Diogo Bogéa*
Resumo: Em sua análise sobre o drama barroco alemão, Walter Benjamin afirma que o personagem central da trama, “o soberano”, representa a História, mas também representa paradigmaticamente o melancólico. Com isso, a melancolia, característica que diz respeito à vida pessoal, é de certa forma atribuída à própria História. A partir dessa indicação, tentaremos investigar as possíveis relações entre vida pessoal e História na obra de Benjamin, o que nos levará a uma crítica à compreensão tradicional de História como progressão linear, bem como à desconstrução da compreensão tradicional de “vida pessoal” como perdurar do sujeito íntegro, fixo, uno, racional e consciente.
Palavras-chave: melancolia; história; subjetividade
A tristeza pode matar. No entanto, se a comoção que a causou não é
mortal, ela então se dilui nas veias e se funde nas células, modificando pouco
a pouco a percepção sensível e psicológica da realidade. Com o tempo, a
tristeza se transforma em melancolia, essa consciência à distância de tudo,
alérgica à vida laboriosa e agitada, mas resolutamente observadora.
Frédéric
Schiffter
“O soberano representa
a história. Toma em mãos os acontecimentos históricos como um cetro” (p. 59),
afirma Benjamin, tão logo inicia sua análise propriamente dita do drama barroco
alemão. E, mais ou menos cem páginas depois, complementará sua definição para a
figura do soberano da seguinte forma: “O príncipe é o paradigma do melancólico.
Nada ilustra melhor a fragilidade da criatura do que o fato de também ele estar
sujeito a ela” (BENJAMIN, 2011, p. 147). A melancolia, um estado de espírito
tão pessoal, habitualmente compreendido como algo especificamente restrito ao
âmbito da vida humana, quando aplicado desta maneira à história, ou à figura
que representa à história, dá a pensar que tipo de relação se pode estabelecer
entre história e vida a partir deste elemento comum: a melancolia. A busca destas
possíveis relações será também necessariamente uma crítica à compreensão
tradicional de história como progressão linear, bem como à compreensão
tradicional de “vida pessoal” como perdurar do sujeito íntegro, fixo, uno,
racional e consciente. Seguiremos neste texto, portanto, a bela interpretação
de Katia Muricy, quando afirma que, na obra de Benjamin, “a vida pessoal e a
história entrelaçam-se como memória de cacos, de ruínas” (MURICY, 1998, p. 12)
Em
Origem do drama trágico alemão,
Benjamin não simplesmente analisa um determinado gênero estético, mas constrói
uma ideia, a própria ideia de drama trágico alemão. A partir da imersão no
conteúdo material, neste caso, a imersão no estudo das peças singulares,
Benjamin, enquanto crítico-filósofo, não apenas extrai de exemplos particulares
uma síntese universal representada por um conceito genérico, mas constrói uma
ideia que, tal qual uma constelação, mantém vivo o brilho dos fenômenos
singulares que figuram tensionados nas extremidades.
A
noção de constelação procura dar conta da emergência da ideia no espaço da
verdade, entendida como ordenação dos elementos materiais dos fenômenos
redimidos por meio dos conceitos, sem apelo às categorias de sujeito e às
correlatas noções de intenção e de método. A mediação do conceito é fundamental
na construção da constelação filosófica também porque a verdade não pode entrar
em contato imediato com o mundo das aparências. E só depois de redimido, isto
é, de ter dissolvido seus elementos materiais no conceito, que o fenômeno ganha
acesso à ordenação filosófica na constelação – a verdade é uma construção.
(...)
A
ideia mantém a dignidade dos fenômenos, isto é, se ela, como o conceito, efetua
uma redução da multiplicidade empírica, ao contrário deste, não anula o caráter
não-idêntico dos fenômenos por uma síntese do semelhante. A ideia não é uma
identidade dos extremos, mas sua convivência. O universal, na ideia, não é
fruto da identidade, mas da manutenção dos extremos. (MURICY, 1998, pp.
143-144)
Este trabalho
crítico-filosófico responde tanto a um apelo do passado em direção ao
futuro-presente, quanto a uma exigência urgente do presente, traçando vias de
conexão entre ambas as épocas, através da qual elas se esclarecem mutuamente de
alguma maneira.
