Páginas

Deus Enki e liminaridade da psique suméria



como citar: VRBATA, Ales. Deus Enki e liminaridade da psique suméria. Revista Sísifo. Nº10, v. 1, julho/dezembro2019

Ales Vrbata

RESUMO: O presente artigo versa sobre alguns desdobramentos das abordagens multidisciplinares dentro da tradição pós-junguiana, assumindo uma perspectiva desafiadora para o discurso pós-moderno nas Ciências Humanas. Conceitos como inconsciente coletivo, arquétipo e pensamento primitivo mudam a nossa compreensão de história e, nomeadamente, nosso olhar sobre a antiguidade (F. Nietzsche, C. G. Jung, E. Neumann, J. A. Toynbee, por exemplo). Consequentemente, não só Jung como também os pós-Junguianos se encontram em uma twilight zone entre o discurso iluminista e o discurso pré-científico. Este artigo mergulha na questão do directed thinking (conceito fundamental de Jung) na fase inicial da civilização suméria (antes de 3000 a. C.) e no papel do deus Enki, assim como é tratado por Catriona Miller. Ainda, o trabalho pretende exemplificar os desdobramentos multidisciplinares da tradição junguiana nas disciplinas como História, Sumerologia, Psicologia, Filosofia e Ciência da Religião e demonstrar a aplicação da noção do directed thinking na psicologia dos antigos.
Palavras-chave: Suméria, Enki, directed thinking, fantasy thinking, Jung.
Este artigo poderia ser considerado como uma resenha do livro recentemente publicado pelos organizadores Paul Bishop (Universidade de Glasgow, especialista nas letras germânicas: Goethe, Schiller, Nietzsche, Jung) e Leslie Gardner (Universidade de Essex, fundou  o International Journal of Jungian Studies e co-fundou a International Association of Jungian Studies), entitulado Ecstatic and Archaic (2018), cujo foco principal é a dimensão trans-subjetiva da psique/alma humana e as suas principais características.
Como eu sou estrangeiro (norte-europeu), vivendo há quase dez anos no Hemisfério Sul e Ocidental (Bahia, Brasil) e ainda por cima formado em Filosofia e História, a leitura desse livro instigou em mim dois grandes assuntos: (1) a crítica junguiana da fragmentação do conhecimento no Ocidente sobre o que, naturalmente, instiga a necessidade do polo oposto (integração, unificação ou epistemologia holística), (2) a cada vez mais visível variabilidade cultural do nosso mundo “globalizado” e a decorrente necessidade de fazer uma ponte entre as especificidades culturais, os “complexos culturais” e o encontro de uma “base comum”. Isso já acontece e é patente na quantidade de vários estudos de caráter muticultural. Entre os junguianos, observamos esta tendência: (1) toda a produção associada a um “complexo cultural”, assim como foi iniciada e instigada por Thomas Singer, Samuel L. Kimbles e outros autores.1
         Todas essas correntes procuram a abordagem holística e a utrapassagem das perspectivas modernas, assim como a época contemporânea as herdou do iluminismo. Esta tendencia foi ainda reforçada pela influência do recém publicado Livro Vermelho (2009) que Wolfgang Giegerich caracterizou como “absolutely esoteric” (DROB, 2012, p. 11). Será que o paradigma prometeano (sim, o mito do Prometeu está por trás dele) está se esgotando? Essas tendências, ou até mesmo ambições, nos fazem lembrar o “Psychologie mit Seele” de Jung contra a tese “Psychologie ohne Seele” de Friedrich Albert Lange (Geschichte des Materialismus, 1866) (GIEGERICH, 2012, pp. 6-7) e, depois dele, Sanford Drob salientando a antítese “spirit of this time” - “spirit of the depths” no Livro Vermelho:
He identifies the “spirit of this time” with science and with spiritual “understanding”, suggesting that while science conditioned by history, a form of understanding is trans-temporal. Indeed, it is the quest for such transtemporal, transcultural (DROB, 2012, p. 5).
