como citar: SÃO PAULO, Yves. A resistência do silêncio. Revista Sísifo.
Nº10, v. 1, julho/dezembro2019
Yves São Paulo
Doutorando
em Filosofia
Dedicado ao time do
Liverpool, temporada 2018-2019.
Resumo
Neste ensaio buscamos pensar o silêncio como uma forma de resistência
política. Dentro do mundo das redes sociais e do compartilhamento de dados
entre grandes corporações, o fornecimento de dados por parte dos usuários de
aplicativos e plataformas digitais se tornou um valioso componente do jogo
mercantil. Tendo ciência do valor de sua palavra, o usuário destas plataformas
também pode começar a pensar até que ponto também o seu silêncio tem valor.
Palavras-chave: Silêncio; Big data; indústria cultural;
sublime.
Abstract
In
this essay we seek to think of silence as
a form of political resistance. Within the world of
social networking
and data sharing between large corporations, the provision of data from users of
digital applications and platforms has become a valuable
component of commercial gaming. Being aware of the value of
your word, the user of
these platforms can also begin to wonder to
what extent their silence also has value.
Keywords: Silence; Big data; cultural industry; sublime.
Fica o silêncio depois da música e depois do
sermão,
que importa que se louve o sermão e aplauda
a música,
talvez só o silêncio exista verdadeiramente.
José
Saramago, Memorial do Convento, p. 179.
1
Uma das notas do
escrito de Longino sobre o sublime se refere ao silêncio de Ájax. Neste
momento, o autor romano inclui em sua definição que o sublime é a grandeza da
alma. Esta grandeza pode ser demonstrada de inúmeras maneiras. Um artista de
gênio poderia carregar em seu discurso as palavras certas para que em sua
composição alcance a referida grandeza da alma.
O texto de
Longino consiste em uma série de notas sobre as características do sublime. Sua
tarefa é a de realizar análise de diferentes clássicos das letras,
interpretando como grandes compositores alcançam o sublime. Quando atesta que
uma das características é a grandeza da alma, o estudioso realiza um movimento
diferente. Ao invés de abraçar a interpretação de algum discurso, Longino se
refere ao silêncio.
Mesmo sem voz o
pensamento pode ser desnudado, a alma vista em sua profundidade, ou no termo de
Longino, em sua grandeza. “[...] o silêncio de Ájax é grande e mais sublime que
qualquer discurso”, escreve ele (LONGINO, 1996, p. 54). O que lança o espírito
inquisidor e hipotético sobre este tema, o silêncio.
Longino enxerga
no silêncio de Ájax a força das ideias que são sentidas, que não precisam ser
traduzidas em palavras para serem expressas. O silêncio sendo mais do que uma
ausência de fala ou de posicionamento. O silêncio sendo interpretado para além
de uma negatividade ou de abandono, ou conformidade. O silêncio, em alguns
casos e nas situações adequadas, serve como um ato de resistência.
2
Ao final de 1853,
quando Wall Street estava em sua infância inquieta, Herman Melville publicou,
em duas partes, a novela Bartleby, o
escrevente, uma história de Wall Street. Célebre novela, teorizada por
filósofos como Giorgio Agamben, Slavoj Zizek, Jacques Derrida. Não surpreende
que assim tenha sido ao interpretar sua crítica ao trabalho realizado nestes
escritórios nascentes no coração da jovem democracia, nos pulmões do
embrionário capitalismo estadunidense.
Quem narra o
conto é o dono de um escritório na famosa Wall Street, a relembrar seu encontro
com um incomum espécime de urbe próspera, Bartleby. De início, um vagabundo,
deitado pelos cantos, sem nada para fazer. O dono do escritório o contrata,
colocando-o para trabalhar como escrevente. Durante os primeiros dias de
trabalho não há figura mais produtiva que Bartleby. Realiza tudo com perfeição
e rapidez. Passados alguns dias, sua produtividade começa a cair. A figura que
trabalhava como se fosse um autômato, vai ficando cada vez mais lento. Até que
chega o momento em que o patrão-narrador lhe pede uma tarefa, ao que ele
responde “I would prefer not”,
“preferiria não”.
1863, os
escritórios ainda não contavam com as maravilhas tecnológicas que fazem de
personagens como Bartleby supérfluos, encarregado no escritório de fazer cópias
de documentos. Como máquina ele trabalhava, mas não como máquina ele deixa de
trabalhar. Máquina quando para de trabalhar, pode ser substituída ou
consertada. O que fazer com um funcionário que simplesmente “preferiria não”
fazer uma tarefa, assim recusando o que lhe é delegado?
Poder-se-ia
imaginar que, por se tratar de um trabalhador que – diferente da máquina –
realiza seu trabalho em troca de um salário, seria fácil apenas cortar seu
pagamento, despedi-lo. O curioso da personagem de Melville é justamente sua
indiferença. O patrão se vira para deixar o pagamento de Bartleby quando ele se
nega a continuar a fazer as cópias, e a personagem título sequer ergue as mãos
para aceitar o dinheiro. Estava despedido, recebendo seu pagamento pelo
trabalho feito em dias anteriores, mas se recusava a deixar seu lugar – sem
aparente motivo.
O patrão procura
ser educado com o antigo empregado, diz que estará à sua disposição em qualquer
novo emprego que Bartleby encontrar, “but
he answered not a word”, “mas ele não disse sequer uma palavra” (MELVILLE,
p. 90). O silêncio de Bartleby não é completo, na dificuldade que se encontra
de experimentar o silêncio puro, tal como pode ser conceituado pela metafísica.
Seu silêncio se coloca num posicionamento de recusa – a quê e a quem, Melville
deixa ao leitor para responder (daí o interesse de filósofos pela novela).
