E se Aristófanes estivesse certo?: Uma análise crítica à face caricatural de Sócrates na peça teatral “As Nuvens”



como citar: OLIVEIRA, Wanderley Costa de. E se Aristófanes estivesse certo?: Uma análise crítica à face caricatural de Sócrates na peça teatral “As nuvens”. Revista Sísifo. Nº10, v. 1, julho/dezembro2019.

Wanderley Costa de Oliveira


Resumo: Aristófanes é conhecido pela sua crítica dantesca e pela ferrenha oposição a Sócrates de quem lhe dedica uma peça teatral intitulada “As Nuvens” no ano de 423 a.C.ao qual o filósofo é acusado de subverter os jovens e pregar o ateísmo quanto à religião popular dos deuses olímpicos. A pergunta que se faz é: Será mesmo que a peça deve ser relegada apenas a um modo de fazer deboche com as personalidades públicas costumeiro das comédias gregas antigas? Ou Aristófanes na verdade apontou falhas na dialética socrática ao igualar Sócrates aos sofistas? Em outras palavras, poderíamos concordar com Aristófanes em certa medida quando este mostra a dialética socrática semelhante ao método sofista de persuasão? O artigo enseja investigar a possibilidade de haver uma certa pertinência quanto ao ataque ad hominem a Sócrates e de que modo as personagens Estrepsíades e Fidípides atuam na peça deixando elementos fundamentais para a reflexão aristofânica ao método dialético socrático, sobretudo, no confronto entre os raciocínios justo e injusto no decorrer da encenação.
Palavras-Chaves: Dialética socrática; Aristófanes; As Nuvens; Análise

Abstract: Aristophanes is known by his acid critical and his strong opposition to Socrates who dedicates a playhouse piece called “The Clouds” at 423 B.C. which Socrates is accused to subvert the youngest people and defends atheism in relation of popular religion of olimpics gods. The question to do is: Maybe “The Clouds” must be relegated to the one way of make fun with public personalities customarily do in ancient Greek comedies only? Or in fact, Aristophanes have been showed failures in socratic dialetic to match Socrates to the sophists? In other words, Could we agree with Aristophanes to some extent when he shows socratic dialetic similar to sophistic persuasive method? This article entice to investigate the possibility to have a certain relevance about ad hominem attack to Socrates and in how Estrepsiades and Phidipides staging in “The Clouds” leaving key elements to aristophanic reflection about socratic dialetic method, especially in confrontation between fair and unfair thinking around the staging.
Keywords: Socratic Dialetic; Aristophanes; The Clouds; Analysis.   



Introdução
Sócrates foi para a Filosofia um marco divisório entre a cosmologia e o relativismo antropológico dos sofistas de modo que o rompimento conceitual da Filosofia em Sócrates o faz estar entre os filósofos mais importantes do Ocidente mesmo que não tivera deixado um legado escrito de sua autoria. A ausência de obras atribuídas a Sócrates é também estendida à ausência de dados biográficos mais detalhados o que faz a existência de Sócrates ser questionada.
Considerada como uma das referências descritivas a qual temos sobre o filósofo, “As Nuvens” (οι νεφέλες) do comediógrafo grego Aristófanes (445 a.C. – 386 a.C.) pode ser considerada uma versão distorcida de Sócrates ou uma forma de expressar a crítica ao qual o comediógrafo teve com os sofistas e que Aristófanes associa a prática sofista a um filósofo que também combatia os sofistas. Mas, será mesmo que Aristófanes exagerou “na dose” ao caricaturar Sócrates dessa forma?
Medrano (2004, p. 28) afirma que “o espaço simbólico ocupado por Sócrates é tão imenso, que, se por um lado, se confunde com as figuras quase míticas dos sete sábios, por outro se apresenta como um personagem próprio da comédia aristofanesca e de fábula picaresca”, ou seja, há aqui uma disputa entre dois discursos ao qual Sócrates é o centro das atenções entre os seus críticos (como Aristófanes) e seus apologistas (Platão, Xenofonte). Em linhas gerais:
“As Nuvens” sugere que que há um caminho que leva diretamente desde as investigações acadêmicas pedantes e os pequenos furtos, passando pela cosmologia e especulação científica até à blasfêmia e à corrupção moral. A implicação de tudo isto é, por conseguinte, que não há empresa intelectual – inclusive aquelas que não têm consequências éticas ou sociais ostensivas – que possa praticar-se sem colocar em perigo os fundamentos mesmos da sociedade. (WILSON, 2008, p. 26)
Vejamos então o que propõe Aristófanes na peça e por meio dessa análise procuraremos entender se Aristófanes estava de fato fomentando uma imagem capciosa e falaciosa de Sócrates ou se ele próprio Aristófanes poderia estar reivindicando tal importância junto ao seu trabalho de poeta e comediógrafo em detrimento da imagem de Sócrates ao qual o acusou de ser um sofista.

