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Pensar por imagens: Vilém Flusser e a construção do pensamento na atualidade



Rachel Cecília de Oliveira[1]
Mestre e doutora em filosofia pela UFMG. Professora da UEMG



RESUMO
A filosofia flusseriana, de forma estrutural, implica o problema da comunicação, ou seja, da tentativa de compreender as diversas formas pelas quais o ser humano sai do solipsismo e cria intersubjetividade. Logo, as imagens são media criados para possibilitar a relação entre os seres humanos e, por isso, são responsáveis pela construção da estrutura sócio-histórica em que nos encontramos. Meu objetivo é mostrar de que maneira Flusser entende as imagens como lupas e biombos, ou seja, de que modo elas mostram e ocultam isso que chamamos de realidade. Essa característica tapadora da imagem está diretamente relacionada ao hábito de tomá-la como dada, como uma espécie de extensão da realidade. Portanto, este texto quer compreender o lugar da imagem no processo de construção do pensamento na atualidade.

Palavras Chave: Imagem técnica; Intersubjetividade; Educação por imagens.

Thinking through images: Vilém Flusser and the construction of present thinking

ABSTRACT
Flusserian philosophy, in a structural way, implies the problem of communication, of the attempt to understand the various ways in which the human being comes out of solipsism and creates intersubjectivity. Therefore, images are media created to enable the relationship between human beings and, therefore, are responsible for building the socio-historical structure in which we find ourselves. My goal is to show how Flusser understands images as magnifiers and screens, that is, how they show and hide what we call reality. This capturing feature of the image is directly related to the habit of taking it for granted, as a kind of extension of reality. Therefore, this text wants to understand the image’s place in the current processof building thought.

Keywords: Technical image; Intersubjectivity; Education by images.


Compreender as imagens e seu caráter educativo no pensamento de Vilém Flusser requer entender como o filósofo dá significado ao termo pensamento. Essa significação pode ser percebida tanto conceitualmente como no modo como ele fazia filosofia, visto que este se constituía como uma espécie de aplicação de suas premissas. Flusser organizava as ideias em textos curtos que geralmente tratam de apenas um assunto sem qualquer referência direta aos autores utilizados na construção de sua argumentação, e que tem o objetivo de criar imagens mentais, visto que ele entende o texto como um construtor de imaginação[i].A relação texto-imagem somada à ausência de referências amplia o potencial crítico de seus escritos. Soma-se a isso o fato de que a introdução dos assuntos, geralmente, se dá por uma pílula de pensamento de alto impacto, mas muito fácil de ser contra-argumentada.Com essas “pílulas de assunto”[ii] Flusser provoca o leitor, quer que ele saia da passividade para gerar o engajamento no problema, seja pela concordância ou não com aquilo que ele se propõe a defender, fazendo com que seus escritos abram espaço para a discussão, ao invés de finalizar assuntos. Propicia ao leitor tecer relações com seu mundo individual, o que faz com que os textos flusserianos configurem uma espécie de convite ao diálogo, visto que sua (in)finitude incentiva a complementação do argumento. Paulatinamente, o leitor dos textos de Vilém Flusser se transforma em um continuador das proposições formuladas por ele, estabelecendo outras imagens possíveis para suas propostas.

É justamente como continuadora das propostas por ele formuladas que escrevo este texto, visando ao mesmo tempo apresentar, costurar e aumentar a teia que configura o pensamento de Flusser. Até porque falar sobre imagens não é apenas trabalhar como tema mais conhecido e procurado da filosofia flusseriana. Preferência essa derivada do impacto causado em seus leitores pelo que ele chama – no último capítulo do livro “Filosofia da caixa preta” – de “filosofia da fotografia”[iii]. Trabalhar com imagens no pensamento de Vilém Flusser é falar sobre o próprio pensamento. Tendo em vista que a atividade de pensar por imagens se transformou na lógica preferencial de construção do pensamento na atualidade, o tema é cada vez mais atual e premente.