Claro, tudo isso tem implicações aonde reina o “spirit of this time”, isto é, a academia. Não ouso dizer nada sobre a influência da produção junguiana contemporânea nas disciplinas tão proeminentes como Filosofia e História, porém há tentativas para entrar nesse terreno.2
        O livro de Bishop e Gardner constitui uma tentativa de mapear o trans-subjetivo na criatividade individual e coletiva não apenas dentro do mundo ocidental (a partir do século XIX), mas também nos lugares distantes em espaço e tempo (Grécia antiga, China antiga, Suméria antiga). Trata-se da tentativa de transcender a nossa experiência cotidiana e abordar Ur-erfahrung. Este é um movimento tanto vertical quanto horizontal, dedicado a abrir espaço àquilo que é arquetípico, i.e., mítico.
O volume é resultado de um Colóquio que ocorreu em 2016, na cidade de Londres no Freud Museum. Já o título do Colóquio (Ecstatic/Archaic Thought and Analytical Psychology: An Inquiry) foi de certa forma provocativo, uma vez que desafiou o discurso hoje em dia dominante nas ciências humanas e nas artes, questionando o discurso pós-moderno. Em outras palavras, questionando o pós-modernismo “we are talking about what does not exist”, o pós-modernismo não tem nenhuma origem (Ursprung, arché) e “we have to talk about ʽprovenanceʼ (Herkunft) and ʽpoint of referenceʼ (Entstehung)” (BISHOP, 2018, p.1). No discurso pós-moderno, não há nada fora do texto (ego, consciente), nada trans-subjetivo e não estático (pós-modernismo entende extasis apenas com um dos inumeráveis discursos, e esquece totalmente seu sentido mais estrito – erótico e sexual) e tão pouco um elemento cânone esse discurso conhece: “there certainly isnʼt a canon; although, in a way, there is, for the new canonicity resides in the denial of canonicity, and in the destruction, ridicule, or avoidance of the canon” (BISHOP, 2018, p. 1).
Como se manifesta o estático-arcáico? Trata-se dos lugares específicos na experiência humana que nos lembram que a existência do ser humano tem uma dimensão relacionada à transcendência das fronteiras (Grenzen). São elas: Grenzlebnisse, Grenzsituationen ou Grenzerfahrungen, ou seja, trata-se das situações ou experiências trans-subjetivas. Não há como fugir delas assim como não é possível fugir do inconsciente. Esta é uma viagem além do ego, descrita tal como Nietzsche exprimiu em um de seus fragmentos não publicados:
Stop feeling to be such a fantasized ego! Learn step by step to throw away oneʼs supposed individuality! Discover the errors of the ego! Gain insight into egoism as an error! Understand that its opposite is not altruism! That would mean showing love towards other apparent individuals! No! Go beyond ʻyouʼ and ʻmeʼ! Experience cosmically! (NIETZSCHE, 1988, p. 443).
O volume está dividido em três partes: (1) psicológica (o estático no sentido psicológico), (2) filosófica e (3) histórico-geográfica (aqui, se estuda o estático antigo nas culturas distantes e não-ocidentais). Como a extensão deste artigo é limitada, eu vou me concentrar no artigo de Catriona Miller “Enki at Enkidu: God of Directed Thinking” que, através dos estudos do deus sumeriano Enki e conceitos sumerianos abzu a mē, apresenta uma nova interpretação do caráter do deus Enki e do caráter do submundo sumeriano (abzu), cujas qualidades o diferenciam fundamentalmente dos submundo assim como são conhecidos na Babiĺônia ou Grécia antiga, consequentemente, chegando a uma interpretação  surpreendente da psique antiga sumeriana, i.e., da psique sumeriana consciente e inconsciente.