Dentro do novo
modelo econômico, das maravilhas dos serviços desenvolvidos por Wall Street,
dos homens-máquina movidos a dinheiro, Bartleby é uma peça interessante. Não se
move pelos mesmos interesses que os demais, sendo até difícil de delinear qual
seria a causa motora que teria inerente. Para escapar novamente das armadilhas
metafísicas que o silêncio deixa pelo caminho, na novela de Melville é o
movimento que expressa o silêncio – ou a falta deste movimento. A
produtividade, e por conseguinte o propósito, de Bartleby dentro do escritório
em Wall Street dependia de sua ação de fazer algo, sua ação com vistas a um fim
externo a ele mesmo. A ação de Bartleby – porque é uma ação, mesmo em sua
recusa e reclusão – quebra a roda da produtividade dentro do escritório,
desafiando não somente sua presença, como também a das demais engrenagens desta
máquina. É preciso reconhecer a serventia e a finalidade do trabalho que se
realiza para levá-lo adiante – o que aconteceria caso se deixasse de enxergar o
propósito das coisas no meio de sua feitura?
Em sua recusa,
Bartleby é educado, utiliza um vocabulário cordial, “would prefer not”, longe da agressividade costumeiramente vinculada
a atos de resistência. O silêncio comedido de Bartleby “denying my authority” – “negando minha autoridade” –, escreve o
patrão-narrador, é então uma ação política. O patrão continuamente espera que a
modernidade continue em seu rápido correr de locomotiva a carvão. O choque se
dá quando, dentro deste universo de rapidez e movimento incessante, o
trabalhador não faz os movimentos que são esperados: não faz escândalos quando
é demitido, não agradece à bondade do patrão quando este diz que dará boas
referências para seus futuros empregadores, nem sequer abandona o escritório quando
seus serviços já não são mais necessários.
O que Bartleby
realiza é muito próximo de uma quebra da universalidade da mentalidade
capitalista. Em seu silêncio, Bartleby não compreende uma pauta política, não
voltará a realizar seus trabalhos assim que tiver uma lista de pedidos
devidamente aprovados. Ele não se encaixa dentro daquele universo, não quer
fazer parte, mesmo demonstrando que não se trata de inaptidão – afinal, durante
seus primeiros dias deixou o patrão admirado com seu serviço. É assim que o
Bartleby de Melville aponta um direcionamento de como enxergar o silêncio em
sua conotação política.
3
Um dos pontos
mais conhecidos da Dialética do
esclarecimento, de Adorno e Horckheimer, é sua incursão e desenvolvimento
da noção de indústria cultural. Logo
ao princípio do capítulo assim intitulado, os autores apontam para a
pasteurização das ideias inerentes aos produtos disto que é apresentado por
eles como sistema. Esta pasteurização não aponta para uma ausência de ideias
das obras fruto da indústria cultural, antes sendo referência às ideias que se
voltam a um centro identitário.
As peças
unitárias, cada filme e cada livro composto debaixo das asas das grandes
editoras ou dos grandes estúdios – financiados por empréstimos bancários, ou
que compõem em sua organização corporativa a participação acionária de empresas
de investimento financeiro –, associa-se a este sistema em suas prerrogativas
ideais. É impossível, portanto, dissociar estas peças unitárias da cultura da
qual fazem parte, nomeadamente a indústria cultural. As obras que em sua
singularidade fazem o divertimento do público surgem nesta seara como
prolongamentos do esqueleto ideário do qual fazem parte.
Nas palavras dos
autores citados, o macrocosmo e o microcosmo encontram-se em unidade. Escrevem
eles, “Toda a cultura de massas em sistema de economia concentrada é idêntica,
e o seu esqueleto, a armadura conceptual daquela, começa a delinear-se”
(ADORNO, HORCKHEIMER, 2017, P. 8). Por economia concentrada entenda-se as
corporações financeiras, estas que detém os poderes de apontar se uma obra pode
ou não ser realizada e chegar ao grande público. Por idêntica, compreende-se
que as obras construídas dentro do sistema industrial partilham de ideário
comum, mesmo quando pouco aparente em primeira instância – são produtos que
obedecem a uma lógica mercadológica. O esqueleto, metáfora utilizada algumas
linhas antes neste ensaio tomada de empréstimo dos autores alemães, é o molde
que este sistema interpõe para que estas peças sejam promovidas e mais tarde
vendidas para o público, obedecendo a certos ditames. O que leva ao ponto
seguinte, a “armadura conceptual”, mostrando por esta imagem que os ditames
deste sistema industrial não estão postos somente em níveis obscuros (o
esqueleto), mas também na superfície dos produtos culturais.
É neste sentido
que a investigação a respeito do silêncio na indústria cultural pode ser
acompanhada. Com o passar das décadas do século passado e do novo século, cada
vez mais pode ser notada a contrariedade da indústria cultural com a presença
do silêncio. Este deveria ser extirpado da obra, sendo evocado somente por meio
de representações que não permitem abraçá-lo de maneira mais ampla. Em filmes
recentes, o silêncio é representado por pessoas caladas, mas não pela quietude
da trilha sonora, recheada de sons de ambiente e com subidas e descidas de
trilha sonora.
O caso do
silêncio dentro de obras pertencentes ao que, seguindo Adorno e Horckheimer,
podem ser consideradas pertencentes à indústria cultural, se mostra particularmente
interessante em dois casos a serem investigados. Trata-se dos filmes The artist, vencedor do Oscar de melhor
filme em 2012, famoso por em plena “era do 3D” – como assim apontavam os
críticos à época do lançamento – emular um filme do período silencioso do
cinema; e They shall not grow old,
documentário de Peter Jackson, que recupera imagens documentais dos soldados da
Primeira Guerra Mundial, sonorizando e colorizando-as.
