Dra. Talita
Cristina Garcia*
Jonatan Rocha do
Nascimento**
Mário Santos da
Silva***
RESUMOSobre o que, realmente, tratam os contos de fadas e qual o público a que se destinam? Refletiremos esse tema a partir da compreensão de J.R.R. Tolkien, famoso criador da saga “O Senhor dos Anéis”, sobre o que é um conto de fadas autêntico, utilizando-se do termo de sua autoria, a “eucatástrofe”, que refere-se ao característico desfecho das histórias dessa natureza. Servirá ao nosso propósito, a pesquisa e análise bibliográfica, sobretudo, das obras de Aristóteles, Bruno Bettelheim, Chesterton, etc., com o escopo de apresentar uma nova perspectiva à narrativa fantástica como paradigma útil à educação, e de que maneira é importante à formação da subjetividade dos indivíduos, sobretudo, no que concerne à assimilação das virtudes, bem como das realidades tipicamente humanas contidas em tal gênero literário.Palavras-chave: Contos de Fada. Eucatástrofe. Virtude. J.R.R. Tolkien.
INTRODUÇÃO
Este trabalho
tem o intuito ambicioso de passear num mundo “desconhecido”, um mundo muitas
vezes esquecido pela maioria dos adultos, sérios demais para preocuparem-se com
a imaginação pueril, com as estórias infantis que nada tem a contribuir na
solução dos intricados problemas do dia-a-dia da frenética e compulsiva
sociedade adultícia.
Há algum tempo
busca-se compreender o ser humano e há algum tempo que não encontramos resposta
satisfatória, capaz de desvendar os dramas humanos, sobretudo, os interiores,
aqueles concernentes à vida privada dos indivíduos, compartilhada na sua
completude somente com aquele único indivíduo capaz de pensar-se a si mesmo.
Toda essa inesperada jornada,
vislumbrando as sombras do passado, permitiu ao homem desvendar, ainda que às
apalpadelas, o seu eu interior e aquilo que o torna ser humano; explorando uma
densa floresta desconhecida, a brandir uma faca no escuro, percorreu os
caminhos da dúvida, do questionamento, das ciências, da metafísica, da física,
da matemática, etc. A Filosofia, nesse sentido, representou o grande rompimento
da sociedade que, uma vez envolta pela inconstância e ferocidade dos deuses,
impôs-se sobre as verdades estabelecidas e, sobre escombros e destroços, partiu
à procura do tudo, do quê, do Ser, do
eu. Essa viagem até a encruzilhada do “eu” têm sido, por certo, a mais
desgastante de todas já que, apesar de ser a mais tangível, torna-se cada vez
mais distante. Quem somos? É possível conhecer? Há uma verdade? Para quê
vivemos? É possível formar sociedades perfeitas? O que é virtude? O que é,
verdadeiramente, o homem?
Nesse microcosmo
que é o ser humano, encontramo-nos diante da grandiosidade do Universo, com
complexidades mais ou menos compreendidas, cantos explorados e outros tantos
ainda na obscuridade, a passagem dos pântanos, e ainda atolamos na pergunta:
que é o homem?
Primeiramente,
cabe-nos adentrar esse mundo fantástico que, mais do que maravilhamento, é mais
palpável do que possa imaginar. O que há por detrás das bruxas, príncipes,
castelos e feitiços encontrados nos contos ditos “de fadas”? Seriam elas sobre
fadas ou sobre homens? Tratam de fato de bruxas más e reis galantes ou de
pessoas de carne e osso? As batalhas que ali são travadas não seriam as mesmas
que se travam no interior do ser humano? Qual o plano filosófico-pedagógica por
detrás de tais névoas e quais os frutos encantados podem ser colhidos?
Pretende-se, pois, empreender uma nova demanda, uma nova sociedade, à caminho
de casa, onde se buscará compreender o que de precioso se pode encontrar nas
terras ermas da fantasia para as crianças, jovens e adultos de hoje.
1 SOBRE CONTOS “DE FADAS”
É primordial
ressaltar e delimitar o uso de alguns termos que serão importantes ao
entendimento geral do que aqui pretendemos, evitando compreensões equivocadas,
bem como generalizações que não se enquadram no estudo feito, especialmente no
que tange ao termo de conhecimento geral, “conto de fada”. Isso se dá porque,
embora muitos textos do gênero fantástico sejam chamados “contos de fadas”,
essa classificação torna-se deveras abrangente, sobretudo, porque nas diversas
culturas do mundo produziram-se histórias da tradição popular, constituindo os
mais variegados folclores populares, numa vasta coleção dos quais não seriamos
capazes de discorrer.
Por outro lado,
é preciso ainda clarificar o entendimento sobre “contos de fadas”, já que,
segundo a compreensão geral, o conto de fada é, necessariamente, uma história
cujos personagens são fadas coloridas e de orelhas pontudas, com asas
transparentes que, ao alçarem voo, inundam a atmosfera com um misterioso pó
mágico. É mister, pois, que para caminharmos adiante seja preciso desfazer-nos
dessas pré-concepções, de modo não seja penoso acompanhar as pegadas que aqui
desejamos traçar.
Os modos de
organização do discurso, segundo os estudiosos da língua e da literatura, são:
narrativo, descritivo, o argumentativo e o enunciativo. Dentre estes,
importa-nos o primeiro, qual seja, o narrativo, pois nele encontraremos o
objeto de nosso estudo. Isto porque, embora a classificação dos diferentes
tipos de textos sejam bem distintas, não se trata de matéria pacífica no
entendimento comum, mesmo dentre os mais doutos círculos acadêmicos, porquanto
usam indiscriminadamente termos como “contos de fadas”, aplicando-o, de modo
descabido, a toda história infantil.
É assim que
temos dentre os textos narrativos as rapsódias, as fábulas, as crônicas, os
romances, as novelas, os contos – inclusive, os chamados “de fadas”, cada um
deles com características e funcionalidades bem distintas, distinção essa muito
útil ao nosso propósito. Assim, mister se faz que examinemos brevemente algumas
dessas espécies textuais, afim de clarificar ainda mais o tema.
