Sinelle Duarte
Mestra em Linguística e especialista em Língua Inglesa. Atualmente é professora na Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG
Julio César Cunha Martins Siqueira
Graduado em Letras pela Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG
Thaisa Aparecida Duarte Silva
Graduada em Letras pela Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG
Mestra em Linguística e especialista em Língua Inglesa. Atualmente é professora na Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG
Julio César Cunha Martins Siqueira
Graduado em Letras pela Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG
Thaisa Aparecida Duarte Silva
Graduada em Letras pela Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG
RESUMO
O presente artigo pretende analisar a construção da identidade do sujeito pós-moderno e suas crises. Para tal, utilizaremos duas obras do escritor Daniel Galera, um dos expoentes da literatura contemporânea brasileira. A partir dos romances Mãos de Cavalo e Meia-noite e vinte elucidaremos, neste estudo, a construção da identidade das personagens, procurando observar a influência de elementos presentes na vida cotidiana do mundo contemporâneo que influenciam diretamente o indivíduo na construção de sua identidade. Para isso, utilizaremos teóricos, como: Zygmunt Bauman, Stuart Hall, Kathryn Woodward e Sheila da Silva Monte.
Palavras-chave: Identidade; Pós-modernidade; Sujeito; Literatura.
Introdução
O presente artigo tem como objetivo retratar a construção da identidade do indivíduo pós-moderno e suas crises na formação dessa identidade. A partir da análise de obras contemporâneas da literatura, será possível construir a formação da imagem desse sujeito e sua identidade. As obras elencadas como aporte teórico dessa questão são de autoria do escritor paulista Daniel Galera, Mãos de Cavalo (2006) e Meia-noite e vinte (2016).
Primeiramente iremos discorrer sobre a construção da identidade do sujeito na pós-modernidade. Somado à dificuldade de se definir o conceito de pós-moderno, abordaremos como a globalização, o excesso de alternativas e informações influenciam na formação desse homem moderno, recorrendo, para isso, a referenciais teóricos que explicitam esse impasse possibilitando, assim, definir tal conceito. Por conseguinte, analisaremos o que leva o indivíduo contemporâneo a questionar sua identidade, ou seja, suas urgências, dúvidas e carências, característica essa que denota uma insegurança desse sujeito.
Na sequência, discutiremos como se dá a construção da identidade do sujeito moderno e também seus questionamentos. A fim de analisarmos como essas questões são apresentadas na literatura contemporânea, lançaremos mão das duas obras literárias citadas anteriormente.
1- Daniel Galera, Mãos de cavalo e Meia-noite e vinte
O escritor, tradutor e ex-colunista do famigerado CardosOnline (fanzine[1] eletrônico brasileiro que circulou na rede entre 1998 – 2001), Daniel Galera, nasceu em 1979, em São Paulo, e viveu grande parte da sua vida em Porto Alegre. É autor de livros como Dentes Guardados (2001), Até o dia em que o cão morreu (2003), Mãos de Cavalo (2006), Cordilheira (2008), Barba Ensopada de Sangue (2012) e Meia-Noite e Vinte (2016). É de sua autoria também o álbum em quadrinhos Cachalote (2010), juntamente com o desenhista Rafael Coutinho.
Em sua obra Mãos de Cavalo (2006), Daniel Galera constrói uma trama em que o protagonista é retratado durante três fases de sua vida: um garoto de dez anos, um adolescente aos quinze anos e, posteriormente, um cirurgião plástico entediado com o casamento. Trata-se de uma história de um homem em busca de si mesmo, que se encontra dividido entre os traumas de um passado e a possibilidade de, num futuro, conviver com uma memória em que seu heroísmo e covardia se confundem.
Já em sua outra obra, Meia-Noite e Vinte (2016), ambientada em Porto Alegre em meio a uma onda de calor devastadora e a uma greve de ônibus que deixa a cidade paralisada, três amigos se reencontram. No final dos anos 1990 eles haviam incendiado a internet com um fanzine digital de sucesso por todo território nacional, o Orangotango. Após quase duas décadas, a morte do quarto integrante do grupo acaba aproximando Aurora, uma bióloga que vive suas turbulências na universidade, Antero, um artista de vanguarda na juventude e que ao longo do tempo se converteu num publicitário, e Emiliano, jornalista às voltas com a extinção de sua juventude e de seu mercado de trabalho.
