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Melancolia, catástrofe, ruína: considerações sobre história e vida em Walter Benjamin


Diogo Bogéa*

Resumo: Em sua análise sobre o drama barroco alemão, Walter Benjamin afirma que o personagem central da trama, “o soberano”, representa a História, mas também representa paradigmaticamente o melancólico. Com isso, a melancolia, característica que diz respeito à vida pessoal, é de certa forma atribuída à própria História. A partir dessa indicação, tentaremos investigar as possíveis relações entre vida pessoal e História na obra de Benjamin, o que nos levará a uma crítica à compreensão tradicional de História como progressão linear, bem como à desconstrução da compreensão tradicional de “vida pessoal” como perdurar do sujeito íntegro, fixo, uno, racional e consciente. 

Palavras-chave: melancolia; história; subjetividade



A tristeza pode matar. No entanto, se a comoção que a causou não é mortal, ela então se dilui nas veias e se funde nas células, modificando pouco a pouco a percepção sensível e psicológica da realidade. Com o tempo, a tristeza se transforma em melancolia, essa consciência à distância de tudo, alérgica à vida laboriosa e agitada, mas resolutamente observadora.

Frédéric Schiffter


“O soberano representa a história. Toma em mãos os acontecimentos históricos como um cetro” (p. 59), afirma Benjamin, tão logo inicia sua análise propriamente dita do drama barroco alemão. E, mais ou menos cem páginas depois, complementará sua definição para a figura do soberano da seguinte forma: “O príncipe é o paradigma do melancólico. Nada ilustra melhor a fragilidade da criatura do que o fato de também ele estar sujeito a ela” (BENJAMIN, 2011, p. 147). A melancolia, um estado de espírito tão pessoal, habitualmente compreendido como algo especificamente restrito ao âmbito da vida humana, quando aplicado desta maneira à história, ou à figura que representa à história, dá a pensar que tipo de relação se pode estabelecer entre história e vida a partir deste elemento comum: a melancolia. A busca destas possíveis relações será também necessariamente uma crítica à compreensão tradicional de história como progressão linear, bem como à compreensão tradicional de “vida pessoal” como perdurar do sujeito íntegro, fixo, uno, racional e consciente. Seguiremos neste texto, portanto, a bela interpretação de Katia Muricy, quando afirma que, na obra de Benjamin, “a vida pessoal e a história entrelaçam-se como memória de cacos, de ruínas” (MURICY, 1998, p. 12)
            Em Origem do drama trágico alemão, Benjamin não simplesmente analisa um determinado gênero estético, mas constrói uma ideia, a própria ideia de drama trágico alemão. A partir da imersão no conteúdo material, neste caso, a imersão no estudo das peças singulares, Benjamin, enquanto crítico-filósofo, não apenas extrai de exemplos particulares uma síntese universal representada por um conceito genérico, mas constrói uma ideia que, tal qual uma constelação, mantém vivo o brilho dos fenômenos singulares que figuram tensionados nas extremidades.
         A noção de constelação procura dar conta da emergência da ideia no espaço da verdade, entendida como ordenação dos elementos materiais dos fenômenos redimidos por meio dos conceitos, sem apelo às categorias de sujeito e às correlatas noções de intenção e de método. A mediação do conceito é fundamental na construção da constelação filosófica também porque a verdade não pode entrar em contato imediato com o mundo das aparências. E só depois de redimido, isto é, de ter dissolvido seus elementos materiais no conceito, que o fenômeno ganha acesso à ordenação filosófica na constelação – a verdade é uma construção. (...)
         A ideia mantém a dignidade dos fenômenos, isto é, se ela, como o conceito, efetua uma redução da multiplicidade empírica, ao contrário deste, não anula o caráter não-idêntico dos fenômenos por uma síntese do semelhante. A ideia não é uma identidade dos extremos, mas sua convivência. O universal, na ideia, não é fruto da identidade, mas da manutenção dos extremos. (MURICY, 1998, pp. 143-144)