A obra de Benjamin é a
reconstrução de um mundo, de uma época, a retomada dos fragmentos, das ruínas
desse passado, em montagem que quer tornar visível, isto é, mostrar, de forma
imediata, em uma imagem, o conhecimento capaz de tornar este passado inteligível
e, simultaneamente, elucidar o presente (MURICY, 1998, pp. 13, 14)
Uma das vias de conexão, presente na
obra em questão é uma determinada concepção de história.
Benjamin
se opõe à concepção de História do hegelianismo, do marxismo vulgar, do
positivismo e do liberalismo, todos muito em voga na Alemanha de sua época. O
que todas estas correntes têm em comum é uma compreensão linear progressiva da
história. Todas concebem a história – ou melhor, no seu caso, História com
letra maiúscula – como história universal progressiva, como processo evolutivo
rumo a uma meta superior pretensamente alcançável. No caso do hegelianismo, a
história aparece como o conturbado percurso do Espírito Absoluto num processo
dialético que se resolve em sínteses progressivas até que o Espírito Absoluto
se reencontre consigo mesmo, realizando-se plenamente enquanto liberdade
(HEGEL, 2001). No caso do marxismo vulgar, a História é o processo dialético de
lutas entre classes oprimidas e opressoras até que o proletariado, tomando
consciência do seu papel histórico, cumpra seu destino e ponha em marcha a
revolução comunista que virá a acabar, por fim, com as classes (MARX; ENGELS,
2005). Para o positivismo, a História é processo progressivo de superação da
visão de mundo teológica pela metafísica e da metafísica pela científica, numa
evolução que lembra a passagem da infância para a maturidade(COMTE, 1978). E
para o liberalismo, o progresso histórico se encarregará, através de uma
economia capaz de se auto-regular, de produzir uma sociedade melhor e mais
igualitária (CONSTANT, s/d). São todas concepções da história como marcha
progressiva e necessária que caminha confiante em direção a um fim superior.
É esta concepção de
história que Benjamin criticará duramente em suas teses sobre o conceito de
história. A tese 13 diz:
“A ideia de um progresso da humanidade na história é inseparável da ideia
de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo. A crítica da ideia do
progresso tem como pressuposto a crítica da ideia dessa marcha. A história é
objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um
tempo saturado de ‘agoras’” (BENJAMIN, 1987, p. 229).
Diante do “perigo” (BENJAMIN, 1987, p. 224) presente da visão linear progressiva
de história e de suas consequências políticas nefastas, Benjamin recorre ao
“índice misterioso” do passado, encarnando a “frágil força messiânica para a
qual o passado dirige um apelo” (BENJAMIN, 1987, p. 223) e estabelece uma
conexão entre século XX e século XVII, construindo com o “drama trágico alemão”
uma nova concepção de história.
O soberano, que, no drama trágico “representa a história” é aquele a quem
cabe o poder de decisão quanto ao estado de exceção. “Aquele que exerce o poder
está predestinado de antemão a ser o detentor de um poder ditatorial em
situações de exceção provocadas por guerras, revoltas ou outras catástrofes” (BENJAMIN,
2011, p. 60). Esta não é uma atribuição tranquila: afinal, o soberano é aquele
a quem cabe decidir romper com a ordem da qual ele mesmo é o representante
máximo para, agindo contra ela para além dela, restaurá-la. Cabe a ele decidir
contra si mesmo em favor de si mesmo, num único gesto em que assume seu
fracasso, assume sua impotência e amplia desmedidamente – para além da medida
habitual que ele mesmo representa – seu poder. Não é de espantar que ele se
mostre constantemente “incapaz de tomar uma decisão” (BENJAMIN, 2011, p. 66). Mesmo
nas questões menores, o príncipe vacila, oscila, duvida, “o que determina seu
agir não são ideias, mas impulsos físicos instáveis” (BENJAMIN, 2011, p. 67).
Assim, evidencia-se a “desproporção entre a dignidade hierárquica desmedida de
que Deus o investiu e a sua humilde condição humana” (BENJAMIN, 2011, p. 66).
