como citar: OLIVEIRA, Wanderley Costa de. E se Aristófanes estivesse certo?: Uma análise crítica à face caricatural de Sócrates na peça teatral “As nuvens”. Revista Sísifo. Nº10, v. 1, julho/dezembro2019.
Wanderley Costa de Oliveira
Resumo: Aristófanes é conhecido pela sua crítica
dantesca e pela ferrenha oposição a Sócrates de quem lhe dedica uma peça
teatral intitulada “As Nuvens” no ano de 423 a.C.ao qual o filósofo é acusado
de subverter os jovens e pregar o ateísmo quanto à religião popular dos deuses
olímpicos. A pergunta que se faz é: Será mesmo que a peça deve ser relegada
apenas a um modo de fazer deboche com as personalidades públicas costumeiro das
comédias gregas antigas? Ou Aristófanes na verdade apontou falhas na dialética
socrática ao igualar Sócrates aos sofistas? Em outras palavras, poderíamos
concordar com Aristófanes em certa medida quando este mostra a dialética
socrática semelhante ao método sofista de persuasão? O artigo enseja investigar
a possibilidade de haver uma certa pertinência quanto ao ataque ad hominem a
Sócrates e de que modo as personagens Estrepsíades e Fidípides atuam na peça
deixando elementos fundamentais para a reflexão aristofânica ao método dialético
socrático, sobretudo, no confronto entre os raciocínios justo e injusto no
decorrer da encenação.
Palavras-Chaves: Dialética socrática; Aristófanes; As Nuvens;
Análise
Abstract: Aristophanes is known by his acid critical
and his strong opposition to Socrates who dedicates a playhouse piece called
“The Clouds” at 423 B.C. which Socrates is accused to subvert the youngest
people and defends atheism in relation of popular religion of olimpics gods.
The question to do is: Maybe “The Clouds” must be relegated to the one way of
make fun with public personalities customarily do in ancient Greek comedies
only? Or in fact, Aristophanes have been showed failures in socratic dialetic
to match Socrates to the sophists? In other words, Could we agree with
Aristophanes to some extent when he shows socratic dialetic similar to
sophistic persuasive method? This article entice to investigate the possibility
to have a certain relevance about ad hominem attack to Socrates and in how
Estrepsiades and Phidipides staging in “The Clouds” leaving key elements to
aristophanic reflection about socratic dialetic method, especially in
confrontation between fair and unfair thinking around the staging.
Keywords: Socratic Dialetic; Aristophanes; The Clouds; Analysis.
Introdução
Sócrates foi para a Filosofia um marco
divisório entre a cosmologia e o relativismo antropológico dos sofistas de modo
que o rompimento conceitual da Filosofia em Sócrates o faz estar entre os
filósofos mais importantes do Ocidente mesmo que não tivera deixado um legado
escrito de sua autoria. A ausência de obras atribuídas a Sócrates é também
estendida à ausência de dados biográficos mais detalhados o que faz a
existência de Sócrates ser questionada.
Considerada como uma das referências
descritivas a qual temos sobre o filósofo, “As
Nuvens” (οι νεφέλες) do
comediógrafo grego Aristófanes (445 a.C. – 386 a.C.) pode ser considerada uma
versão distorcida de Sócrates ou uma forma de expressar a crítica ao qual o
comediógrafo teve com os sofistas e que Aristófanes associa a prática sofista a
um filósofo que também combatia os sofistas. Mas, será mesmo que Aristófanes
exagerou “na dose” ao caricaturar Sócrates dessa forma?
