Rafael
Pereira de Menezes*
RESUMO
O presente artigo tem por objetivo a apresentação de uma leitura do romance O lobo da estepe, de Hermann Hesse, desde a perspectiva do sofrimento infligido aos criadores pela vigência da moral. Tal sofrimento é provocado por uma internalização do interdito, que se traduz como ressentimento mas também como força criadora, nos termos do aforismo 188 de A gaia ciência, de F. Nietzsche, cotejado com a noção de mal-estar na civilização, explicitada por S. Freud em reflexões que receberam este título e na obra O fim de uma ilusão. O sofrimento imposto pela cultura, conforme Nietzsche e Freud, é o mesmo que é vivenciado pelo protagonista do romance de Hesse. Pela narrativa do pathos de tal personagem, Hesse propõe uma espécie de redenção e uma superação da pressão do interdito por meio da implosão do Eu e de sua pretensa seriedade na afirmação de diversos outros Eus, fragmentários, aleatórios e ridículos.
PALAVRAS-CHAVE: Hermann Hesse; S. Freud; F. Nietzsche; Ressentimento; mal-estar na civilização.
1
- Renúncia e civilização em Nietzsche e Freud
Nietzsche, no
aforismo 188 de Além do bem e do mal,
escreve sobre o paradoxo da formação das morais e da civilização sob o prisma
da coerção que é exigida dos indivíduos. Sob a “submissão a leis arbitrárias”
(NIETZSCHE, 2010, p. 76), sob “disciplina” (IBIDEM, p. 77) surgem as coisas
“pela qual vale a pena viver na terra, como virtude, arte, música, dança,
razão, espiritualidade” (IBIDEM). A produção destas coisas, ou seja, da
civilização, dá-se através do sacrifício e da destruição mesma de imensas
quantidades de forças, para as quais a natureza é mesma “pródiga e indiferente”
(IBIDEM). Nietzsche lança a hipótese de que essa prodigalidade, a produção
cultural, a produção do humano sob a pressão da renúncia das pulsões e do
sacrifício da atualização de forças é a própria natureza humana, ameaçada por
um “laisser aller (IBIDEM, p. 76)
que, deixando às forças entregues à seu próprio dinamismo interno, entregaria o
homem à animalidade e o afastaria daquilo que é interessante no humano, àquilo que nele seria natural.
Percebe-se uma
ambiguidade, um uso paradoxal, do significado do termo natural na fala do
filósofo. Pois natural no homem, pelo que lemos no aforismo citado, é
justamente a pressão arbitrária de leis aleatórias naquilo que é natureza no
indivíduo. Como afirma Nietzsche, “que importa a ela [a natureza] o indivíduo?”
(IBIDEM, p. 78) Numa leitura de grande espectro, interessa à natureza o “bicho
inteiro ‘homem’” (IBIDEM) – povos, raças, classes. A natureza disciplina a si
mesma e aperfeiçoa-se na cultura, e pouco importa o sofrimento acarretado ao
indivíduos neste processo. A estes cabe aprender a sobreviver ao processo, sublimando-o
(FREUD, p. 4452) de alguma forma, e aos mais fortes, aos que de fato o processo
impõe alguma renúncia pulsional, pode resultar de tal renúncia a criação
daquilo que a própria natureza faz uso em seu processo de cultivo da raça por
meio da moral.
São os artistas,
os criadores, os homens de letras e ciência os primeiros a definirem-se por
meio das limitações das leis arbitrárias para, a partir delas, tornarem o mundo
mais humano – e paradoxalmente, mais natural – para os homens. São as renúncias
pulsionais que, resultando em elementos civilizacionais, tornam a vida mais
fácil – limpa, plena de significado, segura – para os demais indivíduos. A
natureza é pródiga neste sentido, pois tira mais sublimação justamente dos
indivíduos aos quais impõe os maiores sofrimentos.
Tal processo,
repetindo-se indefinidamente no desenvolvimento da espécie, introjetou-se até
tornar inata essa necessidade de obediência, “como uma espécie de consciência
formal” (NIETZSCHE, 2010, p. 85) que passa a integrar a natureza humana,
convertendo-se também em pulsão a concorrer com as demais pulsões que são ora
exercidas ora suprimidas na economia pródiga de sofrimentos e renúncias com a
qual a espécie enriquece a si mesma em detrimento dos indivíduos. Há a pressão
do gozo das pulsões; há a pressão pela renúncia ao gozo das pulsões;
finalmente, há o gozo da renúncia como renúncia e como gozo.