Vacilante, o príncipe se encontra dividido entre sua elevada condição divina e
a fragilidade da sua condição de criatura.
Tomada a decisão, o soberano será sempre “muito bom” ou “muito mau”. “Os
‘muito maus’ têm o seu lugar no drama de tiranos, e o sentimento que lhes
corresponde é o temor; os ‘muito bons’ no drama de mártires, com a
correspondente piedade” (BENJAMIN, 2011, p. 64) e “o tirano e o mártir são no
Barroco as faces de Jano do monarca. São manifestações necessariamente extremas
da essência da condição régia” (BENJAMIN, 2011, p. 65). “A posição sublime do
imperador, por um lado, e a ignominiosa impotência do seu agir, por outro,
deixam, no fundo, em aberto se se trata de um drama de tirano ou de mártir” (BENJAMIN,
2011, p. 69). O Rei é aquele que condena, que assassina, que exerce seu poder
com mão de ferro, mas, ao mesmo tempo é vítima das mais terríveis catástrofes,
é atormentado pelos mais dolorosos sofrimentos. Diante da catástrofe, na
indecisão, na decisão – que é sempre em favor de si mesmo contra si mesmo –, ou
no seu próprio desfecho trágico, o soberano é tirano e mártir, bom e mau, divino
e “demasiado humano”, carrasco e sofredor.
Sempre dividido, em conflito, vivendo uma permanente tensão entre
extremos que nunca se resolve com sucesso – nem pela síntese, nem pela vitória
de um dos concorrentes –, o soberano é a imagem do ser dilacerado por
excelência. O soberano dilacerado representa uma concepção de história como
catástrofe permanente, uma história que é fragmento, ruína, violência, sofrimento,
declínio, fracasso e sem a promessa cristã medieval de uma salvação absoluta.
“Enquanto
que a Idade Média acentuava a precariedade do acontecer histórico e a
transitoriedade da criatura como estações de um percurso salvífico, o drama
trágico alemão mergulha inteiramente na desolação da condição terrena. Se nele
existe redenção, ela está mais nas profundezas deste próprio destino do que na
concretização de um plano soteriológico divino. O que caracteriza o novo drama
em toda a Europa é o afastamento da escatologia presente no teatro religioso” (BENJAMIN,
2011, p. 78).
Aqui, a
história não marcha em direção a uma meta superior, seu percurso catastrófico
não encontra uma salvação final.
Recuperando, reconstruindo, “renomeando” a concepção barroca de história,
que traz a catástrofe, a ruína e o fracasso como elementos centrais e rompe com
a perspectiva medieval de uma salvação final, Benjamin estabelece uma conexão
com o presente, para romper com a história linear progressiva e trazer à cena a
concepção de história catastrófica que ele apresenta com a imagem-pensamento do
Angelus Novus:
“Há um
quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer
afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua
boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu
rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de
acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína
sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar
os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e
prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa
tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as
costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o
que chamamos progresso” (BENJAMIN, 1987, p. 226).
O soberano dilacerado põe em cena a concepção
de história de uma época igualmente dilacerada: o século XVII passou pela
Reforma, que esvaziou de sentido a vida mundana e destituiu de valor a ação
humana ao rejeitar a salvação pelas “boas obras” e insistir numa salvação pela
fé cega na graça divina que pode ou não vir. Assim, “retirou-se todo o valor às
ações humanas, e algo de novo nasceu: um mundo vazio” (p. 144). A sensação é de
um radical abandono: Deus não está mais “aqui”, preenchendo cada fatia da vida
humana de sentido. O pai celestial rígido que vigia e castiga, mas igualmente
bondoso que cuida e protege é agora efetivamente inacessível e apenas se
manifesta no fim, na morte, na devastação final do dia do juízo, por um ato de
graça ou de desgraça que salva ou que condena. Há um divórcio abissal entre um
mundo imanente vazio de sentido superior e um mundo transcendente incerto,
misterioso, sombrio e pesado. Por outro lado, o Barroco viveu as imposições
rigorosas e implacáveis da contrarreforma, com sua sede de controle absoluto
sobre a mesma vida mundana e as mesmas ações humanas, que já não constituíam a
via progressiva e segura de acesso à salvação do além. “De todas as épocas mais
dilaceradas e contraditórias da história europeia, o Barroco foi a única que
coincidiu com um período de hegemonia incontestada do cristianismo. A via
medieval da revolta – a heresia – estava-lhe vedada” (BENJAMIN, 2011, p. 76).