Este trabalho crítico-filosófico responde tanto a um apelo do passado em direção ao futuro-presente, quanto a uma exigência urgente do presente, traçando vias de conexão entre ambas as épocas, através da qual elas se esclarecem mutuamente de alguma maneira.
A obra de Benjamin é a reconstrução de um mundo, de uma época, a retomada dos fragmentos, das ruínas desse passado, em montagem que quer tornar visível, isto é, mostrar, de forma imediata, em uma imagem, o conhecimento capaz de tornar este passado inteligível e, simultaneamente, elucidar o presente (MURICY, 1998, pp. 13, 14)

Uma das vias de conexão, presente na obra em questão é uma determinada concepção de história.
            Benjamin se opõe à concepção de História do hegelianismo, do marxismo vulgar, do positivismo e do liberalismo, todos muito em voga na Alemanha de sua época. O que todas estas correntes têm em comum é uma compreensão linear progressiva da história. Todas concebem a história – ou melhor, no seu caso, História com letra maiúscula – como história universal progressiva, como processo evolutivo rumo a uma meta superior pretensamente alcançável. No caso do hegelianismo, a história aparece como o conturbado percurso do Espírito Absoluto num processo dialético que se resolve em sínteses progressivas até que o Espírito Absoluto se reencontre consigo mesmo, realizando-se plenamente enquanto liberdade (HEGEL, 2001). No caso do marxismo vulgar, a História é o processo dialético de lutas entre classes oprimidas e opressoras até que o proletariado, tomando consciência do seu papel histórico, cumpra seu destino e ponha em marcha a revolução comunista que virá a acabar, por fim, com as classes (MARX; ENGELS, 2005). Para o positivismo, a História é processo progressivo de superação da visão de mundo teológica pela metafísica e da metafísica pela científica, numa evolução que lembra a passagem da infância para a maturidade(COMTE, 1978). E para o liberalismo, o progresso histórico se encarregará, através de uma economia capaz de se auto-regular, de produzir uma sociedade melhor e mais igualitária (CONSTANT, s/d). São todas concepções da história como marcha progressiva e necessária que caminha confiante em direção a um fim superior.
É esta concepção de história que Benjamin criticará duramente em suas teses sobre o conceito de história. A tese 13 diz:
A ideia de um progresso da humanidade na história é inseparável da ideia de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo. A crítica da ideia do progresso tem como pressuposto a crítica da ideia dessa marcha. A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’” (BENJAMIN, 1987, p. 229).

