como citar: SILVA, Ronald Monteiro da. A objurgação de Platão à sofística, a necessidade de uma (re)interpretação idônea. Revista Sísifo. Nº10, v. 1, julho/dezembro2019.
Ronald Monteiro da Silva*
RESUMO
Os questionamentos encontrados nos diálogos
platônicos contra os sofistas que, consequentemente, se cristalizaram
historicamente desde a antiguidade até os dias atuais, colocaram esses pensadores
frente a noções adversas, segundo as quais eles nada são senão inimigos da
verdade e da Filosofia. Acerca destas proposições feitas ao modo de pensar dos
sofistas, Platão deixara uma espécie de opinião pronta, tornando-se impossível
uma releitura durante quase dois milênios. Todavia, a partir do século XIX,
surgem interpretações contrárias a respeito dessa concepção platônica,
afirmando que os sofistas foram vítimas de uma condenação injusta. Diante
destas concepções manifestam-se incontáveis recursos para refletirmos sobre uma
reabilitação legítima e necessária dos sofistas e do seu lugar no encadeamento
histórico dos problemas e das teorias filosóficas.
Palavras-chave: Sofistas;
Platão; Crítica; Democracia; Reabilitação.
Com
o apogeu do regime democrático na cidade de Atenas – entre o século V e IV a.C.
– , pronunciava-se nas assembleias a fórmula “Quem pede a palavra?”, onde todos
os cidadãos podiam defender-se autonomamente. No entanto, apenas àqueles que
dominavam a arte do falar bem, isto é, uma maior habilidade de persuasão e
argumentação, detinham o poder de defender seus interesses particulares,
através do discurso e da retórica.
Neste
cenário político, surgira em Atenas um movimento cético de pensadores
denominados sofistas – que se opuseram às reflexões cosmológicas das quais
ocupavam-se os filósofos pré-socráticos –, tendo como percussores Protágoras e
Górgias. A palavra “sofista”, na época em que surgira, não tinha uma conotação
negativa; significava, com base no verbo grego sofízestai, alguém que
dominava alguma técnica (neste caso, a do falar bem). Os sofistas ganhavam a
vida ensinando retórica aos jovens atenienses que tinham meios, ou os filhos
destes – visto que não existia provimento público desse tipo de instrução –,
para a nova geração de homens políticos que se faziam necessárias diante do
regime democrático de Péricles que estabelecera-se na cidade grega (RUSSEL,
2015). Um dos traços marcantes desse novo governo que ali surgira era a
concepção de que todo homem livre possuía igualdade de direito perante a lei (isonomia)
e igualdade de direito à palavra na assembleia (isegoria). Daí provém a
principal divergência entre sofistas e filósofos: a linguagem.
O
primeiro a iniciar um diálogo reflexivo acerca dos sofistas fora Platão que,
consequentemente, incluiu-os nesse grande debate que é a história da filosofia;
ou melhor dizendo, incluiu-os excluindo-os. Platão, julgara esses pensadores
dizendo que estes eram “imitadores de sábios” e, não propriamente amantes do saber;
que sua inclinação à sabedoria não se justificava ou não era fundado na razão e
que seu suposto saber não passava de uma suposta aparência de sabedoria.
Posteriormente, com o triunfo da metafísica na tradição filosófica – que, na
época, constituía-se em grande parte em oposição à sofística – e a adequação do
platonismo ao cristianismo, ocorrera uma cristalização histórica da visão
platônica em relação aos sofistas, sob uma forma de preconceito, ficando-nos
uma imagem negativa dos sofistas como “produtores do falso” e manipuladores de
opiniões. Mas, justamente por se opor ao pensamento sofístico, ocupando-se dele
em vários de seus diálogos – com destaque para O Sofista, O Político
e Górgias – e dando a muitas de suas obras títulos com os nome de
sofistas ilustres, Platão os consagra como problemas legítimos de discussão,
mostrando sua estima aos temas tratados pelos sofistas como autênticos e
perfeitamente filosóficos.