Nesse sentido,
compreendemos o que afirma Bakhtin (2003 [1952-1953], p. 280), isto é, “que
cada esfera da atividade humana produz textos com algumas características
comuns e, por isso pertencem a um determinado domínio discursivo, isto é, o
lugar onde os textos ocorrem (...)”. Portanto, é necessário estabelecer algumas
especificidades dos discursos do gênero literário. Dentre os textos do tipo
narrativo, podemos mencionar o conto, o caso, a estória, a fábula, a história,
a lenda, a novela, o relato, o romance, etc. Assim, primeiramente, temos como
conto, de acordo com Sérgio Roberto Costa, um história curta, com configuração
pouco extensa e historicamente verificável (COSTA, 2009), além disso, o conto traz
em si algumas características próprias, quais sejam: poucos personagens,
esquema temporal restrito, poucas ações intrincadas entre si, isto é, de menor
complexidade, unidade temática e de tom. O caso, relato ou narrativa, geralmente,
é falado e com reduzida extensão, concernente a fatos reais ou fictícios
(COSTA, 2009). Segundo o referido autor, as crônicas diferem do conto,
sobretudo, porque aquelas têm finalidade designada/predestinada, isto é,
possuem utilidade que é a publicação em impressos, jornais, revistas, etc.
As fábulas,
embora sejam consideradas contos, não se enquadram nessa classificação quanto
às características comuns de que falamos. Fábulas são histórias sem grandes
complexidades e que possuem como personagens, em geral, animais irracionais que
possuem características e realizam ações humanas, culminando numa conclusão
ético-moral (COSTA, 2009). Epopeias são um tipo literário que narra supostos
fatos vividos por personagens heroicas e destemidas, geralmente, ambientadas na
Grécia Antiga. Trata-se de textos longos, costumeiramente em forma de poesia,
que visam exaltar os feitos realizados pela personagem mítica.
Já os contos de
fada são tidos, tanto pelo senso comum como pela literatura, como aquela
história ou conto popular que surge como herança de um conjunto de crenças e
mitos primitivos adaptados aos contextos culturais. Apresentam como personagens
indivíduos prototípicos, isto é, reis, fadas, rainhas, dragões, etc. (COSTA,
2009). Outro ingrediente adicionado à receita dos contos de fadas é a
irracionalidade, uma vez que tais contos não obedecem, segundo dizem, a uma
lógica determinada, verificada na vida real, no plano da existência humana
objetiva.
Arrimados nessas
breves classificações já é possível fazer um paralelo com a compreensão de
J.R.R. Tolkien acerca do que viria a ser um conto de fada. Nesse aspecto,
Tolkien deixa claro que as histórias formuladas e conceituadas como tal, nem
sempre atendem aos critérios comuns que permitem assim qualifica-las. Em Sobre contos de fada (2013), o escritor,
filósofo e professor universitário, John Reuel Ronald Tolkien, trata com
singela maestria uma temática corriqueira, e vista por muitos como simplória:
“contos de fada”. Aqui, faz-se necessário o uso de aspas no termo, já que, como
viremos a seguir, os contos de fadas, tem menos fadas do que se possa imaginar,
como explicará o autor.
Inicialmente,
tal como fizemos, busca o conceito do texto narrativo em comento nos
dicionários, obtendo o seguinte: “(...) (a) um conto sobre fadas, ou de modo
geral, uma lenda de fadas, com desdobramentos de sentido, (b) uma história
irreal ou incrível, e (c) uma falsidade” (TOLKIEN, 2013, p. 4).
Assim, dada a
diversidade dos conceitos, o autor prefere esmiuçar o que viria a ser o termo
“fada”, em inglês, fairy, no plural, fairies. Para o nosso léxico, infelizmente, a acepção prejudica a
compreensão à luz do pensamento tolkeano: “1. ser imaginário do sexo feminino
com poderes mágicos; 2. mulher de extraordinária beleza, encanto e habilidades”
(HOUAISS, 2011, p. 330). Na língua inglesa, a palavra fairies designa não um ser feminino, mas, simplesmente, “seres
sobrenaturais de tamanho diminuto, que a crença popular supõe poderes mágicos e
terem grande influência sobre os assuntos dos seres humanos, para o bem ou para
o mal” (TOLKIEN, 2013, p. 4). Nesse aspecto, discorda Tolkien das
características outorgadas às “fadas”, tanto a sobrenaturalidade quanto a sua
miudeza, que teriam sido fruto da racionalização. Afirma, primeiramente, que as
modas opulentas, sobretudo, francesas – de onde provem a palavra fairy e elf, em francês fée e elfê. A Inglaterra, país onde estava
radicado o autor, provavelmente importou não somente os termos, mas também, os
adereços apequenados da pomposa afetação francesa (TOLKIEN, 2013).
Tolkien critica
sutilmente a racionalização, no sentido de que, à medida que o homem foi
descobrindo as porções ocultas do mundo, cada vez houve menos espaço à
possibilidade de existência de seres desconhecidos, logo, os locais míticos da
terra perderam seu encanto, caindo num ostracismo de invisibilidade. Nesse
sentido, refere-se à lenda irlandesa Hy
Breasil, que nada mais era que uma ilha mítica localizada em algum lugar do
Oceano Atlântico, isso antes mesmo do ano de descobrimento das terras
brasileiras. Assim, quando do seu achamento, percebeu-se que o Breasil, era mais que um lugar mítico,
pelo contrário, era uma extensão de terra real, nomeadamente, Brasil. Aí, pois,
estaria a origem verdadeira do nome do nosso país (TOLKIEN, 2013).
Por fim, chega à
conclusão de que, na verdade os “contos de fadas”, mais do que falar de “fadas
florais”, tratam do Reino Encantado de Faïrie.