Esse caráter, no
“homem do rebanho” (IBIDEM, p.86), facilita sua existência e mesmo a viabiliza
– pois é o mais obediente, o mais adaptável, o indivíduo que menos sente a
pressão das regras sociais sobre suas pulsões o mais apto para bem viver na
civilização. No entanto, tal civilização “melhora”, “progride” desde as
criações surgidas das sublimações e sofrimentos infringidos aos que mais sofrem
com a arbitrariedade das leis devido à força de suas pulsões e a necessidade de
a elas dar vasão por meio das
limitações da cultura (FREUD, p. 4452). O criador bate-se contra as normas
morais, contra as leis, contra a censura e, driblando-as, confrontando-as, deslocando-as
- ao mesmo tempo que é por elas e por sua aplicação punido, preso, afetado em
seu instinto gregário de obediência e adequação – entrega para a fruição de
todos aquilo que, segundo Nietzsche, faz com que a vida valha a pena. Tudo o que
é “transfigurador, louco e divino” (NIETZSCHE, 2010, p. 77) surge da dilaceração,
do sofrimento e da dor.
As mesmas
questões são colocadas por S. Freud em diversas de suas obras, dentre as quais
destacamos O futuro de uma ilusão,
obra de 1927 onde a civilização humana é definida nos seguintes termos:
[...]civilização
humana, expressão pela qual quero significar tudo aquilo em que a vida humana
se elevou acima de sua condição animal e difere da vida dos animais – e
desprezo ter que distinguir entre cultura e civilização -, apresenta, como
sabemos, dois aspectos ao observador. Por um lado, inclui todo o conhecimento e
capacidade que o homem adquiriu com o fim de controlar as forças da natureza e
extrair a riqueza desta para a satisfação das necessidades humanas; por outro,
inclui todos os regulamentos necessários para ajustar as relações dos homens
uns com os outros e, especialmente, a distribuição da riqueza disponível. (FREUD,
p. 4379)
A civilização,
é, portanto, aquilo que especifica a espécie humana e a difere dos animais.
Aquilo que faz do homem homem. E se constrói por meio de renúncia aos
instintos, àquilo que é animalesco. Segundo Freud, todo indivíduo é
“virtualmente inimigo da civilização, embora se supunha que esta constitui um
objeto de interesse humano universal” (IBIDEM, p. 4380). Isto por que, e neste
ponto Freud e Nietzsche concordam inteiramente, a civilização ergue-se sobre a
renúncia às pulsões – como seria diferente, se civilização é justamente o que
diferencia o homem dos animais? – e tais renúncias causam mal estar,
sofrimento, dor.
Os dois autores
diferenciam-se pois enquanto Nietzsche dirige-se aos mais “fortes”, àqueles que
são dilacerados por tal renúncia e sofrem, mas que de tal sofrimento tiram as
forças para transfigurar a própria civilização, Freud tem um interesse
terapêutico, pensando sobre a possibilidade de diminuição do custo individual
de tais sacrifícios (ibidem, pp. 4381 e 4485-4488). Mas o diagnóstico da renúncia
pulsional e do sofrimento infringido em troca do desenvolvimento da espécie
está presente em ambos. Freud também assinala o fato de que as restrições e
preceitos de uma civilização – as “leis arbitrárias” mencionadas por Nietzsche
– são internalizadas e convertem-se, ao mesmo tempo, em impulsos que entram em
consórcio com os demais impulsos reprimidos (ibidem, p. 4474) e que também têm
suas vantagens “sob a forma de ideais e criações artísticas” (ibidem, pp.
4384-4385). Tal tipo de satisfação, para Freud, está inacessível para as
massas, mas serve, “como nenhuma outra coisa, para reconciliar o homem com os
sacrifícios que tem de fazer em benefício da civilização” (ibidem, p. 4386).