No
entanto, após vinte e dois séculos desde Platão, surge em Hegel uma nova
interpretação, que põe os sofistas sob uma nova ótica, dando-os uma nova
dignidade; mas que, ainda assim, não se desvincula daquele plano platônico,
tratando os sofistas como aqueles indivíduos imorais que preferem o poder e o
dinheiro. Nessa linha, muitos outros autores filiaram-se às concepções
parcialmente diferentes daquelas forjadas por Platão, mas, por outro lado,
continuaram demonstrando certo grau de dependência da visão do filósofo
ateniense. Diante destas concepções, juntamente com nossos “olhos” de século XXI,
aliada a uma inteligência provida de novos domínios conceituais, manifestam-se
incontáveis recursos para refletirmos sobre uma “releitura” dos sofistas.
Em
virtude disso, o presente trabalho não tem por finalidade, analisar a história
da filosofia com o intuito de encontrar argumentos sólidos que comprovem uma
visão benéfica ou maléfica dos sofistas, visto que isso talvez seria uma tarefa
impossível e um tanto ambiciosa; mas, a proposta de uma reabilitação legítima e
apodítica dos sofistas, apoiada numa releitura destes pensadores no
encadeamento histórico do problema e seu lugar nas teorias filosóficas.
Num momento em que se
enfrentam diversas ambições relativas ao saber e ao poder na condução da vida comum,
ergue-se o discurso filosófico na cidade-Estado antiga (pólis). Na
medida em que os cidadãos - exceto mulheres e escravos - participavam das
diferentes instâncias de providência tomadas nos Tribunais, enfrentavam-se para
ter acesso ao poder público, mas, no entanto, tinham de legitimar tal aspiração
com alguma espécie de saber. Acerca disso, Russell descreve sucintamente que:
Os juízes e a grande maioria dos oficiais executivos eram
escolhidos à sorte, ocupando seus cargos por períodos curtos; tratava-se,
portanto, de cidadãos comuns (...) Em geral, um número grande de juízes ouvia
cada caso. O pleiteante e o defensor, ou o acusador e o réu, compareciam em
pessoa; não eram representados por advogados profissionais (não existia tal
função). Naturalmente, o triunfo ou fracasso dependiam em grande medida dos
talentos oratórios demonstrados no recurso a preconceitos populares. Embora
fosse necessário apresentar discurso próprio, era possível contratar um
especialista que o redigisse ou, o que muitos preferiam, pagar para aprender as
artes necessárias ao bom desempenho nos tribunais. Caberia aos sofistas ensinar
essas artes (RUSSELL, 2015, p.108)
Em Atenas, configurava-se
uma nova geração de homens verdadeiramente políticos, de origem não nobre, que
iria atuar dinamicamente na administração da vida da pólis nos últimos quinze
anos do século V a.C. e na primeira metade do século IV. Nesta trama da nova
organização da vida política, fora fundamental a formação dos jovens
atenienses, promovida por filósofos e sofistas.
Com as reformas de Efialtes
e Péricles, a quantidade de processos civis cresceram consideravelmente e,
portanto, passam a ser tratadas em tribunais; os sofistas e alguns outros
intelectuais atuam nessas circunstâncias, disponibilizando à classe emergentes
uma educação (paideía) que lhes apresenta os recursos intelectuais e
retóricos necessários para uma participação mais capacitada nos assuntos
públicos e na defesa dos interesses privados. Os cidadãos buscavam os
sofistas a fim de adquirir o saber crucial para poder executar o poder na pólis,
seja defendendo os interesses privados ou os da cidade, de maneira íntegra. Os
trabalhos pelos quais os sofistas eram pagos eram bem diversificados, não se
bastavam apenas na retórica, mas também na gramática e na argumentação. Devido
à idade avançada dos novos comerciantes, muitos contam com seus filhos mais
jovens para agir mais diretamente nos tribunais e assembleias. Esses jovens são
aqueles que iram receber por intervenção a nova educação intelectual, sofística
ou filosófica. Os famosos oradores atenienses Lísias, Isócrates e
Demóstenes, por exemplo, são filhos desses novos cidadãos recém enriquecidos.