Medrano (2004, p. 28) afirma que “o espaço
simbólico ocupado por Sócrates é tão imenso, que, se por um lado, se confunde
com as figuras quase míticas dos sete sábios, por outro se apresenta como um
personagem próprio da comédia aristofanesca e de fábula picaresca”, ou seja, há
aqui uma disputa entre dois discursos ao qual Sócrates é o centro das atenções
entre os seus críticos (como Aristófanes) e seus apologistas (Platão,
Xenofonte). Em linhas gerais:
“As Nuvens” sugere que que há um caminho
que leva diretamente desde as investigações acadêmicas pedantes e os pequenos furtos,
passando pela cosmologia e especulação científica até à blasfêmia e à corrupção
moral. A implicação de tudo isto é, por conseguinte, que não há empresa
intelectual – inclusive aquelas que não têm consequências éticas ou sociais
ostensivas – que possa praticar-se sem colocar em perigo os fundamentos mesmos
da sociedade. (WILSON, 2008, p. 26)
Vejamos
então o que propõe Aristófanes na peça e por meio dessa análise procuraremos
entender se Aristófanes estava de fato fomentando uma imagem capciosa e falaciosa
de Sócrates ou se ele próprio Aristófanes poderia estar reivindicando tal
importância junto ao seu trabalho de poeta e comediógrafo em detrimento da
imagem de Sócrates ao qual o acusou de ser um sofista.
1.1. O Sócrates de “As Nuvens”
O ataque direto e ad hominem de Aristófanes a
Sócrates é explícito por toda a peça. Na verdade, o ápice da sátira encontra-se
na parábase proferida pela voz de Estrepsíades, personagem da peça que procura
em Sócrates a habilidade de persuasão para não pagar os credores ao qual
contraria dívidas, estimulado pelo Corifeu (κορυφαῖος). O Corifeu é um elemento teatral responsável pela interação
com a plateia no sentido de que sua atuação é parte independente da peça por se
tratar de “um
membro destacado do coro que pode cantar sozinho” (MIRANDA, 2016)
Com isso, nas comédias gregas, o Corifeu segundo Miranda (2016) tinha 3
funções específicas:
a)
Exortar o coro à acção, a começar o canto;
b)
Antecipar ou resumir as palavras do coro;
c)
Representar o coro dialogando com os actores.
É nesse momento que Estrepsíades entoa nos versos da
parábase evocando o desejo de querer ser como Sócrates uma vez que Aristófanes
usa um personagem extremamente ignorante para caricaturizar a figura de
Sócrates:
Agora então
façam exatamente o que desejam. Este corpo que é meu eu lhes entrego, para
apanhar, sofrer fome ou sede, ficar sujo, enregelado ou esfolado, se é verdade
que vou escapar das dívidas e, diante do mundo, parecer atrevido,
linguarudo, ousado, resoluto, velhaco, colador de mentiras, paroleiro,
superescovado nos tribunais, tábuas de leis, charlatão, raposa, afiado em
chicanas, macio na fala, dissimulador, viscoso e fanfarrão, digno de chicote,
canalha, retorcido, chato e fila-bóia. Se me chamam assim os que se encontram comigo, façam
exatamente o que lhes apraz e, se querem, sim, por Deméter, ofereçam-me aos
pensadores, como um prato de tripas. (ARISTÓFANES em As Nuvens, 435-455,
1985, p. 188 negritos meus)
Como no teatro grego,
os comediógrafos usavam o recurso de parábase para trazer em forma de comédia a
realidade vivida no contexto social e político afastando o teor utópico da peça
por meio do coro, Aristófanes usou palavras para descrever um Sócrates
identificado como uma ameaça real, um inimigo cuja a construção desta retórica
passasse despercebida em forma de riso, ou seja, Aristófanes acusa Sócrates de
ser um sofista com as mesmas ferramentas argumentativas usadas pelos sofistas.
Além disso, há um
outro traço da personalidade socrática trazido por Aristófanes no que diz
respeito ao modo como Sócrates lidava com a “ignorância” de Estrepsíades. Na
célebre frase “Tudo que sei é que nada sei” que fora atribuída a Sócrates,
percebe-se uma certa humildade ao mesmo tempo em que o não aprisionamento do
conhecimento deduz uma busca pela essência do conhecimento, pela verdade pura.
