Fagner Delazari*
RESUMO:
O presente artigo pretende analisar o filme brasileiro Tropa de Elite (2007) a partir das noções benjaminianas de empatia, violência mítica e estado de exceção. Consideramos que o longa-metragem de ficção dirigido por José Padilha alimenta um discurso apologético da violência policial ao fomentar uma identificação entre espectador e protagonista, cuja representação busca justificar a violência do BOPE (Batalhão de Operações Especiais do Rio de Janeiro) por que inserida em um contexto sócio-político de exceção, no qual se opõem aos “bandidos”. Neste contexto, o BOPE, tal como representado no filme de José Padilha, não se limita a aplicar as leis vigentes em um estado de direito, mas torna-se criador de uma legislação própria, à margem do direito, baseada em uma atuação repressiva, autoritária e sumária, que reproduz as relações de desigualdade e preconceito vigentes na sociedade brasileira.
PALAVRAS-CHAVE: Estética, Violência, Cinema Brasileiro, Walter Benjamin.
Introdução: sobre
filmes, heróis, bandidos e filosofia.
O filme Tropa de
Elite foi lançado em 2007 e tornou-se rapidamente a segunda maior
bilheteria daquele ano, estimulado pelo vazamento de uma versão inacabada para
o mercado pirata. Sua recepção foi marcada pela controvérsia: de um lado, se
levantaram vozes que criticaram as cenas de tortura e o heroísmo de cunho
fascista atribuído ao capitão Nascimento; de outro, surgiram defensores da tese
do “bandido bom é bandido morto”, identificados com a atuação violenta do
Batalhão de Operações Policiais (BOPE) do Rio de Janeiro.
Não pretendemos, neste artigo, resolver as acaloradas
querelas quanto às questões de segurança pública suscitadas pelo filme, mas
oferecer uma interpretação acerca das representações sociais constantes na
obra, a partir da filosofia de Walter Benjamin (1892-1940). Nessa proposta, interessa-nos
ler as representações da violência policial no filme de Padilha e o modo como o
personagem capitão Nascimento foi fabricado na estrutura de montagem de Tropa de Elite. Para tanto, nos
valeremos das noções benjaminianas de violência mítica, de empatia e de estado
de exceção, compreendidas no interior da constelação conceitual do filósofo
germânico. A primeira noção foi apresentada no ensaio Para uma crítica da violência, publicado em 1921; a noção de
empatia foi desenvolvida, sobretudo, nas teses Sobre o Conceito de História, de 1940; e a tese sobre o estado de
exceção permeia diferentes momentos da obra de Benjamin, sendo retomada por
Giorgio Agamben (2004).
Defendemos, como o faz Jeanne-Marie Gagnebin (2008,
p.20), que há uma “recíproca relação entre as transformações histórico-sociais
da percepção humana e as transformações estéticas”, e que o cinema é um dos
mais importantes produtos culturais que, ao mesmo tempo, provocam e testemunham
essas mudanças, por meio das representações sociais que são fabricadas e
repercutidas pelas grandes telas. Os filmes, enquanto produtos culturais
altamente elaborados e com grande influência sobre parte significativa da
sociedade, podem ser importantes objetos de análise filosófica, trazendo à tona
questões de ordem política, epistemológica, social e, obviamente, estética.
Carla Damião chama a atenção para a ampliação do termo
“estética” feita por Benjamin. Ao invés de interpretá-lo na seara da filosofia
da arte ou do juízo de gosto, como foi feito desde Baumgarten a partir do
século XVIII, Benjamin preferia ler o termo a partir de seu sentido
etimológico, desde sua matriz grega: aisthesis
como percepção ou doutrina da percepção (DAMIÃO, 2007, p.51). Essa ampliação do
campo investigativo da estética é fundamental para a crítica da cultura que é
empreendida por Benjamin, pois não só a arte, mas toda percepção humana, passam
a ser objeto de investigação filosófica. Esta ampliação teve repercussões nas esferas
epistemológica, social e política, tanto quanto no que diz respeito à questão
da arte propriamente dita. Benjamin possuía absoluta clareza da historicidade da
percepção: “no interior de grandes períodos históricos, a forma de percepção
das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de
existência”. (BENJAMIN, 2014, p.183). Essa interpretação da estética na
modernidade levou em consideração o desenvolvimento da técnica como um fator
condicionante para a formação de novas formas artísticas e, por conseguinte,
perceptivas.