No entanto, tal
reconciliação tem um caráter ambíguo. Ela pode servir na reconciliação daquele
que frui da obra de arte – e o mesmo vale para as demais criações que têm por
origem a tensão da sublimação das pulsões reprimidas -, como experiência do
belo e do sublime que unificam, ao menos temporariamente, a infinitude de
forças que se movem dentro de um indivíduo, oferecendo unidade estética e
empregando tal unidade nas finalidades morais que protegem e promovem a
civilização. No entanto, para o artista e para aqueles que vivem os mesmos
sofrimentos oriundos da mesma dilaceração do artista, a reconciliação aponta ao
mesmo tempo para a unidade estética e para a dilaceração. Oferece consolo, mas
também ressalta o mal-estar que permitiu a própria existência da obra. Assim, o
consolo também é recebido com má consciência, como acusação e como elemento de
dissolução da individualidade em função da multiplicidade de forças opostas
sobre as quais tal individualidade é erigida.
Resta sempre o
caráter paradoxal da natureza em sua relação com a cultura: ela alimenta-se dos
sofrimentos de alguns indivíduos enquanto depende da ação destes como
sublimação dos sofrimentos para fortalecer-se. Ao mesmo tempo, defende-se e
inflinge-lhes sofrimentos e punições enquanto suas sublimações são atentados
contra as normas e regras que definem a civilização. O rebanho depende daqueles
que incomodam seu bem-estar e conforto. Precisa do enfrentamento da civilização
ao mesmo tempo que precisa protege-la deste enfrentamento. Nas palavras
colocadas por Hermann Hesse no manual recebido por Harry Haller, personagem de
seu romance O lobo da estepe:
Certos
impulsos mais crus estão afastados e proibidos nessa convenção; um grau de
consciência e de cultura humana são reclamados à besta; uma pequena parcela de
espírito não é somente permitida, como também encorajada. O homem desta
convenção, como todos os outros ideais burgueses, é uma conciliação, um intento
tímido, de ingênua astúcia com o intuito de enganar tanto a perversa mãe
Natureza primitiva quanto o incômodo primitivo pai Espírito de suas enérgicas
exigências e para viver na zona temperada entre eles. É por isso que a média
das pessoas permite e tolera aquilo que denomina "personalidade", mas
ao mesmo tempo entrega a personalidade àquele Moloch chamado "Estado"
e intriga continuamente um com o outro. Assim o burguês queima hoje por herege
e enforca por criminoso aquele ao qual amanhã levantará estátuas. Que o
''homem'' não é alguma coisa já criada, mas apenas uma exigência do espírito,
uma possibilidade longínqua, tão desejada quanto temida, e que o caminho a que
isto conduz só vai sendo percorrido em pequenos impulsos e debaixo de terríveis
tormentos e sonhos, precisamente por aquelas raras individualidades, para as
quais hoje se prepara o patíbulo e amanhã o monumento — é uma suspeita que vive
também no Lobo da Estepe. (HESSE, 1995, pp. 54-55)
Aquele indivíduo
que cria vida para sua comunidade é entregue ao patíbulo e ao escárnio. Em
seguida, sua criação é apropriada e sua memória erigida ao altar. Essa é a
dinâmica do indivíduo perante a civilização. Este pode buscar alguma forma de
acomodação e viver com a má-consciência oriunda da diluição de suas pulsões
perante a pressão do grande outro – a lei, a moral, a sociedade - que lhe
ameaça ou pode sucumbir perante tal pressão. Este é o tema central do romance
de Hermann Hesse ao qual fizemos menção acima e sobre o qual nos debruçaremos a
seguir.
2-
Dilaceração e pathos em O lobo da
estepe
Nas palavras do
editor das anotações do lobo da estepe - o senhorio de Haller durante o período
em que decorre a narrativa – este era um homem enfermo, “[...] que sofria de
uma espécie qualquer de enfermidade, da alma, do espírito ou do caráter”
(ibidem, p. 14), que, “no sentido das várias acepções de Nietzsche, havia
forjado dentro de si uma capacidade de sofrimento genial, ilimitada e terrível”
(ibidem). De qual doença sofria Haller? Da má consciência, descrita por
Nietzsche especialmente na Genealogia da Moral. Haller teve toda sua educação
fundamentada no “quebramento da vontade” (ibidem) cujos ecos, internalizados,
tornaram-se como que uma segunda natureza no lobo, cindindo sua personalidade
em duas pessoas estanques que sempre julgavam suas ações conforme suas próprias
pulsões e necessidades.