Para isso, este texto parte da argumentação presente nos livros “Filosofia da caixa preta” e “O universo das imagens técnicas”[iv] visando ampliar a compreensão de imagem presente nesses livros,por meio da relação com outros textos do filósofo e, principalmente, com sua filosofia da linguagem.O caráter linguístico da produção de pensamento foi intensamente explorado por Flusser[v]. Parto da premissa de que a imagem é uma forma de linguagem, a qual possui estrutura e comportamento diferente do texto escrito. Essa diferença exige analisar o modo como o pensamento imagético se dá e como ele se relaciona com a língua escrita ou falada, pois esta possui lugar privilegiado e mais valorizado entre as várias linguagens existentes. Portanto, este texto pretende explorar a relação texto-imagem na construção do pensamento na atualidade.

Então, porque produzimos imagens?Para Vilém Flusser, as imagens são algumas das formas pelas quais o ser humano sai do solipsismo e cria intersubjetividade, ou seja, são parte dos modos utilizados pelo ser humano para criar mundo. Então, toda criação imagética é criação de mundo, criação de significado. Quando Flusser associa a produção de imagens à criação de mundo ele tem em mente o fato de que o que chamamos de mundo não é constituído por uma substância essencial e imutável, a qual deve ser descoberta. Muito pelo contrário, não há nada de imutável em um mundo constituído por significados, os quais se modificam de acordo com a mudança do próprio mundo. Isso vale não somente para as imagens, mas para qualquer produção de código simbólico.O pensamento é constituído pelos vários códigos simbólicos com os quais lidamos diariamente, ou seja, o pensamento é uma teia de relações construída e constituída pela pluralidade de códigos existentes.Para Flusser, as imagens e as línguas escritas e faladas são criadoras de mundo, visto que são códigos simbólicos compartilhados intersubjetivamente para permitir que os seres humanos não se constituam como mônadas isoladas, mas sim, façam parte ativa de um tecido sócio-histórico. Portanto, o significado do mundo não está para além dele, mas nos instrumentos com os quais o construímos, sendo que as imagens são parte essencial dessa construção. Principalmente se levarmos em consideração que vivemos em um mundo predominantemente constituído por imagens.

Coloquei o termo imagem no plural repetidas vezes, pois não se trata apenas de um tipo de imagem, mas de vários.Flusser inicia o livro “Filosofia da caixa preta” com as seguintes frases:

Imagens são superfícies que pretendem representar algo. Na maioria dos casos, algo que se encontra lá fora no espaço e no tempo. As imagens são, portanto, resultado do esforço de abstrair duas das quatro dimensões de espaço-tempo, para que se conservem apenas as dimensões do plano (FLUSSER, 2002, p.7).

Essa definição de imagem pode ser entendida dentro da lógica da “pílula de assunto”. Ela tem aparência de universalidade, mas é apenas a configuração de um tipo de imagem, aquela entendida pelo filósofo como imagem tradicional. Esta é uma bidimensionalidade representativa produzida por humanos, a qual se constituiu como o primeiro código comunicacional matérico produzido pelos seres humanos que ainda hoje é conhecido.Após essa primeira pílula, o filósofo amplia sua definição de imagem explorando as variadas facetas do que significa ser um código simbólico que funciona como medium entre ser humano e mundo.

Flusser se refere constantemente a dois tipos de imagem bidimensional: a produzida por seres humanos (explorada acima) e a produzida por aparelhos, chamada de imagem técnica. Essa segunda é o foco de sua atenção.
Trata-se de imagem produzida por aparelhos. Aparelhos são produtos da técnica que, por sua vez, é texto científico aplicado. Imagens técnicas são, portanto, produtos indiretos de textos – o que lhes confere posição histórica e ontológica diferente das imagens tradicionais. (...) [A] imagem técnica é abstração de terceiro grau: abstrai uma das dimensões da imagem tradicional para resultar em textos (abstração de segundo grau); depois, reconstituem a dimensão abstraída, a fim de resultar novamente em imagem. (...) Ontologicamente, as imagens tradicionais imaginam o mundo; as imagens técnicas imaginam textos que concebem imagens que imaginam o mundo. Essa condição das imagens técnicas é decisiva para o seu deciframento (FLUSSER, 2002, p.13).