4
The artist é filme que acompanha a saga
de dois atores de cinema durante o período do cinema silencioso. Um deles é já
uma estrela, enquanto a outra começa a sua jornada em direção ao estrelato. Por
meio de seu enredo pode se presumir que se trata de um filme de homenagem a
tempos idos do cinema e a uma forma de fazer filmes que não mais é a padrão.
Poder-se-ia até mesmo interpretar deste enredo, pela data do lançamento do
filme – segunda década do século XXI –, em meio aos avanços da tecnologia
digital, que a película estaria a incorrer em crítica a um cinema mais
preocupado com as tecnologias do que ao conteúdo dos filmes. Mas parte da
crítica, aquela menos dada ao contato com filmes de grande escala dos estúdios,
interpretou o filme de modo diferente.
Em crítica
escrita para a Revista Cinética no auge do burburinho que encaminhava The artist ao ápice de sua fama, Fábio
Andrade começa se dirigindo não ao filme, e sim a como se dá em dias correntes
a recepção do período silencioso do cinema. O termo “período silencioso” ou
“cinema silencioso” não é utilizado ao acaso. Utilizar o termo “cinema mudo” ou
“período mudo” é enxergar nos primeiros trinta anos da história do cinema a
falta de algo. Falta que somente seria preenchida com o desenvolvimento de uma
técnica para captação e mixagem de som com as imagens em movimento.
Uma leitura que
carrega entranhada em si parte daquilo que Adorno e Horckheimer apontavam a
respeito da indústria cultural: a tendência de fazer sua conceituação como
única. De que maneira? Ao dizer que o cinema é mudo e, portanto, somente pode
alcançar seu ápice a partir da inserção de uma técnica nova é abraçar a noção
capitalista-industrial do progresso amarrado ao desenvolvimento tecnológico. A
narrativa estabelecida da história do cinema tomando como ponto de partida o
“cinema mudo” seria o de uma “arte” que se desenvolve junto com os avanços
tecnológicos – o que no século XXI culmina com o 3D, técnica há muito tentada,
agora aperfeiçoada e finalmente comercialmente viável para a indústria (que
pode cobrar ingressos mais caros por esta nova atração).
Para a indústria
cinematográfica (parte importante da indústria cultural), o cinema em seus
primeiros trinta anos é uma arte faltante: faltava a palavra. Os letreiros que
apareciam no filme eram meio de o cinema se reportar a uma característica
faltante. Os filmes, com o som, poderiam se ver livres dos letreiros e colocar
as falas das personagens saindo de suas próprias bocas. O que Fábio Andrade
evoca, ao lembrar-se do crítico francês Michel Mourlet, é a pergunta: será que
fica para o espectador de um filme silencioso a impressão de uma falta? O que o
cinema silencioso procura realizar é jogar de acordo com suas próprias
características, reforçando a expressão imagética dos filmes; logo, para o
espectador de filmes silenciosos, não fica o gosto de uma falta, escreve
Andrade.
The artist poderia realizar uma
releitura da história do cinema recontando este período menos conhecido para as
massas de espectadores atuais. O que realiza é um exercício metalinguístico,
com fins de o novo aglutinar o que de positivo houver do velho. O problema
aqui, aponta Andrade, é que The artist
passa a ver o cinema mudo como um gênero cinematográfico, recriando efeitos
afetados que fazem desta redenção atual uma peça kitsch (ANDRADE, 2012). Kitsch
porque toma os efeitos e afetamentos do que emulam um filme do período
silencioso como sendo a própria “coisa em si”1.
O segundo filme
já anunciado a ser abordado aqui é They
shall not grow old, que por se tratar de um filme documentário poder-se-ia
imaginar não fazer parte da indústria cultural, dado sua característica pouco
atrativa para as grandes massas de espectadores que vão aos cinemas de todo
mundo. Ainda assim, o documentário também faz parte deste aglomerado porque a
indústria cultural não é formada somente pela finalidade do produto, e seu caráter
sistêmico abrange os mais variados ramos da criação artística.
O filme agora em
questão foi realizado por Peter Jackson, famoso pela trilogia Lord of the rings, agora a se debruçar
num trabalho de natureza mais pessoal. Para isto, selecionou filmes de relato
histórico sobre a Primeira Guerra Mundial e gravações de voz ou textos escritos
de quem viveu a época para utilizar como trilha sonora. O filme se constitui
inteiramente de imagens do período com a narração de quem viveu os eventos
narrados (que ajuda a narrar). Mas o atrativo do filme não se encontra neste
ponto, sendo por outro lado a “atualização” destas imagens por meio de
processos técnicos recentes. Os filmes ganham coloridos, os sons das armas e
das bombas explodindo são ouvidos, e os soldados ganham voz. Tal como programas
de reportagem esportiva que trazem especialistas para ler os lábios de
jogadores em meio a uma partida de futebol, assim procedeu a equipe de They shall not grow old, interpretando o
que estariam a dizer aqueles passantes errando perante a câmera e falando algo
que, de outra maneira, não poderia ser nunca escutado. Como não se pode mais
contar com estas personagens entrando em estúdio de gravação sonora para dublar
a si mesmo, a equipe buscou atores com vozes que melhor se casassem com as
posturas das personagens em tela.