Em Haller
conviviam seu próprio eu, ou seja, Harry Haller e o Lobo da Estepe. O primeiro
era o burguês, pesquisador, homem casado, religioso, que tentava participar da
vida ordinária, escrevendo nos jornais, publicando livros e conferências. O
segundo era o lobo, depositário de todos os instintos e pulsões “quebrantados”
por sua educação. O lobo julgava o burguês e o burguês julgava o lobo, o que resultava
no fato de que nenhum dos dois vivia em plenitude. A doença de Haller fazia com
que este vivesse continuamente cindido, dividido entre seu papel social e suas
vontades reprimidas, ambas agindo como acusações, como fonte de culpa e
limitações de ação. Para o editor, as limitações de seu inquilino eram
interessantes pois representava, em suas palavras:
Um documento da
época, pois a enfermidade anímica de Haller é, hoje o percebo, não o capricho
de um solitário mas a enfermidade do próprio tempo, a neurose daquela geração a
que pertencia Haller, neurose que não atacava em absoluto os débeis e
insignificantes, mas precisamente os fortes, os mais espirituais, os mais
fortes. [...] Há momentos em que toda uma geração cai entre dois estilos de
vida, e toda a evidência, toda a moral, toda salvação e inocência ficam
perdidos para ela. Naturalmente isso não atinge a todos da mesma maneira. Uma
natureza como a de Nietzsche teve de sofrer a miséria da época atual mais de
uma geração antes da nossa; tudo quanto teve de suportar sozinho e
incompreendido, é o mesmo de que hoje padecem milhares de seres humanos.
(ibidem, pp. 23-24)
Essa divisão à
qual mencionamos acima e apontamos na fala do personagem do romance se faz
notar na própria estrutura narrativa deste, dividida entre a fala de um outro,
o editor/senhorio; do próprio Haller na descrição de suas aventuras[1];
de Hermínia, sua amante[2] e confidente e, finalmente da descrição das vivências de Haller no teatro
mágico, “local” onde o romance tem seu desfecho na possível dissolução das
multiplas personalidades que convivem em Haller. Todas essas divisões e falas
diversas sobre o mesmo indivíduo dão ao romance um caráter polissémico que
acentua a cisão fundamental que caracteriza a enfermidade de seu protagonista.
Haller,
pressionado pela educação que recebera e pela sociedade da qual participa, é o
indivíduo entregue pela “natureza” – no sentido do vocábulo delimitado na
primeira parte destas reflexões - de forma pródiga na construção daquilo que
Nietzsche chama de “tarefa de criar um animal capaz de fazer promessas [...] traz
consigo, como condição e preparação, a tarefa mais imediata de tornar o homem
até certo ponto necessário, uniforme, igual entre iguais, constante, e portanto
confiável.” (NIETZSCHE, 2009, p. 30).
Suas anotações, segundo seu editor, “são uma procura, não de vencer a
enfermidade da época com rodeios ou paliativos, mas um intento de converter a
própria doença em objeto de interpretação”. A noção de sublimação das pulsões
reprimidas, da criação sob a pressão da doença é tema abundante na filosofia de
Nietzsche, especialmente nas obras de transição entre o segundo e o terceiro
ciclo de sua obra. Como podemos ler no prefácio à Gaia Ciência:
que virá a ser
do pensamento mesmo que é submetido à pressão
da doença? Eis a questão que interessa aos psicólogos: e aqui o experimento é
possível. De modo análogo ao viajante que planeja acordar numa determinada hora
e tranquilamente se entrega ao sono, assim nós filósofos, ficando doentes, nos
sujeitamos à doença de corpo e alma por algum tempo – como que fechamos os
olhos para nós mesmos. E tal como ele sabe que alguma coisa não dorme, que algo conta as horas e o
despertará, também sabemos nós que o momento decisivo nos encontrará despertos
– que alguma coisa saltará e surpreenderá o espírito em flagrante., quero dizer, em fraqueza, recuo, rendição,
endurecimento, ensombrecimento [...].(NIETZSCHE, 2011, pp. 10-11)
Propomos aqui
que as anotações do lobo da estepe, escrito central do romance de Hesse, são a
descrição da produção do pensamento de Haller sob tal perspectiva, a de criação
e sublimação de suas repressões a partir da pressão que estas exercem. Haller
sofre pela cisão de seu ser entre um eu que é socialmente apresentado e um
outro que lhe acompanha, como negativo e depositário de tudo que deve ser
colocado de lado para a boa convivência social. Porém, sua natureza sensível, sua
força enquanto indivíduo impede o predomínio de um dos papeis, tornando-os
inadequados e aprofundando o sofrimento já imposto pela cisão. Haller perde sua
esposa; sua posição respeitável como escritor; o convívio de seus “pares” de
escrita e conferências e torna-se um exilado, um solitário, um lobo da estepe
manco, preso entre “dias de morte da alma, perversos de vazio interior e desespero”
(HESSE, 1995, p. 25), “um selvagem anseio de sensações fortes, um ardor pela
vida desregrada, baixa, normal e estéril, bem como um louco desejo de destruir
algo, seja um armazém ou uma catedral, ou a mim mesmo” (ibidem, p.26) e
momentos de exceção, em “horas que traziam grandes comoções, grandes dádivas,
que me transportavam a mim, o extraviado, de volta ao vivo coração do mundo”,
na leitura de grandes poetas, na companhia de Descartes, de Pascal ou de
Mozart, quando via “de novo a trilha dourada que conduzia ao céu”.
