Marcelo Vinicius Miranda Barros
Graduado em Psicologia pela UEFS e mestrando em Filosofia pela UFBA
Yves Marcel São Paulo
Graduado em Filosofia pela UEFS e doutorando em Filosofia pela UFBA
RESUMO
Reconhecido internacionalmente por ter desenvolvido a lógica paraconsistente, o filósofo Newton da Costa, talvez o mais destacado brasileiro no campo da filosofia e da lógica, fala nesta entrevista, cedida à Revista Sísifo, sobre sua carreira, sua visão a respeito do fazer filosófico, especialmente no Brasil, e como apreende o fazer de uma filosofia mais autoral.
Palavras-chave: Filosofia brasileira, Lógica, Newton da Costa.
Reconhecido internacionalmente por ter desenvolvido a lógica paraconsistente, o filósofo Newton da Costa, talvez o mais destacado brasileiro no campo da filosofia e da lógica, fala nesta entrevista, cedida à Revista Sísifo, sobre sua carreira, sua visão a respeito do fazer filosófico, especialmente no Brasil, e como apreende o fazer de uma filosofia mais autoral.
Palavras-chave: Filosofia brasileira, Lógica, Newton da Costa.
PARTE I – A IMPLICAÇÃO DA FORMAÇÃO NA CONSTRUÇÃO DE UMA FILOSOFIA
Revista Sísifo: Falando um pouco de sua formação acadêmica e sua implicação com a filosofia: graduado em Engenharia Civil e em Matemática. Além disso, possui doutorado em Matemática. Ou seja, formalmente, o senhor não obteve nenhuma formação em Filosofia. Contudo, hoje é reconhecido internacionalmente por ter desenvolvido a lógica paraconsistente. Assim, analisando sua trajetória, como podemos pensar a formação de um filósofo independente de uma formação tradicional pela universidade?
Newton da Costa: Na realidade, com um tio meu, que era Professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade Federal do Paraná, Milton Carneiro, eu tinha encontros quinzenais, durante uns oito anos, nos quais discutíamos filosofia. Li e debati com ele livros tais como o "Discours de la Methode", de Descartes, bem como obras de autores que vão desde Brunschevicg e Poincará, até obras de membros do Círculo de Viena. Mas, na verdade, sou uma pessoa que estudou filosofia por conta própria, interessando-me, sobretudo, por autores coma Russell, Quine, Carnap e Enriques, dentre outros.
A filosofia sempre foi um de meus grandes amores, sobretudo filosofia da ciência. Em todo caso, isto não resultou por eu ter frequentado um curso de filosofia padrão, porém por impulso pessoal. No entanto, minha formação acadêmica me ajudou deveras na escolha dos temas que sempre me encantaram: lógica, fundamentos da matemática e filosofia da ciência.
De fato, a lógica matemática nunca deixou de me deslumbrar. Dentre as áreas da lógica atual, onde realizei grande parte de meu trabalho de pesquisa, destaco as seguintes: lógica paraconsistente, teoria da quase-verdade, lógica de operadores que ligam variáveis para formar termos (variable biding term operators), lógica anotada, alfa-lógica, fundamentos lógicos da matemática e da física e aplicações da lógica a problemas filosóficos em geral, bem como a outros tópicos relacionados (por exemplo, fundamentos lógicos da ética e de correntes correlacionadas com as matemáticas intuicionista e ultraintuicionista).
Obviamente, minha formação não é a tradicional, como se poderia, talvez, esperar.
Revista Sísifo: Enxergamos que existe, hoje, uma inquietação crescente entre os membros da academia brasileira, que pensam filosofia, em realizar algo de original, de autoral, admitindo desta maneira que a academia brasileira se encontra mergulhada no esquema de estudos de “história da filosofia”. Existe uma direta implicação entre estudar os clássicos e ser capaz de desenvolver um pensamento autoral a partir deles, ou a persistência de um sistema nos leva a favorecer um tipo determinado de pesquisa (o trabalho de retorno aos clássicos ou transformação de novos autores em clássicos), desta forma não nos fornecendo a competência de pesquisar em outros sistemas de desenvolvimento de filosofia?
Newton da Costa: Na verdade, a filosofia, no Brasil, quase sempre se resumiu em exposições e análises do pensamento de autores estrangeiros, especialmente europeus. No entanto, esta situação começa a mudar. E isto ocorreu basicamente no tocante à lógica e à filosofia da ciência.
Observo que a lógica, no passado, era estreitamente ligada à filosofia. No presente não tem mais sentido semelhante associação. A lógica se desenvolveu tanto, que deve ser considerada como pertencendo à matemática ou tida como disciplina autônoma. Mas isso não quer dizer que não se deva ensinar alguns tópicos de lógica para o aprendiz de filósofo.