1.1. O Sócrates de “As Nuvens”
O ataque direto e ad hominem de Aristófanes a Sócrates é explícito por toda a peça. Na verdade, o ápice da sátira encontra-se na parábase proferida pela voz de Estrepsíades, personagem da peça que procura em Sócrates a habilidade de persuasão para não pagar os credores ao qual contraria dívidas, estimulado pelo Corifeu (κορυφαῖος). O Corifeu é um elemento teatral responsável pela interação com a plateia no sentido de que sua atuação é parte independente da peça por se tratar de “um membro destacado do coro que pode cantar sozinho” (MIRANDA, 2016)
Com isso, nas comédias gregas, o Corifeu segundo Miranda (2016) tinha 3 funções específicas:
a)       Exortar o coro à acção, a começar o canto;
b)      Antecipar ou resumir as palavras do coro;
c)       Representar o coro dialogando com os actores.
É nesse momento que Estrepsíades entoa nos versos da parábase evocando o desejo de querer ser como Sócrates uma vez que Aristófanes usa um personagem extremamente ignorante para caricaturizar a figura de Sócrates:
Agora então façam exatamente o que desejam. Este corpo que é meu eu lhes entrego, para apanhar, sofrer fome ou sede, ficar sujo, enregelado ou esfolado, se é verdade que vou escapar das dívidas e, diante do mundo, parecer atrevido, linguarudo, ousado, resoluto, velhaco, colador de mentiras, paroleiro, superescovado nos tribunais, tábuas de leis, charlatão, raposa, afiado em chicanas, macio na fala, dissimulador, viscoso e fanfarrão, digno de chicote, canalha, retorcido, chato e fila-bóia. Se me chamam assim os que se encontram comigo, façam exatamente o que lhes apraz e, se querem, sim, por Deméter, ofereçam-me aos pensadores, como um prato de tripas. (ARISTÓFANES em As Nuvens, 435-455, 1985, p. 188 negritos meus)
Como no teatro grego, os comediógrafos usavam o recurso de parábase para trazer em forma de comédia a realidade vivida no contexto social e político afastando o teor utópico da peça por meio do coro, Aristófanes usou palavras para descrever um Sócrates identificado como uma ameaça real, um inimigo cuja a construção desta retórica passasse despercebida em forma de riso, ou seja, Aristófanes acusa Sócrates de ser um sofista com as mesmas ferramentas argumentativas usadas pelos sofistas.
Além disso, há um outro traço da personalidade socrática trazido por Aristófanes no que diz respeito ao modo como Sócrates lidava com a “ignorância” de Estrepsíades. Na célebre frase “Tudo que sei é que nada sei” que fora atribuída a Sócrates, percebe-se uma certa humildade ao mesmo tempo em que o não aprisionamento do conhecimento deduz uma busca pela essência do conhecimento, pela verdade pura.