Eremita entre os
burgueses, burguês entre os loucos, Haller inicia o romance admitindo para si a
posição de observador. Fugindo da multidão, daquilo que Ortega y Gasset chama
de “fenômeno do cheio”, ele no entanto acredita honrar o mundo burguês sendo
sua testemunha silenciosa, aquele que honra o limpo pinheirinho de sua vizinha
ou a rotina da casa que lhe acolhe, o absurdo dos bailes de música
americanizada ou das feiras mundiais e outros eventos de massas com seu olhar
perscrutador e atento, de lobo.
Consta de suas
notas a recepção de um manual do lobo da estepe, onde as impressões até aqui
descritas estão explicitadas em linguagem clara e direta. Neste momento Haller
lê que a vida burguesa que lhe parece tão estranha e próxima ao mesmo tempo
“não é outra coisa senão a tentativa de uma transigência, a tentativa de um
equilibrado meio termo entre os inumeráveis extremos e pares opostos da conduta
humana. Também lê que sua própria cisão entre Haller e lobo nada mais é do que
uma transigência, uma divisão arbitrária e artificial entre uma parte de seu
ser que serve para o aparecimento público e o resto que é reprimido. Na
verdade, sua alma dividida em dois é composta de centenas de milhares de almas,
de animas, ou seja, de movimentos
dispersos dos mais diversos cujos aparecimentos ou repressões são feitas de
maneira arbitrária, conforme as pressões arbitrárias da sociedade e da educação
e também pelo resultado disso em sua
pessoa. A divisão Haller/lobo também é uma diluição, uma violência e uma fonte
de sofrimento e dor.
Haller não é
melhor do que o burguês ao qual critica. Ele também é cioso de seu eu, de sua
pessoa cindida, da repressão que coloca em suas pulsões e das sublimações que
lhe fazem homem e lobo. É por elas que cria, é com elas que consegue sentir o
sublime na companhia das obras de outros homens que foram como ele. É com tal
cisão que Haller consegue alimentar a sociedade burguesa que critica e por ela
ser sustentado, receber honrarias, reconhecimento, dinheiro. “A burguesia vive,
é forte e próspera. Por que? A resposta é a seguinte: por causa dos lobos da
estepe” (ibidem, p. 48). Todo o aparato de repressão que origina sua cisão e
que lhe causa sofrimento alimenta-se de tal sofrimento uma vez que aos
indivíduos mais fortes é dado ou sucumbir à pressão pelo suicídio ou sublimá-lo
em criação. Ecoando Nietzsche e Freud, o tratado do lobo afirma a diferença do
lobo da estepe em relação à burguesia pelo alto desenvolvimento de sua
individualidade, enquanto ressalta sua dependência desta. Nos termos do
tratado:
A vida desse
infinito número de pessoas não atinge o trágico, mas apenas um infortúnio
considerável e uma desventura, em cujo inferno seus talentos engendram e
frutificam. Os poucos que se libertaram buscam sua recompensa no absoluto e sucumbem
no esplendor. São os trágicos e seu número é pequeno. Mas os outros, os que
permaneceram submissos, a cujo talento a burguesia concede com frequência
grandes homenagens, a estes se abre um terceiro reino, um mundo imaginário, mas
soberano: o humor. (ibidem, p. 49)
Toda a caminhada
de Haller desde a leitura do tratado, passando por seu encontro com Hermínia e
a chegada ao teatro mágico, orienta-se no sentido de ensinar a Haller a
sabedoria suficiente para que este encarasse a vida com humor, a “viver no
mundo como se não fosse do mundo, respeitar a lei e no entanto colocar-se acima
dela, possuir uma coisa ‘como se não a possuísse’ [...] todas essas exigências
de uma alta ciência da vida somente pode realiza-las o humor.”