ENKI: NEM CTÓNICO NEM CELESTIAL
So God has never been made. He has always been. Then slowly, with the increase of consciousness, when people discovered that they could make different ideas about the deity, they came to the conclusion that it was nothing but an idea, and they quite forgot the real phenomenon that is behind all the ideas. You see, they became so identical with the products of their own conscious that they thought there was a god; and of course God was there so they thought they had created him. But such abuse brings its own revenge. The more people created ideas about God, the more they depleted and devitalized nature. And then it looked as if that primordial fact of the world had only taken place in imagination. Of course, by that process we create consciousness (JUNG, 1988, p. 335).
Diferentemente da Grécia ou Roma Antiga, o interesse na Suméria surgiu na Europa décadas depois. A tradição acadêmica europeia dos estudos sumerianos começou em 1873 com as publicações das traduções do asirólogo François Lenormant. Foi domínio muito restrito com poucos cientistas. Uma grande parte da história dessa região continua vaga, mas alguns períodos de sua história são bastante esclarecidos. Os primeiros achados arqueológicos correspondem ao período de 5000 a.C. (a cultura primitiva ubaidiana, i.e., povos proto-eufratinos), apogéu da civilização sumeriana (língua suméria, escrita cuneiforme, civilização urbana) corresponde ao período de 3500-2350 a. C. (período do primeiro povoamento ao longo do rio Nilo). Contudo, o maior número de achados que correspondem ao período no qual o acadiano estava implementando a língua suméria, substituindo-a como língua falada. O sumeriano continuou existindo como língua litúrgica e das elites educadas e a influência de sua cultura durou muito tempo – aproximadamente 4.500 anos.
         O Panteão sumério tinha aproximadamente dez divindades principais e cerca de 5.000 divindades menores. Diferentemente do panteão nórdico ou grego-romano, o panteão sumério não tinha uma hierarquia fixa. Durante os 4.500 anos da sua existência esse panteão foi organizado de maneiras variadas: genealogicamente (relações familiares), tipologicamente (área da influência, poder, competência) ou topograficamente (sede da divindade, visto que, dá continuidade à em geral, cada divindade apresentava uma relação especial com uma cidade).
O deus Enki, objeto do artigo escrito por Catriona Miller, não era a divindade mais importante, mas tinha um papel crucial. Sua cidade-sede era Eridu, considerada a primeira cidade, na qual tinha o seu próprio templo; no imaginário dos Sumerianos, a divindade literalmente morou no templo. Na lista dos reis sumerianos, Eridu está em primeiro lugar. Embora a cidade nunca tivesse desempenhado um papel mais importante no sentido político (assim como Uruque, Ur ou Lagaxe e Babylónia), apresentava uma importância extraordinária.
O templo Enki se encontrava em Eridu, conhecido como Engur (Miller 2018) e outros autores traduzem este nome como “house watery deep” ou“house of subterranean waters”, nome que às vezes não se traduz). O imaginário sumério ligava este templo aos três reinos cosmológicos mais importantes: céu, terra, abzu (inclusive Great Below, submundo). Assim, a cidade de Enki,  mais exatamente a“first temple tower”, separava o céu e a terra (as palavras an e ki também estão relacionadas ao deus An e sua mulher, a deusa Ki da terra) e remontava até abzu, reino do Enki, i.e.“Eridu’s dark cella”, que também toca o Great Below, submundo sumeriano e lugar da morte. Tanto a cidade quanto o templo têm significado cosmológico porque ligam o mundo terrestre e profano ao mundo do outro lado (Erfahrung, a expêriencia profana, está ligada à experiência arquetípica ou primordial, Urerfahrung).