Pretendemos desenvolver a seguinte hipótese: Tropa de Elite foi produzido como obra
fílmica a partir de uma estrutura de montagem que privilegia a recepção por
empatia, cujo principal motor consiste na identificação do espectador com o
personagem-herói, o capitão Nascimento, cuja representação na trama visa
justificar a violência exercida pela polícia sobre os “bandidos”, associados a
grupos marginalizados da sociedade.
Procederemos, inicialmente, a uma breve exposição dos
conceitos benjaminianos supracitados, seguida da análise do filme em seus
pontos nevrálgicos.
Cinema, desauratização
e estetização da política
A obra mais conhecida de Walter Benjamin é o ensaio
intitulado A obra de arte na era da
reprodutibilidade técnica, publicado em quatro versões[1].
Nesse emblemático texto, Benjamin se afasta da crítica à técnica que estava
sendo realizada por seus colegas do Instituto de Pesquisa Social da Escola de
Frankfurt, em especial Theodor Adorno, e propõe uma teoria marxista da obra de
arte, voltada especialmente para a interpretação do lugar do cinema no conjunto
das mudanças econômicas e técnicas que estavam a se suceder no mundo moderno do
início do século XX.
Na primeira versão do
texto, datada de 1936, o filósofo afirmou que o cinema seria “a forma de arte
correspondente aos perigos mais intensos com os quais se confrontava o homem
contemporâneo” (BENJAMIN, 2014, p.207), revelando-se uma arte capaz de
expressar, com mais veemência que qualquer outra, o ritmo acelerado, conturbado
e violento das grandes metrópoles que despontavam desde finais do século XIX, tocadas
no ritmo do trabalho industrial. Fruto das mudanças técnicas acarretadas com a
invenção da câmera fotográfica, o cinema teria sido também responsável por
produzir “profundas metamorfoses no aparelho perceptivo” (BENJAMIN, 2014,
p.207) humano, contribuindo para alterar o modo de percepção da realidade e
produzir efeitos além do domínio estético, afetando a própria relação dos
indivíduos com o mundo moderno à sua volta.
Enquanto as artes “clássicas” – pintura, escultura,
literatura – seriam artes baseadas na presença da aura[2],
o cinema seria uma arte, por definição, desauratizada, uma vez que sua própria
fabricação dependia da reprodutibilidade técnica. O diagnóstico da decadência
da aura é acompanhado pela constatação da emergência de um novo tipo de
percepção da arte que se opõe àquele que se havia constituído com a arte
clássico-burguesa. Ao invés da contemplação, a modernidade via a fotografia e o
cinema consolidarem a percepção pela distração (dispersão, diversão ou desvio)
e pela experiência do choque (Chockerlebnis ou Chockerfahrung).
A experiência do choque se dá justamente no processo
de associação de ideias a que o espectador está submetido no mundo moderno,
sendo caracterizado por um fluxo constante de imagens que se interrompem de
forma abrupta no interior da vida urbana, seja no trânsito, no trabalho ou nas
ruas dos grandes centros. O cinema repercute a experiência do choque através do
processo de montagem, em que as sequências de imagens vão sendo fabricadas com
determinados ritmos, encadeamentos e rupturas:
o espaço se amplia com o
primeiro plano, o movimento se torna mais vagaroso com a câmara lenta. É
evidente, pois, que a natureza que se dirige à câmara não é a mesma que a que
se dirige ao olhar. A diferença está principalmente no fato de que o espaço em
que o homem age conscientemente é substituído por outro no qual sua ação é
inconsciente. (BENJAMIN, 2014, p.204)
Seligmann-Silva (2008) compara o filme a um
“projétil”, algo com um caráter traumatizante que possibilita uma “explosão
terapêutica do inconsciente” (BENJAMIN, 2014, p.204), cuja finalidade poderia
ser comparável à da catarse para a tragédia grega.
Benjamin sabia dos usos para fins políticos para os
quais as novas tecnologias estavam sendo utilizadas em seu tempo. Os regimes de
extrema direita que cresciam na década de 1930, reconhecendo o alcance que
rádio e cinema possuíam junto às grandes massas, utilizaram-se dos meios de
comunicação para fins de propaganda. A este fenômeno Benjamin deu o nome de “estetização
da política”: as lentes das novas câmeras foram apropriadas para se tornarem
instrumentos a serviço do poder autocrático. A estetização da política se
fabricava a partir das filmagens de jogos, desfiles militares, discursos
políticos, espetáculos artísticos e apresentações musicais, que eram
meticulosamente transformados em cenas espetacularizadas e representavam uma
totalidade coercitiva conveniente para as demonstrações de poder e sucesso do
regime. As massas eram despojadas de sua capacidade política e submetidas a um
processo de persuasão, baseada no acionamento de emoções primitivas e em
sentimentos de patriotismo e devoção ao líder. Impossibilitadas de agir
ativamente, as massas se encontravam condicionadas aos discursos
grandiloquentes e sedutores que as novas tecnologias da imagem eram capazes de
produzir.
