Prezado
amigo,
Remeto-te
esta carta por vários motivos. O primeiro deles (mais nobre) é continuar
incentivando seus estudos. O segundo (e leviano, talvez) é tentar desviar a tua
linha de pensamento do sonho, despertando-te, meu ingênuo amigo, para o
enfrentamento da realidade das coisas.
Soube
que permaneces fiel seguidor de Leibniz e, confesso, mal pude acreditar que tal
fidelidade tenha sido mantida mesmo após teres feito a leitura que te sugeri no
último inverno: os pensamentos de Blaise Pascal. Fico curioso e pergunto: não
terá Pascal te convencido?
Trata-se,
como pudestes perceber, de um pensador lúcido. Livre do devaneio dos que usam,
de modo exacerbado, a razão, bem como afastado do exagero imaginativo,
instância em que Leibniz se encaixaria muito confortavelmente...
Como
te conheço bem, por certo adormeceste enquanto lia Pascal, e findou por deixar
de analisar, dentre muitos pontos, o art. II, §72, da obra. Para “relembrar-te”
– uma vez que dirás ter lido sem jamais admitir o cochilo –, transcrevo
pequeno, porém profundo, trecho da obra:
“Pois afinal que
é o homem na natureza? Um nada com relação ao infinito, um tudo com relação ao
nada, um meio entre o nada e o tudo, infinitamente afastado de compreender os
extremos; o fim das coisas e seus princípios estão para ele invencivelmente
escondidos num segredo impenetrável.
(...)
Que fará ele
então senão perceber alguma aparência do meio das coisas um desespero eterno de
conhecer quer o seu princípio, quer o seu fim. Todas as coisas saíram do nada e
foram levadas até o infinito. Quem acompanhará esses espantosos movimentos? O
autor dessas maravilhas as compreende. Nenhum outro pode fazê-lo”.
É
importante analisar essa passagem atento ao fato de que, para Pascal, o homem é
um ser cheio de erro, um miserável que foge de si mesmo por não suportar sua
condição contraditória. É um sujeito que não aguenta se ater aos seus próprios
pensamentos e gasta toda a vida A entorpeceR-se, fugindo da verdade e buscando
a felicidade em coisas que não pode ter, permanecendo infeliz, caso venha a tê-las.
Como
ousa um “caniço pensante” compreender o nada, o infinito, e ainda supor que a
ordenação do mundo é a melhor possível? Como pode um ser contraditório em si
mesmo afirmar ser capaz de compreender a magnitude e a perfeição das obras de
Deus?
Pergunto
mais: como um ser finito pode gabar-se de conhecer o infinito? Tu me
responderás: observando a natureza. Mas o que é a natureza senão um simples
traço ante o infinito? Um erro ambulante que observa um pedaço do infinito
jamais poderá compreendê-lo!
Em
suas contradições, o homem é minúsculo diante do infinito (quando olha o
firmamento), enorme em sua insignificância (quando descobre universos em cada
um dos seus fios de cabelo), e tomado de misérias no seu coração (jamais
encontrará no mundo a felicidade!).
Pelo
que leste, não vês claramente que a única grandeza do homem é reconhecer sua
miséria? Que essa grandeza se resume ao conhecimento do seu abandono neste
universo assombrosamente silencioso?
Eis
que, diante desses abismos, um filósofo de imaginação fértil escreve páginas e
páginas sobre “harmonia preestabelecida” ... Penso que, talvez, Leibniz tenha
escrito a monadologia para o divertimento dos homens (este, o único objetivo
perseguido com afinco pela humanidade na sua incansável fuga de si).
Proponho
ao parceiro de estudos que saia pelas ruas e observe as pessoas... Desafio-te a
encontrar a “harmonia” dos escritos de Leibniz. Não é difícil concluir, pela
lei das probabilidades (uma especialidade de Pascal) que verás somente
disfarce, mentira e hipocrisia. Oh, se os argumentos de Blaise Pascal ainda não
te convenceram, tenho certeza que meia hora de passeio meditativo pelas vias
que cercam tua casa te convencerá!