Com isso, rapidamente
percebemos que a sofística inaugura um fenômeno político-pedagógico e
estabelece um movimento propriamente político (tome o termo político em seu
sentido lato) diante da contextura democrática em Atenas. No entanto, vale
ressaltar que a sofística não se limitou somente às questões educativas e
políticas, mas, também, preocuparam-se com problemas metafísicos, éticos,
estéticos e físicos.
Tomada em sentido histórico,
a sofística se tornou uma corrente filosófica organizada por mestres de
retórica e da cultura coletiva que exerceram forte presença sobre as condições
político-sociais grega.
É importante compreendermos
que a sofística não ocupa um espaço na história como escola filosófica, mas sim
de uma propensão abstrata devido às exigências de sua profissão, onde seus
princípios podem ser assim sintetizados no interesse filosófico direcionado ao
homem e a seus problemas, tal como em Sócrates; no conhecimento que condensa-se
à opinião e o bem ao préstimo; na escora da relatividade da verdade e dos
valores éticos, que alteram-se segundo o lugar e o tempo; e na objeção entre
natureza e lei, onde na natureza sobrepuja-se o direito do mais forte
(ABBAGNANO, 2005).
O CONCEITO DE SOFÍSTICA NA GRÉCIA ANTIGA
Aproximadamente no século 4
a.C. ainda não havia uma convenção difundida sobre o significado de termos como
“sofia”, “sofística” ou “filosofia”. Os termos sofía (sabedoria) e sofós
(sábio) aplicavam-se, respectivamente, em algum ramo de atividade e a um saber
propriamente dito, a alguém que tinha uma determinada mestria. Da medicina à
navegação, o sofós e sua sofía estavam fixados à vida comum e aos
mecanismos ou aptidões primordiais para torná-la concebível.
Espontaneamente, na
antiguidade clássica designavam-se sábios os homens detentores de cultura,
tanto filósofos quanto sofistas recebiam tal vulgo, pois, ambos, desempenhavam
um grande papel na formação do homem grego.
Em suas origens, na Grécia antiga, o vocábulo sofista era
utilizado para designar a quem se mostrava sábio em alguma atividade. Podia ser
na filosofia, na poesia, na música ou na adivinhação, por isso, um sofista era
um mestre da sabedoria, e alguém que se propunha a fazer sábio quem recebesse
seus ensinamentos. Homens célebres como os sete sábios da Grécia foram chamados
de sofistas, implicando com um profundo reconhecimento da sua condição de
homens excepcionais. (LOPÈZ, 1996, p. 251).
Pitágoras, filósofo e
matemático do século VI a.C, foi quem propôs trocar o nome de sábio pelo de
filósofo, ou amigo do saber, a fim de evitar confundi-los com os demais ditos
“sábios” (ABBAGNANO, 2007).
PLATÃO: CONDENADOR DOS SOFISTAS
Platão foi quem primeiro
colocou os sofistas diante de uma análise crítica propriamente filosófica. Mas,
afinal de contas, por que Platão não considerava os sofistas como sendo
autenticamente sábios? Em quase toda a obra platônica encontramos a resposta,
mas, porém, bastamo-nos aqui as críticas encontradas no diálogo denominado Sofista.
A crítica que Platão faz aos sofistas é fundamentalmente pelo fato de ensinarem
como alcançar um determinado fim, visando apenas o dinheiro e deixando de lado
os aspectos morais. Nessa linha, Platão acusa-os de sobrelevar o aparente sobre
o real.