Benjamin propunha a politização da arte como antítese
da estetização da política. Enquanto esta se valia da apropriação da técnica
com fins de manipulação e propaganda, que não pretendia alterar as relações de
produção sob as quais os regimes totalitários estavam assentados, a politização
da arte consistia na apropriação da técnica para atender aos interesses das
classes dominadas. Mas esta politização não consiste em inverter o jogo de
dominação, fazendo do cinema um instrumento de propaganda a serviço do
proletariado. Embora o próprio Benjamin não tenha fornecido uma conceituação
explícita da expressão, é possível afirmar que a politização visa, em primeiro
lugar, desmascarar os simulacros da política estetizada e difundida pelos
regimes totalitários. O cinema, por seu caráter desauratizado, desprovido da
sacralidade que impedia o acesso do grande público não-iniciado, estaria
imbuído das características necessárias para fins de democratização da
expressão e de seu uso por causas revolucionárias.
A leitura estética realizada por Benjamin possui
implicações políticas claras: em primeiro lugar, o declínio da aura é
considerado por Benjamin a condição de possibilidade de produção de arte e
cultura que seja verdadeiramente popular, coletiva e proletária; em segundo
lugar, esse mesmo processo de desencantamento da arte almeja não só se
desvencilhar do domínio da burguesia sobre a cultura como também da apropriação
do cinema e da fotografia pelo fascismo (BENJAMIN, 2014, p.180). Esses vínculos
entre cinema e política são especialmente importantes para nossa análise,
considerando que Tropa de Elite está intimamente
atrelado a cenários políticos marcados por uma presença violenta do Estado e
por discriminação racial e social.
Estado de exceção, empatia e
violência mítica na filosofia de Benjamin
O filósofo italiano Giorgio
Agamben recuperou Benjamin em muitos aspectos, mas o conceito de “estado de
exceção” tornou-se emblemático para as suas reflexões políticas acerca das
relações entre os estados de direito modernos e a incorporação, velada ou
tolerada, de posturas antidemocráticas, autoritárias e violentas.
Apresentando-se como “a forma legal daquilo que não pode ter forma legal”, a
noção de “estado de exceção” não se resume somente aos estados totalitários
clássicos, como o fascismo de Mussolini, o Terceiro Reich de Hitler e o
stalinismo soviético, mas se amplia para os autoproclamados regimes
democráticos que, cada vez mais, admitem a presença de fórmulas políticas que
tangenciam o autoritarismo, criando “índices de indeterminação entre a
democracia e o absolutismo” (AGAMBEN, 2004, p.13). Agamben retoma a discussão
benjaminiana sobre a violência mítica (Reine
Gewalt) que residiria na origem do próprio direito, apresentada sobretudo
no ensaio Para uma crítica da violência,
de 1921. Essa categoria de violência – a violência mítica – teria por função
principal não a consecução da justiça, mas sim a manutenção do próprio direito
e do status quo dos grupos que ocupam
o poder político-econômico.
A noção de estado de
exceção se vale da discussão benjaminiana acerca da simbiótica relação entre
poder e violência para caracterizar os modernos estados democráticos do século
XXI. Desde o início do século XX, no entanto, com a complexificação dos
estados de direito, o estado de exceção deixa de ser somente um dispositivo
jurídico oficial para se tornar um modo de operação permanente e sub-reptício
dos estados contemporâneos:
a instauração, por meio do estado de exceção, de uma
guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários
políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer
razão, pareçam não integráveis ao sistema político […] o estado de exceção
tende cada vez mais a se apresentar como paradigma de governo dominante na
política contemporânea. (AGAMBEN, 2004, p.13)
As práticas de estado de exceção
teriam passado a ser incorporadas sistematicamente nas ações políticas modernas,
frequentemente de forma velada ou opaca, buscando se justificar por meio de
discursos discriminatórios que encontram eco no imaginário social construído em
bases racistas e xenofóbicas, como é o caso do Brasil. O imaginário
preconceituoso que residiria na estrutura sociocultural brasileira serviria de
pano de fundo para a disseminação de discursos de cunho higienista, tornados
práticos pela atuação sistemática do estado de exceção.