Apenas com humor,
sugere o manual, Haller pode libertar-se da ficção que é a cisão existente
entre homem e lobo. Apenas com humor Haller pode libertar-se do eu que ele
ostenta, pois este também é uma ficção, e é tão aleatório e falso quanto as
leis morais e educativas que o forjaram. Haller busca – e ocasionalmente
encontra - alívio quanto a seu mal-estar no quietismo, no isolamento, nas
drogas, na tentação do suicídio, na fruição da ciência e das artes. Mas todas
estas ações são paliativos, servem como um respiro momentâneo em uma condição
que mantêm-se inalterada. Apenas o humor, a capacidade de aceitar a própria
destruição de seu eu; de aceitar a aleatoriedade do que lhe oprime e de encarar
a vida como um jogo, como uma brincadeira, pode resgatá-lo do mal-estar e reconstituir
a plenitude de sua vida. Pode?
3-
Sabedoria, gaia ciência e jogo
Conforme
escreveu o Dr. Freud em sua já citada obra O mal-estar na civilização,
“[...]grande
parte das lutas da humanidade centralizam-se em torno da tarefa única de
encontrar uma acomodação conveniente – isto é, uma acomodação que traga
felicidade – entre essa reivindicação do indivíduo e as reivindicações
culturais do grupo. [...] saber se tal acomodação pode ser alcançada por meio
de alguma forma específica de civilização ou se esse conflito é
irreconciliável.” (FREUD, p. 4451)
Nos parece que a
civilização, no que diz respeito ao seu interesse enquanto promotora da vida da
espécie, como mediação, como burguesia, foi bem sucedida neste mister. A renúncia
pulsional, a repressão da sexualidade e da agressividade trouxeram, à grande
maioria dos indivíduos, condições para a obtenção da felicidade. Uma felicidade
moderada, é certo, com fundamentos aleatórios e baseada na transigência e que
fez abundarem tipos fracos em pulsões, que pouco precisam reprimir e que
conseguem compensar tal repressão nos mecanismos culturais que lhes são disponibilizados.
Como disse Hermínia em um diálogo com Haller “nossos líderes trabalham sem
descanso e com êxito na preparação da próxima guerra, e enquanto isso nós todos
dançamos o fox, gastamos dinheiro e comemos confeitos;” (HESSE, 1995, p. 120).
Tal mundo e
sociedade, porém, não parece suficiente para quem “tem uma dimensão a mais”
(ibidem), Conforme afirma Nietzsche, “a grande maioria das pessoas não tem
consciência intelectual [...] não acha desprezível acreditar nisso ou naquilo e
viver conforme tal crença, sem antes haver se tornado consciente das últimas
razões a favor ou contra ela” (NIETZSCHE, 2012, p. 53). O que diferencia os
homens superiores dos inferiores, ainda segundo Nietzsche, é tal exigência de
certeza.
E no entanto,
quem tem razão? A exigência de certeza origina-se de uma revolta contra as
normas sociais que implicam em renúncia a pulsões reprimidas (FREUD, p. 4462). De um excesso de forças que ainda se
manifesta em alguns poucos indivíduos que, por sua constituição física,
escaparam mais ou menos ilesos do processo educacional. Ou seja, trata-se da
personificação destas forças em alguns eus aleatórios, questionando motivos
aleatórios dentro de um mecanismo “natural” – aleatório - de aperfeiçoamento da
espécie. O “indivíduo”, o “homem forte”, o “homem superior” sofre não por sua
superioridade e força, mas por que estas se manifestam dentro daquilo que há em
si mesmo de fraqueza, burguesia, civilização. Sua condição seria trágica se sua
força fosse tal que não pudesse transigir com o que a limita, mas a própria
revolta que a caracteriza já é transigência, negociação, personificação,
negativa de pulsões – cultura. Aos verdadeiros homens, nada cabe a não ser a
morte e a imortalidade – a sensação de comunhão com os outros grandes homens
que passaram pelas mesmas aflições e que souberam transformá-las em beleza, em
criação.