Há muitos hinos de templo sobre a divindade Enki: Enki and the World Order (Enki e a Ordem mundial, o poema mais longo sobre  deus), Enki’s Journey to Nippur (Viagem do Enki à Nipur) ou Innana and Enki (Inana e Enki, um dos mitos sumérios mais longos, com aproximadamente 800 linhas), Enki and Ninhursag (Enki e Ninhursag, história colocada na ilha de Bahrain, chamada pelos Sumerianos de Dilmun. Nesta ilha, a deusa Ninhursag causa oito doenças à Enki e, mais tarde, desfaz essa maldição curando-o) ou Enki e Ninmah (Enki e Ninmah, mito da origem no qual Ninhursag usa nome Ninmah e cria a raça humana junto com Enki) e todos fornecem bastante informações sobre essa divindade. É justamente nessa base que Miller (2018) apresenta a tese de que Enki talvez seja deus do “directed thinking”. Segundo Foster (2013), Enki é a figura mais importante da poesia mitológica sumeriana e quando surge um conflito é ele quem o resolve. Ainda, o autor afirma que Enki é o deus da sabedoria, inteligência e magia (FOSTER, 2013), o que contradiz a opinião mais velha, e talvez tradicional, segundo a qual Enki é considerado um Deus-trickster.
O domínio e caráter de Enki são bastante visíveis na narrativa mitológica Inana e Enki, na qual podemos acompanhar Enki acolhendo Inana (deusa do amor e procriação). Deus fica intoxicado e a entrega uma grande parte de suas riquezas subterrâneas (atributos da civilização, i.e., atributos da consciência):
In the course of a banquet to entertain Inanna, Enki becomes intoxicated and gives her the cosmic powers that control over 100 Sumerian cultural attributes, including the scribal arts, prostitution, family strife, music, kissing, architecture, intelligence, and lighting and extinguishing fire” (FOSTER, 2013, p. 437).
 Miller (2018, p. 155) salienta que estes atributos da civilização () ficam sob controle do Enki no submundo, no inconsciente: “Enki holds the mē, the skills and principles of urban civilisation itself, but they have their roots in the abzu, a region that, at least from a Jungian point of view seems to have an affinity with the unconscious”.
       Acordado da intoxicação, Enki tenta recuperar tudo o que deu a Inana; mas, não sucesso, uma vez que Inana fugiu com tudo para Uruque Foster (2018) interpreta isso como uma transferência do prestígio cultural sumério da cidade de Eridu para Uruque. Além de mostrar que os atributos civilizatórios tem a ver com abzu, a narrativa também mostra que (1) o próprio Enki fica frequentemente no estado da consciência baixa/abaissement du niveau mental (bêbado, dormindo, meio absent-minded), (2) abzu é uma região cosmológica interior/inferior, mas que não tem qualidades típicas para submundos nas outras mitologias (geralmente, não é possível entrar e sair; o submundo abriga monstros, é o lugar da agressão, violência, prisão e sempre abriga os mortos; ainda, submundos não costumam abrigar valores conscientes, i.e., civilizatórios). Miller (2018) afirma que Enki não é uma divindade ctónica porque é flexível, de movimentação fácil entre regiões celestes, terrestres e subterrâneas e tem capacidade de negociar e conciliar (frequentemente reconciliava deusas irritadas como mostra a narrativa Enki e Ninursag). Na verdade, o submundo, assim como foi entendido mais tarde, corresponde à divindade Ereshkigal, que domina o Great Below e apresenta características brutais do submundo.
       Jung definiu o directed thinking em Wandlungen und Symbole der Libido (Transformações e símbolos da libido, 1912) da seguinte maneira:
[it] operates with speech elements for the purpose of communication, and is difficult and exhausting; (...) produces innovations and adaptation, copies reality and tries to act upon it; (...) history shows that directed thinking was not always as developed as it is today. The clearest expression of modern directed thinking is science and the techniques fostered by it (JUNG, 1986, pp. 18-19).
Em outro momento afirma que “the secret of cultural development is the mobility and disponibility of psychic energy. Directed thinking, as we know it today, is a more or less modern acquisition which earlier ages lacked” (JUNG, 1986, p. 16).