No diálogo “Teeteto”,
Platão coloca na voz de Sócrates (já que o mesmo nada deixou escrito) sua
apologia do nada saber dando à pessoa que participa do diálogo a missão do
autoconhecimento como condição necessária para a admissão de sua ignorância:
Neste particular, sou igualzinho às
parteiras: estéril em matéria de sabedoria, tendo grande fundo de verdade a
censura que muitos me assacam, de só interrogar os outros, sem nunca apresentar
opinião pessoal sobre nenhum assunto, por carecer, justamente, de sabedoria. E
a razão é a seguinte: a divindade me incita a partejar os outros, porém me
impede de conceber. Por isso mesmo, não sou sábio, não havendo um só pensamento
que eu possa apresentar como tendo sido invenção de minha alma e por ela dado à
luz. Porém os que tratam comigo, suposto que alguns, no começo, pareçam de todo
ignorantes, com a continuação de nossa convivência, quantos a divindade
favorece progridem admiravelmente, tanto no seu próprio julgamento como no de
estranhos. O que é fora de dúvida é que nunca aprenderam nada comigo; neles
mesmos é que descobrem as coisas belas que põem no mundo, servindo, nisso tudo,
eu e a divindade como e parteira. E a prova é o seguinte: muitos
desconhecedores desse fato e que tudo atribuem a si próprios, ou por me
desprezarem ou por injunções de terceiros, afastam-se de mim cedo demais.
(PLATÃO, 150c-e, 2001, p. 47)
Por outro lado,
Aristófanes apresenta um Sócrates agressivo e impaciente quando tenta ensinar a
Estrepsíades quando este parece “testar” a paciência de Sócrates ou a
habilidade do filósofo em lidar com tais adversidades cognitivas apresentadas
por Estrepsíades:
Estrepsíades:
Sossegue, muito bem!
Sócrates: Bem,
quando eu lhe propuser alguma questão erudita sobre as coisas celestes, trate
de surripiá-la bem depressa...
Estrepsíades:
Quê? Vou comer sabedoria, como um cachorro?
Sócrates: Esse
daí é um homem ignorante, um bárbaro! Eu temo, meu velho, que você precise
dumas pancadas... Ora vejamos, que faz quando alguém lhe bate? (ARISTÓFANES,
490, 1985, p. 189)
Na passagem em que
Aristófanes coloca as Nuvens como sendo a divindade central para Sócrates, o
comediógrafo faz uma alusão à Íris como sendo a deusa a quem Sócrates se
comunicava. No “Teeteto”, temos uma passagem ao qual Sócrates afirma
dizer que a Filosofia se inicia por meio do espanto e ao admitir Íris como
sendo sua interlocutora com os deuses, Sócrates nega o protagonismo de Hermes a
quem Aristófanes reverencia. Abaixo, segue as falas de Sócrates
no “Teeteto” no fragmento 155 D:
Fonte:
ALBERT, 1991 p. 57
De acordo com a tradução de Karl Albert (1991, p. 57), “Na verdade, a
maravilha (thaumatzein) é o páthos
(experiência do filósofo). Uma vez que em nenhum outro a filosofia começa a não
ser por isso, e aquela que chama Iris, a filha de Taumante, parecem não definir
incorretamente a sua origem.”
A citação de Íris por
Sócrates no diálogo se dá ao fato de Íris ter sido somente a mensageira dos
deuses e filha de Thaumas a qual
poderia se traduzir tanto como “espanto” quanto “maravilha”; Thaumas era casado com Electra (uma das
filhas de Oceano com Tétis) além de ser filho de Ponto com Gaia. Neste aspecto,
Íris seria então o elo comunicativo dos homens com os deuses (uma
correspondência feminina de Hermes) uma vez que ela era muito hábil e veloz
como os ventos e tinha permissão dos deuses em transitar em todos os mundos.
Karl Albert (1991, p. 58)
chegará a conclusão que o pensamento filosófico é um movimento do qual pode ser
entendido como um processo cíclico mútuo entre o Homem e a divindade no sentido
em que podemos também entender Iris como sendo o mesmo daimon do qual Sócrates dizia ouvir em sua mente antes e durante os
diálogos filosóficos.
Iris
seria esse “intérprete” entre o mundos intelectivo e sensível ou essa
mensageira dos deuses e dos homens estabelecendo então conexões entre eles. No
entanto, aos olhos de Aristófanes, trata-se de ateísmo. Naturalmente, as nuvens
proporcionariam o surgimento do fenômeno arco-íris quando essas diante do Sol
não estiverem em sua densidade.
