa tão forçosamente / a ponto de tirar disso
vantagem.”, como uma espécie de “fingidor” pessoano de repente travestido em
poeta baiano.
Essa reflexão descarada e crítica talvez
perpassa boa parte dos poemas. É ela que permite afirmar que “todo poeta é
experimental / ou não é poeta / é pagador de hipoteca / é arremedo de pateta /
é batedor de punheta” (p. 80). E, coerente com as formas “trans” do seu título,
afirma que “todo poeta e toda poeta é / transgênero por vocação / híbrido por
definição / todo poeta é ladrão” (p. 80.
É nesse fluxo amoroso, safado e meio ladrão
que transcorrem as “trans-formas” de Alex. Nelas, a sensação deliciosa de que
perdi um monte de coisa nesse rio Lethe, que pode virar um rio desviado no meio
da Bahia; perder pode significar que não entendi algo, mas é isso que
incita a ler de novo e jogar novamente esse jogo que ele propõe.
AUTOR DA RESENHA
Laurenio Sombra é Professor Adjunto de Filosofia da
Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Doutor em Filosofia pela
Universidade Federal da Bahia (UFBA).
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