Cito, a seguir, algumas espécies de tópicos de lógica presentemente consideradas: lógica clássica, lógica intuicionista, lógica ultra-intuicionista de Esenin-Volpin, lógica de Griss, lógica polivalente, lógica algébrica (álgebras cilíndricas, álgebras monádicas, álgebras poliádicas...), teoria de conjuntos, teoria de categorias, topos, lógica plurivalente, lógica paraconsistente, lógica paracompleta, teorias de tipos, teorias de tipos transfinitos, lógica quântica (relacionada à física), lógica do default, lógicas não reflexivas, etc., etc. Ademais, várias são as diferentes áreas da lógica hodierna: teoria geral da computação via funções recursivas, máquinas de Turing, algoritmos de Markov, probabilidade lógica, linguagens de Post, etc., etc. A lógica atual encontrou, além de tudo isso, aplicações em engenharia de produção, economia, programação, computação, finanças, identificação de sinais, sistemas especialistas, em particular os paraconsistentes, Inteligência Artificial, bases de dados, medicina, teoria da decisão, controle inteligente, robótica, etc., etc. E continua sendo essencial para o filósofo, sobretudo para o filósofo da ciência.
Revista Sísifo: Não são poucos os desafios encontrados por autores ao redor do mundo quando encaram a proposta de desenvolver um pensamento filosófico autoral, e com o senhor não foi diferente. É preciso passar longo tempo respondendo a críticas feitas ao seu trabalho, o que pode levar a novos caminhos, mas que em parte é apenas mostrar sob outra face o que já foi estabelecido. Dado que em nosso modelo acadêmico admitimos muito poucos pensadores brasileiros em sua originalidade, preferindo antes sua faceta de comentadores estrangeiros (o que não necessariamente imiscui da possibilidade de produzir algo de original e autoral), como é buscar leitores e interlocutores para progredir no desenvolvimento de seu pensamento, dentro destes moldes?
Newton da Costa: Efetivamente, desenvolver idéias próprias é muito difícil, especialmente em um país como o Brasil. No entanto, logo no começo de meu trabalho, entrei em contacto com especialistas europeus e norte-americanos, o que facilitou minha tarefa de divulgação de minhas idéias. Assim, o que fazia na área da paraconsistência foi apreciado pelo conhecido lógico francês, Marcel Guillaume, e ele me ajudou a publicar várias notas sobre o tema nos Comptes Rendus da Academia de Ciências de Paris: assim, entrei em conexão com os centros mais importantes de lógica do mundo. Ademais, nos Estados Unidos e na Europa tive apoio de lógicos tais como Leon Henkin, Charles Pinter e S. Jaskowski. Também não posso olvidar o grande auxílio que me prestou o Professor Edison Farah, da Universidade de São Paulo, quem posteriormente patrocinou minha entrada nesta universidade (anteriormente, eu era professor na Universidade Federal do Paraná).
Como esta entrevista se refere principalmente a meus trabalhos em paraconsistência, não entro em detalhes sobre outros aspectos de minhas pesquisas.
Revista Sísifo: No artigo intitulado “O Servilismo tem que morrer: resposta a Vladimir Safatle”, publicado na Revista Ideação do departamento de filosofia da UEFS, os autores Murilo Seabra e Laura Tolton discutem a respeito de uma “colonização do pensamento filosófico brasileiro”. Nesse artigo há uma afirmação de Haddock-Lobo de que há um processo colonial pelo qual também passou (e ainda passa) nossa academia. O que o senhor pensa a respeito?
Newton da Costa: Creio que já começamos a nos libertar do processo ao qual Haddock-Lobo se referiu. Mas o que ainda em parte carecemos é de um pensamento filosófico original, amplo e geral. Em filosofia da ciência e em questões de lógica aplicada e de metodologia, já iniciamos a jornada. Obviamente, a história da filosofia é de enorme ajuda; porém, não devemos confundir filosofia com sua história, embora alguns filósofos incorram e defendam tal identificação.
PARTE II – PENSANDO A FILOSOFIA NO BRASIL
Revista Sísifo: Poderíamos falar sobre a existência de uma filosofia brasileira? Existem autores suficientes que se destacaram neste campo para que possamos falar de uma tradição, ou a marginalização destes pensadores poderia ser um caminho para enxergarmos a inexistência de uma tradição?
Newton da Costa: Não creio que exista, ainda, uma filosofia brasileira no sentido em que há uma francesa ou alemã. Todavia, não vejo nada que possa impedir que tal filosofia se realize.
Revista Sísifo: Se pudemos dizer esse termo, o que seria, para o senhor, uma autêntica filosofia brasileira?
Newton da Costa: Uma filosofia brasileira seria constituída por pensadores que tratassem de temas que recorressem a métodos que fossem mais ou menos característicos de nosso meio filosófico, expressando novas posições filosóficas.