Diante do “perigo” (BENJAMIN, 1987, p. 224) presente da visão linear progressiva de história e de suas consequências políticas nefastas, Benjamin recorre ao “índice misterioso” do passado, encarnando a “frágil força messiânica para a qual o passado dirige um apelo” (BENJAMIN, 1987, p. 223) e estabelece uma conexão entre século XX e século XVII, construindo com o “drama trágico alemão” uma nova concepção de história.
O soberano, que, no drama trágico “representa a história” é aquele a quem cabe o poder de decisão quanto ao estado de exceção. “Aquele que exerce o poder está predestinado de antemão a ser o detentor de um poder ditatorial em situações de exceção provocadas por guerras, revoltas ou outras catástrofes” (BENJAMIN, 2011, p. 60). Esta não é uma atribuição tranquila: afinal, o soberano é aquele a quem cabe decidir romper com a ordem da qual ele mesmo é o representante máximo para, agindo contra ela para além dela, restaurá-la. Cabe a ele decidir contra si mesmo em favor de si mesmo, num único gesto em que assume seu fracasso, assume sua impotência e amplia desmedidamente – para além da medida habitual que ele mesmo representa – seu poder. Não é de espantar que ele se mostre constantemente “incapaz de tomar uma decisão” (BENJAMIN, 2011, p. 66). Mesmo nas questões menores, o príncipe vacila, oscila, duvida, “o que determina seu agir não são ideias, mas impulsos físicos instáveis” (BENJAMIN, 2011, p. 67). Assim, evidencia-se a “desproporção entre a dignidade hierárquica desmedida de que Deus o investiu e a sua humilde condição humana” (BENJAMIN, 2011, p. 66). Vacilante, o príncipe se encontra dividido entre sua elevada condição divina e a fragilidade da sua condição de criatura.
Tomada a decisão, o soberano será sempre “muito bom” ou “muito mau”. “Os ‘muito maus’ têm o seu lugar no drama de tiranos, e o sentimento que lhes corresponde é o temor; os ‘muito bons’ no drama de mártires, com a correspondente piedade” (BENJAMIN, 2011, p. 64) e “o tirano e o mártir são no Barroco as faces de Jano do monarca. São manifestações necessariamente extremas da essência da condição régia” (BENJAMIN, 2011, p. 65). “A posição sublime do imperador, por um lado, e a ignominiosa impotência do seu agir, por outro, deixam, no fundo, em aberto se se trata de um drama de tirano ou de mártir” (BENJAMIN, 2011, p. 69). O Rei é aquele que condena, que assassina, que exerce seu poder com mão de ferro, mas, ao mesmo tempo é vítima das mais terríveis catástrofes, é atormentado pelos mais dolorosos sofrimentos. Diante da catástrofe, na indecisão, na decisão – que é sempre em favor de si mesmo contra si mesmo –, ou no seu próprio desfecho trágico, o soberano é tirano e mártir, bom e mau, divino e “demasiado humano”, carrasco e sofredor.
Sempre dividido, em conflito, vivendo uma permanente tensão entre extremos que nunca se resolve com sucesso – nem pela síntese, nem pela vitória de um dos concorrentes –, o soberano é a imagem do ser dilacerado por excelência. O soberano dilacerado representa uma concepção de história como catástrofe permanente, uma história que é fragmento, ruína, violência, sofrimento, declínio, fracasso e sem a promessa cristã medieval de uma salvação absoluta.
“Enquanto que a Idade Média acentuava a precariedade do acontecer histórico e a transitoriedade da criatura como estações de um percurso salvífico, o drama trágico alemão mergulha inteiramente na desolação da condição terrena. Se nele existe redenção, ela está mais nas profundezas deste próprio destino do que na concretização de um plano soteriológico divino. O que caracteriza o novo drama em toda a Europa é o afastamento da escatologia presente no teatro religioso” (BENJAMIN, 2011, p. 78).

Aqui, a história não marcha em direção a uma meta superior, seu percurso catastrófico não encontra uma salvação final.
Recuperando, reconstruindo, “renomeando” a concepção barroca de história, que traz a catástrofe, a ruína e o fracasso como elementos centrais e rompe com a perspectiva medieval de uma salvação final, Benjamin estabelece uma conexão com o presente, para romper com a história linear progressiva e trazer à cena a concepção de história catastrófica que ele apresenta com a imagem-pensamento do Angelus Novus:
“Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso” (BENJAMIN, 1987, p. 226).

  O soberano dilacerado põe em cena a concepção de história de uma época igualmente dilacerada: o século XVII passou pela Reforma, que esvaziou de sentido a vida mundana e destituiu de valor a ação humana ao rejeitar a salvação pelas “boas obras” e insistir numa salvação pela fé cega na graça divina que pode ou não vir. Assim, “retirou-se todo o valor às ações humanas, e algo de novo nasceu: um mundo vazio” (p. 144). A sensação é de um radical abandono: Deus não está mais “aqui”, preenchendo cada fatia da vida humana de sentido. O pai celestial rígido que vigia e castiga, mas igualmente bondoso que cuida e protege é agora efetivamente inacessível e apenas se manifesta no fim, na morte, na devastação final do dia do juízo, por um ato de graça ou de desgraça que salva ou que condena. Há um divórcio abissal entre um mundo imanente vazio de sentido superior e um mundo transcendente incerto, misterioso, sombrio e pesado. Por outro lado, o Barroco viveu as imposições rigorosas e implacáveis da contrarreforma, com sua sede de controle absoluto sobre a mesma vida mundana e as mesmas ações humanas, que já não constituíam a via progressiva e segura de acesso à salvação do além. “De todas as épocas mais dilaceradas e contraditórias da história europeia, o Barroco foi a única que coincidiu com um período de hegemonia incontestada do cristianismo. A via medieval da revolta – a heresia – estava-lhe vedada” (BENJAMIN, 2011, p. 76). Estes elementos, combinados, constituem a “tensão entre mundo e transcendência” na qual viveu o Barroco.
Estas condições existenciais provocaram “um crescente peso na alma”, um “taedium vitae”, característicos da melancolia. “Pois aqueles que meditavam e iam mais fundo viam-se na existência como num campo de ruínas preenchido por ações não concluídas e inautênticas” (BENJAMIN, 2011, p. 144). Por outro lado,
“a própria vida se rebelava contra esse estado de coisas. Ela sente profundamente que não está aí apenas para ser desvalorizada pela fé. E um frêmito de horror atravessa-a perante a ideia de que a existência inteira poderia decorrer assim. Lá bem no fundo, assusta-a a ideia da morte” (BENJAMIN, 2011, p. 144).