Os meios de comunicação
de massa cumpririam um papel de grande importância na disseminação desses
discursos. Exemplo disso são os jornais policiais de cunho sensacionalista,
tanto os exibidos pela televisão quanto os tabloides, que exploram de forma
espetacularizada episódios ligados ao universo do crime e reforçam preconceitos
raciais e de classe em torno do “bandido” ou do “marginal”. A dramatização
envolvida na cobertura a esses crimes produz um duplo efeito no público que o recebe:
primeiro, o efeito do entretenimento, que está intimamente associado às funções
contemporâneas dos meios de comunicação – eles próprios sendo empresas privadas
– em uma sociedade capitalista em que tudo deve ser transformado em mercadoria
consumível; segundo, o efeito da manutenção das relações de poder, uma vez que
as narrativas fabricadas são sempre superficiais e atuam justamente na
perpetuação dos estereótipos já existentes, sem que se desperte a necessidade
de investigação social e racional mais aprofundada. Atendo-se somente a um
vínculo emocional, a espetacularização da violência cumpre um importante papel
de alienar e perpetuar relações assimétricas de poder, mantendo a
marginalização de determinados grupos sociais.
Na contemporaneidade, a
violência é monopolizada pelo Estado e passa a ser uma prerrogativa das
polícias e do exército, supostamente para garantir a ordem e a paz
social. Este monopólio indica outra face da questão, que vai se revelar a mais
interessante do ponto de vista filosófico: “o interesse do direito em
monopolizar a violência com relação aos indivíduos não se explicaria pela
intenção de garantir os fins de direito mas, isso sim, pela intenção de garantir o próprio direito.” (BENJAMIN,
2011, p.127, grifo nosso). Aí reside o caráter mítico do direito. Sua
instauração é definitiva, sendo mantida por uma série de rituais e instituições
que se valem, em última instância, da violência. Mas a violência não soa meramente
como punição, e sim como a materialização de um destino (Schicksal):
indiscutível e inescapável. Como diz Benjamin, a “violência que mantém o
direito é uma violência que ameaça” (BENJAMIN, 2011, p.133), mas não se deve
entender ameaça como intimidação, porém como o braço do destino que envolve a
todos de forma inelutável, tendo o poder de decidir sobre a vida e sobre a
morte.
As polícias se revelam como
as instituições do Estado que melhor materializam a violência mítica e suas ambiguidades:
uma instituição estatal que é responsável pela aplicação da lei, e que se vale
da prerrogativa do uso da violência, é a instituição responsável por asseverar
o cumprimento do direito, no limite em que eles estão sendo confrontados pelo
potencial criminoso. Mas, ao mesmo tempo em que mantém a lei, a polícia
instaura um novo direito, justamente porque, no limite em que o Estado não
consegue fazer valer a lei por si mesmo, ela emite decretos que se pretendem
indiscutíveis e absolutos de forma arbitrária e, não raras vezes, valendo-se da
prerrogativa do uso da violência física que é própria da natureza dessa
instituição, praticada principalmente contra grupos mais vulneráveis e menos
cobertos pelas garantias legais do estado de direito. Benjamin atenta que “o
“direito” da polícia assinala o ponto em que o Estado, seja por impotência,
seja devido às conexões imanentes a qualquer ordem de direito, não consegue
mais garantir, por meio dessa ordem, os fins empíricos que ele deseja alcançar
a qualquer preço” (BENJAMIN, 2011, p. 136), que são a ordem e a paz social.
Ao contrário do que se pode
pensar, a atuação da polícia não coincide com os fins do direito: ela ocorre
justamente no interstício entre o que o direito estabelece e o que ele
consegue, de fato, cumprir. No vácuo do direito é que se estabelece a ação
policial, instaurando novos direitos por meio do uso da força. E não há como
não perceber que Benjamin radicaliza sua reflexão, questionando a própria
existência da instituição policial na estrutura democrática: a polícia, em um
estado democrático, resume o máximo da deformação que se possa conceber a
partir desta reunião a que corresponde o núcleo semântico do termo germânico Gewalt,
a um só tempo poder e violência (SELIGMANN-SILVA, 2005, p.27).
A violência mítica estaria na
base da tradição dos vencedores, criticada, sobretudo, nas teses sobre o
conceito de história de 1940. A noção de empatia (Einfühlung) define o modo como a história é percebida: privilegiando
a versão dos vencedores, aquele ponto de vista que tende a enxergar os
acontecimentos a partir do olhar do poder vitorioso, que se impõe sobre os
vencidos, oprime, domina e silencia.