Revista Sísifo: Existe diferença entre a filosofia feita no Brasil e aquela feita internacionalmente?
Newton da Costa: Normalmente, deixando-se de lado a lógica e os fundamentos da ciência, em nosso meio, na melhor das hipóteses, os filósofos quase sempre se evidenciam como excelente comentadores e expositores críticos.
Revista Sísifo: Seria o caso de apontar que a filosofia autoral feita no Brasil, caso ela exista, se encontra com mais força nas produções feitas por autores fora da academia ou dos departamentos de filosofia?
Newton da Costa: A filosofia, entre nós, limita-se, praticamente, ao que se produz nos Departamentos de Filosofia.
Revista Sísifo: Para o desenvolvimento de um pensamento autoral é preciso também o desenvolvimento de uma metodologia de pesquisa inovadora, mas o cenário filosófico brasileiro parece muito mais próximo do uso de ferramentas de pesquisa, ou do uso completo de metodologias já desenvolvidas por pensadores estrangeiros...
Newton da Costa: Atualmente, quase que tudo que se produz em filosofia, fora da lógica e da filosofia da ciência, restringe-se à análise crítica de produções dos grandes centros do exterior.
Revista Sísifo: O Brasil é um país singular, de formação cultural e social muito diferente de tantos outros, o que costuma caminhar nossas pesquisas mais originais para o campo da praticidade – sociológica e antropológica. Em seu caso não poderia ser diferente, mas muito mais voltado para campos práticos próximos às ciências exatas, como a informática e a física. Como poder utilizar este caráter da praticidade da filosofia e do ambiente que nos cerca, para poder construir – ou em seu caso, desenvolver – uma filosofia autoral?
Newton da Costa: Minha concepção de ciência e de outros assuntos sempre foi desenvolvida de modo independente de nosso meio. Tratei de desenvolver meus pontos de vista com independência de espírito e senso crítico. Dessa perspectiva resultou uma posição filosófica um tanto fora das fronteiras impostas por nossa circunstância.
Revista Sísifo: Haveria, neste sentido, certa dívida de seu processo de pesquisa com aquele desenvolvido pelos pragmatistas estadunidenses? Caso sim, podemos enxergar a influência de outras filosofias como positiva para a criação de pensamento autoral baseado em nossas inquietações mais singulares?
Newton da Costa: Tenho dívidas com muitos autores, tais como Russell, Carnap, Quine e Brunschvicg. No entanto, jamais poderia me considerar um discípulo de qualquer um deles. O que fizeram por mim foi, principalmente, me ajudarem a resolver meus problemas por meio de argumentação própria: aguçaram meu senso crítico e contribuíram para que eu pudesse formar um pensamento próprio.
PARTE III – FAZENDO UMA FILOSOFIA AUTORAL
Revista Sísifo: Sua filosofia não se restringe a dialogar com as ciências exatas, sendo também utilizada no que tange às pesquisas em Direito. Visto que a filosofia contemporânea se foca muito mais na abordagem de problemas específicos, há ainda espaço para o desenvolvimento de pesquisas que consigam abarcar tantas áreas distintas quanto a Informática e o Direito?
Newton da Costa: Na área do Direito, o que fiz, com ajuda de especialistas, foi mostrar que a lógica jurídica poderia ser formulada por meio de um sistema lógico paraconsistente. Entre outras questões, mostrei que a paraconsistência possui diversas características que tornam essa lógica uma versão natural da dimensão lógica do Direito. Somente o futuro poderá decidir se a atividade jurídica é essencialmente paraconsistente ou não. (Em Direito, pode haver conflito ou inconsistências de leis ou normas, que pode ser ou tem a possibilidade de ser paraconsistente de um prisma geral. Nas disciplinas normativas sempre podem ocorrer casos de oposição de normas, de leis incompatíveis, o que causa certos tipos de paraconsistência).
Revista Sísifo: Como o senhor enxerga esta caminhada da filosofia contemporânea em direção às especializações de área, desenvolvendo pensamentos autorais por meio de ensaios curtos, muito mais próximos às aplicações em áreas específicas?
Newton da Costa: Creio que constitui um caminho que acabará se tendo que seguir.
Revista Sísifo: O que vem a ser a lógica paraconsistente e o conceito de quase-verdade, desenvolvidos pelo senhor?
Newton da Costa: É muito difícil formular uma resposta curta para esta indagação. Porém, em linhas gerais, a lógica paraconsistente serve para se tratar de teorias ou disciplinas nas quais há oposições ou contradições, inclusive fora do domínio do Direito. Por exemplo, em física, um raio de luz pode ser concebido como o caminho de uma partícula luminosa ou como uma onda. Para a teoria ondulatória da luz, esta é uma onda. Para a teoria em que a luz é composta por feixes de partículas, a luz é composta por sistemas de partículas. Para uma situação deste tipo, a lógica paraconsistente se aplica como uma luva. Na mecânica quântica atual, a luz é onda e é partícula, parecendo natural se utilizar nos fundamentos dessa disciplina uma lógica paraconsistente, o que foi proposto por De Ronde e por mim.