No diálogo “Teeteto”, Platão coloca na voz de Sócrates (já que o mesmo nada deixou escrito) sua apologia do nada saber dando à pessoa que participa do diálogo a missão do autoconhecimento como condição necessária para a admissão de sua ignorância:
Neste particular, sou igualzinho às parteiras: estéril em matéria de sabedoria, tendo grande fundo de verdade a censura que muitos me assacam, de só interrogar os outros, sem nunca apresentar opinião pessoal sobre nenhum assunto, por carecer, justamente, de sabedoria. E a razão é a seguinte: a divindade me incita a partejar os outros, porém me impede de conceber. Por isso mesmo, não sou sábio, não havendo um só pensamento que eu possa apresentar como tendo sido invenção de minha alma e por ela dado à luz. Porém os que tratam comigo, suposto que alguns, no começo, pareçam de todo ignorantes, com a continuação de nossa convivência, quantos a divindade favorece progridem admiravelmente, tanto no seu próprio julgamento como no de estranhos. O que é fora de dúvida é que nunca aprenderam nada comigo; neles mesmos é que descobrem as coisas belas que põem no mundo, servindo, nisso tudo, eu e a divindade como e parteira. E a prova é o seguinte: muitos desconhecedores desse fato e que tudo atribuem a si próprios, ou por me desprezarem ou por injunções de terceiros, afastam-se de mim cedo demais. (PLATÃO, 150c-e, 2001, p. 47)
Por outro lado, Aristófanes apresenta um Sócrates agressivo e impaciente quando tenta ensinar a Estrepsíades quando este parece “testar” a paciência de Sócrates ou a habilidade do filósofo em lidar com tais adversidades cognitivas apresentadas por Estrepsíades:
Estrepsíades: Sossegue, muito bem!
Sócrates: Bem, quando eu lhe propuser alguma questão erudita sobre as coisas celestes, trate de surripiá-la bem depressa...
Estrepsíades: Quê? Vou comer sabedoria, como um cachorro?
Sócrates: Esse daí é um homem ignorante, um bárbaro! Eu temo, meu velho, que você precise dumas pancadas... Ora vejamos, que faz quando alguém lhe bate? (ARISTÓFANES, 490, 1985, p. 189)
Na passagem em que Aristófanes coloca as Nuvens como sendo a divindade central para Sócrates, o comediógrafo faz uma alusão à Íris como sendo a deusa a quem Sócrates se comunicava. No “Teeteto”, temos uma passagem ao qual Sócrates afirma dizer que a Filosofia se inicia por meio do espanto e ao admitir Íris como sendo sua interlocutora com os deuses, Sócrates nega o protagonismo de Hermes a quem Aristófanes reverencia. Abaixo, segue as falas de Sócrates no “Teeteto” no fragmento 155 D:



Fonte: ALBERT, 1991 p. 57
De acordo com a tradução de Karl Albert (1991, p. 57), “Na verdade, a maravilha (thaumatzein) é o páthos (experiência do filósofo). Uma vez que em nenhum outro a filosofia começa a não ser por isso, e aquela que chama Iris, a filha de Taumante, parecem não definir incorretamente a sua origem.”
A citação de Íris por Sócrates no diálogo se dá ao fato de Íris ter sido somente a mensageira dos deuses e filha de Thaumas a qual poderia se traduzir tanto como “espanto” quanto “maravilha”; Thaumas era casado com Electra (uma das filhas de Oceano com Tétis) além de ser filho de Ponto com Gaia. Neste aspecto, Íris seria então o elo comunicativo dos homens com os deuses (uma correspondência feminina de Hermes) uma vez que ela era muito hábil e veloz como os ventos e tinha permissão dos deuses em transitar em todos os mundos.
Karl Albert (1991, p. 58) chegará a conclusão que o pensamento filosófico é um movimento do qual pode ser entendido como um processo cíclico mútuo entre o Homem e a divindade no sentido em que podemos também entender Iris como sendo o mesmo daimon do qual Sócrates dizia ouvir em sua mente antes e durante os diálogos filosóficos.
Iris seria esse “intérprete” entre o mundos intelectivo e sensível ou essa mensageira dos deuses e dos homens estabelecendo então conexões entre eles. No entanto, aos olhos de Aristófanes, trata-se de ateísmo. Naturalmente, as nuvens proporcionariam o surgimento do fenômeno arco-íris quando essas diante do Sol não estiverem em sua densidade.
Mas, na peça, Sócrates não apenas rejeita os deuses da cidade quando Estrepsíades oferece-se a pagar (como os sofistas praticavam) por seus ensinamentos como admite as Nuvens e outros deuses as suas divindades:
Sócrates (em terra): Por quais deuses você pretende jurar? Para começar, em nosso meio os deuses são moeda fora de circulação....
Estrepsíades: Como é que vocês juram? Acaso será por peças de ferro, como em Bizâncio?
Sócrates: Você quer conhecer claramente as coisas divinas e exatamente o que elas são?
Estrepsíades: Sim, por Zeus, se é possível....
Sócrates: E travar relações com as Nuvens, as nossas divindades, para conversar com elas?