As histórias de fadas, antes de mais, possuem terras, rios, água, tal e qual a
realidade presente do mundo humano e, inclusive, seres humanos, quando
conseguem alcança-lo. Para ele, portanto, raros são os contos que são, de fato,
de fadas e são caracterizados por falar de aventuras dos homens nesse Reino
Encantado, cujas palavras não podem exprimir e nem sequer tem a pretensão de
explicar (TOLKIEN, 2013, p. 10). Nesse Reino, contudo, a magia que ele possui é
algo de sério, que se deve respeitar, posto que o que ali toca, em verdade,
toca a realidade humana em sua profundeza.
Bruno Bettelheim
(1980, p. 14), mencionando o filósofo e poeta Schiller, trata acerca da
importância dos contos de fada: “Há maior significado profundo nos contos de
fadas que me contaram na infância do que na verdade que a vida ensina”. Assim,
compreende que é característico de tal tipo literário um dilema existencial de
forma breve e categórica, expondo a criança, destinatária da história, às
vicissitudes da vida, isto é da inevitabilidade da luta contra os problemas
inerentes à existência humana. Ao contrário, as histórias infantis modernas
evitam a linguagem direta e, por vezes, trágica a fim de poupar o leitor de
situações de tragédia e sofrimento. Assim, diz que, ao contrário, o conto mais
trágico “confronta a criança honestamente com os predicamentos humanos básicos”
(BETTELHEIM, 1980, p. 15).
Chesterton afirma-nos, com humor
acerca dessa realidade: “O conto de fadas discute o que o homem sensato fará
num mundo de loucura. O romance realista sóbrio de hoje discute o que um
completo lunático fará num mundo sem graça” (CHESTERTON, 2008, p.16).
Prossegue, confirmando sua teoria de que, o “País das Fadas” é o caminho de
tratar sobre coisas reais, chamando-o de “País ensolarada do bom senso”:
Minha
primeira e última filosofia, aquela na qual acredito com certeza absoluta, eu a
aprendi na creche. Geralmente a aprendi de uma babá; isto é, daquela solene
sacerdotisa ao mesmo tempo da democracia e da tradição, indicada pelos astros.
Aquilo em que eu mais acreditava naquela época, aquilo em que mais acredito
atualmente, são coisas que chamamos de contos de fadas. Eles me parecem
inteiramente razoáveis. Não são fantasias: comparadas com eles, outras coisas
são fantásticas. Comparados com eles, a religião e o racionalismo são ambos
anormais, embora a religião esteja anormalmente certa e o racionalismo
anormalmente errado. (CHESTERTON, 2008, pp. 50-51)
Cumpre ressaltar que os autores
acima referidos dão uma visão diferenciada do senso comum, tomando-o não como
fruto da ignorância das massas ou como saber dos ignorantes, como se poderia
pensar, sobretudo com a onda racionalista na qual o mundo imergiu. Ao
contrário, trata-se de um saber genuíno e necessário à vida e que, se bem
explorado, pode levar à compreensão de realidades mais profundas relevantes,
mesmo a partir de pessoas mais simples, sem instrução acadêmica, como as babás
(CHESTERTON, 2008). Por sua vez afirma a doutrina tolkeana:
A
magia do Belo Reino não é um fim em si mesma, sua virtude reside em suas
operações - entre elas está a satisfação de certos desejos humanos primordiais.
Um desses desejos é inspecionar as profundezas do espaço e do tempo. Outro
(como veremos) é entrar em comunhão com outros seres vivos. Assim, uma história
poderá tratar da satisfação desses desejos com ou sem a interferência de
máquinas ou de magia, e na medida em que tiver sucesso se avizinhará da
qualidade de histórias de fadas e terá o seu sabor. (TOLKIEN, 2005, p. 15)
J.R.R. Tolkien compreende, pois,
que nada é mais necessário para adentrar o mundo fantástico, o Reino Encantado.
Assim, contos que usam subterfúgios para criar uma fantasia de
“flores-e-borboletas” foge à essência dos contos que tratam desse mundo tão
real como o nosso. Exclui da classe dos contos de fada (fairytales) o uso de “fantasias” mentirosas, sonhos, fadas
coloridas e desencarnadas, já que tudo o que ali se passa é considerado real.
Não são consideradas como tal as histórias de animais, chamadas por ele de
“fábulas de animais” que, como vimos, são aqueles que, embora haja ensinamentos
morais a serem transmitidos e haja uma conexão com aquele terreno do fantástico,
não há nenhuma preocupação de que haja uma comunicação desses seres com o mundo
humano, como ocorre nos verdadeiros contos de fadas.
Assim,
parece-nos fundamental que as histórias que estamos a tratar, toquem o
fantástico, mas que façam regressar sempre mais a vida humana corriqueira, sob
pena de perder-se na inutilidade e na fuga. Coaduna-se a esse pensamento o que
afirma Bettelheim:
Para
que uma estória realmente prenda a atenção da criança, deve entretê-la e
despertar sua curiosidade. Assim para enriquecer sua vida, deve estimular-lhe a
imaginação: ajuda-la a desenvolver seu intelecto e a tornar claras as suas
emoções; estar harmonizada com suas ansiedades e aspirações; reconhecer plenamente
suas dificuldades e, ao mesmo tempo, sugerir soluções para os problemas em que
a perturbam. (BETTLEHEIM, 1980, p.
13)
Parece-nos,
então, que para conhecer as intempéries do mundo e a dureza do dia-a-dia, seja
importante, para um desenvolvimento maduro e integral, conhece-lo a partir de
figuras encantadas com vistas a um equilíbrio entre o encanto da contingência e
da ordem presentes na natureza e a completa desilusão e desencantamento da
realidade e das relações humanas.
2 O DESENCANTAMENTO DO MUNDO
A
Filosofia sempre se prestou, de alguma maneira, a desvelar o quê por detrás das coisas, e segundo a
razão humana explicar o que até então era considerado fantástico, elucidado
pelos mitos. Tais explicações foram, ao longo da História, distanciando-se da
mitologia para encontrar abrigo fora das cavernas, em conjecturas filosófico-racionais,
sistemas filosóficos completos que buscavam compreender a natureza objetiva,
bem como os recônditos da natureza humana.
