Bruna Torlay
O
clássico dito de Montaigne – “a palavra é metade de quem fala, metade de quem
ouve” – é por excelência aplicável à filosofia. Não penso aqui do ponto de
vista histórico. Falo, antes, da perspectiva de alguém que a cultiva
cotidianamente e faz da escuta o adubo diário de suas reflexões dispersas.
Claro que a história do pensamento exprime a máxima com nitidez. Mas, talvez,
porque seja um registro parcial desse modo de sentir, pelo qual tantos temos
sido afetados desde sempre – e do qual excedemos em testemunhos desde a
invenção dos registros duráveis.
A
forma dialógica, que Platão associa à prática mesma da filosofia, foi
longamente cultivada por escritores zelosos em registrar seus pensamentos em
algum momento da vida. No período que a historiografia ora nomeia “moderno”,
ela se fez retomar profusamente, muitas vezes disfarçada no cerne de outro
gênero, como se o animasse do interior.
Serão
os Ensaios o registro das digressões solitárias de um aristocrata em seu
retiro, ou a prova viva do diálogo permanente que entretemos com nossos pares,
isto é, pessoas que no passado ou no presente (que tempo é o do pensar?), não
calaram sua curiosidade pelas coisas, nem sua surpresa constante diante do
mundo?
Uma
forma da prosa que escancara o espírito platônico de fazer falar a filosofia é
o gênero epistolar, praticado muito seriamente, por exemplo, nos séculos XVII e
XVIII. Todos conhecem o papel de Marin Mersenne no debate intelectual que gesta
a ciência nos moldes em que a herdamos, a aperfeiçoamos, a problematizamos e a
atualizamos.
Que
edição séria das obras de Descartes, Spinoza, Hobbes, Leibniz e outros
excluiria sua correspondência? O mesmo se aplica aos seus herdeiros diretos. A
título de curiosidade, vale reparar que o tomo V, Correspondance, das Oeuvres
de Diderot publicadas pela editora Robert Laffont é proporcional, em extensão e
interesse, ao tomo I da coleção, intitulado Philosophie. Bem, vale
admitir também que falamos de um inveterado admirador do pensador e estilista
ateniense…
A
carta é o rastro de um diálogo aberto. Não tem fim ou princípio e se lê melhor
em relação à voz alternada do correspondente. Longe de fincar diante dos
pósteros um apanhado definido de ideias verdadeiras, o gênero problematiza a
univocidade, no que diz respeito ao destino do pensamento.
Será
que a intensidade com que os pensadores modernos trocam cartas diz algo sobre
sua desconfiança comum da univocidade? Será possível tocar a superfície daquela
miríade de pensamentos sem a sensibilidade peculiar que inspira o signo da
diferença?
Um
modo de descobri-lo é percorrer os pares antitéticos exibidos nas galerias
barrocas do XVII, nas quais o contraste acentuado entre sombra e luz nos
conduz, ao final do passeio, a descobrir sua profunda interdependência, a
equivalência entre suas proporções.
Às
vezes me pergunto se o espírito cético e satírico que marca a inteligência de
tantas mentes do XVIII não seria uma resposta à lucidez duplicada e
clara-escura do barroco, que muitas vezes nos paralisa, diante da obrigação
árdua e sumária de tomar um partido às expensas de outro.
II
Há
quem reserve ao romantismo dos oitocentos a guarda das sombras; tendo legado
aos séculos anteriores (que tempo é o do pensar?) o apreço otimista pela luz.
Pascal surge para espalhar o mal-estar sobre esquemas confortáveis e
simplistas. Pascal, cuja brilhante contribuição à ciência não se ousaria
desprezar; cuja razão aguda desde cedo fez-se clara – e cuja melancolia acerba
não escaparia ao diagnóstico tardio de Philippe Pinel, ilustrando a terceira de
suas observações de melancolia:
Blaise Pascal nasceu em 1623, de uma família que possuía em Auvergne
posições distintas, as quais honrava com suas virtudes. Praticamente desde o
berço, deu indício da celebridade precoce que justificou, em seguida, uma
vastidão de escritos que ainda testemunham a superioridade de seu gênio. Uma
educação acurada e estudos prematuros desenvolveram nele o gosto exclusivo
pelas ciência mais abstratas, e um trabalho persistente cedo alterou sua
constituição física, que já era frágil e vacilante. Desde então, a saúde de
Pascal foi se deteriorando continuamente, e nada podia desacelerar seu ardor
pelo estudo. Após uma longa ausência, de volta ao seio familiar, ele dividiu
seu tempo entre a sociedade e as meditações. Mas logo, isolamento penível que o
fez sacrificar tudo em prol dos trabalhos intelectuais, e por consequência,
perecimento sensível. Para frear o avanço de seu estado, seu médico o
aconselhou a praticar a caminhada e a evitar toda contenção de espírito.