A Reine Gewalt se desdobraria em: 1º. uma “violência arbitrária”
(BENJAMIN, 2011, p.156), que instaura o direito e vincula todos os indivíduos
de uma sociedade a ele; 2º. uma “violência administrada” (BENJAMIN, 2011,
p.156) que está a serviço da primeira e cumpre a função de manter o direito
imposto de modo arbitrário. A violência, que é fundamento do estado de direito
moderno, está também nas bases das relações de poder que mantêm os opressores
por sobre os oprimidos e contribuem para a perpetuação das narrativas
históricas habituais/comuns (landläufig),
que alimentam a crença no predomínio daqueles em detrimento destes.
Capitão Nascimento: heroísmo, empatia e
violência mítica
Com atuações dignas de elogios por parte de seus
atores, um roteiro bem construído, uma progressão da história que garante
inteligibilidade, tensão, clímax e cenas de ação dignas de elogio, o filme de
Padilha conquistou o Urso de Ouro em
Berlim em 2008 e obteve nota 8,1 na avaliação do site do IMDB[3].
A história de Roberto Nascimento, sua busca por um substituto para seu posto de
capitão do BOPE, sua luta contra os criminosos dos morros cariocas e sua aventura
pessoal quanto ao nascimento do seu filho, nasceram de uma livre adaptação do
livro Elite da Tropa, do antropólogo
Luiz Eduardo Soares em parceria com dois ex-policiais do BOPE. Esta obra
literária teria sido confeccionada a partir de relatos de eventos reais
vivenciados no cotidiano da corporação, em que os policiais “ou se corrompem,
ou se omitem ou vão pra guerra” (SOARES et al, 2006, p.12). A história do BOPE
seria a da elite policial carioca que vai para a guerra. Formada por policiais
rigorosamente selecionados, exemplarmente treinados, moralmente incorruptíveis,
que ostentam com indisfarçável orgulho os símbolos que os distinguem: a farda
preta e a faca na caveira. Estes policiais assumiram que sua missão é “invadir
favela e deixar corpo no chão” (SOARES et al, 2006, p.5), e encontraram em todo
o país admiradores de suas práticas de abuso de autoridade, uso de métodos de
coação, tortura e violência (inclusive contra menores de idade) para obtenção
de informações, além de execuções sumárias.
Segundo a opinião do crítico Cássio Carlos, (2007,
p.1) “a primeira impressão é a de um filme de ação muito bem executado, que
segue cânones do gênero, conduzindo a plateia a torcer pelo protagonista por
meio do sempre eficiente mecanismo de identificação”. Estes “mecanismos de
identificação” da plateia com o protagonista, a que o cronista se referiu,
estão na base da noção benjaminiana de empatia e figuram como elementos chave
da percepção do filme.
A suposta fusão[4] entre realidade e fantasia seria intensificada no processo de montagem pelo
encadeamento de ações das personagens nos planos de sequências, que permitem um
entendimento narrativo linear e didático, centrado na personagem principal.
Junta-se a esse processo de montagem a trilha sonora, recurso que não é de
nenhum modo dispensável ou secundário: a seleção de músicas ou de sons que
acompanham cada cena visa a intensificar a percepção, estimular os momentos de
clímax e encaminhar determinados estados de ânimo no espectador,
potencializando a fruição ensejada pelo diretor.
Segundo Christian Metz, a montagem possibilita
“injetar na irrealidade da imagem a realidade do movimento, e, assim, atualizar
o imaginário num grau nunca dantes alcançado”, uma vez que “o real nunca conta
histórias; a lembrança, por ser uma narração, é totalmente imaginária; um
acontecimento deve estar de algum modo encerrado para que – e antes que – sua
narração possa ser iniciada” (METZ, 1972, p. 28-37). Conforme o autor, a alegada
“magia do cinema” consistiria justamente na capacidade específica dessa arte de
inserir índices de realidade nas imagens, valendo-se de sua linguagem e de sua
técnica específicas: enquadramentos, trilha sonora, atuações do elenco,
montagem, edição. Toda sua denotação estará necessariamente sendo filtrada e
editada pelo equipamento técnico, e toda a sorte de equipamentos está a serviço
dos seus operadores e do olhar condutor do diretor. E complementa Metz:
este sentimento
tão direto de credibilidade vale tanto para os filmes insólitos ou maravilhosos
como para os filmes “realistas”. Uma obra fantástica só é fantástica se
convencer (senão é apenas ridícula) e a eficácia do irrealismo no cinema provêm
do fato de que o irreal aparece como atualizado e apresenta-se aos olhos como
uma ilustração aceitável de alguns processos extraordinários que, tivessem
simplesmente, sido inventados (METZ, 1972, p. 17-18).