A partir desses conflitos apresentados pelas personagens é que Galera explora essas vidas acuadas, cheias de promessas que não se cumpriram e anseios apocalípticos. É nas vozes de Aurora, Antero e Emiliano que o autor oferece um retrato de vidas imobilizadas na velocidade e isoladas no excesso de um mundo que se dissolve diante de seus olhos.
2- A construção da identidade do sujeito na pós-modernidade
Antes de tratarmos da identidade do sujeito, faz-se necessário entendermos o conceito de pós-modernidade a fim de que assim possamos associá-la à construção da identidade do indivíduo. Recorremos assim à Laclau (1992) que explicita essa concepção:
O sentido de pós-moderno, como um conjunto de referências pré-teóricas que estabelecem certas “semelhanças familiares” entre suas diversas manifestações, é dado pelo processo de erosão e desintegração de categorias tais como “fundação”, “novo”, “identidade”, “vanguarda” etc. O que a “situação de pós-modernidade” contesta não é tanto a diferenciação e a escolha de identidades sociais e culturais, mas sim o status e a lógica de sua construção. Conclui-se então que estabelecer os limites da modernidade é algo muito mais complexo do que localizar fronteiras. A pós-modernidade não pode ser uma simples rejeição da modernidade (...) (LACLAU, 1992, p.129).
A partir dos dizeres de Laclau (1992) podemos perceber a complexidade que a definição do conceito de pós-modernidade envolve. O teórico argentino expressa a ideia de que encontrar os limites da modernidade é uma tarefa árdua e que a definição de pós-moderno não se resume em desprezar o que é moderno. Devemos levar em consideração as transformações ao longo dos séculos e evitar a criação de fronteiras entre a modernidade e a pós-modernidade.
Estando a identidade de um sujeito também relacionada ao conceito de ideologia, Eagleton (1997) assume a mesma complexidade evidenciada na definição da pós-modernidade para a acepção da ideologia:
Ninguém propôs ainda uma definição única e adequada de ideologia (...) A palavra “ideologia” é, por assim dizer, um texto, tecido com uma trama inteira de diferentes fios conceituais; é traçado por divergentes histórias, e mais importante, provavelmente, do que forçar essas linhagens a reunir-se em alguma Grande Teoria Global é determinar o que há de valioso em cada uma delas e o que pode ser descartado. (EAGLETON, 1997, p.15)
Eagleton (1997) elucida a construção do indivíduo ao longo do tempo. Tal construção do indivíduo retrata o sujeito como um ser polissêmico, tomado pelas mais diversas influências refletindo-as em sociedade. Sendo assim, ao analisarmos o mundo contemporâneo podemos notar que as preocupações do homem pós-moderno ultrapassaram os limites da simples questão da identidade nacional. É inegável que na sociedade na qual estamos inseridos, assistimos a inúmeras transformações, especialmente no que diz respeito às relações sociais, exigindo assim mudanças no comportamento do indivíduo.
De acordo com Bauman (2005), a questão de se identificar tornou-se algo essencial em nossas vidas. As pessoas se encontram cada vez mais necessitadas de um “nós” que possa auxiliá-las. As nossas práticas e relações sociais modificaram-se e os novos modelos dessas relações começam a ter interferência no nosso modo de enxergar e tentar compreender o mundo. Dessa forma, as identidades, consideradas estáveis e seguras, começam a passar por um processo de fragmentação.
Como afirma Hall (2014), com a chegada da modernidade as antigas identidades que há tempos deram estabilidade a sociedade encontram-se em colapso. Dessa forma, vemos surgir novas identidades, fazendo com que o indivíduo pós-moderno se encontre em processo de fragmentação, passando a ser visto como um sujeito polissêmico e não mais unificado.
O indivíduo que antes se encontrava consolidado passa a ter contato com um mundo globalizado, no qual as informações e alternativas para as mais diversas questões estão presentes em todos os lugares. Dessa maneira, suas urgências, dúvidas e carências acabam gerando uma insegurança, resultando numa crise de identidade.