À
medida que a razão humana foi acumulando saberes, ganhando independência da
Filosofia, percebe-se, pois, a partir da Modernidade, um desejo de perseguir e
manipular o mundo cientificamente, mas sem aquele quid primeiro, fomentador das mais intricadas perguntas, feitas até
então. Nesse sentido, muito contribui Max Weber (1919, p. 13), quanto trata da
vocação à ciência:
O
progresso científico constitui um fragmento, decerto o mais importante, do
processo de intelectualização a que, desde há milénios, estamos submetidos e
perante o qual, além disso, se adopta hoje, muitas vezes, uma atitude
extraordinariamente negativa. Tentemos, antes de mais, ver claramente que é que
significa, do ponto de vista prático, esta racionalização intelectualista
através da ciência e da técnica cientificamente orientada. Significa,
porventura, que hoje cada um dos que estão nesta sala tem um conhecimento das
suas próprias condições de vida mais amplo do que um índio ou um hotentote?
Dificilmente. Excepto se for um físico, nenhum de nós, ao viajar de comboio,
fará ideia alguma de como ele se move. Aliás, também não precisa de saber. Basta-lhe
“contar” com o comportamento do comboio e orientar assim a sua própria conduta;
mas não sabe como fazer comboios que funcionem. O selvagem sabe
incomparavelmente mais acerca dos seus utensílios.
Weber enxerga nesse progresso
científico não uma aquisição de conhecimento sobre a vida, isto é, acerca do
sentido da vida e da existência humana, mas sim, de um saber específico que
garante nada mais que um limitado conjunto de informações acerca de determinada
particularidade da vida humana que, diga-se, não é essencial à todos já que
como disse, um selvagem, sem conhecimento científico algum, sabe muito mais de
seus utensílios que diariamente lida, do que uma dezena de cientistas que, a
partir de suas especialidades, vivem “um reino trasmundano de artificiosas
abstrações que, com as suas pálidas mãos, tentam captar o sangue e a seiva da
vida real, sem jamais conseguir” (WEBER, 1919, p. 15).
Ainda no início
da modernidade, quando da emancipação das ciências, afirma Weber (1919, p. 17)
que as ciências ainda possuíam a finalidade de perscrutar os nebulosos
mistérios do Criador, isto é, a análise científica da natureza como caminho
para Deus e do sentido da vida. Contudo, nem a Filosofia nem a Ciência, já em
seu tempo, possuem sequer vestígios desse escopo:
Mas
nas ciências exactas da natureza, onde as suas obras se podiam fisicamente
apreender, esperava-se poder achar o vestígio dos seus desígnios acerca do
mundo. E hoje? Afora algumas crianças grandes, com que se depara nas ciências
naturais, quem é que ainda hoje acredita que os conhecimentos da astronomia, da
biologia, da física ou da química nos podem ensinar algo sobre o sentido do
mundo ou, inclusive, sobre o caminho no qual se poderia encontrar um vestígio
desse sentido – se é que ele existe? Se eles se prestam a algum efeito é antes
o de secar na raiz a fé na existência de algo que se possa ter por “sentido” do
mundo.
Há, pois, um processo de
racionalização exacerbada do mundo, por meio de uma ciência que visa tão
somente extrair fórmulas e números, numa criação desenfreada de especialistas
neste ou naquele assunto específico, sem interesse algum em investigar o que há
por detrás dessa intrincada realidade da existência humana.
A intelectualização e a
racionalização geral não significam, pois, um maior conhecimento geral das
condições da vida, mas algo de muito diverso: o saber ou a crença em que, se alguém
simplesmente quisesse, poderia, em qualquer momento, experimentar que, em
princípio, não há poderes ocultos e imprevisíveis, que nela interfiram; que,
pelo contrário, todas as coisas podem – em princípio - ser dominadas mediante o
cálculo. Quer isto dizer: o desencantamento do mundo (WEBER,
1919, p. 13, grifo nosso).
Assim, surge o homem desencantado
do mundo, isto é, que não vê com aquele assombro investigativo primevo a
realidade que o cerca, restando tão somente o empreendedor sem paixão, sem aquela
inspiração que já fora tão necessária ao desenvolvimento das ciências. Quanto a
isso, Weber (1919, p. 20) utiliza-se das palavras de Tolstói para expressar bem
essa desolação científica: “A ciência carece de sentido, pois não tem resposta
alguma para a única questão que nos interessa – ‘Que devemos fazer? Como devemos
viver?’”.
Num tempo de
alto desenvolvimento das ciências, em que a sociedade parece encharcada de
cientificidade, posto que nunca a tecnologia esteve tão à mão dos indivíduos,
esse desencantamento do mundo torna-se cada vez mais presente. Há poucos
fenômenos, seres ou lugares que sejam desconhecidos; as constelações e o espaço
sideral já foram e estão sendo esquadrinhados pelos mais renomados
especialistas; já se manipularam as células matrizes do ser humano. O que há de
oculto ainda hoje no mundo natural? O que se está buscando?
De alguma forma,
poderíamos dizer que tal “cientificismo” teve grande influência do movimento positivista
do Círculo de Viena, colaborando para uma concepção menos encantada do mundo,
isto porque, buscava-se naquele momento, uma análise objetiva da realidade, com
estrita correspondência aos fatos, sem abertura às elucubrações de uma mente
fascinada pelo mundo existente. Nesse sentido, afirmam:
[...]
Aspira-se à limpeza e à clareza, recusam-se distâncias obscuras e profundezas
insondáveis. Na ciência não há "profundezas"; a superfície está em
toda parte: tudo o que é vivenciado forma uma rede complexa, nem sempre
passível de uma visão panorâmica e frequentemente apenas apreensível por
partes. Tudo é acessível ao homem; e o homem é a medida de todas as coisas
(HAHN, NEURATH; CARNAP, 1986, p. 10).