O realismo é tanto maior quanto menos aparecem aos
olhos do espectador a influência do aparato técnico que está por trás das
cenas. Ismail Xavier usou as expressões “transparência” e “opacidade” (XAVIER,
2005, p.14) para se referir, respectivamente, à ausência ou à presença de
elementos que permitam identificar que as cenas são produto de um processo de
filmagem e montagem. Segundo Xavier, quanto mais transparente é uma obra, maior
é a sensação de realismo que é despertada no espectador, que tem a impressão
ilusória de que está diante da realidade sem mediação, sem a intromissão de
filtros que deturpam ou moldam o que se passa diante de seus olhos:
tudo nesse [tipo
de] cinema caminha em direção ao controle total da realidade criada pelas
imagens – tudo composto, cronometrado e previsto. Ao mesmo tempo, tudo aponta
para a invisibilidade dos meios de produção dessa realidade. Em todos os
níveis, a palavra de ordem é “parecer verdadeiro”, montar um sistema de
representação que procura anular a sua presença como trabalho de representação
(XAVIER, 2005, p. 31).
Padilha esforçou-se para conferir esta sensação
realista por meio de diversos métodos: buscou criar um ambiente híbrido, entre
a ficção e o documentário, valendo-se de técnicas de filmagem como a câmera na
mão[5],
associada a um figurino real (tomado de empréstimo junto ao BOPE), mais o
treinamento específico fornecido aos atores para agirem “como policiais”[6],
além da inclusão de cenas de arquivos, com filmagens reais das visitas do Papa
ao Brasil.
Vera Lúcia Figueiredo (2008, p.04) destaca que, apesar
das aproximações com a estética documental pretendidas pela equipe da Zazen
Produções, Tropa de Elite continua
sendo uma obra ficcional. O narrador (o próprio capitão Nascimento) é
intradiegético, isto é, participa ativamente da história ficcional que narra,
de modo a sintonizar a narração com voz em off
(a voz que fornece o pano de fundo dos relatos) com as imagens oferecidas
para o espectador. Não há dissonância ou contradição entre o ponto de vista
oferecido pelo narrador e os demais pontos de vista possíveis, incluindo o
próprio julgamento dos espectadores:
cabe
lembrar, no entanto, que Tropa de Elite não é um documentário. É um filme de
ficção que apresenta um narrador intradiegético, utiliza o recurso da voz em
off e realiza a transposição visual da narrativa de Nascimento, sintonizando-a
com a visão de mundo do personagem narrador, isto é, não há dissonância entre o
ponto de vista do narrador dentro da história e do narrador invisível que
promove a visualização do que é relatado verbalmente. Tal procedimento deixa o
espectador inteiramente entregue à visão do capitão do BOPE, não havendo nenhum
tipo de mediação, um outro olhar distanciado, “intelectual”, que sirva de guia
para a avaliação da performance de Nascimento. Em Tropa de Elite, o público é
colocado diante do discurso de Nascimento, assim como, num documentário feito
de entrevistas, é posto diante da fala dos entrevistados. Entretanto, esse
discurso, como costuma ocorrer nas narrativas cinematográficas ficcionais em
primeira pessoa, não é veiculado apenas verbalmente pelo narrador explícito,
mas também pelas seqüências de imagens que “mostram” o que ele narra.
(FIGUEIREDO, 2008, p.04)
A narração em voz
em off (ou voice over), acoplada
à câmera subjetiva (isto é, a câmera que ocupa o lugar do olhar do personagem,
ao invés de se posicionar à distância em relação à cena, fora do quadro),
produz um efeito significativo de autoridade sobre a percepção do espectador,
que conduz a uma percepção por empatia. O narrador, ainda que não se assuma
como o observador universal, possui uma ascendência importante sobre a
organização narrativa, oferecendo em tempo real a interpretação oficial para os
fatos que o espectador tem diante de seus olhos. Dona absoluta da narrativa, a voz em off não estimula, possivelmente
nem mesmo permite, o exercício do contraditório acerca de sua versão
discursiva. Os dados, as informações complementares, as apreciações, os jogos
de linguagem, os toques de humor reafirmam peremptoriamente o conteúdo das
imagens, conduzindo a uma interpretação direcionada ideologicamente segundo a
visão unívoca oferecida pelo narrador.
Este efeito de autoridade é especialmente relevante no
caso de Tropa de Elite porque o
narrador é também o personagem principal, cuja visão já está sendo oferecida ao
público através da sequência de cenas. O narrador não é universal porque ele
não perscruta as consciências de todos os personagens, mas tem acesso a eventos
de que não participa e os narra como se estivesse em um local privilegiado de
observação, acompanhando o desenrolar da trama do mesmo ângulo em que os
espectadores se encontram, mas com domínio e controle sobre a história anterior
e o desenrolar futuro. Com Tropa de Elite
as palavras não têm mais força do que
as imagens, mas o impacto das imagens depende, em grande medida, da força da
narração, que delineia os possíveis sentidos que podem ser atribuídos a uma
determinada cena.