Pascal reaparece no mundo. Contribui com grandes talentos, grandes
virtudes e uma celebridade bem adquirida. Mas, ao mesmo tempo, um temperamento
melancólico, uma vaidade natural e o desejo pronunciado pela indulgência que
ele concedia aos outros. Ele já preferia a sociedade que formara para si à
solidão, e cogitava até mesmo a ela ligar-se pelo laço conjugal; mas um
acontecimento memorável na história de sua vida daria a suas ideias um contorno
inteiramente diverso.
Todos os dias, Pascal passeava nos arredores de Neully. Uma tarde, os
dois cavalos da linha de frente de seu fiacre escapam ao controle e se projetam
da ponte de Neully sobre o Sena. O abalo foi, por sorte, violento, rompeu os
cabos que uniam a primeira trela à fila de trás, e o fiacre estancou na beira
do precipício. Pascal saiu completamente ileso, mas vivamente assustado, e o
primeiro resultado desse susto foi uma síncope que durou por muito tempo.
Pode-se imaginar facilmente a comoção física e moral que deve ter afetado um
homem frágil e lânguido.
Por volta da mesma época, sucedeu-lhe na sombra da noite uma espécie de
visão ou de êxtase, de que ele conservou a memória num papel que carregava
sempre consigo, e que uns viram como um amuleto; outros, como um modelo de
virtudes cristãs. A sensação desse infeliz acontecimento, refigurado sem cessar
em sua imaginação, conturbava-o o tempo todo, sobretudo à noite, no meio de
suas insônias e de seu esgotamento. Ele acreditava que havia um abismo de seu
lado esquerdo, e fazia com que se pusesse ali um assento para se garantir.
Eu não insistirei sobre os traços acessórios da melancolia, sobre seus
temores, sua desconfiança, seus escrúpulos, sua paixão dominante ou sua devoção
minuciosa.
Os propósitos reconfortantes da amizade acalmavam seus alarmes por pouco
tempo. Mas, um instante depois, Pascal revia o precipício, sempre assustado
pelo mesmo fantasma, ou este desvio de sua imaginação; e oito anos após o
aflitivo acidente, Pascal morreu aos trinta e nove anos de idade.[1]
O
fundador da psiquiatria foi também grande leitor de escritos antigos, e reúne
medicina e filosofia em suas considerações sobre o estado melancólico, suas
espécies e seus tratamentos. Dos acessos de distorção relativamente à sua
constituição, ao tédio particular ou epidêmico, Pinel classifica este estado
psíquico em oito categorias, após tê-lo remetido ao “gênero LXVIe da
nosologia de Cullen”, definida como “loucura particular que não se acompanha de
dispepsia”.[2]
O
elemento central dessa doença da alma, a qual exige, portanto, um tratamento
moral, seria o “delírio exclusivo sobre um objeto único”,[3] ou o auto-enclausuramento no interior de uma
ideia fixa. Trata-se da perda de domínio sobre a imaginação, que faz o sujeito
sucumbir ao seu arbítrio. Os parágrafos sobre seu tratamento ecoam de modo
assombroso as observações de Montaigne ao discorrer sobre a força da
imaginação[4], conquanto delas se destaque pelo zelo asséptico:
Costuma-se apresentar duas indicações principais no tratamento da
melancolia: em uma, propõe-se destruir a ideia dominante dos melancólicos,
combater seu delírio exclusivo. A outra consiste em operar a cura radical da
doença.
(…)
Às vezes é da maior urgência destruir certas ideias quiméricas que
dominam os melancólicos a ponto de impedi-los, em alguns casos, de satisfazer
às necessidades mais urgentes. Pois já se viu melancólicos morrerem por sua
obstinação invencível em recusar toda espécie de nutrição. Algumas vezes, foi
preciso expedientes dos mais felizes, estratégias das mais singulares para
conseguir impedir os efeitos funestos das excentricidades de sua imaginação.