Ora, parece-nos que a Filosofia
proposta pelo Círculo de Viena, nascida na Áustria por volta de 1922, era
exatamente a descrita bem antes por Weber que, como um oráculo, anunciou de
alguma maneira o encabrestamento filosófico que viria poucos anos depois de sua
morte, ocorrida em junho de 1920. Além da superficialidade dos fatos objetivos,
o Círculo delegou aos filósofos um papel secundário, como que de um mero
revisor de textos ou um corretor de fórmulas matemáticas: “A tarefa do trabalho
filosófico consiste neste esclarecimento de problemas e enunciados, não, porém,
em propor enunciados ‘filosóficos’ próprios'. O método deste esclarecimento é o
da análise lógica” (HAHN; NEURATH; CARNAP, 1986, p. 10). Os cientistas
orientados por Moritz Schlick sequer consideravam a problemática metafísica dos
grandes sistemas filosóficos precedentes como autênticos problemas, tendo-os
por falsos e sem significado, já que não poderiam ser verificados empiricamente.
O filósofo
brasileiro Rubem Alves, faz uma crítica aos cientistas que, encontrando a
relação de causa e efeito para explicar a dinamicidade das coisas, intentam
encontrar uma linguagem positiva, longe da subjetividade dos metafísicos:
A
ciência, com o propósito de estabelecer regras para a construção de um discurso
“objetivo”, livre de “ídolos” e intromissões indevidas de nossas emoções,
pensou que o caminho correto seria partir dos fatos e não dizer coisa alguma
além daquilo que os fatos permitem. Agora, entretanto, descobrimos que os fatos
não dizem coisa alguma a não ser quando são trabalhados pela imaginação (ALVES,
1981, p. 115).
Ora, segundo Alves, na tentativa de
isolar-se nos fatos puros, o cientista esquece que tudo o que a ele se
apresenta como dado, isto é, objeto de estudo, passa pela interpretação dos
seus sentidos, de modo que, inevitavelmente, sempre serão afetados o observador
e o objeto observado. Os fatos não informam imediatamente tudo o que são,
sempre havendo a necessidade de uma mediação do intelecto humano, como seu
intérprete, segundo o arcabouço de informações que possuir.
Assim,
percebe-se que a sonhada objetividade do mundo é, de fato, um desencantamento,
uma desolação acerca da incapacidade do homem de compreender totalmente a
realidade, com todas as suas implicações. Acerca dessa sociedade, afirma Weber
(1919, p. 32):
O
destino da nossa época, com a sua racionalização, intelectualização e,
sobretudo, desencantamento do mundo, consiste justamente em que os valores
últimos e mais sublimes desapareceram da vida pública e imergiram ou no reino
trasmundano da vida mística, ou na fraternidade das relações imediatas dos
indivíduos entre si.
Parece-nos, pois, que alcançamos o
destino profetizado por Weber, no qual, somente em pequenos círculos, no
submundo intelectual é que tornam à superfície as novidades antigas da
Filosofia, sobretudo, os clássicos da Antiguidade que, aos poucos, estão a ser
retirados de baús onde, por tempos, foram deixados no ostracismo da comunidade
intelectualizada. Vemos então, que a realidade é muito mais complexa e
encantadora do que os grandes corolários da ciência que, ainda que consigam
esquadrinhar os fenômenos naturais e dominar a técnica, ainda não conseguiram
alcançar satisfatoriamente a difícil tarefa de ser e se tornar um ser humano
adulto, racional, responsável, senhor de si. Daí a missão desempenhada pelos
contos de fadas:
[...] a criança
necessita entender o que se está se passando dentro do seu eu inconsciente. Ela
pode atingir essa compreensão, e com isto a habilidade de lidar com as coisas,
não através da compreensão racional da natureza e conteúdo de seu inconsciente,
mas familiarizando-se com ele através de devaneios prolongados – ruminando,
reorganizando e fantasiando sobre elemento adequados da estória em resposta a
pressões do inconsciente. Com isto, a criança adequa o conteúdo inconsciente às
fantasias inconscientes, o que a capacita a lidar com esse conteúdo. É aqui que
os contos de fada têm seu valor inigualável, conquanto oferecem novas dimensões
à imaginação da criança com as quais ela pode estruturar seus devaneios e com
eles dar melhor direção à sua vida. (BETTELHEIM,
1980, p. 17, grifo nosso)
Apreende-se que o desenvolvimento
do ser humano à fase adulta está intimamente ligado à sua visão de mundo e de
quais maneiras o indivíduo aprendeu a lidar com as implicações interiores, que perfazem
seu cotidiano e suas relações interpessoais. Assim, compreender e ter contato,
ainda que indiretamente –pelos contos-, com
o mal e a vileza, antes de ser considerado uma ameaça, é uma escola
primária e indolor, por exemplo, da maldade que se deve evitar no futuro.
Embora, segundo afirme Bettelheim (1980, p 17), que existe na cultura dominante
o desejo de fingir “que o lado escuro do homem não existe, e professa um
aprimoramento otimista”.
Assim,
mesmo postulando uma racionalização do mundo e uma cientificidade de todo o
saber humano, o homem contemporâneo não oferece soluções eficazes ao seu mundo
desencantado e, ao invés disso, propõe caminhos, aparentemente, mais sólidos e
exatos, quando são otimistas –e por que não dizer fantasiosos? - e incertos. Os
contos, por sua vez, ensinam por meios etéreos como chegar à solidez da vida
mediana, da vida cercada daquilo que é necessário à vida consigo mesmo e com o
outro.