Qual o objetivo
de mexer nestas imagens? De acordo com o realizador, atrair o público mais
jovem a conhecer este pedaço da história. Este argumento de Peter Jackson ao
longo da campanha publicitária – feita em conjunto com dezenas de reportagens
realizadas pelo grupo BBC, partícipe do financiamento do filme – foi o que
atraiu o historiador de cinema Lawrence Napper. Segundo o historiador, em
artigo dedicado a They shall not grow old,
não é preciso, nem necessário, modificar os filmes originais para assim atrair
o público jovem, porque estes mesmos jovens podem se interessar pelos filmes
tal como eles se encontram – em preto e branco, sem som, e com todas as marcas
que o tempo deita sobre as imagens de película.
O problema
principal marcado por Napper não é o de como a campanha publicitária é
realizada, mas o pensamento que dirige o filme à sua concretude final. O
problema se encontra na ideia de que o filme que serve de matéria-prima
necessita de modernização. É ainda o de enxergar no processo de transformação
dos filmes originais como meio de render autenticidade, como se um filme
somente fosse capaz de respirar e ter vida própria caso seja colorido e sonoro;
como se os filmes que servem de base para They
shall not grow old tivessem passado todas estas décadas imersos em sua
própria falta (som e cor), alheios ao mundo registrado por elas.
Napper, sendo
historiador de cinema, reconhece os filmes utilizados em They shall not grow old, reconhecendo não somente o trabalho dos
soldados em batalha (o conteúdo dos filmes) como também o dos operadores de
câmera que caminhavam pela no-mans-land
para filmar, para registrar aqueles momentos. Quem filma são soldados, pessoas
encolhidas dentro de trincheiras esperando pelo momento do ataque para tomar em
mãos não uma arma de fogo, mas a manivela da câmera. Lá estão eles, lembra
Napper, vendo seus parceiros saltar fora das trincheiras, filmando explosões a
alguns metros de distância, vendo corpos sem vida caídos ao seu lado. Jackson
sonoriza e coloriza estes filmes para encontrar vivacidade neles, quando esta
vivacidade esteve ali durante todo o tempo (NAPPER, 2018).
Nos dois casos
apresentados o cinema silencioso é enxergado como faltante. A fala e o som
surgem como dados de extrema importância que o cinema silencioso deixaria de
fora, ora visto como estilização, ora visto como se afastando da vida. São duas
obras que em seu coração estão a representar a contrariedade da
contemporaneidade com relação ao silêncio. Os dois filmes escolhidos
representam um pouco do que a indústria aceita como sendo exemplo de
excelência, mesmo pensando em homenagear o cinema silencioso – ela própria
buscando contar sua história própria de glórias, e de seu progresso.
Felizmente, este progresso trouxe ao cinema falado, que abandona as faltas e
falhas do mudo.
Dentro da
indústria, mesmo não se tratando de grandes exemplos de filmes comerciais, o
silêncio é um empecilho. O silêncio é uma negação, algo contraproducente. É
anti-espetáculo – e a indústria está sempre buscando se aliar em seu aspecto
técnico progressista, com salas de cinema com equipamentos de som mais
potentes, e colocando no mercado aparelhos que reproduzam em casa a experiência
da sala de cinema com o auxílio de 5 ou mais caixas de som.
Seria cair em
equívoco se o silêncio fosse analisado somente em seu lado sonoro, porque em
arte ele surge em forma de metáfora também visualmente – em parte é o caso de
Ájax e Bartleby –, o que ecoa no caso de They
shall not grow old também por meio de sua reformulação dos padrões de cores
dos filmes base por ele utilizados. O filme em preto e branco é reestruturado
para ganhar cores, aprofundando os matizes da miséria nos campos de batalha, e
instalados na vida dos soldados. Como diz Jack Cardiff, o filme em preto e
branco possui um espectro amplo de colorações, portanto não se devendo ignorar
também o cinza2.
5
Em fevereiro de
2019, o Banco Santander veiculou, por meio dos mais diversos canais, um anúncio
abordando um tema cada vez mais em voga, os dados dos clientes de redes
sociais. Por meio deste anúncio o banco se posiciona do lado do cliente,
fazendo oposição ao caráter predatório das demais corporações ao tomar posse de
informações que lhes dão vantagens em investimentos sem compartilhar estas
mesmas informações com os clientes. Estes, os clientes, por sua vez, são
aqueles que oferecem informações às grandes corporações sem saber, muitas
vezes, a extensão do conhecimento ofertado.
O anúncio inicia
se referindo diretamente ao espectador, dizendo que muitos de seus dados são
compartilhados sem o seu conhecimento. Utilizando um vocabulário que suaviza as
transações comerciais dos dados, o anúncio diz que o espectador “compartilha”
informações com empresas – de informática, responsáveis pelas redes sociais –
que por sua vez “compartilham” estas informações com outras empresas. As
informações cedidas pelo público geral às grandes empresas nem sempre são
gratuitas – informações sobre transações comerciais podem ser igualmente
comercializadas, como por exemplo padrões de uso de cartão de crédito. Mas o
compartilhar dos dados entre as empresas de informações cedidas pelo público
geral não é feito de maneira tão ingênua quanto o clicar de um botão para
compartilhar uma fotografia ou uma notícia no Facebook ou pelo WhatsApp (duas
plataformas pertencentes à mesma corporação). Estas informações são postas à
venda por empresas que assim se especializam e encontram a maior parte do seu
lucro e a razão de sua existência nesta relação comercial.
Por meio desta
suavização da linguagem encontra-se um dos mecanismos para que o anúncio
suavize também o caráter predatório que alguns bancos têm dentro deste jogo
mercantil. “Tudo o que a gente sabe você também sabe”, pronuncia o anúncio
(SANTANDER BRASIL, 2019). “Tudo”, dizem eles, universalizando a sentença,
dizendo que nada do que é de ciência dos executivos será deixado de ser
ofertado ao cliente. O faz por meio do lançamento de um aplicativo das contas
bancárias por meio das quais poderá ter ainda mais acesso ao comportamento de
seus clientes, tendo assim ainda maior controle sobre o que ofertar.