Mas,
na peça, Sócrates não apenas rejeita os deuses da cidade quando Estrepsíades
oferece-se a pagar (como os sofistas praticavam) por seus ensinamentos como
admite as Nuvens e outros deuses as suas divindades:
Sócrates (em terra): Por quais deuses você
pretende jurar? Para começar, em nosso meio os deuses são moeda fora de
circulação....
Estrepsíades: Como é que vocês juram? Acaso
será por peças de ferro, como em Bizâncio?
Sócrates: Você quer conhecer claramente as coisas
divinas e exatamente o que elas são?
Estrepsíades: Sim, por Zeus, se é possível....
Sócrates: E travar relações com as Nuvens, as
nossas divindades, para conversar com elas?
Estrepsíades: Sim, demais! (ARISTÓFANES,
245-250, 1985, p. 180)
Percebe-se então que as
divindades às quais Aristófanes fala são Íris, a deusa do céu e mensageira dos
deuses e Éter identificado como o elemento primordial existente no Cosmos com
características semelhantes ao Ar. Na peça, surgem os nomes dos deuses
abordados como Turbilhão, Vapor e Língua. E continua a seguir com Sócrates
explicando ao velho Estrepsíades de que a chuva não era obra de Zeus mas de um
fenômeno natural em que a água se concentra no céu formando as nuvens por meio
do processo de evaporação e retorna para a terra em forma de chuva. Em seguida:
Estrepsíades não cessa de repetir como papagaio a opinião de
Sócrates segundo ao qual é preciso abandonar os velhos deuses em favor das
divindades modernas chamada Turbilhão, Língua ou Vapor. Mas é demasiado estúpido
e senil para sair orgulhoso a manejar as absurdas pedantarias linguísticas
concebidas por Sócrates. Finalmente, o filósofo renuncia a ensinar nada a
Estrepsíades por considerar-lhe um inútil. (WILSON, 2008, p. 26)
A princípio e neste
momento, nada parece concordar com Aristófanes, nem mesmo sua acusação de que
Sócrates praticava ateísmo ao rejeitar os deuses de Atenas mas o que parece ser
apenas um ataque pessoal, é uma crítica ao método socrático, especialmente
quando outro personagem surge na peça: O filho de Estrepsíades, Fidípedes.
1.2. O
método socrático em cheque
A crítica de
Aristófanes a Sócrates perpassa não apenas no caráter pessoal mas também
metodológico e filosófico embora Aristófanes não possa ser considerado um
filósofo para tal empreitada. O título da peça é uma denotação ao que
Aristófanes visualizava sobre o daimon ao qual Sócrates afirmava ser a
mediadora entre ele e as divindades das quais aceitara.
Como se sabe, Aristófanes estava identificado com as
tradições culturais dos tempos homéricos. Dessa forma, para o comediógrafo, é
impossível a admissão de outras divindades que não fossem os deuses da religião
popular, tanto que no confronto entre os raciocínios justo e injusto,
Aristófanes deixa bem claro que o raciocínio injusto se trata de Sócrates
justamente por romper com as tradições culturais.
Desse modo, a figura
de Sócrates é transferida diretamente a outros dois filósofos igualmente
“inimigos” de Aristófanes: Anaxágoras (pré-socrático naturalista) e Protágoras (sofista)
sendo ambos contemporâneos tanto de Aristófanes quanto de Sócrates:
[...] por um
lado, como um teórico da natureza seguidor de Anaxágoras e, por outro lado,
aparece fazendo fama de sua habilidade para confeccionar discursos
contraditórios, igualmente válidos, acerca de um mesmo objeto, com um desprezo
absoluto de toda norma moral e da religião, seguindo a Protágoras. (MAIER apud. IBORRA e GONZÁLEZ, 1976, p. 23-24)
Há uma tentativa de
desfiguração do método socrático. O método socrático consiste-se na dialética
ao qual perguntas e respostas são geradas de modo a mostrar que a pessoa nada
sabe previamente e está disposta a buscar a Verdade. Se pela Ironia procura-se
refutar os argumentos do oponente, pela Maiêutica procura-se a busca pelo
verdadeiro conhecimento, o γνῶθι σεαυτόν ou conhece-te a ti
mesmo.