Estrepsíades: Sim, demais! (ARISTÓFANES, 245-250, 1985, p. 180)
Percebe-se então que as divindades às quais Aristófanes fala são Íris, a deusa do céu e mensageira dos deuses e Éter identificado como o elemento primordial existente no Cosmos com características semelhantes ao Ar. Na peça, surgem os nomes dos deuses abordados como Turbilhão, Vapor e Língua. E continua a seguir com Sócrates explicando ao velho Estrepsíades de que a chuva não era obra de Zeus mas de um fenômeno natural em que a água se concentra no céu formando as nuvens por meio do processo de evaporação e retorna para a terra em forma de chuva. Em seguida:
Estrepsíades não cessa de repetir como papagaio a opinião de Sócrates segundo ao qual é preciso abandonar os velhos deuses em favor das divindades modernas chamada Turbilhão, Língua ou Vapor. Mas é demasiado estúpido e senil para sair orgulhoso a manejar as absurdas pedantarias linguísticas concebidas por Sócrates. Finalmente, o filósofo renuncia a ensinar nada a Estrepsíades por considerar-lhe um inútil. (WILSON, 2008, p. 26)  
A princípio e neste momento, nada parece concordar com Aristófanes, nem mesmo sua acusação de que Sócrates praticava ateísmo ao rejeitar os deuses de Atenas mas o que parece ser apenas um ataque pessoal, é uma crítica ao método socrático, especialmente quando outro personagem surge na peça: O filho de Estrepsíades, Fidípedes.

1.2. O método socrático em cheque
A crítica de Aristófanes a Sócrates perpassa não apenas no caráter pessoal mas também metodológico e filosófico embora Aristófanes não possa ser considerado um filósofo para tal empreitada. O título da peça é uma denotação ao que Aristófanes visualizava sobre o daimon ao qual Sócrates afirmava ser a mediadora entre ele e as divindades das quais aceitara.
Como se sabe, Aristófanes estava identificado com as tradições culturais dos tempos homéricos. Dessa forma, para o comediógrafo, é impossível a admissão de outras divindades que não fossem os deuses da religião popular, tanto que no confronto entre os raciocínios justo e injusto, Aristófanes deixa bem claro que o raciocínio injusto se trata de Sócrates justamente por romper com as tradições culturais.
Desse modo, a figura de Sócrates é transferida diretamente a outros dois filósofos igualmente “inimigos” de Aristófanes: Anaxágoras (pré-socrático naturalista) e Protágoras (sofista) sendo ambos contemporâneos tanto de Aristófanes quanto de Sócrates:
[...] por um lado, como um teórico da natureza seguidor de Anaxágoras e, por outro lado, aparece fazendo fama de sua habilidade para confeccionar discursos contraditórios, igualmente válidos, acerca de um mesmo objeto, com um desprezo absoluto de toda norma moral e da religião, seguindo a Protágoras. (MAIER apud. IBORRA e GONZÁLEZ, 1976, p. 23-24)
Há uma tentativa de desfiguração do método socrático. O método socrático consiste-se na dialética ao qual perguntas e respostas são geradas de modo a mostrar que a pessoa nada sabe previamente e está disposta a buscar a Verdade. Se pela Ironia procura-se refutar os argumentos do oponente, pela Maiêutica procura-se a busca pelo verdadeiro conhecimento, o γνῶθι σεαυτόν ou conhece-te a ti mesmo.
O problema do método está exatamente nessa Verdade. Quando há ausência de contrapontos ou outras visões de mundo ao qual a pessoa possa mensurar e confrontá-las, valerá o primeiro conhecimento adquirido daquilo como sendo o conhecimento a ser seguido. Ainda que a pessoa busque por si a Verdade, ela precisaria de uma referência por nada saber e estar aberta ao aprender e estando à essa suscetibilidade, todo conhecimento de qualquer natureza que seja, poderá ser válido.
Como Sócrates enfatiza a busca pelo conhecimento a partir de si mesmo e ele mesmo não possuía verdades, qual dos dois conhecimentos então será o verdadeiro? Em se tratando da dialética socrática em que se procura o afastamento da opinião (doxa) em favor do conhecimento (a episteme), o grande problema está exatamente nessa episteme uma vez que experimentado desse conhecimento, a tendência é se afastar do senso comum (da opinião, da doxa) mas se vê sozinho quando olha ao seu redor pois nem todos (ou muito poucos) estão dispostos a viver de modo “isolado” do grande público.