A implosão catastrófica do sentido transcendente do mundo e a subsequente situação existencial de abandono, provocam um sentimento profundo de perda, mergulhando o espírito melancólico num trabalho de luto permanente. “O luto é o estado de alma em que o sentimento reanima o mundo vazio apondo-lhe uma máscara, para experimentar um prazer enigmático à vista dele” (BENJAMIN, 2011, p. 144).
No luto, “a desvitalização dos afetos que provoca a maré baixa das ondas que os faziam erguer-se no corpo pode levar a que a distância em relação ao mundo exterior se transforme em alienação em relação ao próprio corpo”. Este “sintoma de despersonalização” que se experimenta num “grau avançado de tristeza”, gera um novo interesse pelos objetos, numa espécie de “estado patológico em que as coisas mais insignificantes aparecem como chaves de uma sabedoria enigmática” (BENJAMIN, 2011, p. 146). O luto inaugura um novo tipo de relação com o “mundo das coisas”, intensifica e aprofunda a “atração” e a “estranheza” (BENJAMIN, 2011, p. 145) que os objetos despertam, faz emergir no melancólico alheio a si mesmo uma “fidelidade às coisas, que verdadeiramente o mergulha numa entrega contemplativa” (BENJAMIN, 2011, p. 164).
Um mundo vazio de sentido torna-se materialmente interessante para o luto melancólico e, através dele, a vida que resiste a “ser desvalorizada pela fé”, agarra-se ao mundo em ruínas extraindo dele um “prazer enigmático”. Desprovido de um sentido transcendente, o “mundo das coisas” se apresenta como misteriosa fonte de atração e estranhamento, como material disposto para o jogo, para a contemplação e para o prazer. Daí a “ênfase barroca, de sentido provocatório, na imanência mundana”.
“O homem religioso do Barroco prende-se tão fortemente ao mundo porque sente que com ele é arrastado para uma queda de água. Não existe uma escatologia barroca; por isso, o que existe é um mecanismo que acumula e exalta tudo o que é terreno antes de o entregar à morte” (BENJAMIN, 2011, p. 61).