O romance de
Hermann Hesse parece sugerir que o lobo da estepe pode, baseando-se neste
caráter aleatório da civilização, divertir-se com ela, ficando na superfície,
no sensível, no gozo permitido ao burguês enquanto sabe da aleatoriedade e da
falta de valor deste todo. Ele conhece as profundidades e por isso pode
agarrar-se às superfícies. Sabe que a burguesia vive de vaidades, mas sabe
também que seu sofrimento por conta disso também é uma grande vaidade. Deste
modo, encontra em suas aventuras, nas drogas, no sofrimento, nas mulheres, algo
que nas palavras de Freud, “não convulsiona o nosso ser físico”, que “não faz
mais do que ocasionar um afastamento passageiro das pressões das necessidades
vitais” (ibidem, p. 4417), mas que pode
vir a desenvolver-se com uma forma de sabedoria, como algo assemelhado a uma
gaia ciência.
Haller aprende a
dançar o fox, integra-se à experiência da festa, onde a pessoa é submersa na
multidão em “unio mystica” (HESSE,
1995, p. 113) e, após ingressar no teatro mágico, descobre que suas
personalidades múltiplas são apenas duas dentre milhares possíveis, combinadas
pelo acaso e que também pelo acaso podem ser dissolvidas, como jogos, como
pedaços de um espelho quebrado a serem montadas e remontadas como um mosaico.
Mas ainda neste
momento, seu eu recua. Ele também é formado por pulsões, por pulsões fortes,
dominantes, que que buscam preservar-se em tal estado. Mesmo no momento do
humor e do riso, o eu se defende, o trágico oferece-se como possibilidade,
reafirma-se enquanto tensão do eu com o mundo e contra sua dissolução. Isso
também é parte do jogo. Isso também é humor.
Haller depara-se
com a vaidade de seu sofrimento, com a vaidade de sua própria existência e é
convidado não mais a rebelar-se ou a sofrer, mas a rir – rir da rebeldia e do
sofrimento, da superficialidade dos burgueses e da sua própria profundidade. “Rir
de si mesmo, como se deveria rir para fazê-lo a partir da verdade inteira [...]
Quando a tese de que ‘a espécie é tudo e o indivíduo nada’ houver se
incorporado à humanidade e a cada um, em cada instante, estiver livre o acesso
a essa derradeira libertação e irresponsabilidade”. (NIETZSCHE, 2012, p. 51) O
destino de cada indivíduo é servir à espécie – como afirma Nietzsche, o que
poderia ser a ela nocivo já se extinguiu (ibidem, p. 50). Haller ainda se
divide entre tal conhecimento e o apego ao seu eu, a seu lobo e a suas tensões
e sofrimentos. Em resposta a tal negativa, o teatro mágico também ri e lhe
oferece um cigarro. Se todas as personalidades são possíveis no destroçar do
eu, por que seria menos possível a manutenção do próprio eu?
No entanto,
Haller adquire um novo conhecimento. Uma gaia ciência da sua condição, do seu
sofrimento e do mundo que lhe oprime. Promete fazer melhor uso do teatro mágico
no futuro, deixando fora dele o apego à realidade e jogando melhor com as suas
infinitas possibilidades. Mas isso é possível? Pois o jogo ilimitado é uma
condição trágica. Como Hesse escreveu em passagem citada acima, são poucos os
que sucumbem no trágico – e a eterna dissolução de si é uma condição trágica. Nietzsche
o fez em seu decênio final... mas Haller é burguês. Ele ri pois o humor é
burguês. É arte e ironia de quem vive na burguesia. A gaia ciência que encontra
é a ciência de quem aprende a viver dentro do mundo, a comunicar o absurdo do
mundo para o mundo, para os outros caros concidadãos. Ele pode subsistir como
ideal, como possibilidade. Mas a lei, a autoridade, o outro, bem como o ego, as
pulsões de preservação e de morte seguem em seu jogo aleatório, ora trazendo o
espírito de seriedade, ora lançando o indivíduo no humor. Nas palavras de
Freud, “O programa de tornar-se feliz, que o princípio do prazer nos impõe não
pode ser realizado; contudo, não devemos - na verdade, não podemos - abandonar
nossos esforços de aproximá-lo da consecução, de uma maneira ou de outra.”