Um melancólico pensava que estava morto, e por isso não queria comer.
Todos os meios de que se dispôs para fazê-lo comer alguma coisa haviam
fracassado. Ele corria risco de morrer de fome, quando um de seus amigos teve a
ideia de fingir-se de morto. Ele foi posto num caixão na frente do melancólico,
e alguns momentos depois, trouxeram-lhe o jantar. O melancólico, vendo o falso
morto comer, pensou que ele também seria capaz de fazê-lo e pôs-se a imitá-lo.
(…)
Cumpre o mais das vezes entrar em suas visões, parecer persuadido da
existência de seus males imaginários, enfim, desarrazoar com eles para os
reconduzir à razão.[5]
Montaigne contentava-se
em reconhecer nele próprio esse pendor ao delírio que, em alguns, de nota se
torna um ritmo do qual é possível desviar. Para Pinel, médico em busca de
restabelecer a normalidade, trata-se, ademais, de “subjugar a paixão”. O
melancólico precisa ser salvo em definitivo, sob o risco de perecer como
pereceu Pascal, cujas habilidades matemáticas de nada serviram no controle dos
afetos. O papel do médico seria exercer este controle no lugar do paciente
inepto, a fim de erradicar a causa da doença:
É impossível curar radicalmente a melancolia, se não destruirmos as
causas que a produzem. Logo, deter o
conhecimento prévio dessas causas é de primeira necessidade. Lembrando-se
daquelas que são mais frequentes, percebe-se que é apenas produzindo nos
melancólicos impressões enérgicas e longamente continuadas sobre todos os seus
sentidos externos; é apenas combinando habilmente todos os meios do recurso da
higiene, que se pode produzir uma mudança durável, e fazer um desvio feliz das
ideias tristes dos melancólicos, e até mesmo alterar o seu encadeamento
vicioso, e [delimitar] o pequeno número de casos em que os medicamentos são
necessários.
É nos recursos de um bom regime físico e moral que devemos,
principalmente, fazer consistir o tratamento da melancolia. Cabe ao médico
hábil encontrar os meios, determinar a escolha e a ordem dos mesmos, segundo os
conhecimentos da constituição particular do doente, de sua idade, de seu sexo,
de suas ocupações habituais, da região onde mora, e sobretudo das causas
ocasionais da doença e dos períodos que ela suscedeu.
É
oportuno dizer que o parágrafo imediatamente posterior a este alude a um ensaio
de Bacon. Se Pinel é tributário de Locke e Condillac,[6] não o seria antes da técnica de investigação
experimental, caracterizada pela
exigência de captura da natureza via experimento? Bacon faz do episódio sobre
Menelau e Proteu a imagem mais certeira a exprimir o embate entre o cientista
experimental e a natureza: Proteu, o deus capaz de mudar de forma
constantemente, foi amarrado por Menelau enquanto dormia. E com tamanho engenho
que, desperto, não escapa aos nós por nenhuma de suas transformações, as quais
se sucedem diante do herói engenhoso, que por fim o faz falar[7].
A
natureza não se revela espontaneamente. Ao contrário, manifesta-se sob aspectos
múltiplos cujo cerne é de difícil captura. Daí a necessidade de se imaginar uma
armadilha que a obrigue à estabilidade provisória, momento em que capturamos
seus segredos. O nexo entre tradição médica e filosofia experimental se deixa
ver de modo mais sereno que Proteu por Menelau.[8] Não é à toa que as ciências da vida parecem ter
nas direções para o crescimento do saber delineadas Bacon no início do XVII o
rosto moderno de sua matriz comum. Não é de se estranhar que os hospitais
psiquiátricos em que trabalhou Pinel fossem, a um só tempo, laboratórios de
contenção e interpretação da natureza. Vale recordar ainda, entre os adeptos da
ciência experimental, o valor da natureza manifesta sob aspectos
extraordinários ou sob as amarras da técnica, para a investigação de suas
formas.[9]
Caso
a caso, as instâncias de desvio imaginativo são coletadas em suas
particularidades pelo médico, de modo a fundamentar e ampliar as classificações
possíveis de um aspecto da natureza (aqui, o estado melancólico, tal como à
época se o entendia):
A melancolia permanece com frequência estacionária durante muitos anos,
sem que o delírio exclusivo que tem por objeto mude de característica, sem