No Sofista, desenvolve-se
todo um diálogo em torno da questão do não-ser, para que, através do método
dialético seja possível encontrar verdadeiramente a definição do sofista e no que
ele difere do filósofo e do político. Para tanto, Platão propôs seis definições
altamente capazes - segundo o ateniense - a fim de caracterizar os grandes
oradores, das quais, apresentaremos - visto ser o suficiente - quatro:
1°) que o sofista é aquele que, com o pretexto de ensinar, busca o lucro e
dinheiro; 2°) o sofista é aquele que comercializa o ensino das virtudes; 3°)
que utiliza o método erístico que deve purificar a alma de toda ignorância como
uma forma de comércio; e, por fim, 6°) como refutador que mostra ao ignorante
as suas contradições e falta de fundamentos em suas palavras. Assim, também nos
diz Cassan:
Do conjunto dos diálogos de Platão se destaca então a figura
doravante tradicional da sofística. Ela é desconsiderada em todos os planos.
Ontológico: o sofista não se ocupa do ser, mas se refugia no não-ser e no
acidente; lógico: ele não busca a verdade nem o rigor dialético, mas apenas a
opinião, a coerência aparente, a persuasão, e a vitória na justa oratória;
ético, pedagógico e político: ele não tem em vista a sabedoria e a virtude,
tanto para o indivíduo quanto para a cidade, mas visa ao poder pessoal e ao
dinheiro; literário mesmo, já que as figuras de seu estilo são apenas
intumescências de um vazio enciclopédico. (CASSAN, 1990. p. 9).
Em suma, Platão conclui que
o sofista é uma espécie de caçador interesseiro de jovens ricos, varejistas,
com grande habilidade no discurso pela erística e que podem através da arte que
utilizam purificar a alma. Mas na sexta visão, Platão observa que - segundo ele
- o que o sofista tem é apenas a aparência do que demonstra ser. Por
consequência, segundo o pensamento platônico, os sofistas visavam formar
contraditores - assim como eles, ainda segundo Platão - para irem participar
dos discursos políticos e particulares. Percebe-se que Platão tem um grande
cuidado na sexta visão ao fazer a distinção entre o que é aparência (essência
própria do sofista) e a realidade (essência própria do filósofo) quando coloca
os sofistas como refutadores, tal como Sócrates.
Platão é uma figura
importante em todas as épocas históricas - inclusive a nossa - que pretendeu
buscar a verdade examinando todos os caminhos possíveis para esta e suas
críticas deixadas sobre os sofistas são abundantemente intensas. Neste ponto, a
presença platônica foi decisiva para a construção do pensamento cristão, no que
diz respeito a harmonização entre fé e razão que, consequentemente, influenciou
o pensamento moderno.
Para analisar a sofística,
necessitamos, em boa parte, das referências pretensiosas dos diálogos
platônicos. O legado de Platão interferiu profundamente na tradição filosófica
de modo que a visão que ficou sobre os sofistas se refere ao modo
fundamentalmente platônica de concebê-los.
Um bom exemplo desse efeito
platônico difundido pelos adeptos (fanáticos) do cristianismo é o desabono que
o filósofo francês Jacques Maritain faz sobre a sofística em sua obra Introdução
Geral à Filosofia. Diz-nos Maritain:
Não é de se admirar que este período de elaboração tenha levado a
uma crise intelectual, em que certo mal do espírito ia pôr tudo em perigo. Esse
mal do espírito é a Sofística ou a corrupção da Filosofia. (...) A Sofística
não é uma doutrina; é antes uma atitude viciosa do espírito... Professores
ambulantes que recolhiam honras e dinheiro, enciclopedistas, conferencistas,
jornalistas se assim podemos dizer, super-homens ou diletantes, os sofistas
eram, pois, tudo menos sábios. Hípias... lembra um herói da renascença
italiana. Outros levam-nos a pensar nos “filósofos” do século XVIII ou nos
“cientistas” do século XIX. O que se pode dizer como sendo o mais
característico em todos, é que queriam as vantagens da ciência, sem querer a
verdade (MARITAIN, 1970. p. 45).