Esta é a imagem precisa de uma época que tem como máximas o “carpe diem” e o “memento mori”, convivendo numa contradição não resolvida que denuncia seu dilaceramento.
O dilaceramento do Barroco faz uma conexão mutuamente compreensiva com o presente de Benjamin – e com o nosso próprio. O século XX vive a “morte de deus”, a impossibilidade de transcendência e, no entanto, sua “fé” permanece viva como vontade, desejo, pulsão, impulsos de transcendência sem objeto fixo. Vive o abandono e a perda de sentidos transcendentes. Vive sua própria versão do “peso na alma” e do “taedium vitae” no “mal-estar”, na depressão. Vive catástrofes, guerras, violência, sofrimento, sem qualquer garantia de uma “salvação” final. E vive o jogo-prazer do luto na fragmentação exposta da arte contemporânea.
A Melancolia, tradicionalmente compreendida como um estado de espírito pessoal de profunda tristeza, tédio, peso, fisiologicamente atribuída à “bile negra” na idade média, fator de oscilação entre a genialidade e a loucura em Aristóteles, astrologicamente interpretada pela influência de Saturno, estado de espírito que costuma acometer os homens de exceção, os grandes – para o bem ou para o mal –, os estranhos, os diferentes, os malditos, os fracassados, os condenados, os abençoados, os desgraçados, os contemplativos, os criativos, os filósofos, os poetas... é aqui atribuída à própria história: “o príncipe”, que “representa a história”, é o “paradigma do melancólico” (BENJAMIN, 2011, p. 147). E o próprio Saturno, o astro da melancolia, é também Cronos, o tempo, o
“deus dos extremos. Por um lado, ele é o grande senhor da Idade de Ouro..., por outro, o deus triste, destronado e humilhado...; por um lado, cria (e devora) inúmeros filhos, por outro está condenado a ser eternamente infértil; por um lado, é um monstro que tem de ser vencido pela astúcia mais simplória, por outro é o velho deus da sabedoria, venerado como a inteligência suprema” (BENJAMIN, 2011, p. 156).

            Dessa maneira, história e vida pessoal se confundem. O anjo da história é o melancólico a contemplar o passado como “catástrofe única”, como acúmulo de ruínas, condenado pelo vento do progresso à impotência diante da cena terrível que contempla. A catástrofe, a ruína e a melancolia que a História com H maiúsculo denega com uma linha progressiva em direção a uma meta superior, é posta em cena pela concepção de história barroca-contemporânea que o crítico-filósofo Benjamin constrói. Trata-se de uma história fragmentada, uma história que não se completa, uma história condenada à incompletude, fadada ao fracasso, permanentemente inacabada, mas que, justamente, deve permanecer inacabada e incompleta para que se mantenha viva, dinâmica, saturada de “agoras”, de conexões mutuamente compreensivas por fazer e de ideias por construir.
Da mesma maneira, a concepção moderna de subjetividade, apostando nos ideais de unidade, de uma consciência presente-a-si, de uma razão iluminada capaz de assumir as rédeas da existência humana, denega a fragmentação em meio às catástrofes e ruínas que constituem o “eu”. Tudo aquilo que somos e acreditamos ser, o personagem que assumimos no “teatro social”, depende diretamente da “hestória”[1] que nos conta (que conta quem somos) e que passamos a contar como se fosse “nossa”. Mas essa “hestória” é sempre absolutamente tendenciosa, cheia de lacunas tapadas às pressas ou toscamente maquiadas e, portanto, necessariamente fictícia. Há vários caminhos possíveis para se contar uma “hestória”… não é diferente com a “hestória” de nossas vidas. A “hestória” que vai se formando e que a cada vez predomina – sim, porque em momentos e lugares diferentes, a “hestória” de nossas vidas se conta de maneira diferente – é determinada por circunstâncias afetivas, por desejos e fantasias momentaneamente dominantes, por pressões e repressões sociais que obrigam a omitir certos elementos, e por polos atratores que sejam predominantes: profissão, relações amorosas, ressentimentos e rancores etc.
Não à toa, na compilação das “crônicas berlinenses” que deram origem a Infância em Berlim, Benjamin elimina todas as informações biográficas.
Há, implícita nesta novidade, uma redefinição de memória e este constituirá um dos temas fundamentais no pensamento de Benjamin. A memória evocada não é aquela, intransferível, do autor, mas a que não está restrita à subjetividade e pode ser partilhada em uma experiência coletiva. A infância, período tão fugaz quanto o mundo e os valores da alta burguesia berlinense – ainda presa ao século XIX já morto e alheia a sua própria época –, será iluminada pelo olhar do adulto que obtém, na rememoração, a compreensão de sua vida adulta presente. Berlim, em 1900, será rememorado pelo crítico para que o presente de uma geração se torne compreensível. Memória incrustada nas ruas, nos monumentos, no zoológico e nas praças, mas também nos objetos – uns tão recentes, como o telefone! (MURICY, 1998, pp. 14-15)