Aristófanes expõe então a grande “falha” do método de Sócrates quando Fidípedes participa da peça, pois, como Estrepsíades não aprendera “nada” com Sócrates por ser idoso e não entender o que se passara ali, Fidípides, por ser mais jovem e mais suscetível fragilmente à persuasão do conhecimento adverso à tradição:
Estrepsíades: Não, pelo Vapor! Você não ficará mais aqui. Vá comer as colunas de Mégacles!
Fidípides: Ó Senhor, que é que você tem, meu pai? Você perdeu o juízo, por Zeus Olímpio!
Estrepsíades: Esta aí, tá aí! Zeus Olimpio... Que bobagem! Esse daí, com essa idade, acreditar em Zeus!
Fidípides: Mas, afinal por que você achou graça nisso?
Estrepsíades: Porque percebi que você é uma criancinha e pensa de modo antiquado. Mas aproxime-se para saber mais. (sussurrando). E eu direi uma coisa que se você aprender, será um homem! Mas cuidade para não ensiná-la a ninguém!...
Fidípides: Sim, que é?
Estrepsíades: Agora mesmo você jurou por Zeus...
Fidípides: Sim
Estrepsíades: Então você vê como é belo aprender? Fidípides, Zeus não existe! (ARISTÓFANES, 815-825, 1985, p. 180)
O problema em si não está na aplicação técnica da dialética socrática mas em quem essa dialética se destina: “A questão não estaria no conteúdo da sophía socrática, mas na recepção desta sophía pelos seus ouvintes. Deve-se então saber a quem ensinar, ou antes, saber se aquele a quem se ensina deve ou pode ser ensinado” (ALENCAR, 2010, p. 79)
O que Aristófanes diz é que as pessoas não estavam aptas para a compreensão generalista dessa dialética e mesmo criticando Sócrates de forma enfadonha e desconcertante, o comediógrafo acabou por contribuir ainda mais para o aperfeiçoamento do método socrático. Na disputa entre os raciocínios justo (Aristófanes) e o injusto (Sócrates) para ver quem prepararia Fidípides ao conhecimento, Aristófanes mostra quem vencia sempre as disputas de argumentos:
Injusto: E se for um esculhambado, que haverá de mal?
Justo: Pois que desgraça ainda maior do que essa ele poderia sofrer um dia?
Injusto: E então que diria você se for derrotado por mim nesse particular?
Justo: Calarei a boca! Que mais?
Injusto: Então diga-me, vamos, os advogados públicos, onde é que vamos buscá-los?
Justo: Nos esculhambados...
Injusto: Acredito! E os trágicos, onde?
Justo: Nos esculhambados...
Injusto: Tem razão. E os oradores?
Justo: Nos esculhambados...
Injusto: Está aí, então não reconhece que diz tolices? Observe no meio dos espectadores, qual é a maioria?
Justo: Sim, estou observando...
Injusto: E então, que vê?
Justo: Pelos deuses, os esculhambados são mais numerosos. (Mostrando ao caso). Eis ali um, bem o conheço, e aquele ali, e aquele cabeludo que lá está...
Injusto: E então, que diz você?
Justo: (Resignado) Fomos vencidos. Ó prostituídos! Pelos deuses, recebam o meu manto que eu passo para o seu lado (Entra no “pensatório”) (ARISTÓFANES, 1085-1100, 1985, p. 209)
A partir desse confronto entre o raciocínio justo e o raciocínio injusto na peça, Aristófanes mostra o receio da empreitada sofista uma vez que para o comediógrafo grego, Sócrates era um sofista independente se cobrara por isso ou não. Por outro lado, enquanto “os sofistas podiam ganhar sua vida ensinando filosofia aos jovens ávidos de ideias inovadoras” (OSBORNE, 2012, p. 31), poetas e comediógrafos ditos conservadores aos antigos costumes homéricos demonstravam inquietação com tais mudanças impulsionadas pelos sofistas.