Como já colocavam
Adorno e Horkheimer no primeiro parágrafo do capítulo sobre a indústria
cultural, o esqueleto e os padrões de atuação mercadológicos vão ficando cada
vez mais bem conhecidos. É justamente por ter ficado clara para grande parte do
público as transações efetuadas pelas grandes corporações financeiras com base
em informações cedidas pelos usuários de redes sociais e diversas outras
transações mediadas pela tecnologia informacional, que o discurso sobre a
“transparência” destas mesmas transações surgiu. O próprio sistema financeiro
se apropria deste discurso porque ele não é opositor, mas conveniente com sua manutenção.
Permite reparos no corpo deste mesmo sistema. Correções que podem surgir no
formato de anúncio de instituição financeira comentando por alto o que acontece
quando o cliente atua em redes sociais e como ela se beneficia em cima disso.
6
Numa das entradas
da página do Facebook referente à privacidade, a plataforma oferece algumas
informações sobre sua política de dados. Não somente uma obrigação desta era
que pede das grandes corporações um pouco mais de “transparência”, sendo antes
uma obrigação contratual. Além disso, o sítio em questão pode oferecer estas
informações sabendo que a maior parte de seus clientes-usuários não leem os
termos antes de nela abrir uma conta. Não se trata somente da conta feita no
Facebook, mas de informações a respeito dos dados compartilhados com a
“corporação Facebook”, que compreende outras plataformas, como o Instagram e o
WhatsApp.
O primeiro tópico
ofertado pelo Facebook na página em questão é “quais tipos de informações
coletamos?”. Basicamente, toda informação disponibilizada nos produtos da
corporação, todos os dados nela inseridos – as conversas, os comentários, as
fotografias, as mensagens nas quais clicou, as mensagens “curtidas” ou
“amadas”, sejam elas de acesso público ou não – são processados pela página e guardados
em seus servidores. A coleta de dados não termina aqui. Também são coletadas
informações a respeito dos dispositivos eletrônicos utilizados pelos clientes
para acessar os produtos da corporação Facebook – o sistema operacional, se os
produtos são acessados pela TV, celular ou computador, que tipo de aparelho
etc.
Para que serve
toda esta aglutinação de dados? No caso exclusivo dos produtos do Facebook,
estas informações coletadas servem para o que o site descreve como
“personalização” da experiência tida com as plataformas em questão. Ou seja, se
o interesse de uma de suas clientes são livros e somente disso ela fala em sua
conta, as campanhas publicitárias a ela direcionadas serão todas voltadas a
empresas do ramo livreiro. O site reconhece ainda a localização desta mesma
usuária, sendo agora capaz de oferecer a ela os livreiros mais próximos que
pagam ao Facebook para veicular seus anúncios publicitários – esta localização
não precisa ser fornecida pela usuária, a plataforma consegue reconhecer a proveniência
do ID do aparelho eletrônico e onde no globo ele se encontra.
Um dos pontos
mais interessantes sobre a coleta de dados surge num parágrafo breve. Todos os
dados coletados não servem somente para as plataformas oferecidas pelo
Facebook, sendo também “compartilhadas” com alguns de seus parceiros
comerciais. Que seja notado aqui o uso do mesmo termo que já havia sido notado
no anúncio do Banco Santander, “compartilhar” – certamente um termo feito mais
popular dentro do campo dos dados informacionais com o Facebook. Os dados não
são puramente coletados, como são estudados, mensurados, e estas pesquisas
“compartilhadas” com “parceiros”.
Estes dados
coletados e mensurados não servem somente aos anunciantes de dentro da
plataforma do Facebook? O site é muito claro ao descrever que “usamos as
informações que temos [...] para ajudar os anunciantes e outros parceiros”.
Sim, há o direcionamento dos anúncios publicitários para a cliente do Facebook
que somente fala de livros em sua página e que, em troca, recebe somente
anúncios de livrarias, mas há uma relação além desta. Quem são estes “outros
parceiros” que recebem informações privilegiadas de todo tipo de movimentação a
respeito da vida das pessoas? (FACEBOOK)
Ironicamente,
quem vem a responder esta pergunta é o próprio anúncio publicitário do Banco
Santander. O espectador e cliente do Banco Santander é também cliente do
Facebook. Oferta gratuitamente seus dados para o Facebook – aqui apenas um
exemplo, longe de ser uma exceção dentro do sistema financeiro – que por sua
vez “compartilha”, ou melhor, vende estes dados para outras empresas. Quem são
estas empresas? Instituições financeiras que utilizam destes dados para
realizar transações financeiras; empresas de publicidade que se valem destes
dados para melhor direcionar suas campanhas; e o que mais recentemente foi
descoberto, empresas de marketing político que com o auxílio da coleta destas
informações consegue direcionar os interesses do público em vistas da pauta de
determinado candidato.
As redes sociais
surgem cobertas pela aura da democratização do acesso às informações. No final
das contas, fazem parte da engrenagem do sistema financeiro a constantemente
aglutinar o que as pessoas têm a oferecer. O silêncio é contraproducente. O
lucro se encontra na fala das pessoas, em seu continuado ofertar de dados. O
caso é que os clientes estão apenas a ofertar os dados, e não a receber algo em
troca. O anúncio do Banco Santander diz que a empresa fará esta parte faltante
do ciclo. Mas o caso é que estes dados, na maior parte das vezes, são vendidos
para especialistas em determinadas áreas, e não é todo mundo que tem condições
de saber interpretar o que estas informações têm a dizer. Mais perigosamente,
poucos são aqueles que realmente podem ter acesso a estes dados. O que os
bancos costumam oferecer é uma pasteurização dos dados por meio de algumas
entradas em seu aplicativo – esta, mais uma ferramenta de coleta de dados sobre
a movimentação de seus clientes. Sendo ele uma grande instituição financeira de
alcance global, é também uma das corporações com condições de pagar o preço por
estes dados. O que parcialmente responde à pergunta que resta depois desta
problematização: quem pode pagar para ter acesso a estes dados?