Ao contrário da concepção que se cristalizou como canônica na Filosofia Moderna, para Benjamin, a verdade do eu não está no “interior”, nem será apreendida através de uma meditação introspectiva. A “verdade” do eu está nas “coisas” que nos atravessam e nos constituem, as coisas que se amontoam nas ruínas da nossa “hestória”. Uma tal “verdade” do eu só pode ser reconstruída a partir de uma imersão atenta no “mundo das coisas” – vivendo-se a experiência daquele interesse “quase patológico” que mesmo as coisas mais insignificantes adquirem no estado de melancolia. Mas essa reconstrução não será jamais uma reconstrução “tal e qual” de um dado real. Essa “reconstrução” tem muito mais afinidade com o jogo melancólico de composição e recomposição, articulação e rearticulação de um material fragmentário em ruínas.
Infância em Berlim não é a tentativa de capturar no passado uma identidade presente evanescente. (...) As imagens dessas memórias não tentam apreender uma interioridade mas, ao contrário, o sujeito aqui se despsicologiza, renuncia a unificação de um ‘eu’ para se deixar captar na dispersão exterior das coisas. Escrevendo sobre a ida da criança ao fotógrafo, Benjamin afirma: ‘ficava desorientado quando exigiam de mim semelhanças a mim mesmo’, ao mesmo tempo que, reconhecendo-se nos objetos do ateliê, sentia-se ‘desfigurado pela semelhança com tudo que está a minha volta’. A criança identificada ao mundo das coisas – ou seja, como autoriza a epistemologia de Benjamin, a infância como diluição das categorias de sujeito e objeto – determina um exercício de escrita da memória que suspende as oposições de interioridade e exterioridade, o ‘dentro’ e o ‘fora’. O ‘eu’ é a percepção simultânea do espaço e do tempo históricos. (MURICY, 1998, pp. 15-16)

Se a Melancolia, estado de espírito pessoal, é transposta para o âmbito da história, a concepção de história como catástrofe e acúmulo de ruínas não poderá ser também transposta para o âmbito da vida pessoal? Que mais será a vida pessoal senão catástrofe, acúmulo de ruínas, fragmentação, fracassos, abandonos, sensação generalizada de perda de objetos e de sentidos supostamente superiores? Que mais será a vida pessoal senão o trabalho permanente de luto que renova o interesse pelo material da vida em ruínas enquanto material disposto para o jogo, para a contemplação, para o prazer? Como a história, a vida pessoal permanece inacabada, como a história, a vida pessoal permanece cheia de conexões e articulações possíveis, como a história, a vida pessoal permanece sempre ainda por fazer.

AUTOR

*Diogo Bogéa. Professor de Filosofia na Faculdade de Educação da UERJ. Doutor e Mestre em Filosofia pela PUC-Rio. Licenciado em História pela UERJ-FFP.  


  
Referências Bibliográficas
BENJAMIN, Walter. Origem do Drama Trágico Alemão. Belo Horizonte: Autentica, 2011
______. Sobre o conceito de história. In: Magia e técnica, arte e política (Obras escolhidas, volume 1). São Paulo: Brasiliense, 1987
COMTE, Auguste. Discurso preliminar sobre o conjunto do Positivismo. In: Col. Os Pensadores, 2ª ed. - Vol. Comte. São Paulo: Abril Cultural, 1978
CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos. In: GAUCHET, Marcel (org.). De la liberté chez lez modernes. Paris: Le livre de poche, 1980. Tradução para o português de Loura Silveira disponível em: http://www.fafich.ufmg.br/~luarnaut/Constant_liberdade.pdf (último acesso: 15/01 às 19:07)
HEGEL, G.F.W. A Razão na História. São Paulo: Centauro, 2001
MARX, K. ENGELS, F. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 2005
MURICY, Katia. Alegorias da Dialética. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1998



[1] Para um personagem do Teatro Social, não há diferença entre “história” e “estória”… As narrativas que contam para ele – e para os outros – quem ele é são tão fictícias quanto reais. Somente um espectador poderia operar esse tipo de distinção.


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