O problema do método
está exatamente nessa Verdade. Quando há ausência de contrapontos ou outras
visões de mundo ao qual a pessoa possa mensurar e confrontá-las, valerá o
primeiro conhecimento adquirido daquilo como sendo o conhecimento a ser
seguido. Ainda que a pessoa busque por si a Verdade, ela precisaria de uma
referência por nada saber e estar aberta ao aprender e estando à essa
suscetibilidade, todo conhecimento de qualquer natureza que seja, poderá ser
válido.
Como Sócrates
enfatiza a busca pelo conhecimento a partir de si mesmo e ele mesmo não possuía
verdades, qual dos dois conhecimentos então será o verdadeiro? Em se tratando
da dialética socrática em que se procura o afastamento da opinião (doxa) em
favor do conhecimento (a episteme), o grande problema está exatamente nessa
episteme uma vez que experimentado desse conhecimento, a tendência é se afastar
do senso comum (da opinião, da doxa) mas se vê sozinho quando olha ao seu redor
pois nem todos (ou muito poucos) estão dispostos a viver de modo “isolado” do
grande público.
Aristófanes expõe
então a grande “falha” do método de Sócrates quando Fidípedes participa da
peça, pois, como Estrepsíades não aprendera “nada” com Sócrates por ser idoso e
não entender o que se passara ali, Fidípides, por ser mais jovem e mais
suscetível fragilmente à persuasão do conhecimento adverso à tradição:
Estrepsíades:
Não, pelo Vapor! Você não ficará mais aqui. Vá comer as colunas de Mégacles!
Fidípides: Ó
Senhor, que é que você tem, meu pai? Você perdeu o juízo, por Zeus Olímpio!
Estrepsíades:
Esta aí, tá aí! Zeus Olimpio... Que bobagem! Esse daí, com essa idade,
acreditar em Zeus!
Fidípides:
Mas, afinal por que você achou graça nisso?
Estrepsíades:
Porque percebi que você é uma criancinha e pensa de modo antiquado. Mas
aproxime-se para saber mais. (sussurrando). E eu direi uma coisa que se você
aprender, será um homem! Mas cuidade para não ensiná-la a ninguém!...
Fidípides:
Sim, que é?
Estrepsíades:
Agora mesmo você jurou por Zeus...
Fidípides: Sim
Estrepsíades: Então você vê
como é belo aprender? Fidípides, Zeus não existe! (ARISTÓFANES, 815-825, 1985, p. 180)
O problema em si não está na aplicação técnica da
dialética socrática mas em quem essa dialética se destina: “A questão não estaria no conteúdo da sophía
socrática, mas na recepção desta sophía pelos seus ouvintes. Deve-se então
saber a quem ensinar, ou antes, saber se aquele a quem se ensina deve ou pode
ser ensinado” (ALENCAR, 2010, p. 79)
O que Aristófanes
diz é que as pessoas não estavam aptas para a compreensão generalista dessa
dialética e mesmo criticando Sócrates de forma enfadonha e desconcertante, o
comediógrafo acabou por contribuir ainda mais para o aperfeiçoamento do método
socrático. Na disputa entre os raciocínios justo (Aristófanes) e o injusto
(Sócrates) para ver quem prepararia Fidípides ao conhecimento, Aristófanes
mostra quem vencia sempre as disputas de argumentos:
Injusto: E se
for um esculhambado, que haverá de mal?
Justo: Pois que
desgraça ainda maior do que essa ele poderia sofrer um dia?
Injusto: E
então que diria você se for derrotado por mim nesse particular?
Justo: Calarei
a boca! Que mais?
Injusto: Então
diga-me, vamos, os advogados públicos, onde é que vamos buscá-los?
Justo: Nos
esculhambados...
Injusto:
Acredito! E os trágicos, onde?
Justo: Nos
esculhambados...
Injusto: Tem
razão. E os oradores?
Justo: Nos
esculhambados...
Injusto: Está
aí, então não reconhece que diz tolices? Observe no meio dos espectadores, qual
é a maioria?