7
Evgeny Morozov é
um autor bielorrusso que se especializou em escrever sobre as grandes
companhias de informática, em especial as corporações coletoras de dados – os “big data”. Suas argumentações costumam
apresentar as falas dos dirigentes destas empresas buscando demonstrar como o
desenvolvimento da tecnologia tem feito a vida das pessoas e a organização
social mais prática, contrapondo a estas falas preceitos que parecem saídos de
leitor assíduo da Dialética do
esclarecimento ao apontar que estas corporações se escondem por trás de
elogios aos bens da tecnologia para ampliar o controle que estas mesmas
corporações têm sobre a sociedade e sobre os indivíduos.
Em livro recém
publicado no Brasil, uma organização de diversos ensaios escritos por Morozov,
o autor logo demonstra a mudança no comportamento das pessoas com a ampliação
do alcance das redes sociais. Com o Facebook, mas não somente ele, também com o
Google, a reputação das pessoas não é mais um trabalho privado, antes sendo
público devendo ser alimentado diariamente e publicamente. Os clientes destas
corporações alimentam as informações a respeito de suas vidas repetidas vezes
ao longo do dia, renovando os dados que a empresa tem acesso a cada nova
visualização de seu perfil, a cada novo clique no celular – atitudes
aparentemente inofensivas, mas que dentro da lógica das plataformas
informacionais são ações que alimentam o algoritmo. Ligar o celular é informar
ao algoritmo os movimentos feitos por seu cliente dentro da cidade ao longo do
dia. Cada detalhe, por mais ínfimo e que as pessoas acreditam ser inofensivo,
ganha nova conotação: para as corporações, torna-se em ativo rentável.
(MOROZOV, 2018, p. 33-34)
Pessoas que há
muito não se viam e agora são reunidas pelas redes sociais é a propaganda de
apoio ao bem que estes serviços podem fazer, servindo de argumento de defesa.
Logo na introdução deste mesmo livro, Big
Tech, a ascensão dos dados e a morte da política, Morozov aponta para a
dificuldade em rascunhar uma crítica a estes serviços, uma vez que eles são
demasiado amplos e abrigam grande variedade de serviços. A solução de Morozov é
se dirigir diretamente aos perpetradores dos males: as corporações que dominam,
numa economia concentrada, o poder dos dados. “Economia concentrada” não é uma
novidade neste mesmo ensaio sobre o silêncio, uma vez que já havia sido evocado
por Adorno e Horkheimer no parágrafo de abertura de seu capítulo sobre a
indústria cultural.
Esta economia
concentrada se encontra nas mãos de algumas poucas corporações. Quem pode pagar
pelos dados coletados pelas plataformas que armazenam as redes sociais? A
resposta a esta pergunta se encontra justamente em quem são estas corporações,
as instituições de alto poder financeiro que podem pagar para ter estas
informações, cientes de que as informações detalhadas sobre a vida de seus
clientes lhes dá a frente na corrida pelo capital.
É neste sentido
que Morozov ainda escreve, “toda transação eletrônica que efetuamos nunca está
concluída” (MOROZOV, 2018, p. 47). As “empresas que compartilham com empresas”,
como dizia o anúncio do Banco Santander, ou as empresas que vendem dados para
outras empresas conseguem se inserir em cada detalhe da vida de seus clientes
para poder traçar padrões comportamentais cada vez mais apurados. Um banco que
oferece um serviço de cartão de crédito tem acesso ao comportamento de compras
de seu cliente. Mesmo que não vá passar adiante a identidade deste cliente, se
vale deste comportamento para realizar estudos de comportamento que não ficam
presos dentro das paredes desta instituição financeira. Estes mesmos dados são
vendidos para outras empresas, como empresas de publicidade, que assim podem
tomar os padrões de comportamento de faixas da população e mais diretamente
dirigir campanhas publicitárias – o que o Facebook em sua página chamaria de “serviço
personalizado”.
É neste sentido
que as redes sociais e as demais operações eletrônicas interligadas por rede
passam a ser cada vez mais fáceis, buscando alcançar porções mais amplas da
população global. O mapeamento do comportamento humano voltado para o que
Adorno e Horkheimer apontariam como sendo a tecnização da subjetividade humana.
Para que estes serviços continuem a ser veiculados é preciso que os clientes
destas plataformas continuem a oferecer mais e mais dados. Estes dados compõem
a subjetividade de pessoas em sua unidade, em sua singularidade, mas para o
algoritmo que rege estas mesmas plataformas, as redes sociais, os clientes são
números com comportamentos passíveis de ser transformados em quantidades.
O ouro para as
corporações destas primeiras décadas do século XXI são os dados. Por meio deles
é possível adentrar na casa das pessoas e tudo saber. Os escândalos de
espionagem revelados por Edward Snowden são apenas parte do problema, porque
ali estava apenas o princípio da reviravolta do comportamento com relação às
redes sociais. Como Morozov aponta em seu estudo, há uma aura de bondade a
pairar por sobre as big-tech porque
seu caráter agressivamente capitalista não se encontra acessível às pessoas. Os
serviços destas empresas, ao menos os serviços primários destas empresas, são
oferecidos de graça – não se paga nada para efetuar uma busca utilizando o
Google ou para criar uma conta no Facebook. Ainda assim, um preço não baixo se
é pago por todos estes serviços e facilidades.