nenhuma alteração nos aspectos moral [psíquico] ou físico. Observa-se alienados
desta espécie no hospício de Bicêtre, há doze, quinze, vinte ou até mesmo
trinta anos, sempre presos às ideias primitivas que indicaram seu desvio,
sempre arrastados pelo movimento lento de uma vida monótona que consiste em
comer, dormir, isolar-se do mundo inteiro, e coabitar apenas com seus fantasmas
e suas quimeras. Alguns, dotados de um caráter mais maleável, passam a um
estado declarado de mania tão só pelo hábito de ver ou ouvir alienados furiosos
ou extravagantes; outros experimentam, após muitos anos, uma espécie de
revolução interior por causas desconhecidas, e seu delírio muda de objeto, ou
assume uma forma nova. Um alienado desta espécie, confiado aos meus cuidados há
doze anos e de idade já avançada, durante os oito primeiros anos delirou
exclusivamente quanto à ideia quimérica de um pretenso envenenamento, sob cuja
ameaça acreditava estar. Neste intervalo de tempo, variação nenhuma em sua
conduta, nenhuma outra marca de alienação. Ele era mesmo extremamente reservado
em seus propósitos, estando persuadido de que seus parentes buscavam
interditá-lo e apossar-se de seus bens. A ideia de um pretenso veneno o tornava
apenas muito desconfiado, e ele só ousava comer os alimentos subtraídos
furtivamente na cozinha de seu internato. Por volta do oitavo ano de reclusão,
seu delírio primitivo mudou de aspecto: ele acreditou, primeiro, ser o maior
dos potentados, depois, um igual ao Criador e o soberano do mundo. Esta ideia
ainda faz sua felicidade suprema.[10]
Com
este olhar analítico, capturou os tormentos de Pascal, cuja angústia se torna,
então, um estudo de caso, do tipo que ilustra a possibilidade de associar
debilidade física, medo intenso e propensão a fantasias obstinadas.
III
Sem
sair do quadrado espaço-temporal que abrangeu Pinel, mas passando, numa
inversão de perspectiva, do registro observação clínica ao registro diário
íntimo, reencontramos a melancolia de Pascal ponderada por um melancólico
confesso:
Meu estado habitual é um sentimento penível quanto à existência. Tudo me
parece difícil e apenas com lentidão e desconfiança de mim mesmo, eu me
determino a fazer o que quer que seja. Quase sempre uma simples carta me
inspira dificuldade e faço dela um grande caso. No gabinete ou afora, sou
perpassado por este sentimento mesclado de desgosto, de impaciência, que dá às
minhas ideias, como aos meus movimentos, uma precipitação sobre a qual não
tenho controle e impede que essas ideias, esses movimentos se completem ou se
executem em ordem, com a medida conveniente; tenho consciência desta
precipitação involuntária, desta incompletude que não consigo preencher, desta
desordem que não posso remediar, e isso me atormenta.[11]
Assim
inicia Maine de Biran a meditar sobre o ponto de apoio, de início
ausente, sem o qual a sua vida não faz o menor sentido. O aspecto de
auto-confissão do diário não destoa das meditações metafísicas de Descartes,
Spinoza ou Malebranche. Vejamos onde a clara descrição de angústia o leva,
afinal. Ele prossegue:
Eu sinto a cada dia que todo ponto de apoio exterior me escapa. Eu não
consigo encontrá-lo em nenhum objeto exterior a mim; eu já não tenho como
outrora este grande desejo de agradar, de ser amado, porque sou avisado, por
comparações contínuas, como também por meu senso íntimo, que perdi tudo o que
atraía para mim, tudo o que me trazia vantagens no mundo. Eu não sei se
encontrarei ainda este ponto de apoio em mim mesmo, onde eu me comprazia
outrora em adentrar. Eu não sei se a gente está mais disposto a se buscar e a
se encontrar com prazer na idade da força e da plenitude da vida; afecções
doces, um sentimento feliz quanto à existência nos atraem para dentro de
nós-mesmos e fazem com que sintamos menos necessidade de sair dali; afecções
tristes, um sentimento penível quanto à existência, nos afastam de nós e nos
fazem sentir a necessidade das distrações ou diversões exteriores; mas o mal
que nos atormenta é acrescido por essas distrações mesmas, e se sofre
duplamente, pelo desgosto quanto às coisas de fora, ou um mundo que nos
repugna, e pelo descontentamento, ou o vazio que se acha em si, quando se é forçado
de voltar para lá.