Quanto ao fantasy-thinking (a forma mais velha de pensamento típica para o homem da antiguidade e pré-história, ou dos povos primitivos de hoje), o definiu da seguinte maneira:
What happens when we do not think directly? Well, our thinking then lacks all leading ideas and the sense of direction emanating from them. We no longer compel our thoughts along a definite track, but let them float, sink or rise according to their specific gravity. (...) fantasy-thinking is effortless, working as it were spontaneously, with the contents ready to hand, and guided by unconscious motives (JUNG, 1986, p. 18).
Mais tarde, no seu ensaio“The Transcendent Function” (escrito em 1916, mas publicado em 1957), Jung salientou que “directedness is absolutely necessary for the conscious process, but as we have seen it entails an unavoidable one-sidedness” (MILLER, 2018, p. 154). Jung ainda salienta “since the psyche is a self regulating system, just as the body is, the regulating counteraction will always develop in the uncounscious” e acrescentou que “to this extent the psyche of the civilized man is no longer a self regulating system” (MILLER, 2018, p. 154). Segundo Jung, a chave para o balanceamento de qualquer desequilíbrio consiste em nossa tentativa de entender as imagens que surgem do inconsciente na forma dos sonhos, das visões, das mitologias e tudo isso acontece através do processo da amplificação.
Em geral, sumerólogos não acreditam nas capacidades dos Sumerianos de produzir pensamento abstrato em um grau tão alto:
In Mesopotamian studies of the mid-twentieth century, myth was sometimes treated as indicative of an unscientific way of thinking, characteristic of contemporaneous primitive peoples, and any ancient people who lived before the middle of the first millennium BC anywhere outside of the Greek-speaking world (…)According to this view, the mythopoetic way of thinking makes up stories to explain things rather than seeking abstract causes. Sumerian myths would therefore be typical of primitive thought because they did not distinguish “man” from “nature” and they explained natural phenomena, the creation and organization of the universe, as well as developments in human subsistence and society, in story form, proceeding from a known outcome to a posited beginning (FOSTER, 2013, p. 436)
A falta da separação entre “homem” e “natureza”, acima mencionada por Foster (2013), equivale àquilo que Lucien Lévy-Bruhl e Carl G. Jung denominaram participation mystique. A perspectiva junguiana a partir da qual Miller (2018) analisa o deus Enki revela que existiam épocas nas quais a linha divisória entre directed thinking e fantasy thinking não foi muito clara. Segundo Miller (2018), a figura do Enki demonstra o consciente que continua existindo numa conexão relativamente estreita com o inconsciente. No título de seu artigo a autora rotula Enki como “god of directed thinking”; porém, seria mais exato falar do deus que vive entre fantasy-thinking (trans-subjetivo, inconsciente como este deus é frequentemente intoxicado, preguiçoso ou absent-minded) e directed thinking (protegendo , i.e., atributos da civilização) que vai cada vez mais dominar a vida da coletividade. Em outras palavras, com o aumento da consciência e do directed thinking, a posição de deus Enki ficou cada vez mais ameaçada e o próprio Enki e abzu passaram por profundas transformações, i.e., as atitudes das populações da época começaram a ser cada vez mais unilaterais:
Between the Akkadian period and the rise of Babylon, the character of the abzu itself undergoes a shift. Wallis-Budge described apsu (the Akkadian word) as a ‘boundless, confused and disordered mass of watery matter’.In the Enuma Elish, also known as the Babylonian Creation, Apsu and Tiamat are the progenitors of the gods. The gods, however, upset their father with their noise so Apsu plans to destroy them, until Ea (the Akkadian name of Enki) causes the waters to rise and drowns the sleeping Apsu. So by the Babylonian period, the abzu has undergone a transformation and contains a monster, or at least, like Kronos in the Greek cosmogony, a monstrous father; but Ea himself is quickly displaced by his son Marduk […]. (MILLER, 2018, p. 158).