Uma das características do estilo de narração
escolhido por Padilha está no tom intimista que Nascimento confere à sua fala,
conduzindo o espectador à convicção de que o capitão está conversando
individualmente com ele. O narrador não se dirige a uma coletividade abstrata,
mas a um colega de conversa, a alguém com quem se compartilha confissões. O tom
informal, o uso de gírias, os marcadores de linguagem, as referências irônicas
e a impressão de que se contam informações confidenciais imprimem um tom de
camaradagem entre o narrador e o espectador que se revela mais um artifício
para a produção da empatia, ampliando a influência da rede de significados
conveniente à versão dos fatos apresentados sob o olhar do capitão Nascimento.
Considerações finais sobre a relação entre
estética e política em Tropa de Elite
O filme de Padilha, a despeito
das alegadas intenções do próprio diretor e do ator principal[7] (MOURA,
2007), filiou-se a uma tradição de fabricação da percepção por empatia que
permitiu a interpretação que o acusou de fascismo[8]. Ao
fabricar um discurso monológico em nome de um único personagem, criando uma
simbiose entre o narrado e o mostrado pelas imagens, Padilha permitiu uma
associação por demais imediata entre discurso fílmico e uma suposta realidade
que coincide com um imaginário social racista, excludente e autoritário. Com
isso, Padilha abriu mão da possibilidade da intervenção crítica de sua direção,
deixando o espectador à mercê da única visão de mundo oferecida a ele: a visão
do capitão Nascimento.
A partir dessa visão monológica,
a violência policial buscava encontrar legitimação. Mesmo as críticas contra a
tortura que despontaram não conseguiram silenciar as muitas aprovações à
atuação autoritária, repressiva e à margem da lei executada por Nascimento e
sua trupe. Essas aprovações já eram um indício, bastante evidente agora, onze
anos após, de um movimento crescente no Brasil: o avanço de setores mais
conservadores que desconfiam de políticas sociais de combate à criminalidade e
apostam em uma guerra aos “bandidos” maniqueísta e simplista: “nós”, os
cidadãos de bem, versus “eles”, um
conjunto heterogêneo de raças, subgrupos sociais, agrupamentos localizados
territorialmente nas periferias, que podem representar uma ameaça ao status quo das classes burguesas
dominantes e da classe média.
Os aplausos ouvidos em muitas
salas de cinema ao Capitão Nascimento (XEXÉU, 2007, p.1) podem ser considerados
sintomas da ascensão de posições políticas mais conservadoras no país. A figura
do capitão Nascimento (formação militar, rígido, disciplinador, moralista, defensor
dos bons costumes e de uma postura ética militarizada, que aponta o dedo para
os “maus comportamentos” da classe média que alimenta o tráfico de drogas), tem
encontrado ecos na política atual em diversos âmbitos e repercutido em
posicionamentos institucionalizados.
Reafirmando o que Agamben (2004)
havia dito, o BOPE em sua representação cinematográfica exemplifica o estado de
exceção em toda sua plenitude. Capitão Nascimento, inserido no território de
guerra dentro do qual é soberano, se põe acima da lei comum dos homens,
suspende a ordem jurídica vigente e instaura uma nova normatização que não
necessariamente invalida a lei vigente, mas a coloca entre parênteses, em
suspensão. As garantias constitucionais de proteção ao cidadão quanto ao
direito de habeas corpus, direito de
não ser torturado, direito de receber um julgamento justo com ampla defesa,
direito de ter privacidade em seu próprio domicílio – todas essas garantias
continuam existindo em tese, mas são suplantadas na prática por uma nova
normatização, baseada na violência, na imposição e no autoritarismo, imposta
sob o regime da exceção.
Consideramos que Padilha, apesar
de sua alegada intenção e de seus esforços para realizar uma abordagem
problematizadora das questões ligadas à violência urbana, acabou contribuindo
para uma interpretação contrária dos termos da questão. Sua obra, por se
inserir dentro do aparelho burguês de produção e publicação – o mainstream, o hegemônico na estrutura do
mercado da cultura – pode ser lida como mais uma defensora de um modelo de
estado autoritário, desumano e excludente, pautado na segregação e na repressão
que são coniventes com a manutenção das desigualdades sociais e do status quo estabelecido em nossa
sociedade. Por isso, a identificação entre Nascimento e parte considerável do
público foi tão significativa: a percepção por empatia, alimentada pelo
conjunto de imagens e sons que desfilam ao longo de todo o filme, ratificam o
imaginário social de que “bandido bom é bandido morto” e de que somente uma
atuação ostensiva e repressiva contra os “bandidos” é capaz de solucionar os
problemas ligados à criminalidade.