Estes elementos, combinados, constituem a “tensão entre mundo e transcendência”
na qual viveu o Barroco.
Estas condições existenciais provocaram “um crescente peso na alma”, um “taedium vitae”, característicos da
melancolia. “Pois aqueles que meditavam e iam mais fundo viam-se na existência
como num campo de ruínas preenchido por ações não concluídas e inautênticas” (BENJAMIN,
2011, p. 144). Por outro lado,
“a
própria vida se rebelava contra esse estado de coisas. Ela sente profundamente
que não está aí apenas para ser desvalorizada pela fé. E um frêmito de horror
atravessa-a perante a ideia de que a existência inteira poderia decorrer assim.
Lá bem no fundo, assusta-a a ideia da morte” (BENJAMIN, 2011, p. 144).
A implosão
catastrófica do sentido transcendente do mundo e a subsequente situação
existencial de abandono, provocam um sentimento profundo de perda, mergulhando
o espírito melancólico num trabalho de luto permanente. “O luto é o estado de
alma em que o sentimento reanima o mundo vazio apondo-lhe uma máscara, para
experimentar um prazer enigmático à vista dele” (BENJAMIN, 2011, p. 144).
No luto, “a desvitalização dos afetos que provoca a maré baixa das ondas
que os faziam erguer-se no corpo pode levar a que a distância em relação ao
mundo exterior se transforme em alienação em relação ao próprio corpo”. Este
“sintoma de despersonalização” que se experimenta num “grau avançado de
tristeza”, gera um novo interesse pelos objetos, numa espécie de “estado
patológico em que as coisas mais insignificantes aparecem como chaves de uma
sabedoria enigmática” (BENJAMIN, 2011, p. 146). O luto inaugura um novo tipo de
relação com o “mundo das coisas”, intensifica e aprofunda a “atração” e a
“estranheza” (BENJAMIN, 2011, p. 145) que os objetos despertam, faz emergir no
melancólico alheio a si mesmo uma “fidelidade às coisas, que verdadeiramente o
mergulha numa entrega contemplativa” (BENJAMIN, 2011, p. 164).
Um mundo vazio de sentido torna-se materialmente interessante para o luto
melancólico e, através dele, a vida que resiste a “ser desvalorizada pela fé”,
agarra-se ao mundo em ruínas extraindo dele um “prazer enigmático”. Desprovido
de um sentido transcendente, o “mundo das coisas” se apresenta como misteriosa
fonte de atração e estranhamento, como material disposto para o jogo, para a
contemplação e para o prazer. Daí a “ênfase barroca, de sentido provocatório,
na imanência mundana”.
“O
homem religioso do Barroco prende-se tão fortemente ao mundo porque sente que
com ele é arrastado para uma queda de água. Não existe uma escatologia barroca;
por isso, o que existe é um mecanismo que acumula e exalta tudo o que é terreno
antes de o entregar à morte” (BENJAMIN, 2011, p. 61).
Esta é a
imagem precisa de uma época que tem como máximas o “carpe diem” e o “memento mori”,
convivendo numa contradição não resolvida que denuncia seu dilaceramento.
O dilaceramento do Barroco faz uma conexão mutuamente compreensiva com o
presente de Benjamin – e com o nosso próprio. O século XX vive a “morte de
deus”, a impossibilidade de transcendência e, no entanto, sua “fé” permanece
viva como vontade, desejo, pulsão, impulsos de transcendência sem objeto fixo.
Vive o abandono e a perda de sentidos transcendentes. Vive sua própria versão
do “peso na alma” e do “taedium vitae”
no “mal-estar”, na depressão. Vive catástrofes, guerras, violência, sofrimento,
sem qualquer garantia de uma “salvação” final. E vive o jogo-prazer do luto na
fragmentação exposta da arte contemporânea.