Em outro lugar
So as the Babylonian period came to an end, and with it the final traces of Sumerian civilisation, culture has shifted more definitively towards a directed conscious attitude, with all the one-sidedness implied. This can be seen in the representation of the apsu populated by monsters and requiring the very masculine hero Marduk to overcome its chaos to rule (MILLER, 2018, p. 157)
A passagem da Suméria à Acádia não era só uma passagem política: o território da Mesopotámia foi unificado, mas na Acádia a língua acadiana continuou presente mesmo que a língua suméria continuasse sendo língua litúrgica e das elites educadas). Antes, esta também pode ser considerada uma passagem religioso-psicológica (abzu se transformava em apsu, Enki se transformava em Ea e na psicologia coletiva, prevalecia cada vez mais o“directed thinking”) e esta tendencia ficou ainda mais forte na época da passagem do período acádio ao período babilônico, quando se afirma aquilo que se denomina de “processo civilizatório”.

ENKI: DEUS DA PSIQUE INDIFERENCIADA
Enki is perhaps the most important deity in the Sumerian mythological poems. Insofar as they involve conflict, he is most often the one who invents a resolution for it. His wisdom is not proof against alcohol or desire, but in terms of sheer intelligence andknowledge he has no rival among the gods (FOSTER, 2013, p. 440).
Para Catriona Miller (2018), Enki serve de exemplificação da época em que a consciência humana ainda era pouco diferenciada – esta consciência não paira nas alturas das ideias abstratas (como no caso da Grécia clássica, em Platão, ou como sentimos da devisa cartesiana cogito ergo sum, que identifica a subjetividade como a função racional da psique); mas, era móvel e flexível entre céus, a cidade de Eridu e o espaço subterrâneo abzu. O deus Enki é inteligente, negociador e capaz de conciliar as deusas mal humoradas. Mas, esse deus começou pouco a pouco a perder essas qualidades e foi substituído pelas divindades masculinas mais agressivas e violentas, preocupadas com a manutenção da fronteira firme entre o mundo e o submundo, entre a consciência e inconsciente, entre a ordem e o caos. Assim, a criatividade e flexibilidade de outrora foi perdida.
        Ao descrever Enki como o “God of directed thinking”, Miller (2018) se refere à Jung. Na perspectiva do psicólogo, a vida civilizada um requer esforço consciente e significa um risco da dissociação entre certos conteúdos, i.e., o recalcamento. Contra essa unilateralidade, Jung recomenda passos que auxiliam a autorregulação da psique, a saber: o atentar-se ao inconsciente (sonhos, imaginação ativa), o que estimula a psique inconsciente. Como é evidente dos parágrafos anteriores, Enki fica entre o “directed thinking” e o “fantasy thinking”, movimenta-se flexivelmente entre os dois e não constitui a unilateralidade da atitude consciente do ego. Como cuidador e protetor da (atributos da civilização), Enki deveria ser associado ao directed thinking”, ao esforço consciente dos sumérios em construir a primeira civilização urbana e todas as suas aquisições, separando a Suméria da natureza e seus ciclos. Por outro lado, Enki é um deus que frequentemente adormece, fica intoxicado ou absent-minded e cuja tem origem em abzu (o inconsciente). É claro que é associado ao nível mais baixo da consciência (nas palavras de Pierre Janet, “abaissement du niveau mental”). Abzu não é um lugar dominado pelo “directed thinking”, mesmo assim é um lugar onde se encontra . Negociando com outras divindades, como Inanna ou Ninmah (Ninhursag), Enki é intoxicado, ficandoo parcialmente inconsciente. Enki também não é invencível ou todo-poderoso (assim como é claro no mito Enki e Ninhursag). Enki também não é um deus-guerreiro; antes, um negociador. No poema Enki e Ninmah é descrito um litígio entre ambas as divindades (precedido pela criação do homem) sobre a questão da “pre-eminence of the two sexes in creating new life”. Neste litígio, Enki acaba vencendo (como homem); mas, precisa admitir que o papel da criação e a nutrição do feto (papéis femininos) são cruciais.