Quando Benjamin teorizou acerca
do fenômeno da estetização da política, estava inserido em um contexto de
ascensão dos regimes nazista e fascista em vários países da Europa e de sua
expansão imperialista. Certamente, o contexto político vivenciado pelo Brasil é
diferente – vivemos sob um estado democrático de direito, ainda que o exercício
da cidadania seja precário para grande parte da população. As diferenças quanto
aos momentos políticos nos fazem ter cautela em relação ao uso da expressão
benjaminiana. Porém, por outro lado, é possível rastrear elementos do fascismo
na atualidade brasileira, seja em político profissionais, na grande mídia
sensacionalista ou no imaginário social que se explicita nas opiniões emitidas
pelo senso comum. Se, por um lado, o filme de Padilha não foi proposto por um
estado autoritário, não tem finalidade propagandística e não está filiado a
nenhum grupo de extrema-direita, por outro lado, ele perfaz um caminho de
representação do policial e de sua atuação violenta que consideramos adequado
chamar de estetização da violência.
Referências
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em: 21/01/2018.
AUTOR
*Fagner
Delazari é Licenciado em Filosofia (UFMG),
especialista em Sociologia (Instituto Claretiano), Mestre em Letras: Linguagens
e Representações (UESC). Professor de Filosofia do Instituto Federal da Bahia.
como citar:
DELAZARI, Fagner. Estétia e política em Tropa de Elite: uma leitura benjaminiana. Revista Sísifo. n° 9, v. 1, 30 de junho de 2019.
[1] Márcio Seligmann-Silva e Gabriel Valadão Silva procederam
a um estudo comparativo das diferentes versões deste ensaio na tradução lançada
pela editora LePM, em 2014.
[2] “[A aura] é uma teia singular composta de elementos
espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto
que esteja” (BENJAMIN, 2014, p.184) . Trata-se do “aqui e agora” da obra de
arte, assegurada pelas noções de unicidade, autenticidade e organicidade a ela
predicadas. A unicidade da obra de arte estaria atrelada à sua inserção no
contexto da tradição, o modo particular como se vincula à história; a
autenticidade seria assegurada pela sua existência única, irreprodutível; a
organicidade deve-se à organização interna de seus elementos, igualmente
singular. Enfim, a aura de uma obra de arte se compõe das distâncias que se
estabelecem entre ela e o mundo ao seu redor, especialmente o espectador.
[4] Magali Oliveira, em dissertação intitulada “Tropa De
Elite: a espetacularização da fusão real/ficção no cinema nacional a serviço do
BOPE e do Ibope” (2010), faz uma referência direta a esta “fusão”, argumentando
ter sido além do que uma adesão estética, uma estratégia de marketing que
visava seduzir um público afeito por narrativas de ação e emoções fortes (OLIVEIRA,
2010, p.22).
[5] Magistralmente operada por Dib Lutfi, no movimento
cinemanovista. Mas, ao contrário do que ocorria no Cinema Novo, em Tropa de Elite a “câmera na mão” (frequentemente
com o uso de steady cam para
estabilizar a captação de imagens) conduz a uma filmagem subjetiva, que visa
dar visibilidade aos planos de visão dos personagens policiais, acentuando a
sensação de imersão do espectador que acompanha passo a passo os movimentos dos
oficiais do BOPE nas suas incursões contra os “bandidos”.
[6] O treinamento dos atores foi
conduzido por Fátima Toledo, em parceria com o BOPE-RJ.
[7] Wagner Moura faz a afirmação no artigo intitulado
“Tropa de Elite não é fascista”, publicado no Jornal O Globo de 25/09/2007
(Disponível em https://oglobo.globo.com/cultura/em-artigo-ao-globo-wagner-moura-diz-que-tropa-de-elite-nao-fascista-4152206. Acesso em 03/12/2017). O texto de Moura é uma resposta
ao artigo de Arnaldo Bloch escrito, “Tropa de Elite é fascista”, escrito também
para O Globo.
[8] Sobre a acusação de fascismo, ver o artigo de Pedro
Caldas intitulado “O abuso da palavra fascismo: a recepção de Tropa de Elite”, publicado
na revista Viso: Cadernos de Estética Aplicada, em 2008.
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