A Melancolia, tradicionalmente
compreendida como um estado de espírito pessoal de profunda tristeza, tédio,
peso, fisiologicamente atribuída à “bile negra” na idade média, fator de
oscilação entre a genialidade e a loucura em Aristóteles, astrologicamente
interpretada pela influência de Saturno, estado de espírito que costuma
acometer os homens de exceção, os grandes – para o bem ou para o mal –, os
estranhos, os diferentes, os malditos, os fracassados, os condenados, os
abençoados, os desgraçados, os contemplativos, os criativos, os filósofos, os
poetas... é aqui atribuída à própria história: “o príncipe”, que “representa a
história”, é o “paradigma do melancólico” (BENJAMIN, 2011, p. 147). E o próprio
Saturno, o astro da melancolia, é também Cronos, o tempo, o
“deus
dos extremos. Por um lado, ele é o grande senhor da Idade de Ouro..., por
outro, o deus triste, destronado e humilhado...; por um lado, cria (e devora)
inúmeros filhos, por outro está condenado a ser eternamente infértil; por um
lado, é um monstro que tem de ser vencido pela astúcia mais simplória, por
outro é o velho deus da sabedoria, venerado como a inteligência suprema” (BENJAMIN,
2011, p. 156).
Dessa maneira, história e vida
pessoal se confundem. O anjo da história é o melancólico a contemplar o passado
como “catástrofe única”, como acúmulo de ruínas, condenado pelo vento do
progresso à impotência diante da cena terrível que contempla. A catástrofe, a
ruína e a melancolia que a História com H maiúsculo denega com uma linha
progressiva em direção a uma meta superior, é posta em cena pela concepção de
história barroca-contemporânea que o crítico-filósofo Benjamin constrói. Trata-se
de uma história fragmentada, uma história que não se completa, uma história
condenada à incompletude, fadada ao fracasso, permanentemente inacabada, mas
que, justamente, deve permanecer inacabada e incompleta para que se mantenha
viva, dinâmica, saturada de “agoras”, de conexões mutuamente compreensivas por
fazer e de ideias por construir.
Da mesma maneira, a concepção moderna de subjetividade, apostando nos
ideais de unidade, de uma consciência presente-a-si, de uma razão iluminada
capaz de assumir as rédeas da existência humana, denega a fragmentação em meio
às catástrofes e ruínas que constituem o “eu”. Tudo
aquilo que somos e acreditamos ser, o personagem que assumimos no “teatro social”,
depende diretamente da “hestória”[1] que nos conta (que conta quem somos) e que passamos a contar como se fosse
“nossa”. Mas essa “hestória” é sempre absolutamente tendenciosa, cheia de
lacunas tapadas às pressas ou toscamente maquiadas e, portanto, necessariamente
fictícia. Há vários caminhos possíveis para se contar uma “hestória”… não é
diferente com a “hestória” de nossas vidas. A “hestória” que vai se formando e
que a cada vez predomina – sim, porque em momentos e lugares diferentes, a “hestória”
de nossas vidas se conta de maneira diferente – é determinada por
circunstâncias afetivas, por desejos e fantasias momentaneamente dominantes,
por pressões e repressões sociais que obrigam a omitir certos elementos, e por
polos atratores que sejam predominantes: profissão, relações amorosas,
ressentimentos e rancores etc.
Não à toa,
na compilação das “crônicas berlinenses” que deram origem a Infância em Berlim, Benjamin elimina
todas as informações biográficas.
Há, implícita nesta
novidade, uma redefinição de memória e este constituirá um dos temas
fundamentais no pensamento de Benjamin. A memória evocada não é aquela,
intransferível, do autor, mas a que não está restrita à subjetividade e pode
ser partilhada em uma experiência coletiva. A infância, período tão fugaz
quanto o mundo e os valores da alta burguesia berlinense – ainda presa ao
século XIX já morto e alheia a sua própria época –, será iluminada pelo olhar
do adulto que obtém, na rememoração, a compreensão de sua vida adulta presente.