A imagem técnica é o foco de sua atenção devido à complexidade crítica trazida por ela. Complexidade essa derivada da relação imagem-texto que a estrutura. O fato de ela ser, ao mesmo tempo, as duas coisas configura um cenário de recepção da mesma em que o aspecto “textual” da imagem técnica é negligenciado, devido ao fato de sua aparência trazer uma proximidade com aquilo a que a imagem se refere no mundo, o que leva a um “esquecimento” de seu caráter simbólico.

É preciso levar em consideração que cada tipo de medium exige um trabalho de reestruturação de seu caráter simbólico diferente. Deve-se realizar mentalmente a reconstituição daquilo que foi visualizado ao mesmo tempo em que se realiza a construção do universo simbólico por ela apresentado. Isso traz à tona a diferença de temporalidade existente entre a apreciação da imagem e a decifração da escrita. A temporalidade da imagem é circular, os olhos andam e captam as várias facetas da imagem de um modo aparentemente aleatório, porém é “organizado” pela relação estabelecida entre imagem e observador. Isso demanda um período de tempo bastante curto, enquanto no caso da escrita os olhos somam paulatinamente os fonemas, o que exige de quem decifra a paciência de somá-los até que eles findem. Portanto, a experiência com as imagens é diferente da que estamos habituados com a escrita, ela, teoricamente, não exige “alfabetização”, o que faz com que o caráter democrático de sua apreciação esconda e minimize seu aspecto simbólico.

A associação entre imagem técnica e realidade configurou um cenário nocivo da sua recepção visto que ela deixa de ser percebida como o código simbólico que é, passando a ser tratada como mais uma manifestação da realidade. Isso é a concretização da imagem em substância, ou, em termos flusserianos, a transformação da imagem técnica de lupa em biombo. Todo código simbólico possui essas duas facetas como característica: são lupa e biombo, ao mesmo tempo tapam e mostram o mundo, visto que são sobre o mundo, mas não são o próprio mundo. O equilíbrio entre essas duas características mantém a existência do código. Esse equilíbrio se mostra indispensável quando o somamos à função dos códigos simbólicos de serem os media entre os seres humanos e o mundo, o fato de que a humanidade elege um código como sua forma privilegiada de comunicação. Isso significa que cada circunstanciado ser humano possui um código simbólico que atua como organizador do pensamento, o qual replica a sua estrutura de simbolização para o modo de atuação e decodificação dos demais códigos existentes. Flusser nomeia três momentos: no primeiro a imagem tradicional é o código preponderante, no segundo a escrita e no terceiro, o momento atual, a imagem técnica. Em todos esses momentos a função tapadora se sobressaiu sobre a função “mostradora” do mundo. Flusser chama essa situação de textolatria e idolatria.São momentos em que o caráter simbólico do código é esquecido, o que gera uma crise comunicacional devido à incapacidade de sua decifração. Em última instância, a crise comunicacional é uma crise da capacidade crítica daqueles que articulam sua intersubjetividade onde se acredita na concretude dos símbolos.