        Mitos sobre Enki frequentemente versam sobre brigas, negociações ou conciliações entre deusas mal humoradas. Referindo-se ao poema Exaltation of Inanna (Exaltação da Inanna), no qual “the exile of Inanna’s high priestess is described in starkly gendered terms”, Miller (2018, p. 156) entende isso como a diminuição do poder das deusas em termos tanto teológicos quanto físicos. Para a autora esse movimento poderia ser interpretado em termos da passagem da sociedade suméria do matriarcado ao patriarcado e, ao mesmo tempo, da transição, do “fantasy-thinking” para o “directed thinking” (unilateral). Miller (2018) entende esses processos como a diminuição (1) do poder das divindades femininas e (2) do deus Enki (na Acádia posterior deus Ea) e (3) a predominância progressiva do directed thinking.
       Miller (2018) nos informa de que o período sumério não ficou sem violência e agressão (refere-se ao poema Enki e Ninhursag, onde encontramos violência), mas a autora também nos lembra que o primeiro ministro ou embaixador de Enki, chamado Isimud, tinha duas formas (masculina e feminina) e a poesia se refere a ele como uma figura de dois sexos. Esta flexibilidade estava desaparecendo com a decadência do Sumero e foi, cada vez mais, substituída pela unilateralidade do “directed thinking”. O próprio Enki, que representa esta flexibilidade e creatividade, foi substituído. Originalmente, abzu era um lugar com características vagas. Como já mencionei, não é possível falar do submundo assim como esse é conhecido nas mitologias posteriores. No poema Enki and the World Order não encontramos nenhum submundo e no poema Inanna’s Descend (Descida da Inanna) o submundo, no sentido clássico, é antes domínio da deusa Ereshkigal,  Ereshkingal é realmente uma deusa ctónica: ela domina os mortos, o inconsciente, os conteúdos recalcados da psique, algo bem visível em Innanaʼs Descent que trata do retorno de Inanna, o que acontece só com ajuda do estratagema do Enki (MILLER, 2018, p. 156, nota 69).
Com o início do período babilônico, abzu/apsu passou por muitas mudanças. Referindo-se ao Wallis Budge, Miller (2018) afirma que na epopeia babilônica de origem, Enuma Elish, identificamos abzu contendo monstros perigosos e Enki já substituído por Marduk. É justamente isso que a autora interpreta como inclinação clara ao “directed thinking” e, consequentemente, a uma certa unilateralidade da atitude consciente da época:
So as the Babylonian period came to an end, and with it the final traces of Sumerian civilisation, culture has shifted more definitively towards a directed conscious attitude, with all the one-sidedness implied. This can be seen in the representation of the apsu populated by monsters and requiring the very masculine hero Marduk to overcome its chaos to rule—a story which appears at the very foundation of Campbell’s monomyth, but one still very much alive in contemporary times (MILLER, 2018, p. 157)
Enquanto a Suméria ainda não conhecia o pensamento abstrato da Grécia clássica e sua filosofia, esta constitui uma e excelente amostra da unilateralidade do “directed thinking”, que se tornou a base da civilização e cultura ocidentais. Essas características foram mais tarde cultivadas e centradas no logos. Dizendo na maneira junguiana, o pensamento da Grécia clássica já foi muito diferenciado enquanto a poesia e mitologia sumérias revelam um pensamento pouco diferenciado, impregnado por outras funções psíquicas (sensação, sentimento, intuição). No momento da mudança do contexto político e cultural da região (período babilónico e, mais tarde, período persa), os mitos sumérios, a poesia e os templos perderam seu aspecto unificador cosmológico. Podemos dizer que o deus Enki é provavelmente a divindade mais expressiva, manifestando este pensamento não diferenciado da Suméria. Enki constitui essa consciência menos diferenciada, na qual “one not resident in the airy heights of heaven, but moving freely between the heavens, the city, and the abzu; an envoy of civilization and practical skills, an image of sharper and negotiator, intimately connected to the goddesses” (MILLER, 2018, p. 157).