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Sem dúvida,
muitos irão concordar que a tecnologia trouxe certas facilidades para o
cotidiano. As mensagens eletrônicas são um exemplo disso. Se antes se ficava
alguns dias, senão semanas, a esperar a resposta de uma carta enviada por
e-mail, agora com segurança sabe-se que a mensagem enviada chegou ao endereço
eletrônico do remetente instantaneamente, e a resposta poderá chegar dentro de
minutos.
Quanto a este
ponto, não falta a Morozov pintar um cenário carregado com uma dose de ironia.
É muito prático utilizar um recurso como o Gmail, oferecido pelo Google. Uma
das prerrogativas de se utilizar este recurso é a segurança. Enquanto alguns
sistemas de correio eletrônico demonstram ter algumas brechas, facilitando para
que hackers tenham acesso às senhas
dos clientes deste serviço (e assim bisbilhotar o que andam a escrever para
seus contatos), os clientes do Gmail podem dormir tranquilos.
Agora que seja
imaginado o seguinte cenário: uma pessoa contrata em sua casa os serviços de
uma assistente pessoal, que dentre algumas de suas atribuições é pegar suas
cartas e levar ao correio. É esperada desta pessoa que ela pegue os envelopes
lacrados e os leve até a estação de correio sem maculá-los. Seria, certamente,
desperdício de dinheiro pagar uma assistente pessoal que invadisse a
privacidade de seu contratante, abrindo o envelope no meio do caminho, passando
o conteúdo deste envelope para frente. (MOROZOV, 2018, p. 53)
Curiosamente, é
isto que acontece com as mensagens eletrônicas. Ainda que nem todas sejam
lidas, esta assistente pessoal eletrônica abre suas mensagens antes de elas
chegarem ao remetente. Alguns destes dados são vendidos por estas corporações.
O escândalo Snowden mostrou que não se trata de meramente uma suposição. Estas
mensagens são armazenadas nos servidores das empresas de tecnologia – Google,
Facebook – e podem ser acessadas tanto em sua individualidade (com o propósito
de espionagem de individuo), quanto podem ser acessadas em sua universalidade
(transformando a singularidade em dados gerais para criação de estatísticas,
por exemplo).
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Ainda neste mesmo
livro de Morozov, há uma passagem em que o autor recupera uma fala do
romancista Stanislaw Lem que é muito emblemática da relação hoje pautada entre
as pessoas com as redes sociais – e que Lem escreveu nos anos 1960. Escreve
Lem, “A sociedade não pode desistir do fardo de decidir o próprio destino,
abdicando dessa liberdade em prol do regulador cibernético” (LEM apud MOROZOV,
2018, p. 101). Apenas em uma curta passagem é possível encontrar ecos de um
pensamento característico das décadas correntes, encontrada em alguns dos
autores apresentados ao longo das páginas anteriores.
O capital abraça
a fala do progresso técnico, demonstrando para a sociedade as maravilhas que as
inovações tecnológicas podem trazer em seu benefício. A sociedade não se mostra
preparada para abdicar de tamanhas transformações que em muitas instâncias
facilitou seu cotidiano – a exemplo das mensagens de correio eletrônico. O caso
não é fazer a população diretamente abdicar do uso destas técnicas, e sim fazer
claro o discurso que a elas vem atado. A frase de Lem é muito esclarecedora
nesse sentido porque as facilitações que as tecnologias trazem vêm atreladas
com o que ele aponta serem recessões de liberdades, mas que pode ser visto como
indo ainda mais além, abarcando a quebra da privacidade e transformação da
subjetividade em produto.
A tecnologia não
precisa, numa relação de necessidade, vir unida a esta abdicação de liberdade.
A técnica é utilizada pelo capital como mecanismo de controle social. Numa
relação que vai desde sua relação com seu subjetivo – a indústria cultural e o
entretenimento – até suas relações profissionais – as instituições financeiras
e o controle das ações rotineiras dos indivíduos. É visando somente os lados
positivos mais à superfície do uso da técnica que o capital faz a sua campanha.
O controle e diminuição das liberdades são costumeiramente deixados de lado,
com o uso de uma retórica que abraça a positividade da relação entre as pessoas
com as tecnologias.
Com as
plataformas de coleta de dados houve uma reviravolta na relação das empresas
com as pessoas que compõem a coletividade de seus usuários. As pessoas deixam
de serem somente clientes destas mesmas empresas para se tornar num atrativo
comercial. Em outras palavras, na era das corporações coletoras de dados, os
usuários de tecnologias não são somente clientes, mas também produto. Este
produto tão valioso que abre às corporações as fronteiras do futuro e suas
possibilidades de ação.
As fake news, as notícias falsas veiculadas
com o suporte das redes sociais, não são fruto somente de pessoas mal
intencionadas – elas são produtos valiosos dentro da lógica interna do
algoritmo das plataformas de compartilhamento de conteúdo que visa o que mais
comove a interação dos usuários destas plataformas. Dentro do esquema do lucro
das corporações capitalistas, a lógica é a de fomentar a interação das pessoas
com o algoritmo para que assim cada vez mais elas (usuários) ofereçam o que
elas (corporações) querem para o comércio: informação.
É neste sentido
que o silêncio é rejeitado pelos mais diversos setores industriais; o silêncio
foge dos moldes do mecanismo em construção ao longo de décadas. As técnicas do
capital convergiram em direção a este momento, sendo assim que o capital
interpreta a história (como visto na história do cinema mudo que progride em
falado) – como uma progressão de tecnologias; na história progressiva, o
silêncio virou coisa do passado. Como Bartleby já dava sinais um século antes,
o não agir e o silêncio são formas de resistir ao que é imposto por um sistema
econômico que cobra produtividade incessante – agora, transformando até mesmo a
subjetividade em mercadoria.