Tendo em vista que o medium preponderante na construção simbólica do mundo organiza o modo como interpretamos e utilizamos os demais códigos que configuram o pensamento, é possível afirmar que a estrutura da imagem técnica, enquanto código simbólico, é a constituidora do modo como configuramos o mundo. Todavia, Flusser mostra que estamos em um momento de migração do código “escrita” para o código “imagem técnica”, ou seja, a crise do código “imagem técnica” é derivada da nossa incapacidade de lidar com ele; de nossa incapacidade crítica em relação às imagens. Permanecemos dependentes da escrita para realizar essa atividade, no entanto, a escrita não dá conta dos problemas derivados de um mundo estruturado pela lógica da imagem técnica. Tratamos as imagens técnicas como realidade – como aquilo que não precisa de crítica – ou como pretexto para a escrita – como ilustração de algo que o texto é capaz de dizer. O problema é que a relação texto-imagem estabelecida pelas imagens técnicas impossibilita que elas sejam assim tratadas sem que haja o desencadeamento de uma crise comunicacional. As imagens técnicas não se resumem ao texto, visto que elas são texto transformado em imagem, é imagem que surge do texto. Ela exige decifração diferente. Se as imagens técnicas são construtoras do modo como percebemos o mundo, então o comportamento de não decifração, de compreensão da realidade como dada, acompanha todos os demais media atuais, ou seja,a derivação de sua estrutura em outros media pode ser interpretada como uma crise comunicacional não somente das imagens técnicas, mas uma espécie de colapso sistêmico dos códigos comunicacionais como um todo[vi]. É uma reação em cadeia.

Logo, a crise comunicacional exige a tácita compreensão de dois aspectos fundamentais da relação estabelecida com qualquer tipo de imagem na atualidade: toda imagem é montada e nenhuma imagem pode ser reduzida a um texto[vii]. Isso significa que é necessário criar ferramentas para pensar criticamente por imagem, visto que o ato de pensar por imagem é corriqueiramente realizado, o que falta é a compreensão de sua característica simbólica, de sua existência enquanto código comunicacional. É dentro desse contexto que proponho utilizar as análises flusserianas sobre as artes visuais como modelo para projetar saídas para a crise atual.

Quando Flusser fala de artes visuais, cinema, teatro e de literatura, ele aborda a qualidade plástica da produção poética, que existe inclusive na língua escrita, só não é facilmente perceptível nas línguas flexionais[viii]. Quando utilizamos como exemplo línguas orientais, ou isolantes, essa qualidade parece até óbvia. Isso significa que toda construção visual que tem potencial de ser uma criação simbólica e/ou poética possui qualidade plástica. A questão está no modo como essa qualidade plástica aparece. Ela possui grande similaridade com o cenário traçado pelo filósofo para as imagens:

Parece haver um profundo abismo entre a língua verbal e uma estátua, por exemplo, um abismo ontológico, com efeito. Enquanto que a conversação é, de acordo com esta análise, a potencialidade realizada, a estátua parece ser algo extralinguístico, portanto irreal, embora de posição ontológica duvidosa. Afinal, é difícil dizer que uma estátua não é realizada, já que ela evidencia o trabalho produtivo do intelecto (FLUSSER, 2004, p. 172)

Essa sensação é oriunda do fato de que as línguas flexionais[ix] são pobres no que se refere ao aspecto plástico, visto que a língua escrita é uma derivação secundária da falada. Essa quase ausência de qualidade plástica produz a sensação de uma estátua ser algo extralinguístico. O que Flusser chama de plástico é uma vivência estética, uma qualidade sensível que não é negligenciável e não está fora do pensamento, por isso uma estátua é realizada.Isso significa que a plástica é produto poético do intelecto assim como a língua escrita. No entanto, a estrutura de nosso intelecto é moldada pela língua materna, este a utiliza como fundamento primeiro da percepção do mundo.Por isso, nós, falantes de uma língua flexional, temos a sensação de que uma estátua é produto extralinguístico.