Justo: Sim,
estou observando...
Injusto: E
então, que vê?
Justo: Pelos
deuses, os esculhambados são mais numerosos. (Mostrando ao caso). Eis ali um,
bem o conheço, e aquele ali, e aquele cabeludo que lá está...
Injusto: E
então, que diz você?
Justo:
(Resignado) Fomos vencidos. Ó prostituídos! Pelos deuses, recebam o meu manto que eu passo para o seu lado (Entra no “pensatório”)
(ARISTÓFANES, 1085-1100, 1985, p. 209)
A partir desse
confronto entre o raciocínio justo e o raciocínio injusto na peça, Aristófanes
mostra o receio da empreitada sofista uma vez que para o comediógrafo grego,
Sócrates era um sofista independente se cobrara por isso ou não. Por outro
lado, enquanto “os sofistas podiam ganhar sua vida ensinando filosofia aos
jovens ávidos de ideias inovadoras” (OSBORNE, 2012, p. 31), poetas e
comediógrafos ditos conservadores aos antigos costumes homéricos demonstravam
inquietação com tais mudanças impulsionadas pelos sofistas.
Logo, apresentar uma
caricatura de Sócrates foi a saída de Aristófanes para externar sua indignação
e inconformismo com as mudanças súbitas no contexto social, político e
econômico grego em turbulências as quais explicitavam gradativamente o declínio
da tradição religiosa e agrária ao qual o comediógrafo bem primava:
[...] o que
Aristófanes pretendia não era dar a conhecer o Sócrates real, mas tipificar a
este como símbolo da orientação racionalista e ilustrada que a burguesia
progressista ia impondo-se cada vez com mais força. [...] tanto Protágoras como
Anaxágoras, com efeito, coincidem em propor aos atenienses e apesar de suas
próprias diferenças doutrinais, um modo de pensar livre dos prejuízos
tradicionalistas que de modo comum, entre a classe conservadora apegada à
tradição, consideram como “ímpia” a filosofia. Por tudo isso, é opinião quase
unânime hoje em dia que Aristófanes nas Nuvens, pretendeu oferecer um ataque
polêmico da reação conservadora e tradicionalista contra a filosofia em geral que, havendo penetrado pela primeira vez em Atenas, ameaçava minar a
fundo as velhas tradições morais e políticas.(IBORRA e GONZÁLEZ, 1976, p.
24)
Em relação ao método
socrático, no entendimento de Aristófanes, ele também poderia ser usado pelos
sofistas se a preocupação deles fossem a busca pela essência do conhecimento ao
qual Sócrates se preocupava inicialmente. Do mesmo modo que a ferramenta
socrática servia para libertar as almas do sono dogmático da ignorância e do
não-saber também podia aprisionar as almas mas não no senso comum (da
ignorância do conhecimento dóxico) mas em si mesmo, na ignorância de si em um
individualismo do qual só os discípulos de Sócrates sabem do verdadeiro
conhecimento e os não-discípulos são todos ignorantes.
Assim, a ausência de
conteúdo e a individualidade característica da dialética socrática não são
compatíveis com as ciências objetivas ao mesmo tempo em que grosso modo, pode
ser facilmente confundido com a persuasão sofista. Por isso que Aristófanes
identifica Sócrates na peça como um sofista pelo fato de Sócrates ter tido muitos
discípulos jovens como Alcibíades, Platão e tantos outros que o comediógrafo
alega ser os mais jovens aqueles que mais se enveredam à Filosofia que os mais
velhos.
Fidípides que na peça
se tornara discípulo de Sócrates e pronto a usar de todos os argumentos
necessários para sair vitorioso em qualquer empreitada é a evidência mais clara
do temor que os atenienses tinham não apenas de Sócrates mas da Filosofia como
um todo desde os tempos de Tales de Mileto. E mais ainda: Fidípides seria a
personificação da nova aristocracia grega avessa às tradições e à religião dos
tempos homéricos, dos deuses olímpicos.