REFERÊNCIAS:
BISHOP, P. Introduction. In: BISHOP, P.; GARDNER, L. (Orgs.) The Ecstatic and the Archaic: An Analytical Psychological Inquiry. London; New York: Routledge, 2018. pp. 01-15.
DROB, S. L. Reading the Red Book: An Interpretive Guide to C.G. Jung’s Liber Novus. New Orleans: Spring, 2012.
FOSTER, B. R. Sumerian Mythology. In: CRAWFORD, H. (Org.). The Sumerian World. London; New York: Routledge, 2013. pp. 435-443.
GIEGERICH, W.. What is Soul?. New Orleans: Spring, 2012.
JUNG, C. G.; JARRET J. (Orgs.). Nietzsche’s Zarathustra: Notes of the Seminar given in 1934-1939. New York: Princeton University Press, 1988.
JUNG, C. G.. Symbols of Transformation. London: Routledge & Kegan Paul, 1986.
MILLER, C. “Enki at Eridu: God of Directed Thinking”. In: BISHOP, P.; GARDNER, L. (Orgs.). The Ecstatic and the Archaic: An Analytical Psychological Inquiry. London; New York: Routledge, 2018. pp. 147-160.
NIETZSCHE, F. Kritische Studienausgabe. In: COLLI, G.; MONTINARI, M. (ed.) Munich-Berlin-New York: De Gruyter, 1988, vol. 9.



1 The Cultural Complex (2004) de Thomas Singer e Samuel L. Kimbles, livro que iniciou uma onda das obras também no Brasil (Walter Boechat, Gustavo Barcellos ou Denise Ramos), (2) as obras da orientação política ou social (Andrew Samuels: The Political Psyche, 1993; Lawrence Alschuler: The Psychopolitics of Liberation. Political Consciousness from a Jungian Perspective, 2006; V. W. Odajnyk: Jung and Politics: The Political and Social Ideas of C. G. Jung, 1976), (3) religião, espiritualidade e raça (Carrie Dohe: Jung’s Wandering Archetype: Race and Religion in Analytical Psychology, 2016; Petteri Pietikainen: Alchemists of Human Nature: Psychological Utopianism in Gross, Jung, Reich and Fromm, 2007; David Tacey, The Spirituality Revolution, 2004; Ann Belford Ulanov: The Feminine in Christian Theology and in Jungian Psychology, 1971), (4) ecopsicologia ou ecologia profunda (Andy Fisher Radical Ecopsychology: Psychology in the Service of Life, 2002), (5) esoterismo ocidental (esta corrente não é exclusivamente junguiana, mas a tradição jungiana recebeu grande impulse da mesma com a publicação do Livro Vermelho/Liber Novus de Jung: Wouter Wanegraaff: Esotericism and the Academy: Rejected Knowledge in the Western Culture, 2012; Liz Greene: The Astrological World of C.G.Jung’s Liber Novus - Daimons, Gods and Astrological Journey, 2018; Safron Rossi e Keiron Le Grice: Jung on Astrology, 2018; Richard Noll: The Jung Cult: Origins of a Charismatic Movement, 1994).

2 Roberto Gambini (The Indian Mirror, 2000), por exemplo, constitui uma delas. Outra pode ser Ruth Miller (Clio’s Circle: Entering the Imaginal World of Historians, 2007) que, de certa forma, dá continuidade à homenagem de A. J. Toynbee à Jung (The Value of C.G. Jung’s Works for Historian, 1956) e a obra de Erich Neumann (Ursprungsgeschichte des Bewusstseins, 1949). Na Filosofia, são Lucy Huskinson (Nietzsche and Jung: The Whole Self in the Union of Opposites, 2004) e Paul Bishop (The Dionysian Self, 1995; Analytical Psychology and German Classical Aesthetics: Goethe, Schiller and Jung, 2008) que trilham esse caminho.


Nenhum comentário:

Postar um comentário