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De que maneira
pode o silêncio ser utilizado como forma de resistência política? Na ausência
de Herman Melville para responder a esta pergunta de maneira mais clara, é
possível levantar algumas proposições em aberto sobre como se posicionar frente
a este universo informacional que se apresenta. O primeiro ponto, e talvez o
mais importante, é que o silêncio não é uma alternativa definitiva, mas uma
ferramenta em mãos de indivíduos. O silêncio de um grupo de pessoas não é
suficiente para macular a engrenagem das máquinas das indústrias que há décadas
vêm trabalhando em sua consolidação.
O segundo ponto é
o de enxergar o silêncio frente às big
data num sentido muito próximo àquele que Stanislaw Lem apresenta em sua
fala: um modelo de confrontação social de quem não aceita abdicar de suas
liberdades em prol de alguns benefícios escusos. É a resistência em um momento
da história onde é possível ver a subjetividade humana sendo mais uma vez
instrumentalizada para controle e benefício financeiro.
São muitas as
frentes ocupadas pelas tecnologias da informação, pelos big data, portanto é preciso compreender que o silêncio não se
apresenta aqui em sua pureza conceitual. Antes, como já dizia Susan Sontag a
respeito das obras artísticas de vanguarda a abraçar o silêncio (a exemplo dos
romances de Samuel Beckett), é preciso enxergar a resistência pelo silêncio
como falha e irônica.
Sendo Susan
Sontag filósofa de corrente devedora do pensamento de Wittgenstein, muito
próxima da filosofia analítica, ela tende a caminhar por trilhas diferentes
daquelas de Longino, e apontar o silêncio como também uma forma de discurso –
daí o apontamento de ser falho, porque não puro. Portanto, “um puro silêncio
não é exequível” (SONTAG, 2015, p. 18), servindo como caminho a uma ilustração;
um diálogo de quem, por meio do silêncio, faz uma acusação. Afinal, “o silêncio
continua a ser, de modo inelutável, uma forma de discurso (em muitos exemplos
de protesto ou acusação) e um elemento de diálogo” (SONTAG, 2015, p. 18).
É a resistência
de quem reconhece que o capitalismo tem as forças para impor pautas, dominar e
controlar o que é dito nas mídias de acordo com as mudanças impostas em seu
maquinário. Quem tem acesso às informações coletadas pelas redes sociais, era a
pergunta feita algumas linhas acima. São estas mesmas instituições que fazem a
fala contrária se perder em meio à multidão de dados coletados – ou mesmo,
utiliza estas falas como parte de sua retórica em defesa da democratização das
tecnologias de coleta de dados (as corporações são tão democráticas que
permitem oposição, dizem elas). O silêncio é busca pela autonomia no desenvolvimento
da subjetividade que não seja imposta pela indústria cultural e suas
financiadoras.
No final das
contas é preciso reiterar a afirmação de Sontag a respeito do silêncio nas
artes como também válido aqui, ao pensar a estética da forma de se manifestar
politicamente: o silêncio somente é uma noção viável quando empregado com uma
ironia considerável (SONTAG, 2015, p. 42). Evocando mais uma vez Longino, o
silêncio é a marca de uma subjetividade não cabe numa coleta de dados.
Referências
ADORNO, Theodor. HORCKHEIMER, Max. A indústria cultural – o Iluminismo
como mistificação das massas. In: Indústria
cultural e sociedade, organizado por: Jorge M. B. de Almeida. Tradução:
Júlia Elizabeth Levy. 11ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra editora,
2017.
ANDRADE, Fábio. Pastiche de
homenagem. Disponível em http://www.revistacinetica.com.br/oartista.htm,
acessado em 29 de maio de 2019, às 19:11.
FACEBOOK. Política de dados.
Disponível em: https://www.facebook.com/about/privacy/update,
acessado em 30 de maio de 2019, às 12:30.
LONGINO. Do sublime. Tradução:
Filomena Hirata. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
MELVILLE, Herman. Bartleby, o
escrevente, uma história de Wall Street. Edição bilíngue. Tradução: Tomaz
Tadeu. 1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2015.
MOROZOV, Evgeny. Big Tech, a
ascensão dos dados e a morte da política. Tradução: Claudio Marcondes. 1ª
ed. São Paulo: Ubu editora, 2018.
NAPPER, Lawrence. They shall not grow old and the elephant in
the room. Disponível em: http://iamhist.net/2018/10/they_shall_not_grow_old/,
acessado em 29 de maio de 2019, às 19:40.
SANTANDER BRASIL. Seus dados.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vuI6Um48v1w,
acessado em 20 de maio de 2019, às 23:37.
SONTAG, Susan. A estética do silêncio. In: A vontade radical. Tradução: João Roberto Martins Filho. São Paulo:
Companhia das Letras, 2015.
1 “Pois
se não é possível, em absoluto, chamar o cinema silencioso de um ‘gênero’, é
desta maneira que ele é encarado por Michel Hazanavicius [diretor do filme]: um
engodo, uma emulação que toma uma farsa como a ‘coisa em si’ e lhe oferece
apenas uma possibilidade de sobrevida, tentando recriar não as inclinações
artísticas que norteavam os procedimentos na arte limitada a seu contexto
histórico, mas sim seus efeitos, tomando-os como atalho para o gênero. O Artista é
um filme kitsch.” (ANDRADE, 2012).
2 Em Cameramen: the life and work of Jack Cardiff.
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