3 A ÉTICA DAS VIRTUDES DE
ARISTÓTELES
Bruno Bettelheim
demonstra que as figuras apresentadas nos contos de fadas possuem qualidades e
defeitos bastante demarcados, a fim de que, dentro de suas capacidades de
discernimento, isto é, do seu nível de desenvolvimento cognoscitivo, a criança
possa, aos poucos, construir sua compreensão entre uma pessoa má e uma pessoa
boa, por exemplo. Nesse sentido, diz:
As
figuras nos contos de fadas não são ambivalentes – não são boas e más ao mesmo
tempo, como são todos na realidade. Mas dado que a polarização domina a mente
da criança, também domina os contos de fada. Uma pessoa é ou boa má, sem
meio-termo. Um irmão é tolo, o outro esperto. Uma irmã é virtuosa e
trabalhadora, as outras são vis e preguiçosas. [...]. Há alguns contos de fada
amorais onde a bondade ou a apresentação das polarizações de caráter permite à
criança compreender facilmente a diferença entre as duas, o que ela não poderia
fazer tão prontamente se as figuras fossem retratadas com mais semelhança à
vida, com todas as complexidades que caracterizam as pessoas reais. [...] Então
a criança tem uma base para compreender que há grandes diferenças entre as
pessoas e que, por conseguinte, uma pessoa tem que fazer opções sobre quem quer
ser. Esta decisão básica sobre a qual todo o desenvolvimento ulterior da
personalidade se construirá, é facilitada pelas polarizações do conto de fadas
(BETTELHEIM, 1980, p. 17).
Essa polarização e essa escolha de
que fala Bettelheim, compreenderemos como a polarização feita entre virtude e
vício, que os contos vão apresentando à criança que, após uma deliberação
racional interior segundo as características colhidas dos personagens, são
impulsionadas a seguir o melhor caminho, o caminho da virtude. Nas palavras do
próprio autor nesse sentido, o conto “oferece significado em tantos níveis
diferentes, e enriquece a existência da criança de tantos modos que nenhum
livro pode fazer justiça à multidão e diversidade de contribuições que esses
contos dão à vida da criança” (BETTELHEIM, 1980, p. 20).
Se queremos,
pois, traçar um paralelo entre os contos de fada e o ensino das virtudes,
primeiramente, é necessário determinar o que vem a ser uma virtude, quais os
meios para se adquiri-la, se é que possível possuí-la dessa forma, e qual a sua
finalidade. Aristóteles, grande filósofo de Estagira do século III a.C., em sua
famosa obra “Ética à Nicômaco”, estabelece alguns parâmetros sobre um autêntico
agir humano. Sabe-se, porém, que o discurso ético inicia-se propriamente com
Sócrates, desenvolvendo-se em Platão, que concebe a virtude como conhecimento
que leva à felicidade do homem, de modo que, uma vez conhecido o bem é
impossível fazer o mal e, ainda que um mal seja realizado, tratar-se-ia de um
equívoco já que o resultado esperado pelo agente sempre visa o bem. Além disso,
elenca quatro virtudes principais: sabedoria, coragem, temperança e justiça
(COPLESTON, 1986, pp. 193-195).
A ética de Aristóteles,
também teleológica, isto é, enquanto intrinsecamente ligada à finalidade das
ações, devem sempre conduzir ao bem e ao fim do homem e, por conseguinte à
felicidade. Quanto a qual seja a finalidade do homem, não é possível precisar
matematicamente, haja vista que, diferentemente da matemática, o objetivo da
ética são as obras do homem. Logo, a ação humana que, de maneira constante e
durante toda a sua vida, o encaminham para a felicidade são consideradas virtuosas
(COPLESTON, 1986).
O Filósofo passa
a definir o homem feliz como quem vive bem e age bem, sendo a felicidade uma
“espécie de boa vida e boa ação” (ARISTÓTELES, 2008, p. 29), sendo a virtude em
geral, chegando a afirmar que “a felicidade é a atividade conforme à virtude”.
Significa dizer que o viver bem do homem é, na verdade, viver sempre segundo
aquilo que o diferencia de todos os demais seres e coisas, a atividade de sua
alma que o singulariza dentre todo o existente: a razão (REALE; ANTISERI, 2014).
Sendo o que há de mais nobre e aprazível no mundo, Aristóteles (2008) tem a
felicidade como que uma dádiva divina, visto ser o melhor de todos os bens e,
mesmo que seja fruto de um esforço pessoal, como resultado da virtude ou
hábito, tem aparência de ser, de fato, o melhor para o homem.
Há, contudo,
dentro de cada homem além da racionalidade (alma racional), impulsos ou
princípios contrários a essa mesma razão e que, opondo-se constantemente à ela
deve ser dominada para que atuem em concordância. Desta maneira, “o elemento
irracional pode ser persuadido pela razão” (ARISTÓTELES, 2008, p. 38) e,
portanto, o homem virtuoso, que possui a virtude ética ou moral, poderá
ponderar racionalmente e ditar os rumos de suas ações em direção ao bem e,
consequentemente, à felicidade (REALE; ANTISERI, 2014, p. 204). A repetição
deste tipo de ação terá, para Aristóteles (2008, p. 40) grandes resultados:
[...] as virtudes...
adquirimo-las pelo exercício, tal como acontece com as artes. Efetivamente, as
coisas que temos de aprender antes de poder fazê-las, aprendemo-las fazendo;
por exemplo, os homens tornam-se arquitetos construindo, e tocadores de lira
tocando esse instrumento; e do mesmo modo, tornando-nos justos praticando atos
justos, moderados agindo moderadamente, e igualmente com a coragem, etc. O que
estamos dizendo é confirmado pelo que acontece nas cidades-Estados: os
legisladores tornam bons os cidadãos por meio de hábitos que lhes incutem.
A partir disso, então, Aristóteles
(2008) define que é da natureza das virtudes que sua destruição se dê dois
modos, por deficiência ou por excesso, logo, sempre o bem de uma virtude pode
ser corrompido pela falta ou pela abundância. Exemplo disso seria a prática
excessiva de exercício físico, que teria como consequência o esgotamento do
corpo e a pratica deficiente conduziria à morbidez. Assim, a fim de se
conservarem incólumes a temperança, a coragem e todas as virtudes, deve-se
tomar a via da mediania, isto é, a justa medida entre o excessivo e o
deficiente. Logo, a medida que se pratica com mediania a virtude, obtêm-se o
prazer e a dor que indicam a disposição moral do indivíduo, de maneira que a
excelência moral está relacionada ao prazer e ao sofrimento (ARISTOTELES, 2008).