Apesar do cenário acima esboçado,Flusser entende a pintura abstrata e a poesia concreta como tentativas dos falantes de línguas flexionais de explorar a qualidade pictórica dos símbolos. A poesia concreta trabalha a indissociabilidade da língua escrita de sua qualidade plástica, mostrando como a qualidade visual do texto produz significado. Já a pintura abstrata distancia a produção imagética da qualidade narrativa da cena, ou seja, da qualidade que permite associação com a língua escrita ou falada. Ambas as propostas apontam para a necessidade de explorar a capacidade crítica do falante de línguas flexionais em relação à qualidade plástica dos símbolos. Logo, é possível afirmar a sinonímia entre a qualidade plástico-pictórica da produção artística e a qualidade imagética do mundo derivada da imagem técnica como medium que estrutura o pensamento atual, independentemente de o código ser uma imagem ou não. É nesse sentido que entendo como imagens construções quadridimensionais, tridimensionais e bidimensionais realizadas por seres humanos e por máquinas, sejam elas: instalação, escultura, pintura, desenho, fotografia, vídeo e etc.

O que une as várias imagens é o modo como as experimentamos. Elas podem ter formas diferenciadas, mas as experimentamos por meio de sua qualidade plástica e a partir do enquadramento visual que o olho humano realiza. O que significa que sua decifração-apreensão se dá pelo scanning, pela capacidade do olho humano de vaguear pela imagem respeitando, ao mesmo tempo, sua estrutura e as vontades do observador. Assim, as imagens não são símbolos denotativos, mas conotativos, possuem em sua estrutura um espaço mais amplo deapreciação, seus limites são esponjosos, visto que muitas vezes realizam uma comunicação direta com o observador.Essa fluidez da dinâmica da imagem estabelece uma óbvia diferença com outros códigos simbólicos, principalmente aqueles que a atualidade valoriza mais. Os números, por exemplo, são símbolos denotativos com significado inequívoco. A associação entre as ciências e a exatidão objetiva se deve ao fato de ter adotado a matemática como linguagem. A própria língua falada e escrita, do modo como usada cotidianamente, apesar de ser um símbolo conotativo, é bem menos aberta que a imagem, visto que nesse uso a qualidade plástica da língua é praticamente negligenciada.

Devido a isso, proponho a seguinte questão: se utilizassem a forma de experimentação-decifração imagética da arte como modelo para ultrapassar a crise comunicacional do mundo atual seríamos bem-sucedidos? Em outras palavras, é possível inverter o processo? Para isso, ao invés de tomar como referência o modo de interação com as imagens estabelecido pela crise comunicacional, utilizaríamos o modo de relação com a arte como modelo. O próprio Flusser aponta para a arte como possível solução da crise, no entanto, ele não desenvolve essa possibilidade. Para responder as questões acima, proponho levar em consideração que a arte é um modo poético de construção de imagens, ou seja, um tipo específico de produção imagética que problematiza a percepção da imagem como dado. Ela exige que se estabeleça uma relação que não é apenas de pensamento, pressupõe vivência, pressupõe adesão ao aspecto plástico que a constitui obra de arte. É uma atividade que associa diferentes capacidades humanas de experimentar e de decifrar símbolos, não se limitando ou sequer priorizando a dimensão do sentido. Sendo este constituído como uma espécie de rede composta pela relação estabelecida entre imagem, observador e o espaço tempo no qual a observação é realizada.

É nesse sentido que a crítica aparece como condição dessa experiência. Ao configurar a experiência imagética como uma relação que pressupõe pelo menos três atores, é necessário realizar um trabalho de tradução entre media diferentes, sendo essa tradução materializada não somente pelo uso da língua materna em forma de fala ou escrita, mas também por meio da produção de outras imagens. A tradução aparece como a atividade crítica frente ao caráter simbólico da relação estabelecida. Não estou falando da atividade do profissional, mas de uma atitude frente às imagens. Quando uso o termo atitude retiro do contexto qualquer possibilidade de passividade, a atitude crítica é trabalho árduo, exige do observador afirmar uma postura diante do que vê. Essa afirmação de uma postura perante a imagem é materializada em algum media, geralmente esse medium é a língua falada, mas nada impede que seja uma obra de arte ou uma manifestação empírica. Exemplo disso é a famosa crítica realizada pelo crítico e curador Frederico Moraes para a exposição “Inserções em Circuitos Ideológicos”do artista Cildo Meireles realizada na década de 1970. Ele produziu sua crítica ao cobrir o chão da galeria com engradados de Coca-Cola de cabeça para baixo, exigindo daqueles que visitassem a exposição que caminhassem sobre eles. Esse exemplo permite vislumbrar de que modo o pensamento por imagens pode ser realizado para além da produção imagética considerada tradicional. Ele demonstra a falta de necessidade de hegemonia textual, trazendo à tona a falta de necessidade da associação entre pensamento e texto.