A quase-verdade constitui uma generalização do conceito de verdade. A evolução das teorias físicas evidencia que essas teorias nunca são verdadeiras em sentido estrito, constatando-se que elas apenas são quase-verdadeiras em certos domínios, isto é, tudo se passa como se elas fossem estritamente verdadeiras em certos domínios, dentro de certos limites. Na teoria da quase-verdade, formula-se essa idéia de modo preciso, originando-se, assim, um novo capítulo da lógica. Pode-se afirmar que as ciências naturais, inclusive, é claro, a física, buscam teorias que podem, no máximo, ser quase-verdadeiras, muito embora aspirem à verdade...
Revista Sísifo: Poderia nos contar um pouco como foi produzir esse seu pensamento mais autoral, especialmente a lógica paraconsistente e o conceito de quase-verdade, e como isso repercutiu na academia brasileira em que frequentou? Houve resistências junto aos seus colegas acadêmicos?
Newton da Costa: Quanto à lógica paraconsistente, no início houve algumas reações negativas de centros da Améria Latina, por onde andei pronunciando palestras. No entanto, depois que publiquei várias notas nos Comptes Rendus da Academia de Ciências de Paris e artigos em outras revistas internacionais, as referidas reações desapareceram. Em muitos outros centros, as reações foram positivas.
Revista Sísifo: Quantos anos até o senhor ter a ideia de fazer as lógicas dos sistemas formais inconsistentes até a publicação, quantos anos o senhor trabalhou?
Newton da Costa: Cerca de cinco anos, quando começaram a aparecer meus trabalhos no exterior.
Revista Sísifo: O senhor ainda acha que a sua obra continua mais conhecida no exterior do que no Brasil? Se sim, a respeito ainda desse reconhecimento maior no exterior, qual é a razão disso?
Newton da Costa: Talvez minha obra seja mais conhecida no exterior. Porém, presentemente, não tenho certeza.
Revista Sísifo: Professor, em algum momento, o fato do senhor ser brasileiro o prejudicou de alguma maneira ou suscitou desconfiança na comunidade científica e também filosófica?
Newton da Costa: O fato de eu ser brasileiro, ao que me parece, nem me ajudou nem me prejudicou.
Revista Sísifo: O senhor recebeu alguma crítica a sua teoria que entendeu que não se tratava, na verdade, de uma crítica teórica, mas de uma disputa de poder?
Newton da Costa: Jamais isto aconteceu ou, pelo menos, se aconteceu, não tive conhecimento.
Revista Sísifo: Quais de seus aspectos são adotados para seu uso na Informática? E na Física? No Direito?
Newton da Costa: A lógica paraconsistente, sobretudo a lógica anotada, tem sido empregada em Informática; de modo geral, a paraconsistência encontrou aplicações em Física, Direito, Medicina, Engenharia, etc.
Revista Sísifo: Em relação a sua viagem à Alemanha, na qual buscava aplicar a sua lógica a um sistema como o de Hegel, o senhor era muito jovem, correto? Como, então, o senhor se colocou a caminho de questões teórico-filosóficas na juventude?
Newton da Costa: Quando muito jovem, efetivamente, procurei aplicar a lógica paraconsistente na formalização da Dialética, recebendo apoio (por exemplo, de filósofos da antiga União Soviética) e críticas (de alguns lógicos da América do Norte). Tanto os aplausos como as críticas sempre me ajudaram a prosseguir em meus estudos e em minhas publicações.
Revista Sísifo: O senhor gostaria de fazer alguma declaração para fechar a entrevista?
Newton da Costa: É preciso que se tenha em mente que a lógica paraconsistente não é necessariamente uma rival da lógica clássica. Há interpretações em que isso ocorre, porém há outras em que a lógica paraconsistente é, tão somente, complementar da clássica. Tal acontece quando, por exemplo, a negação de um sistema lógico paraconsistente é interpretada como uma negação fraca. A utilização de dada lógica em um contexto depende das peculiaridades do mesmo. No entanto, hodiernamente, há construtos teóricos nos quais a lógica paraconsistente parece mostrar-se essencial, como, por exemplo, em ética, metafísica, física e psicologia. Algo análogo se pode asseverar da quase-verdade. Minha presente atitude em conexão com a problemática acima pode ser resumida em uma frase atribuída a Bertrand Russell: "I would never die for my beliefs, since I could be wrong".
FEIRA DE SANTANA-BA | nº 8 | vol. 1 | Ano 2018
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