Eis os fatos de experiência interior, que eu constato a cada dia e dos
quais me faço um relato refletido para me incitar a buscar no fundo de meu ser
e na ideia de Deus que ali se acha, este ponto de apoio que é impossível
encontrar além, a fim de dar ao meu resto de existência o propósito que lhe
falta completamente.[12]
A dubiedade entre o anseio
íntimo de serenidade, oferecido por um ainda incógnito ponto de apoio, e a sensação
de precipitação descontrolada, dá o tom à experiência ética:
Eu busco o tempo inteiro esconder dos outros o que sou e dar-me a
aparência exterior de uma ciência, de uma virtude que eu não tenho, ou de
qualidades intelectuais, morais ou mesmo físicas, das quais eu sei bem para
comigo ser desprovido. Está aí uma ocupação miserável de minha vida, enquanto
que, por outro lado, quando estou sozinho e reflito, tenho sede de verdade e a
busco profundamente em mim mesmo.[13]
Serão
o apuro da consciência e o cuidado de si, como legaram os antigos, o caminho
conducente à serenidade? Será a faculdade racional capaz de nos extrair do
inexplicável abismo de desgosto para dentro do qual nos sentimos aspirados?
Considerando a complexidade fisiológica um fator preponderante para explicar a
oscilação afetiva, Maine de Biran registra em seu diário a inviabilidade de
algumas respostas filosóficas à melancolia. Para além de toda metafísica
erigida em nome daquele ponto de apoio, sem o qual viver e pensar se
torna impossível, o corpo, a sensibilidade, determina a tinta afetiva que nos
percorre inexoravelmente[14].
O
paradoxo entre perceber-se infinito quando a boa disposição nos permite
exercitar a faculdade racional, e experimentar a prostração e a impotência, ao
despertar completamente sem forças no outro dia não é algo passível de ser
superado, resolvido, alterado. A doença surge para intensificar essa
experiência ao máximo: Não se pode saber de antemão a que grau de nulidade
moral e de desgosto por si-mesmo a doença é capaz de nos reduzir. Eu sou,
disso, a prova viva.[15]
É impossível percorrer
suas meditações sem pensar em Pascal. Tampouco o fez o autor. Ao longo de
algumas, insurge-se contra os juízos de seu irmão seiscentista de temperamento
com relação à causa da miséria humana:
Pascal está seguramente enganado em tudo o que diz sobre a causa da
miséria dos homens e da agitação perpétua em que passam toda a sua vida.
Preocupado unicamente com seu objeto, que é o de mostrar que homem foi deposto
e fora criado para um estado melhor, ele o trata como um sujeito simples e
abstrai completamente a influência de seus estados orgânicos e sensitivos sobre
o sentimento imediato que ele tem de sua existência, sentimento feliz ou
infeliz, triste ou agradável que ele experimenta apesar de todas as distrações,
e tanto quando ele não quer pensar em si, quanto no momento em que é reduzido a
fazê-lo. Sobre esse ponto, é notável que todos os metafísicos puros, Descartes
inclusive, tenham atribuído à alma e a um sentimento intelectual que ela tem de
sua perfeição ou de sua imperfeição, tais estados de prazer e de sofrimento nos
quais o pensamento não entra à toa, e que são puras afecções da sensibilidade,
que não estão sob o poder da alma mais que a vida orgânica, das quais essas
afecções são os modos. Ao passo que, do outro lado, os fisiologistas
confundiram os sentimentos intelectuais ou morais com as afecções puras da
sensibilidade sem pesar os atos da alma ou as operações da vontade que têm
relação com esses sentimentos. Há um trabalho inédito a fazer, que consistiria
em dispor nitidamente a parte da alma e aquela da organização em cada estado,
paixão ou modificação total da vida humana; ali se poderia ver quais são os
modos que o homem padece, quer ele o queira e pense nisso, quer ele não
o queira ou sequer se aperceba disso; e deduziríamos da teoria fundada sobre
uma experiência completamente interior as aplicações mais úteis à moral
prática, à ciência da felicidade e da virtude.