Nesta linha interpretativa
platônica sobre os sofistas, incluem-se vários tratados mais atuais de
filosofia quando se referem ao pensamento sofístico. Por exemplo, no capítulo
“Pré-Socráticos: Físicos e Sofistas” do livro Curso de Filosofia a
professora brasileira Maura Iglêsias ao referir-se sobre a disputa na antiguidade
sobre a erística e a dialética, diz:
Ao contrário de Sócrates, esses sofistas não tinham o menor
interesse em alcançar conhecimento algum. O que eles queriam era ridicularizar
o adversário, confundi-lo, refutá-lo a qualquer preço, ganhando assim a disputa.
Para isso, não tinha menor escrúpulo em viciar os argumentos, criando dessa
forma os argumentos sofísticos, argumentos erísticos ou simples sofismas (...)
racionalmente, os sofistas... Ah! Esses fizeram misérias. Eles foram capazes de
mostrar, racionalmente, que o conhecimento científico não existe, que cada
homem é a medida de suas próprias contradições. Mas sobretudo, eles foram
capazes de provar que há uma cisão entre irremediável entre physis e nomos, que
nomos não tem outro fundamento além do arbítrio e da convenção humana. Se, por
um lado, se abrem enormes perspectivas de liberdade para a ação política, por
outro se fecha a possibilidade de se construir a política como ciência.
(IGLÉSIAS, 2005, p. 43, 47).
Com isso, percebemos que a
tradição trouxe para nós uma espécie de opinião pronta acerca da sofística como
um tipo de preconceito, onde põe-se em dúvida a relevância dos sofistas e suas
contribuições para a história do pensamento.
A NECESSIDADE DE UMA (RE)INTERPRETAÇÃO DA SOFÍSTICA
A história da filosofia, que
é fundamentada na metafísica platônica e aristotélica, favoreceu
substancialmente para que se realiza-se um juízo negativo da heterodoxia
sofística. Percebemos que as reconsiderações que a sofística obteve são, em
síntese, asserções dos abatimentos antigos, atribuídas por Platão. Com isso,
podemos dizer que a tentativa de esclarecer a sofística em uma linha mais
conjuntural à luz do mundo contemporâneo mal começou (KERFERD, 2003).
Dinucci (2004) mostra-nos
que a adaptação do platonismo ao cristianismo trouxe através de seus seguidores
uma cristalização histórica, solidificando um preconceito contra os sofistas,
ou seja, a qualificação do “oponente” como mau, inferior, “demoníaco” é própria
do cristianismo. Tal definição cristã nos inibe de ver, no diálogo entre Platão
e os sofistas, o quanto Platão estimava-os, caso contrário, a sofística seria
algo indiferente para ele assim como fora as escolas socráticas-menores ou
parte delas.
Presumivelmente, o
cristianismo teve grande prestígio nesse contexto, pois foram os cristãos que
açodaram e tentaram aniquilar toda presença da cultura clássica que lhes
parecia ociosa ou que impedisse a difusão de seus ideais. A sofística não
deixou de ser compreendida neste processo de eliminação já que fazia parte
daquela cultura teoreticamente profana.
A partir dessa perspectiva,
o filósofo alemão Frederich Nietzsche (1992) adverte-nos sobre os preconceitos
proveniente dos sentimentos e instintos do ser humano que são convencionados
como ideias concretas e aceitos de modo absoluto, implantados pela história e
pela cultura que se concebeu. É preciso, portanto, desobstruir-se dos
preconceitos e dos preceitos tradicionais a fim de reafirmar outros valores da
vida e do pensamento. Desta forma, Nietzsche mostra-nos que mesmo sobre o
grande peso de filósofos como Platão, é admissível como ação filosófica
preestabelecer e pôr em questão sistemas de pensamentos e os semblantes
negativos oriundos a partir deles (na conjuntura da sofística, primeiro o
platonismo e depois o cristianismo) e agregado pela tradição filosófica durante
todos esses séculos.