Portanto, dentro do cenário esboçado, a crítica só atinge seus objetivos através de um processo de educação do pensamento por imagens. Nossa hipótese, ainda a ser desenvolvida, é que somente pela crítica das imagens poderemos retomar o equilíbrio entre as características de lupa e biombo que marca a existência de qualquer medium.

REFERÊNCIAS:
FLUSSER, V. Filosofia da caixa preta. Rio de Janeiro: RelumeDumará, 2002
FLUSSER, V. Universo das imagens técnicas. São Paulo: Annablume, 2008
FLUSSER, V. Língua e Realidade. São Paulo: Annablume, 2004
MENDES, R. “Vilém Flusser: uma história dos diabos: um breve panorama sobre o período brasileiro de Flusser”. Disponível em: http:// www.fotoplus.com/flusser. Acessado em: 14/10/2006.
KRAUSE, G. B; MENDES, R. (orgs.). Vilém Flusser no Brasil. RJ: Relume-Dumará, 2000.






[1] É mestre e doutora em filosofia pela UFMG, com a dissertação Imagem e Linguagem na Pós-história de Vilém Flusser e a tese Três questões sobre a arte contemporânea. Fez mobilidade doutoral na Université Paris I - Pantheon-Sorbonne e um pós-doutorado no Braude Collegeof Engineering em Israel, em arte e tecnologia. Fez um segundo pós-doutorado como bolsista de PNPD do Programa de pós-graduação em Filosofia da UFOP. Atualmente é professora efetiva da Escola Guignard da Universidade do Estado de Minas Gerais, é membro do Programa de Pós-graduação em Artes da mesma instituição e é professora colaboradora do Mestrado em Filosofia da UFOP. É editora da revista Artefilosofia e trabalha como crítica e curadora independente.