Como nos mostra Monte (2012) a TV pode ser apontada como um dos fatores que ajudam na construção dessa crise:
Desde que a TV surgiu, foi sendo incorporada ao convívio familiar de forma crescente. Com as propagandas, as novelas (quase um retrato da vida real) e, atualmente, com os reality shows (que mais escondem que mostram), ela nos expele identidades estereotipadas, rotuladas pela sociedade capitalista. Jogos desleais, os quais somos compulsoriamente convidados a aceitar e que desencadeiam tensões que podem modificar (e muito) positiva ou negativamente, as nossas identidades. (MONTE, 2012, p.164)
Ainda no que diz respeito à questão da identidade com a tecnologia, podemos ver a relação do indivíduo com as novas tecnologias, com as redes sociais e a internet em geral. Sobre essa questão veremos o que Bauman (2005) diz:
Hoje em dia, nada nos faz falar de modo mais solene ou prazeroso do que as “redes” de “conexão” ou “relacionamentos”, só porque a “coisa concreta” – as redes firmemente entretecidas, as conexões firmes e seguras, os relacionamentos plenamente maduros – praticamente caiu por terra. . (BAUMAN, 2005, p.100)
Com essa questão das “redes de conexões”, podemos observar que também as relações amorosas sofrem um impacto e se tornam frágeis no mundo pós-moderno. A esse respeito Monte (2012) declara que:
O indivíduo, ao mesmo tempo em que se relaciona, não mantém compromisso, uma vez que prefere distanciar-se do outro ou simplesmente manter as portas abertas para algo maior do que aquela relação. A partir de tal ponto começamos a observar que, para esse sujeito, não é interessante ficar à mercê do outro. (MONTE, 2012, p.165)
À vista disso, vemos que no mundo globalizado o sujeito se encontra fragmentado. Encontramos uma sociedade oscilando o tempo todo, incapaz de manter uma postura e manter uma identidade fixa. O sujeito pós-moderno entra em conflito consigo mesmo, muito por conta das suas múltiplas identidades.
Sobre essa multiplicidade de identidades, Woodward (2000) advoga que “frente a complexidade da vida moderna faz-se necessário que o sujeito assuma diferentes identidades e isso pode gerar alguns conflitos, porque ao assumirmos identidades diversas corremos o risco das exigências de uma interferirem nas da outra”. Sendo assim, vemos que o tempo todo somos obrigados a lidar com várias identidades, na contemporaneidade não é mais possível conviver com uma identidade estável, pois estamos sempre em constante transformação, conforme a necessidade individual de cada um no meio social.
3- A construção da identidade do sujeito em Mãos de cavalo e Meia-noite e vinte
Nessa seção iremos observar e analisar a questão da construção da identidade do indivíduo nas duas obras de Daniel Galera Mãos de Cavalo (2006) e Meia-noite e vinte (2016).
No romance Mãos de Cavalo (2006), o autor intercala duas histórias. A primeira dá ênfase na trajetória de um garoto de dez anos que já inicia as primeiras descobertas em relação à sua identidade. Ao nos referirmos à segunda parte da obra, o foco recai no mesmo garoto de dez anos, porém agora aquele menino é um jovem cirurgião plástico adulto com uma carreira bem-sucedida. A partir de uma longa viagem que vai fazer com um amigo esse jovem cirurgião plástico começa a colocar em dúvida a credibilidade de suas escolhas. Esses acontecimentos vão aos poucos se conectando no tempo e no espaço dramático, e compõem uma delicada trama sobre memória, perda e culpa na construção da identidade do indivíduo.