Porém Nietzsche (2006) vai
além ao criticar o método dialético utilizado por Platão. No aforismo seis de
sua obra intitulada Crepúsculo dos Ídolos ele diz que a dialética é o artifício
dos fracos e pouco convincente, usada quando não se obtém quando inexiste uma
saída para o discurso. De modo efetivo, o filósofo alemão põe em pauta a
filosofia e a técnica desses filósofos antigos que pelejaram obstinadamente
contra os sofistas. Vale ressaltar que, embora ele exteriorize intensamente sua
reprovação à tradição filosófica, com sua metamorfose dos valores, ele não faz
frontalmente nenhum intento a favor de novas acepções acerca dos sofistas.
Assim, torna-se necessário ater-se à história e aos fatos para desprender-se
destes preconceitos seculares para perverter a memorável e contestável
divergência entre sofística e filosofia, onde a primeira é tomada como um
antifilosofia.
Nessa ótica, apenas em Georg
Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) que os sofistas começam a ser pensados
desconforme da visão platônica (KERFERD, 2003).
Devemos reconhecer em Hegel, particularmente em seu livro Lições
Sobre História da Filosofia, publicado em 1833, o mérito de realizar o primeiro
grande esforço por reinterpretar o papel dos sofistas. Nunca houve razões
sólidas para rebaixar a experiência educativa dos sofistas, por isso é preciso
admitir que depois de Hegel isto se tornou óbvio. (...) Hegel desaloja todos os
lugares comuns e inaugura outra percepção a respeito dos sofistas, criando para
eles uma nova dignidade. Mostrando a potência que pode alcançar a reflexão, a
mesma que os reconhece como pioneiros, e os tornam professores gregos. Ele
argumenta que os sofistas vieram para substituir os velhos mestres, e para
criar uma nova cultura. (LOPÉZ, 1996, p. 258).
É interessante acentuar às
análises feitas por Cassan em seu livro intitulado Ensaios Sofísticos, onde ele
afirma que, apesar de Hegel exprimir o quanto Górgias foi penetrante com a sua
questão do “não-ser do ser” e sobre a implantação da “consciência reflexiva”
por Protágoras, em certa medida, os sofistas ainda são tratados no plano
platônico, como indivíduos “charlatões”. E Cassan, persiste,
As interpretações mais recentes não são de forma alguma exceção.
G. B. Kerferd, por exemplo, em The Sophistic Movement, se surpreende de que, em
um mundo tão pouco platônico como o nosso, a rejeição da sofística permaneça
tão mal questionada. Mas em sua própria reinterpretação, pinta a imagem de uma
sofística, hiper-racionalista, aplicando “a razão para buscar a compreensão dos
processos racionais enquanto irracionais”: os sofistas têm finalmente sempre,
para Kerferd, como para Platão e Aristóteles, o defeito/mérito de querer dizer
adequadamente a indizível realidade fenomenal. (CASSAN, 1990, p. 16).
Mas, se formos contemplar um
pensamento admissível sobre a sofística, sem dúvidas, devemos de fato recorrer
a feita por Werner Jaeger em sua obra Paidéia, A formação do homem grego.
Embora Jaeger não deixe de abonar a postura crítica socrático-platônica à
sofística, apresenta também uma nova direção ao admitir que a sofística
assistiu significativamente à educação, efetivando fundamentos pedagógicos
sólidos. Mas, porém, embora o autor afirma a relevância da sofística no
fenômeno da educação, quando refere-se ao uso de toda arte da eloquência,
mostra que esta foi empregada não em vista da verdade (alethéia) como fazia
Platão por intermédio de sua dialética, pois para um sofista, seria mais
inteligível e mais adequado desconvir de uma linha de pensamento que até então
se admitia, do que mantê-la; ser-lhe-ia mais fácil conturbar coisas diversas do
que distingui-las, pois, distinguindo-as, teria que evidenciar as
desconformidades (JAEGER, 2003).