Isso valeria mais que todas as declamações de Pascal sobre a miséria e
as vãs agitações do homem.[16]
Para
Maine de Biran, meditar sobre a alegria infinita propiciada pelo amor ao
conhecimento não é condição necessária e suficiente para acendê-la dentro de
nós; assim como interpretar a sensível miséria humana por meio de um esquema
teológico não produz a libertação efetiva de um arraigado sentimento de penúria
com relação à existência. Não é algo que tenha afirmado como analista
catedrático, mas como indivíduo a debater-se com respostas possíveis ao longo
de solilóquios que, para nós, tornam-se pretextos para novos diálogos.
Foram
muitos os modos de pensar a melancolia, o tédio, a angústia e os meios para
extrair-se desses estados de espírito, entre os pensadores modernos. Para
alguns, como Leibniz e Spinoza, a felicidade coincidia com a própria
compreensão de um todo do qual somos manifestação. Para outros, como Bacon e
Descartes, feliz seria a humanidade em seu império sobre a natureza, que
cumpria analisar ou interpretar de modo a sujeitá-la à grandiosa e digna
vontade humana. Para Pascal, ponto fora da curva, se quisermos associar a
modernidade a um louvar persistente da razão, restava a nós uma aposta incerta,
da qual um partido levaria necessariamente ao abismo, enquanto o outro, com
azar, nos não subtrairia nada; mas, com sorte, nos daria tudo.
Os
trabalhos de matiz literário de Isabela Mendes e Revson Costa, longe de
obstruir ainda mais a nossa vista constantemente deturpada por esquemas
classificatórios incertos, procuram dar vida àqueles pensamentos. Escapando às
formas banais encorajadas na rotina universitária, são uma valiosa leitura na
medida em que, em vez de enclausurar a filosofia na camisa de força da análise,
buscam apenas reviver no espírito horizontes possíveis. Uma agradável
celebração do diálogo, da escuta, da sensibilidade e da filosofia – conforme
desde o início nos ensinava Platão.
[1] As
observações integram o verbete Mélancolie (médecine clinique) que
escreve Pinel para a Encyclopédie Méthodique (1782-1832) dirigida por
Panckoucke, uma versão ampliada e muito modificada da Encyclopédie de
Diderot e D’alembert, que teve por intuito substituí-la. O contraste maior
entre as obras é a dissociação entre ciências e Filosofia, uma vez que, no
alvorecer do século XIX, as primeiras não mais têm a segunda por horizonte
comum e esboçam, de modo específico e separado, discursos epistemológicos e
metodológicos autônomos. Ver
a esse respeito: GROULT, M. Savoir et Matières.
Pensée scientifique et théorie de la connaissance de l’Encyclopédie à
l’Encyclopédie méthodique. Paris, CNRS Editions, 2011, Partie III, p. 231-350. O
excerto do verbete que menciono, em tradução minha, foi extraído de HERSANT, Y.
(org.). Melancolies:
de l’Antiquité au XXe siècle. Paris: Robert Laffont, 2005, p. 710-711.
[2] PINEL,
P. Mélancolie. In: HERSANT, Y. (org.). Melancolies: de l’Antiquité au
XXe siècle. Paris: Robert Laffont, 2005, p. 693.
[3] PINEL,
P. Mélancolie. In: HERSANT, Y. (org.). Melancolies: de l’Antiquité au
XXe siècle. Paris:
Robert Laffont, 2005, p. 700.
[4] Ao
longo do ensaio XXI do primeiro livro, o qual principia indicando o quão
sugestionável é ele próprio, Montaigne evoca inúmeros exemplos, extraídos de
escritos da antiguidade, do quanto a mente produz estados físicos dos quais só
nos recuperamos mediante estratégias que a desenganem. Vale a pena ler este
ensaio graciosamente delirante sobre o poder do delírio em nosso corpo antes de
consultar a seção “tratamentos” do arrazoado verbete de Pinel. Cf. MONTAIGNE,
M. Os Ensaios – Livro I. Tradução Rosemary Costhek Abílio. São Paulo:
Martins Fontes, 2002. p. 143-160.
[5] PINEL,
P. Mélancolie. In: HERSANT, Y. (org.). Melancolies: de l’Antiquité au XXe
siècle. Paris:
Robert Laffont, 2005, p. 701.