A partir do que foi dito, podemos notar que o romance Mãos de Cavalo (2006) do autor Daniel Galera, dialoga com o romance de formação como nos mostra Lehnen (2013):
Seguindo os moldes de romances de formação canônicos, como Wilhelm Meister Lehrjahre (1795-96), de Johann Wolfgang von Goethe, os personagens de Galera são sujeitos que refletem o contexto atual, de modo que seus dilemas de formação também ecoam problemáticas contemporâneas. Estes temas aparecem combinados com os tropos tradicionais do romance de formação (como o trauma, a solidão, a crise existencial.) (...). (LEHNEN, 2013, p. 169)
Um dos trechos da obra que temos uma “marca” dessa construção da personalidade e identidade do personagem se dá após o adolescente Hermano escapar covardemente de uma briga com outro adolescente apelidado de Bonobo. Hermano foge da briga e vai até o banheiro de sua casa para pintar o rosto com a intenção de imitar a briga que não ocorreu:
O herói sangrento era agora ele mesmo, estampado na superfície salpicada de pasta de dente do espelho. [...] Cada vez que levava um golpe no rosto, simulava o impacto jogando a cabeça com força para o lado. [...] As gotas rubras caíam na pia e evocavam o sangue verdadeiro que tinha manchado aquela mesma porcelana branca em outras ocasiões. (GALERA, 2006, p.45)
Como nos mostra Lehnen (2013), o improviso na maquiagem do menino demonstra que ele evitou as feridas de uma briga, mas que também as deseja. Sendo transformada assim numa pintura de guerra com o intuito de colocar para fora a própria covardia. A atitude de pintar o rosto aproxima o menino dos heróis dos cinemas, gibis, vídeo games e graphic novels, mas também o afasta.
A respeito da influência dos meios de comunicação no processo de formação dos personagens do livro, Lehnen (2013) relata que “A cultura de massa é um subtexto importante ao longo de todo romance. Além de fornecer imagens e padrões de comportamento aos pré-adolescentes e adolescentes da Esplanada, ela influencia as relações sociais entre os jovens que vivem no bairro”. (LEHNEN, 2013, p.178)
Em um outro trecho do livro, a irmã do personagem Bonobo, chamada Naiara, compara o jovem Hermano a um herói de uma série de TV. Herói esse que ela tem um desejo sexual, demonstrando mais uma vez a influência dos meios de comunicação na formação dos personagens do livro. A jovem descreve as atitudes e características do herói comparando-as com as de Hermano:
Quando eu era pequenininha eu adorava assistir o Spectreman. Era fascinada. Era alguma coisa com o rosto dele. Aquela cara dura e séria, que era feita de metal, acho. Aquelas lutas com os monstros, ele apanhava, e no final soltava uns raios e vencia, mas a cara era sempre a mesma. Eu ficava excitada. Como ele podia ser tão impassível? Não tinha certeza se aquele rosto era mesmo o rosto do Spectreman ou se por trás da máscara tinha outro rosto. Se o rosto dele não se mexia ele não devia ter emoções, mas eu sempre sabia quando o Spectreman tava triste, ou com raiva, ou sentindo dor. Era como se eu soubesse. Eu tinha uma ligação especial com ele. (GALERA, 2006, p.145).
Tomando como referência outra obra de Daniel Galera, Meia-noite e vinte (2016), entramos em contato com a rotina de jovens dos anos 1990, que não são mais tão jovens assim, mas ainda se encontram presos, de alguma forma, a uma transição imperfeita e incompleta de modelos herdados e rejeitados de pais e avós. No entanto, eles permanecem fiéis aos anseios que os tem levado a andar em círculos e voltar a pontos de origem sem saber exatamente para onde vão, por que seguem e de onde saíram.
É nesse caminho destituído de referenciais que esses jovens esbarram em questões comuns do mundo contemporâneo como assédio, crises de pânico e ansiedade, aborto, empregos precários, mercantilização de desejos e afetos, objetificação, sexualidade, violência urbana, casamento, fugacidade das relações, frustração, competição predatória no ambiente universitário, mapeamento genético, mobilidade, superexposição, superinformação, superexcitação, superaquecimento.