[i] Esse modo de construção textual nos possibilita pensar uma outra característica do filósofo: trata-se do fato de Flusser ter sido um “outsider” no cenário brasileiro. Por essa opção “sem rigor acadêmico” e por seu estilo “literopensante”, como diziam os professores da USP na década de 60 (MENDES, 2006, p. 48-57), Vilém Flusser nunca ganhou a simpatia da academia filosófica brasileira. Logo, permaneceu um ilustre desconhecido dos leitores brasileiros durante o período em que aqui viveu, mesmo tendo se engajado na Bienal de São Paulo e na produção de críticas de vários artistas brasileiros. Isso não ocorreu por escolha do filósofo, visto que ele tentou, de diferentes maneiras, fazer parte das discussões e da academia. Inclusive, sua aparição na pesquisa universitária se deu, primeiramente, pela Comunicação, pelas Artes e pelas Letras, só posteriormente passou a ser lido e estudado na Filosofia. Esse viés não será aqui trabalhado, porém é importante ressaltá-lo, pois entendo que ele contribuiu de forma ímpar para o desenvolvimento do pensamento e da obra de Vilém Flusser da forma como ela é.
[ii](...) estas pílulas de assunto, são, na verdade, reflexemas formados ao sabor da argumentação, que têm poder de remeter a um universo mais amplo, que então se torna, por eles, penetrável (...). (...) (O reflexema) [p]osiciona o leitor diante do quadro que vai enfrentar ao longo do texto, prepara sua (in)disposição para a coisa dando, logo de cara, uma espécie de choque dramático de alto valor retórico e, sobretudo, alinha, no espírito do autor, de modo mais que mnemônico, evocativo, uma seqüência de argumentos já carregada de compromisso e engajamento (BORBA in KRAUSE & MENDES, 2000, p. 35).
[iii]“Urge uma filosofia da fotografia para que a práxis fotográfica seja conscientizada. A conscientização de tal práxis é necessária porque, sem ela, jamais captaremos as aberturas para a liberdade na vida do funcionário dos aparelhos. Em outros termos: a filosofia da fotografia é necessária porque é reflexão sobre as possibilidades de se viver livremente num mundo programado por aparelhos. Reflexão sobre o significado que o homem pode dar à vida, onde tudo é acaso estúpido, rumo à morte absurda. Assim vejo a tarefa da filosofia da fotografia: apontar o caminho da liberdade. Filosofia urgente por ser ela, talvez, a única revolução ainda possível”(FLUSSER, 2002, p.76)
[iv] No livro “A filosofia da caixa preta” Flusser estrutura de forma concisa o problema. É o primeiro livro sobre o assunto publicado pelo filósofo. Já o livro “O universo das imagens técnicas” funciona como uma espécie de continuação e complexificação dos problemas abordados no livro anterior.
[v]Traduzo sistematicamente. Escrevo tudo primeiro em alemão, que é a língua que mais pulsa no meu centro. Traduzo depois para o português, que é a língua que mais articula a realidade social na qual tenho me engajado. Depois traduzo para o inglês, que é a língua que mais articula a nossa situação histórica, e que dispõe de maior riqueza de repertório e formas. Finalmente traduzo para a língua na qual quero que o escrito seja publicado. Por exemplo, retraduzo para o alemão, ou tento traduzir para o francês, ou reescrevo em inglês. O que procuro é isto: penetrar as estruturas das línguas até um núcleo muito geral e despersonalizado, para poder, com tal núcleo pobre, articular a minha liberdade (MENDES, 2006, p.37).
[vi]Pegando as eleições presidenciais de 2018 como exemplo podemos visualizar a extensão desse problema, o qual já havia sido prenunciado por Vilém Flusser em uma palestra intitulada “Imagem Televisiva e Espaço Político à luz da Revolução Romena”.Palestra disponível no youtube: https://www.youtube.com/watch?v=lGK6IKpwdJY Acessada em: 18/11/2018
[vii]O mesmo vale para os outros media, visto que nenhum é redutível ao outro.
[viii]“Com efeito, existem basicamente apenas três tipos de línguas: as flexionais, as aglutinantes e as isolantes. Existem, portanto, apenas três tipos de mundo, dentro dos quais o intelecto humano vive. O mundo das línguas flexionais consiste de elementos (palavras) agrupados em situações (frases = pensamentos). Dentro da situação, o elemento conserva sua identidade e entra em relação com outros elementos. Há regras que governam as modificações dos elementos em situações diferentes, e há regras que governam a estrutura das situações. Os elementos e as regras variam de língua para língua, mas o caráter básico do mundo é o mesmo: elementos entram em relação entre si, modificando-se, mas conservando sua identidade. (...) Cada situação é construída de tal maneira que podemos distinguir nela um centro (o sujeito), um processo que o centro irradia (o predicado), e um horizonte em direção ao qual o processo é irradiado (o objeto)” (FLUSSER, 2004, p.61-62).
[ix]“Nosso intelecto dispõe de um único meio de expressão: a língua falada. Nossa língua escrita é secundária, é uma anotação da língua falada, há uma correspondênciaponto a ponto quase perfeita entre ambas. O esforço de tradução é praticamente nulo” (FLUSSER, 2004, p. 174).


FEIRA DE SANTANA-BA | nº 8 | vol. 1 | Ano 2018


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