Logo, apresentar uma caricatura de Sócrates foi a saída de Aristófanes para externar sua indignação e inconformismo com as mudanças súbitas no contexto social, político e econômico grego em turbulências as quais explicitavam gradativamente o declínio da tradição religiosa e agrária ao qual o comediógrafo bem primava: 
[...] o que Aristófanes pretendia não era dar a conhecer o Sócrates real, mas tipificar a este como símbolo da orientação racionalista e ilustrada que a burguesia progressista ia impondo-se cada vez com mais força. [...] tanto Protágoras como Anaxágoras, com efeito, coincidem em propor aos atenienses e apesar de suas próprias diferenças doutrinais, um modo de pensar livre dos prejuízos tradicionalistas que de modo comum, entre a classe conservadora apegada à tradição, consideram como “ímpia” a filosofia. Por tudo isso, é opinião quase unânime hoje em dia que Aristófanes nas Nuvens, pretendeu oferecer um ataque polêmico da reação conservadora e tradicionalista contra a filosofia em geral que, havendo penetrado pela primeira vez em Atenas, ameaçava minar a fundo as velhas tradições morais e políticas.(IBORRA e GONZÁLEZ, 1976, p. 24) 
Em relação ao método socrático, no entendimento de Aristófanes, ele também poderia ser usado pelos sofistas se a preocupação deles fossem a busca pela essência do conhecimento ao qual Sócrates se preocupava inicialmente. Do mesmo modo que a ferramenta socrática servia para libertar as almas do sono dogmático da ignorância e do não-saber também podia aprisionar as almas mas não no senso comum (da ignorância do conhecimento dóxico) mas em si mesmo, na ignorância de si em um individualismo do qual só os discípulos de Sócrates sabem do verdadeiro conhecimento e os não-discípulos são todos ignorantes.
Assim, a ausência de conteúdo e a individualidade característica da dialética socrática não são compatíveis com as ciências objetivas ao mesmo tempo em que grosso modo, pode ser facilmente confundido com a persuasão sofista. Por isso que Aristófanes identifica Sócrates na peça como um sofista pelo fato de Sócrates ter tido muitos discípulos jovens como Alcibíades, Platão e tantos outros que o comediógrafo alega ser os mais jovens aqueles que mais se enveredam à Filosofia que os mais velhos.
Fidípides que na peça se tornara discípulo de Sócrates e pronto a usar de todos os argumentos necessários para sair vitorioso em qualquer empreitada é a evidência mais clara do temor que os atenienses tinham não apenas de Sócrates mas da Filosofia como um todo desde os tempos de Tales de Mileto. E mais ainda: Fidípides seria a personificação da nova aristocracia grega avessa às tradições e à religião dos tempos homéricos, dos deuses olímpicos.
No final da peça, Sócrates acaba por ser morto por Estrepsíades juntamente com os seus discípulos após rebelião liderada por este ateando fogo na residência paupérrima do filósofo, chamada de “pensatório”. Não é sabido se Fidípides morreu juntamente com seu mestre ou se colocou ao lado do pai Estrepsíades após agredi-lo e dizer que a agressão ao pai era justa e legítima (algo inadmissível para a tradição antiga e estava ocorrendo no tempo de Aristófanes)
Certamente, para um autor conservadorista como fora Aristófanes e que acreditava que o viver em sociedade era uma dádiva dos deuses, a Filosofia seria uma ameaça cosmopolita uma vez que é próprio da Filosofia abalar as estruturas do conhecimento dogmático tal como uma arte do pensar, principalmente em um período em que o ser humano passa por uma mudança de pensamento mais voltada para si mesmo do que para os céus.

Considerações Finais
Procurou-se aqui compreender o que estava por detrás da imagem de Sócrates caricaturada na peça “As Nuvens” do comediógrafo grego Aristófanes de modo a refletir se tal imagem não poderia ser uma crítica válida feita a um dos patronos da Filosofia Ocidental. O que vemos nos manuais de História da Filosofia é um desprezo ou até mesmo uma desqualificação do Sócrates aristofânico exatamente pelo fato de apresentar uma imagem deturpada do que fora de fato Sócrates.
É o caso de Marilena Chauí (2002, p. 183) que embora tenha feito um adendo, não sugere como válido o testemunho de Aristófanes: “Evidentemente, não podemos tomar Aristófanes como testemunha da filosofia socrática. Mas ele revela algo precioso: como os atenienses viam Sócrates e como, rindo da comédia, deixavam escapar a irritação que lhes causava.”