No final da peça,
Sócrates acaba por ser morto por Estrepsíades juntamente com os seus discípulos
após rebelião liderada por este ateando fogo na residência paupérrima do
filósofo, chamada de “pensatório”. Não é sabido se Fidípides morreu juntamente
com seu mestre ou se colocou ao lado do pai Estrepsíades após agredi-lo e dizer
que a agressão ao pai era justa e legítima (algo inadmissível para a tradição
antiga e estava ocorrendo no tempo de Aristófanes)
Certamente, para um
autor conservadorista como fora Aristófanes e que acreditava que o viver em
sociedade era uma dádiva dos deuses, a Filosofia seria uma ameaça cosmopolita
uma vez que é próprio da Filosofia abalar as estruturas do conhecimento
dogmático tal como uma arte do pensar, principalmente em um período em que o
ser humano passa por uma mudança de pensamento mais voltada para si mesmo do
que para os céus.
Considerações
Finais
Procurou-se aqui compreender
o que estava por detrás da imagem de Sócrates caricaturada na peça “As Nuvens”
do comediógrafo grego Aristófanes de modo a refletir se tal imagem não poderia
ser uma crítica válida feita a um dos patronos da Filosofia Ocidental. O que
vemos nos manuais de História da Filosofia é um desprezo ou até mesmo uma
desqualificação do Sócrates aristofânico exatamente pelo fato de apresentar uma
imagem deturpada do que fora de fato Sócrates.
É o caso de Marilena
Chauí (2002, p. 183) que embora tenha feito um adendo, não sugere como válido o
testemunho de Aristófanes: “Evidentemente, não podemos tomar Aristófanes como
testemunha da filosofia socrática. Mas ele revela algo precioso: como os
atenienses viam Sócrates e como, rindo da comédia, deixavam escapar a irritação
que lhes causava.”
Se a crítica de
Aristófanes não encontrasse solidez por ser uma comédia, o próprio Platão na
obra “A República” não sugeriria que a Filosofia fosse ser ensinada aos futuros
reis-filósofos depois dos 35 anos, ou seja, apenas quando já enseja-se uma
certa maturidade uma vez que o jovem é considerado uma pessoa de afetos,
paixões e ímpetos exacerbados e depois dos 35 anos, poderia se considerar mais
moderado e gozar de mais autodomínio que por sua vez leva ao autoconhecimento
de si mesmo.
Se não há nenhuma
consistência no testemunho de Aristófanes, pelo menos há indicativos de que a
filosofia socrática tinha falhas e as consequências trazidas por essa filosofia
pode ter sido apresentada de modo bizarro e exagerado mas em suas entrelinhas,
poderia haver um mínimo senso de razão coisa que os manuais de Filosofia
preferem ocultar ou simplesmente suprimir os “gaps” que a dialética socrática
apresenta em sua estrutura.
Assim, em analogia ao
dito popular “O povo aumenta, mas não inventa”, conclui-se que embora haja
divergências de interesses entre os dois autores, parcialmente, há
contribuições que indiretamente foram feitas e como nos diz Emily Wilson, “As
Nuvens” de Aristófanes pode ter inclusive contribuído diretamente para a morte
de Sócrates por envenenamento diante do júri que o condenava justamente de
ateísmo e subversão de jovens:
O comediógrafo
criou uma “morte de Sócrates” ficcional uns 20 anos antes do juízo. Mais tarde
Platão sugeriria que a obra de Aristófanes tinha sido um fator importante na
condenação de Sócrates. As Nuvens nos mostra, com uma clareza meridiana, por
que um cidadão normal e corrente de Atenas e como pôde ter sido necessário
condenar Sócrates à morte. (WILSON, 2008, p. 24)
Portanto, a reflexão
que Aristófanes nos trouxe com a obra pode ser considerada tanto uma crítica ao
modo socrático de fazer Filosofia quanto uma forma de tirar o protagonismo de
Sócrates de forma que ele seria visto mais como um sujeito digno de deboche do
que de ser uma das figuras intelectuais centrais do pensamento grego
antigo.
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MIRANDA,
P. J. (2016). Tragédia grega. Disponível em:
<https://hojemacau.com.mo/2016/09/20/tragedia-grega/> acesso em: 08. Jun.
2019
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