Mas por fim, encontramos em
Bertrand Russell - filósofo alemão do século XX - (2015) uma visão
estimulantemente crítica quando diz-nos que,
Platão está sempre preocupado em defender visões que transformarão
às pessoas no que ele entende como virtuosas; poucas vezes é intelectualmente
honesto, uma vez que julga as doutrinas de acordo com suas consequências
sociais. Mesmo nisso, contudo, não há nele honestidade; Platão finge seguir a
razão e julgar segundo parâmetros puramente teóricos, mas na verdade o que faz
é distorcer o debate de modo a conduzi-lo a um resultado virtuoso. Esse vício
foi assimilado pela filosofia, e nela persistiu até os dias de hoje. Foi
provavelmente a difundida hostilidade para com os sofistas o que conferiu esse
caráter a seus diálogos (RUSSELL, 2015, p. 112).
De certo modo, esse “ódio”
que tanto Platão como os filósofos subsequentes sentiam pelos sofistas devia-se
em virtude de sua excelência intelectual. Quando a busca pela verdade é feita
de modo integral, deve ignorar as questões morais; pois, é impossível saber,
antecipadamente, se a verdade será aquilo que em determinada sociedade é
concebido como algo edificante. Com isso, os sofistas estavam predeterminados a
seguir um raciocínio até onde ele os levasse.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com
o desmoronamento dos regimes aristocráticos na Grécia antiga abriu-se um novo
espaço fértil e propício para o surgimento da democracia de Péricles. Esse novo
modelo de sistema exigia do cidadão do cidadão a sua manifestação em praça
pública e a capacidade de defender, com argumentos sólidos, seu ponto de vista
sob uma determinada questão. Deste modo, avigorava-se na burguesia da época uma
desejosa vontade de possuir um saber que antes lhe era isolado. Como
consequência dessa crise no mundo grego e motivação das circunstâncias internas
e externas, surgiram os sofistas.
É certo, que Platão possuía
suas razões para desaprovar os sofistas. Todavia, devemos compreender que a
sofística em sua conjuntura estava voltada para a ação. Neste caso, a ação
política é submetida à reflexão, da qual não exprime um conteúdo idealista, mas
atende ao que é empírico e incontinenti. A argumentação é pensada tendo em
vista a discussão pública, pois a fala está sob o uso da ação prática na vida
pública. Nessa perspectiva, os sofistas avolumaram um modo de refletir
independente e lúcida sobre a vida cotidiana em uma sociedade que buscava
reerguer-se interiormente pela (re)formação do homem (JAEGER, 2003).
Portanto, neste
ponto, a sofística instituiu um fenômeno demasiadamente significativo na
história da educação, pois foi com os sofistas que a paidéia obteve um sentido
e um significado mais intenso, isto é, a educação passou a ser colocada de modo
mais consciente e racional (JAEGER, 2003).
A sofística não foi um
fenômeno científico, mas uma irrupção do espírito grego sobre
as adversidades práticas que se assomou, de
problemas pedagógicos e sociais, resultante de um Estado economicamente e
socialmente decaído. Com efeito, os sofistas foram avaliados como os
inauguradores da ciência da educação porque foram eles que organizaram a
fundamentação prática e teorética da pedagogia, contínua ainda nos dias de
hoje.
De qualquer modo, nos tempos
em que viveram os sofistas, discorria que suas ações não passavam de uma arte
relacionada às situações políticas da época. Infelizmente, todos os registros
reais e prováveis sobre os sofistas desapareceram no tempo, por isso toda
informação que temos sobre os mesmos são sempre deturpadas ou platonicamente
motivadas, inibindo-nos de ter uma compreensão íntegra do que realmente
significou a sofística.
REFERÊNCIAS
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DINUCCI, Aldo Lopes. Miscelânea Sofística.
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LOPEZ, Ricardo. Sofistas Griegos: Nuevos
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NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. São
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NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos.
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NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo. Lisboa,
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PLATÃO. República. Editora Best Seller, Rio de
Janeiro, 2002.
AUTOR
Ronald
Monteiro da Silva. Graduando em Letras Vernáculas pela Universidade Federal
Fluminense e em Filosofia pela Universidade Católica de Brasília
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