Para exemplificar tal questão, destacamos um excerto do livro no qual, em um dado momento o personagem Emiliano relata a experiência que teve com os amigos quando estes “incendiaram” a internet com o fanzine Orangotango:
Fora por meio de Antero que, muitos anos antes, eu havia tomado conhecimento do Orangotango. Fui parar em seu site pessoal porque ele, ainda pirralho, tinha traduzido e publicado alguns trechos de Hakim Bey, numa época em que sua obra ainda não estava disponível em português no Brasil, embora conceitos como o de “zona autônoma temporária[2]” já fossem moda entre jovens jornalistas e estudantes de comunicação (...). Não durou nem dois anos, mas marcou nossas vidas. Como toda zona autônoma temporária, o Orangotango foi um soluço, um projeto fadado ao fracasso, mas que infundiu uma energia tremenda na existência de todos os envolvidos. Fazia muito tempo que eu não encontrava aquele tipo de energia no que fazia e nas pessoas com quem trabalhava. (GALERA, 2016, p.44)
Emiliano deixa transparecer, a partir do exposto acima, uma ideia importante já mencionada aqui por Baumann (2005) que é a questão de um “nós”, de estarmos sempre precisando do auxílio das pessoas e de nos construirmos perante a relação com o outro. Quando o personagem menciona sobre a “energia tremenda na existência de todos os envolvidos” e acrescenta “fazia muito tempo que eu não encontrava aquele tipo de energia no que fazia e nas pessoas com quem trabalhava”, este deixa evidente a união de todas aquelas pessoas que trabalhavam no Orangotango, fazendo com que todos se sentissem mais fortes.
Porém, mais tarde, a partir da dissolução desse fanzine, essas mesmas pessoas passaram a se sentir fragmentadas. Essa fragmentação pode ser refletida no diálogo entre os personagens sobre um bar que costumavam frequentar na época do Orangotango
O olhar de Antero brilhou de repente.
“Sabe onde a gente podia ir? No Sabor Um. Pelos velhos tempos. ”
Era um boteco na esquina da Luiz Afonso com a José do Patrocínio, famoso pelo pastel e pela cerveja barata, que frequentávamos na época do Orangotango.
“Nem sei se esse lugar ainda existe, Antero. ”
“Existe. Está decadente, sempre vazio. Mas acho que vai ser apropriado. ” (GALERA, 2016, p. 46)
É possível perceber a tentativa dos personagens em “reconstruir” algo que ficou lá atrás com a dissolução do Orangotango. Observamos isso ao ver o brilho nos olhos de Antero e vemos a impossibilidade dessa reconstrução quando Emiliano diz não saber se “o lugar ainda existe” e também quando Antero diz que “Existe. Está decadente, sempre vazio. Mas acho que vai ser apropriado. ” Realmente é um lugar apropriado e reflete de maneira também apropriada o que os personagens se tornaram: indivíduos perdidos, sem rumo, na procura da sua própria identidade.
Ao abordarmos as questões que permeiam o mundo contemporâneo e o reflexo destas na construção do indivíduo, podemos observar a relação dos personagens do romance com o sexo através do que acontece entre Antero e Aurora:
(...) . Ele não tirou a aliança quando transou comigo após o enterro de Andrei, porque estava bêbado demais ou não se importava. O anel de ouro reluzia em seu dedo enquanto ele apertava o nariz para estancar a hemorragia, o rosto crivado com a expressão maníaca de uma criança que comeu açúcar em excesso. O ar condicionado resfriava minhas costas empapadas de sangue e suor e eu só pensava em dizer para ele não parar, para me foder mais e continuar sangrando, que eu gostava do sangue, mas que tipo de vadia louca ele ia pensar que eu era, de modo que fui me lavar. E depois eu quis mais. Eu queria tanto. Fazia tempo que eu não era bem fodida. (...), só precisava gozar com um pau para variar. (GALERA, 2016, p.121).
Nesse excerto do romance observamos a instabilidade das relações estabelecidas entre os personagens, visto que Aurora só queria “gozar com um pau dentro para variar”. A respeito disso, Bauman (2004) diz que “as relações se desenvolvem baseadas em algo que já se tem e não com aquilo que pensam em ter. Não se arrisca a ter algo além, o que vale é a simples satisfação do prazer e nada mais”. Ainda pode-se observar que nem mesmo o casamento, algo aparentemente sólido, resiste ao desejo que naquele momento é algo simplesmente carnal. Aliás, nesse caso, o casamento de Antero aparenta nada significar, tendo em vista que o mesmo não se preocupa em retirar nem a aliança.