[6] O
juízo é de Yves Hersant e ocorre na apresentação sumária do texto de Pinel em
análise. cf. HERSANT, Y. (org.). Melancolies: de l’Antiquité au
XXe siècle. Paris:
Robert Laffont, 2005, p. 692
[7] “(…)
os tormentos da arte são decerto como as amarras e algemas de Proteu, que
revelam os últimos esforços e debates da matéria. Pois os corpos não serão
destruídos ou aniquilados. Ao invés disso, eles se converterão em formas
várias”. Esta passagem está na obra De augmentis, aqui traduzida a
partir da edição vitoriana. Cf. BACON, F. The
Works os Francis Bacon. Coll and ed. by James Speeding, R. L. Ellis &
D. eath. Fromann – Holzboog, Stuttgart, 1962, (volume IV, p. 257).
[8] É
preciso investigar (ou avaliar investigações já realizadas quanto a) em que
medida Francis Bacon teve acesso aos escritos médicos da antiguidade, uma vez
que a noção de kairós é permanente nas entrelinhas do método
experimental delineado no Novum Organum. Na conclusão da obra Doença
do corpo, doença da alma, o autor assim sintetiza o nex entre kairós
e prática médica: “O médico deve ser capaz de perceber a ocasião de intervir.
Mas é tarefa difícil surpreender o momento em que a natureza se mostra, pois
para isso é necessário conhecer o movimento do microcosmo humano, o movimento
da vida. O kairós, expressão infinitesimal da eternidade, é este momento
passageiro em que a regularidade da phýsis pode ser captada pela
inteligência com auxílio dos sentidos. Mas é uma ocasião fugaz, logo
secundada pelo fluxo do devir, repleto de sinais contraditórios que confundem a
percepção e dificultam o julgamento”. Cf. FRIAS, I. Doença do corpo, doeça
da alma: Medicina e Filosofia na Grécia clássica. Rio
de Janeiro: PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2004, p. 154. Sobre a arte da medicina
ser, ao projeto de Bacon, uma fonte de inspiração, lemos no ensaio Of
Innovations: “Surely every medecine is an innovation; and he that will not
apply new remedies must expect new evils; for time is the great innovator; and
if time of course alter things to the worse, and wisdom and counsel shall not
alter them to the better, what shall be the end?”
[9] Na
obra Parasceve (espécie de prolegômenos a uma História natural), Bacon
define os fatos da natureza em três desdobramentos, a saber a natureza em seu
curso habitual, a natureza desviada das leis da matéria e a natureza modificada
pela mão humana. A história da natureza, portanto, encerra três tipos de seres,
os regulares, os monstros e prodígios e as coisas artificiais. Cf. BACON, F. The Works of Francis Bacon. Coll and ed.
by James Speeding, R. L. Ellis & D. eath. Fromann – Holzboog, Stuttgart, 1962, (volume IV,
p. 254-6).
[10] PINEL,
P. Mélancolie. In: HERSANT, Y. (org.). Melancolies: de l’Antiquité au
XXe siècle. Paris: Robert Laffont, 2005, p. 699.
[11] MAINE
DE BIRAN. Un sentiment pénible de l’existence. In: HERSANT, Y. (org.). Melancolies:
de l’Antiquité au XXe siècle. Paris: Robert Laffont, 2005, p. 341-2
[12] MAINE
DE BIRAN. Un sentiment pénible de l’existence. In: HERSANT, Y. (org.). Melancolies:
de l’Antiquité au XXe siècle. Paris: Robert Laffont, 2005, p. 342
[13] MAINE
DE BIRAN. Un sentiment pénible de l’existence. In: HERSANT, Y. (org.). Melancolies:
de l’Antiquité au XXe siècle. Paris: Robert Laffont, 2005, p. 342
[14] Os
comentários de H. Bergson permanecem de grande interesse como introdução à
sofisticada metafísica de Maine de Biran. Uma tradução de seu panorama da
Filosofia francesa, na qual Maine de Biran tem lugar, foi publicada na Revista
Transformação. Ver BERGSON, H. A Filosofia francesa. Tradução Silene
Torres Marques. In: Revista Trans/Form/Ação, São Paulo, 29(2): 257-271, 2006
[15] MAINE
DE BIRAN. Un
sentiment pénible de l’existence. In: HERSANT, Y. (org.). Melancolies: de l’Antiquité au
XXe siècle. Paris: Robert Laffont, 2005, p. 341
[16] MAINE
DE BIRAN. Un sentiment pénible de l’existence. In: HERSANT, Y. (org.). Melancolies:
de l’Antiquité au XXe siècle. Paris:
Robert Laffont, 2005, p. 344-45.
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