Berlim, em 1900, será rememorado pelo crítico para que o presente de uma
geração se torne compreensível. Memória incrustada nas ruas, nos monumentos, no
zoológico e nas praças, mas também nos objetos – uns tão recentes, como o
telefone! (MURICY, 1998, pp. 14-15)
Ao contrário da concepção que se cristalizou como canônica na Filosofia
Moderna, para Benjamin, a verdade do eu não está no “interior”, nem será
apreendida através de uma meditação introspectiva. A “verdade” do eu está nas
“coisas” que nos atravessam e nos constituem, as coisas que se amontoam nas
ruínas da nossa “hestória”. Uma tal “verdade” do eu só pode ser reconstruída a
partir de uma imersão atenta no “mundo das coisas” – vivendo-se a experiência
daquele interesse “quase patológico” que mesmo as coisas mais insignificantes
adquirem no estado de melancolia. Mas essa reconstrução não será jamais uma
reconstrução “tal e qual” de um dado real. Essa “reconstrução” tem muito mais
afinidade com o jogo melancólico de composição e recomposição, articulação e
rearticulação de um material fragmentário em ruínas.
Infância em Berlim não é a tentativa de
capturar no passado uma identidade presente evanescente. (...) As imagens
dessas memórias não tentam apreender uma interioridade mas, ao contrário, o
sujeito aqui se despsicologiza, renuncia a unificação de um ‘eu’ para se deixar
captar na dispersão exterior das coisas. Escrevendo sobre a ida da criança ao
fotógrafo, Benjamin afirma: ‘ficava desorientado quando exigiam de mim
semelhanças a mim mesmo’, ao mesmo tempo que, reconhecendo-se nos objetos do
ateliê, sentia-se ‘desfigurado pela semelhança com tudo que está a minha
volta’. A criança identificada ao mundo das coisas – ou seja, como autoriza a
epistemologia de Benjamin, a infância como diluição das categorias de sujeito e
objeto – determina um exercício de escrita da memória que suspende as oposições
de interioridade e exterioridade, o ‘dentro’ e o ‘fora’. O ‘eu’ é a percepção
simultânea do espaço e do tempo históricos. (MURICY, 1998, pp. 15-16)
Se a Melancolia, estado de espírito pessoal, é transposta para o âmbito da
história, a concepção de história como catástrofe e acúmulo de ruínas não
poderá ser também transposta para o âmbito da vida pessoal? Que mais será a
vida pessoal senão catástrofe, acúmulo de ruínas, fragmentação, fracassos,
abandonos, sensação generalizada de perda de objetos e de sentidos supostamente
superiores? Que mais será a vida pessoal senão o trabalho permanente de luto
que renova o interesse pelo material da vida em ruínas enquanto material
disposto para o jogo, para a contemplação, para o prazer? Como a história, a
vida pessoal permanece inacabada, como a história, a vida pessoal permanece
cheia de conexões e articulações possíveis, como a história, a vida pessoal
permanece sempre ainda por fazer.
*Diogo Bogéa. Professor de Filosofia na Faculdade de Educação da UERJ. Doutor e Mestre em Filosofia pela PUC-Rio. Licenciado em História pela UERJ-FFP.
Referências Bibliográficas
BENJAMIN,
Walter. Origem do Drama Trágico Alemão.
Belo Horizonte: Autentica, 2011
______. Sobre o conceito de história. In: Magia
e técnica, arte e política (Obras escolhidas, volume 1). São Paulo:
Brasiliense, 1987
COMTE, Auguste. Discurso preliminar
sobre o conjunto do Positivismo. In:
Col. Os Pensadores, 2ª ed. - Vol. Comte. São Paulo: Abril Cultural, 1978
CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos
antigos comparada à dos modernos. In: GAUCHET, Marcel (org.). De la liberté chez lez modernes. Paris:
Le livre de poche, 1980. Tradução para o português de Loura Silveira disponível
em: http://www.fafich.ufmg.br/~luarnaut/Constant_liberdade.pdf
(último acesso: 15/01 às 19:07)
HEGEL, G.F.W. A Razão na História. São Paulo:
Centauro, 2001
MARX, K. ENGELS, F. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 2005
MURICY, Katia.
Alegorias da Dialética. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 1998
[1] Para um personagem do Teatro
Social, não há diferença entre “história” e “estória”… As narrativas que contam
para ele – e para os outros – quem ele é são tão fictícias quanto reais.
Somente um espectador poderia operar esse tipo de distinção.
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