Por esta razão, menciona Platão ao afirmar que “deveríamos ser educados desde a
infância de maneira a nos deleitarmos e de sofrermos com as coisas certas;
assim, deve ser a educação correta” (PLATÃO apud ARISTOTELES, 2008, p. 43).
Passa então a
elencar inúmeras virtudes com seus respectivos vícios, sobre os quais não nos
alongaremos aqui, vez que parece-nos despiciendo aprofundar tais questões.
Contudo, importante tomar ciência de algumas delas para que possamos discorrer
mais à frente, sobre algumas virtudes em espécie: quanto à riqueza, temos a
virtude da liberalidade, cujo excesso é a prodigalidade e a deficiência é a
avareza; a calma, em relação à cólera para ser o meio-termo, cujo excesso é a
pacatez e o excesso a ira; contudo, a justiça é a mais excelente das virtudes,
já que ela mesma é quem constitui as demais virtudes, assim, se por um lado há
um vício de justiça quando se é injusto, não se pode dizer que há um excesso de
justiça, já que quanto mais justo se for, mais excelentemente se está a
praticar tal virtude.
O avanço nos
estudos da ética aristotélica, sobretudo na Idade Média, concatenou as virtudes
em quatro eixos, que são quatro principais, denominadas cardeais, com as quais
são correlatas todas as demais virtudes. São elas: prudência, que consistiria
no aprimoramento da inteligência na escolha do certo e do errado; justiça, que
aperfeiçoa a vontade, a fim de garantir o que é devido aos outros no momento
correto; fortaleza, que é controle do apetite irascível do espírito que
impulsiona a fugir da dor e do sofrimento; e a temperança que aperfeiçoa os
apetites concupiscentes da alma, que impulsionam à busca do que é prazeroso (MARTINS
FILHO, 2010).
Retomando nosso ponto
central, Bettelheim (1980) afirma que somente escutando repetidamente e
garantindo-se o tempo necessário para que a criança demore-se nos contos é que
poderá haurir deles os melhores frutos. Parece-nos, portanto, que o caminho de
tijolos amarelos da ficção fantástica deve ser sempre retomado, a fim de que se
possa levar ao caminho do bem fazer, da boa vida, do indivíduo virtuoso.
Assim, se são os
atos maus que tornam vicioso o homem é, pela constância de atos bons que são
formadas, no interior dele, as virtudes (AQUINO, 2012). Logo, agindo conforme
sua virtude, por meio da razão, poderá encaminhar suas ações não segundo suas
paixões interiores – egoísmo, maldades, inveja, defeitos, prazeres, etc.- mas,
em direção aos bem do homem e, via de consequência, à todo o grupo social em
que estiver inserir. Desta forma, mais uma vez tomando as palavras de Platão,
como dito acima, no sentido de que é desde cedo que se deve ensinar ao homem a
deleitar-se e sofrer com certas coisas. Noutras palavras, deve-se já na
infância incutir no intelecto de que há condutas que se deve ter prazer, porque
são boas, e outras às quais se deve rejeitar, isto é, as que conduzem ao mal.
Comte-Sponville
(2009, p. 7), em seu Pequeno Tratado das
Grandes Virtudes, tal como Aristóteles, expõe que a melhor maneira de
ensinar a virtude é pelo exemplo, contudo, o livro torna-se uma ferramenta útil
para que se busque “compreender o que deveríamos fazer, ou ser, ou viver, e
medir com isso, pelo menos intelectualmente o caminho que daí nos separa”. Daí
que passa a expor, individualmente, acerca das virtudes que considera
essenciais ao humano, culminando em dezoito excelências: polidez, fidelidade,
prudência, temperança, coragem, justiça, generosidade, compaixão, misericórdia,
gratidão, humildade, simplicidade, tolerância, pureza, doçura, boa-fé, humor e
amor.
4 OS CONTOS FANTÁSTICOS E AS
VIRTUDES
Tendo a noção de que virtude é a ação
que conduz ao bem e que aperfeiçoa, pela razão, aquilo que interiormente pode
conduzir ao vício, Tomás de Aquino (2012) demonstra que tal como a ciência não
chega ao intelecto por invenção/descoberta própria, mas por doutrina exterior,
tal ocorre com a virtude, que é alcançada pela correção e pela disciplina, que
provem de outrem.
Portanto, como vimos, essa correção do
sujeito, na verdade, é o ensinamento que pelo hábito, paulatinamente, forma o
conjunto de valores éticos que são norteadores das decisões do indivíduo
adulto. Também, inicialmente, fizemos notar que os contos de fadas, embora
sejam o campo em que a imaginação ganha especial enlevo, há um universo de possibilidades
de ensinamentos que, mais do que entretenimento, são para a formação integral
do indivíduo.
Chesterton (2008) faz-nos recordar da história de Jack, o matador de gigantes, que
simbolizam a revolta contra todo o orgulho; ou Cinderela (Borralheira), cuja lição é aquela trazida no Magnificat, cântico em que Maria, mãe de
Jesus, afirma que Deus exaltou os humildes; ou ainda, A Bela e a Fera, que ensina que é preciso amar alguém, ainda que
não seja amável. Como dissemos, os contos de fadas não são tanto de fadas, mas
de humanos, não de crianças, mas de adultos. Nas palavras de Tolkien (2014, p. 65):
“Os contos de fadas são feitos por homens, não por fadas”.
Assim, segundo a teoria de Tolkien (apud MARTINS FILHO,
2010; TOLKIEN, 2014) acerca dos contos
de fadas, observa-se três funções que carregam em si: a terapia de restauração,
a sã evasão dos problemas e o consolo da alegria. Isto é, primeiro, serve como
uma restauração das forças absorvidas no trabalho; segundo, trata-se do escape
que proporciona o conto, fazendo com que o indivíduo transcenda as durezas
angustiantes e sofridas de suas realidades aos mais profundos desejos,
contempla também a busca de escapar das “feiúras” do mundo, a fome, a sede
pobreza, dor, pesar, injustiça, morte; terceiro, o consolo da alegria do final
feliz, o happy ending de que falamos,
necessária a todos os contos de fadas para serem autênticos.