Se a crítica de Aristófanes não encontrasse solidez por ser uma comédia, o próprio Platão na obra “A República” não sugeriria que a Filosofia fosse ser ensinada aos futuros reis-filósofos depois dos 35 anos, ou seja, apenas quando já enseja-se uma certa maturidade uma vez que o jovem é considerado uma pessoa de afetos, paixões e ímpetos exacerbados e depois dos 35 anos, poderia se considerar mais moderado e gozar de mais autodomínio que por sua vez leva ao autoconhecimento de si mesmo.
Se não há nenhuma consistência no testemunho de Aristófanes, pelo menos há indicativos de que a filosofia socrática tinha falhas e as consequências trazidas por essa filosofia pode ter sido apresentada de modo bizarro e exagerado mas em suas entrelinhas, poderia haver um mínimo senso de razão coisa que os manuais de Filosofia preferem ocultar ou simplesmente suprimir os “gaps” que a dialética socrática apresenta em sua estrutura.
Assim, em analogia ao dito popular “O povo aumenta, mas não inventa”, conclui-se que embora haja divergências de interesses entre os dois autores, parcialmente, há contribuições que indiretamente foram feitas e como nos diz Emily Wilson, “As Nuvens” de Aristófanes pode ter inclusive contribuído diretamente para a morte de Sócrates por envenenamento diante do júri que o condenava justamente de ateísmo e subversão de jovens:
O comediógrafo criou uma “morte de Sócrates” ficcional uns 20 anos antes do juízo. Mais tarde Platão sugeriria que a obra de Aristófanes tinha sido um fator importante na condenação de Sócrates. As Nuvens nos mostra, com uma clareza meridiana, por que um cidadão normal e corrente de Atenas e como pôde ter sido necessário condenar Sócrates à morte. (WILSON, 2008, p. 24)
Portanto, a reflexão que Aristófanes nos trouxe com a obra pode ser considerada tanto uma crítica ao modo socrático de fazer Filosofia quanto uma forma de tirar o protagonismo de Sócrates de forma que ele seria visto mais como um sujeito digno de deboche do que de ser uma das figuras intelectuais centrais do pensamento grego antigo. 


Referências
ALBERT, K. Sul concetto di filosofia in Platone. – Milão, Itália: Vita e Pensiero, 1991
ARISTÓFANES. As nuvens. In: Coleção Os Pensadores: Sócrates. Trad. Jaime Bruna, Libero Rangel de Andrade e Gilda Maria Reale Starzynski. 3. ed. – São Paulo: Abril Cultural, 1985
CHAUÍ, M. Introdução à história da filosofia: Dos pré-socráticos a Aristóteles. Vol.1. – 10. reimp. 2.ed. rev. amp. atual. – São Paulo: Companhia das Letras, 2002
COLLINA, B. Colección descubrir la filosofia: Sócrates, maestro de filosofia y de vida. v.40. – Barcelona, España: Editorial Salvat, 2016
IBORRA, N. C.; GONZÁLEZ, S. V. Sócrates y los sofistas. – Valencia, España: Publicaciones de la Universitat de Valencia (PUV), 1976
MEDRANO, G. L. Guía para no entender a Sócrates: reconstrucción de la atopía socrática. Madrid, España: Editorial Trotta, 2004
OSBORNE, C. O Nascimento da Filosofia. In: PRADEAU, Jean François (Org.). História da Filosofia. 2. ed. – Rio de Janeiro: Vozes, 2012
PLATÃO. Teeteto. In: PLATÃO. Diálogos: Teeteto, Crátilo. Trad. Carlos Alberto Nunes. 3. ed. rev. – Belém-PA: Editora UFPA, 2001
WILSON, E. La muerte de Sócrates: héroe, villano, charlatán, santo. Trad. Josep Sarret Grau. – Barcelona, España: Biblioteca Buridán, 2008
Páginas da Web Consultadas
ALENCAR, C. A. M. (2010). O Sócrates de Aristófanes em As Nuvens. In: Revista Aproximação. n.3. Jan-Jul, 2010. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/311264440_tis_autos_Sokrtes_O_SOCRATES_DE_ARISTOFANES_EM_AS_NUVENS> acesso em: 09. Jun. 2019
MIRANDA, P. J. (2016). Tragédia grega. Disponível em: <https://hojemacau.com.mo/2016/09/20/tragedia-grega/> acesso em: 08. Jun. 2019

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