Aurora, em dado momento, tem um diálogo fictício com o seu amigo que morreu assassinado, nesse diálogo ela reflete sobre a sorte de Sísifo[3] ter vivido na antiguidade:
Se vivesse agora, saberia demais a respeito da pedra, da montanha e de si mesmo para se entregar eternamente ao absurdo de sua tarefa. [...] Teria a ciência e a tecnologia. Teria a história dos últimos dois mil anos e a nuvem de informação. Teria a superpopulação, o multiverso dos Sísifos. [...] O que ele pensaria se seu heroísmo absurdo aparecesse na forma de zonas coloridas em imagens de ressonância magnética do cérebro, feitas em laboratórios de neurociência? O que restaria de sua rebeldia em meio a considerações sobre gasto calórico ne explicações evolucionistas para o juízo moral do ser humano? Nem nos deuses ele poderia seguir acreditando. Não restaria nem a obediência. Restaria somente a prisão, a mesmice da tarefa. (GALERA, 2016, p.145).
Dessa forma, podemos dizer que a grande questão do mundo pós-moderno seja uma atualização e desatualização contínua em um curto espaço de tempo, o excesso de informações, a quantidade de alternativas e possibilidades de escolhas, a cegueira branca da comunicação em rede. A nossa incapacidade de acompanhar a fluidez das mudanças deixou como resquício uma multidão que se diferencia apenas por camadas de desatualização, uns mais antenados, outros nem tanto, mas incapazes de responder questões como o que fomos, o que somos, o que seremos, de onde viemos e para onde estamos indo.
Conclusão
Desse modo, podemos destacar a influência considerável de elementos muito presentes no mundo atual, como séries de TV, redes sociais, excesso de informações, fluidez das transformações tecnológicas como alguns dos responsáveis por influenciar na personalidade e na construção da identidade do homem pós-moderno.
Os romances abordados demonstram também como o excesso de alternativas e também o excesso de informações possuem uma forte influência na vida do indivíduo contemporâneo. Temos como exemplo a atualização e desatualização fluida do universo tecnológico que nos obriga a nos adaptarmos de maneira extremamente rápida e sem muito tempo para que possamos nos acostumar e nos habituar com essas mudanças.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Z. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
________, Z. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. 1. Ed. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.
EAGLETON, T. Ideologia: uma introdução. Trad. Luís Carlos Borges; Silvana Vieira. São Paulo: Boitempo Editorial, 1997.
GALERA, Daniel. “Meia-noite e vinte e o ocaso de uma geração”. Disponível em:https://www.cartacapital.com.br/cultura/meia-noite-e-vinte-e-ocaso-de-uma-geracao Acesso em: 20 de Maio de 2018.
______. Meia-Noite e Vinte. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
______. Mãos de Cavalo. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 10. ed. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guaraciara Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
LACLAU, E. A política e os limites da modernidade. Trad. Carlos A. de C. Moreno. In: Heloísa Buarque de Hollanda. (Org.). Pós-modernismo e política. 2ed.Rio de Janeiro: Rocco, 1992, v., p. 127-149.
MONTE, S.S. . A identidade do sujeito na pós-modernidade: algumas reflexões. Revista Fórum Identidades, v. 12, p. 162-167, 2012
WOODWARD, K. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. Petrópolis: Vozes, 2000.
LEHNEN, L. Os sofrimentos dos jovens protagonistas em três romances de Daniel Galera. In: Stefania Chiarelli; Giovanna Dealtry; Paloma Vidal. (Org.). O futuro pelo retrovisor. 1ed.Rio de Janeiro: Rocco, 2013, v., p. 167-184.
[1] Publicação não profissional e não oficial, produzido por entusiastas de uma cultura particular para o prazer de outros que compartilham seu interesse. O termo foi cunhado em 1940 e popularizado por fãs de ficção científica e posteriormente adotado.
[2] A ideia sobre uma Zona Autônoma Temporária é de como um grupo, um bando, uma coagulação voluntária de pessoas afins não-hierarquizadas podem maximizar a liberdade por eles mesmos numa sociedade atual.
[3]O mito de Sísifo é um ensaio filosófico escrito por Albert Camus em 1941. No ensaio, Camus introduz a sua filosofia do absurdo: o homem em busca de sentido, unidade e clareza no rosto de um mundo ininteligível, desprovido de Deus e eternidade.
FEIRA DE SANTANA-BA | nº 8 | vol. 1 | Ano 2018
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