Aqui recorremos ao termo “eucatástrofe”, ou grande
reviravolta, como contrária às grandes catástrofes dos dramas. Essa virada do
destino tão presente nos contos fantásticos, é fundamental não para negar a
existências das agruras e fatalidades da vida, mesmo que são necessárias para a
alegria final, mas sim para negar a derrota final universal, ainda que haja
todos os indícios reais – da vida ordinária- concedendo, de algum modo, a
esperando de mudança de direção, do vício à virtude. Assim afirma Tolkien
(2014) que a boa história de fadas, deve, portanto, ser capaz de, na virada
final, causar um sobressalto no coração e trazer lágrimas aos olhos.
Esse final segundo Bettelheim (1980), faz a criança
retornar à vida confortada pela segurança da vitória do herói, num retorno
feliz à realidade destituída de mágica. Para aclarar a eficácia dos contos,
utiliza-se da figura do despertar após os sonhos. O sono restaura o corpo de
seu cansaço, imergindo-o no mundo dos sonhos. O despertar indica esse estar
habilitado para retornar à realidade do mundo, do trabalho, etc. e além disso,
o contrário se percebe quando o indivíduo fica privado de dormir. Nesse
sentido, faz uma audaciosa declaração:
Talvez um dia sejamos capazes de
demonstrar o mesmo fato experimentalmente em relação aos contos de fada: que as
crianças vão mal de vida quando são privadas do que as estórias podem-lhes
oferecer, dado que os contos ajudam-na a elaborar, na fantasia, as pressões
inconscientes (BETTELHEIM, 1980, p. 79) .
Coaduna-se,
pois, essa orientação de que os ensinamentos dos contos podem fazer crescer no
complexo interior da criança, com a virtude que, aos poucos, ordena e
aperfeiçoa aquilo que e é irracional na alma humana, tornando-a ao caminho da
felicidade, que é a própria virtude. Assim, afirma Bettelheim (1980, p. 82):
Quando
todos os pensamentos mágicos da criança estão personificados num bom conto de
fadas – seus desejos destrutivos, numa bruxa malvada; seus medos, num lobo
voraz; as exigências de sua consciência, num homem sábio encontrado numa
floresta; suas raivas ciumentas, em algum animal que bica os olhos de seus
arquirrivais- então a criança pode finalmente começar a ordenar essas
tendências contraditórias. Isto começado, a criança ficará cada vez menos
engolfada pelo caos não manejável.
Desta
forma, os contos de fadas, a partir da concepção tolkeana, promovem o que
poderíamos chamar uma ordenada fuga/escape do mundo, com vista a ordenar o
mundo interior do ouvinte, restaurando suas forças e conduzindo ao bom termo de
sua vida, um caminho de virtude.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percorrer a senda rumo à Terra das Fadas é tarefa árdua e
simples, contudo, exige da Demanda uma abertura àquilo que, aparentemente, é
irreal e desconhecido. Nas palavras de um velho personagem de Tolkien: “Porque
há tanta coisa ainda que nunca vi na frente: em cada bosque, em cada fonte há
um verde diferente” (TOLKIEN, 2003, p. 290).
Percebe-se que, embora esquecidos quanto à sua
profundidade simbólica, os contos de fada ou fantásticos continuam a
influenciar as crianças de todo o mundo, que ainda hoje, não cessam de imaginar
aventuras imaginárias, castelos e donzelas indefesas, personagens dos mais
variados que enfrentam adversidades terríveis e chegam ao feliz termo do
consolo final, do “otimismo essencial dos contos de fadas” (BETTELHEIM, 1980,
p. 52). Na frenética sociedade contemporânea, há cada vez menos espaço à
imaginação e à saudável ludicidade, úteis à restauração do sujeito que,
empurrado pelas necessidades do trabalho com sua rotina maçante, tem cada vez
menos tempo para si e para cuidar de seus dilemas mais profundos. Assim,
delega-se essa função aos programas de televisão, aos gurus da internet que têm
resposta para tudo, aos medicamentos antidepressivos e similares.
Quando o adulto conta uma estória do mundo fantástico,
parece-nos que há um duplo efeito. Quais sejam: forma-se a criança ouvinte,
ajudando-a a fundar as bases das soluções de seus contrastes interiores dos
quais sequer ela ainda tomou consciência e, via de consequência, alimenta-se o
bom adulto do amanhã, que buscará fazer o melhor para si e para o mundo que o
rodeia; restaura-se a força e a esperança do adulto que, pelo cansaço e dureza
da vida diária, esqueceu-se de seus sonhos, suas aspirações, sua admiração pelo
mundo e, sobretudo, a inocência da criança que fora um dia. Criança destemida
que enxergava o mundo de maneira fantástica, que enfrentava gigantescas
criaturas, que sempre buscava o porquê do mundo, a quem foi dada entrada ao
Reino dos Céus: a eucatástrofe final.
Aos poucos, têm-se buscado conhecer esse mundo
eucatastrófico, o País das Fadas, a fim de apontar caminhos e luzes nesse nosso
mundo catastrófico. Lá e de volta outra vez, como quem caminha no limiar entre
Faïrie e Terra, buscamos demonstrar que o mais inocente dos contos pode
instruir às crianças e encantar os adultos, causando, como diz o mestre Tolkien
(2014, p. 66), “um sobressalto no coração, próximos às lágrimas”, afinal, “nem
todas as lágrimas são um mal” (TOLKIEN, 2003, p. 1091).
AUTORES
* Doutora em História
Social. Professora de Filosofia do Centro Universitário Católica de Vitória.
**Graduando em Filosofia
pelo Centro Universitário Católica de Vitória e bacharel em Direito pela
Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha;
*** Graduando em
Filosofia pelo Centro Universitário Católica de Vitória.
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<http://www.lusosofia.net/textos/weber_a_ciencia_como_vocacao.pdf> Acesso
em 10 mar. 2018.
como citar:
Parabéns pela dedicação, lucidez e doçura. Obrigado.
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