(FREUD, p. 4419).
Hesse afirma, em
seu comentário ao lobo da estepe, que o que Haller encontra ao final de sua
aventura é uma espécie de redenção. Uma sabedoria possível para equilibrar-se
no meio de forças e pressões que em muito lhe ultrapassam, escapando de uma
condição trágica por meio de uma diluição possível de sua personalidade. O
humor, a gaia ciência, conduzem Haller à redenção, embora retrate enfermidade e
crise (HESSE, 1995, p. 172). Haller sofre quando é burguês e ignora suas
pulsões, e também quando as atende e ignora seu eu. Sofre quando preserva sua
cisão, sua personalidade e também quando a destroça e joga com suas infinitas
possibilidades. Não há aqui um caminho do meio possível, apenas a tensão, o
jogo dos desejos, da vida e da morte. Hesse, em um aforismo, afirma que o que
cabe aos homens é “procurar nosso caminho entre a dupla exigência da natureza e
do espírito” (HESSE, n/a, pp. 84-85). Tal procura é por um caminho autêntico, e
não por um meio termo. “[...] talvez um meio caminho, mas um meio caminho próprio,
elástico, no qual se conciliem liberdade e obrigações, tal como no ato da
respiração se completam o inspirar e o expirar”.
Aprender a rir
da dilaceração, a dançar na massificação, a viver a experiência da festa no
meio dos burgueses. Aprender a destruir a própria personalidade apenas para
reconstruí-la incontáveis vezes. Aprender a rir, a rir sempre, a ver a ironia
que há em tudo que é civilização, cultura, burguesia, mas também no que é
natureza, necessidade, pulsão. E ver a reação destas coisas todas em sua
seriedade. Trata-se de um ideal impossível. Possível é a tentativa, o meio
caminho, como disse Hesse. Em mais de uma passagem do Lobo da estepe Hesse faz
uso da metáfora da ponte presente no Zaratustra de Nietzsche. O homem é uma
ponte entre natureza e espírito, entre o autômato burguês e o criador, entre o
destruidor e o demiurgo. Mas a ironia da coisa encontra-se no fato de que o
caminho interligado por essa ponte não leva a lugar nenhum. Tudo é vaidade.
Tudo é humor.
Referências
bibliográficas
FREUD, Sigmund. Obras completas - Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Versão digital.
Imago. Disponível em http://lelivros.black/book/obras-completas-dr-sigmund-freud/
HESSE, Hermann –
O lobo da estepe. Traduzido por Ivo
Barroso. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1995;
__________- Para ler e pensar – pensamentos extraídos
de seus livros e cartas. Traduzido por Belchior Cornélio da Silva. Rio de
Janeiro: Ed. Record, ano de publicação indisponível
NIETZSCHE,
Friedrich Willhelm. A gaia ciência.
Traduzido por Paulo Cezar de Souza. 1A edição. São Paulo: Companhia das letras,
2012;
__________Além do bem e do mal, prelúdio à uma
filosofia do futuro. Traduzido por Paulo Cezar de Souza. São Paulo:
Companhia das letras, 2010;
__________Assim falava Zaratustra, um livro para
todos e para ninguém. Traduzido por Mário Ferreira dos Santos. Petrópolis:
Vozes, 2011;
__________Genealogia da moral, uma polêmica.
Traduzido por Paulo Cezar de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2009;
AUTOR
*Rafael
Pereira de Menezes é Aluno do
programa de doutorado em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do
Paraná, PUC-PR, Curitiba, Brasil; Mestre em filosofia pela Pontifícia
Universidade Católica do Paraná, PUC-PR, Curitiba, Brasil; Professor do Centro
Universitário Campos de Andrade, Uniandrade, Curitiba, Brasil.
rafaelpereira681@hotmail.com
como citar:
MENEZES, R. P. Pluralidade de almas e dissolução do eu no Lobo da estepe. Revista Sísifo, n° 9, v. 1, 30 de junho de 2019.
[1] Aventuras às quais sequer podemos
saber se de fato correspondem a vivências do personagem ou a criações
romanceadas nelas baseadas. Cf. Hesse, 1995, p.23.
[2] E possível alter ego do autor. Ver também Freud, Mal-estar na civilização, pp.
4457-4458
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