Agora
olhe para mim, que sou seu amigo. O que faço nessas breves linhas? Estou
presunçosamente a escrever-te no intento de fazê-lo enxergar a própria miséria,
fazendo-o pensar sobre sua finitude e insignificância, afastando-te do que
consideras a felicidade: o melhor dos mundos possíveis. Não é muita vilania de
minha parte?
Ah,
bem certo está Pascal quando diz: “como é oco e cheio de baixeza o coração do
homem”!
Mantenho-me, pois, submisso a Deus
como única saída. Não espero encontrar entre nós qualquer outro caminho. Mas,
como ser contraditório que sou, espero ansiosamente pela tua análise das ideias
de Pascal. De vez em quando é bom conversar com mentes sonhadoras e criativas,
uma vez que não sabemos até quando se manterão assim...
Com
meus melhores cumprimentos,
Amigo
“Y”.
Não fiquei surpreso com a carta que me enviaste, pois já imaginava
que, por tua curiosidade habitual, interessaria-te conhecer a opinião de um
admirador de Leibniz sobre as ideias de Blaise Pascal acerca do infinito.
Li por várias vezes o trecho transcrito em tua carta, extraído do
art. II, §72, da obra “Pensamentos”, de Pascal, e pude constatar que Leibniz
está muitos passos à frente daquele pensador (e não estou aqui falando da
calculadora, mas de filosofia).
Chamou-me a atenção a pergunta: “que é um homem diante do
infinito?” Pascal, por um lado, afirma que somos um corpo em meio ao universo,
e que este corpo pode ser dividido em muitas partes, sendo cada parte desta um
universo, também subdividido entre tantas outras. Coloca, assim, o homem, numa
posição paradoxal entre miséria (nada) e magnitude (infinito), e então se
assombra, conceituando o homem como “um ponto intermediário entre o tudo e o
nada”.
Ora, a monadologia de Leibniz responde à pergunta de Pascal sem
assombros, apenas usando, como método, os princípios lógicos de razão
suficiente e de contradição. Explico.
Primeiramente, relembremos que, segundo Leibniz, não podemos
encontrar nenhum fato verdadeiro ou existente sem que haja uma razão suficiente
pela qual ele seja assim, e não de outra maneira.
De outro lado, pelo princípio da contradição, para que tais fatos
(contingentes) existam, é preciso que algo necessário e eterno seja a sua
causa. Essa seria a mônada necessária e eterna, Deus. Dito em outras palavras,
Leibniz demonstra, através de princípios lógicos e racionais, que é impossível
que Deus não exista.
Partindo dessa base, relembremos ainda que, segundo Leibniz, o que
chamamos de corpo (no mundo dos fenômenos) é um composto de substâncias simples
(mônadas), e que todo composto é amplamente divisível, apesar da aparente
unidade. Estas substâncias simples, sim, são indivisíveis, incorpóreas,
diferentes umas das outras, sujeitas à mudança por princípios internos (força),
e com percepção (enteléquia). As mônadas, são, portanto, como as mentes.
Leibniz vai além, e conclui que as mônadas representam todo o
universo em si, mas demonstram, à semelhança de um espelho, apenas parte do
universo, assim como vemos uma cidade diferente a depender do ponto a partir do
qual a observamos.
O homem seria uma mônada com apercepção (alma) que, assim como as
demais mônadas, reflete todo o universo. Contudo, se diferencia das demais
porque também reflete o entendimento de Deus (razão, consciência). Essa alma se
hamorniza com várias outras mônadas (simples) formando um composto, e algo
dentro delas, uma força, é que as compele a esta harmonia prestabelecida.
Diante disso, creio que perde em relevância o “nada” apontado por
Pascal. Afinal, se Deus (a substância necessária, cuja inexistência é
impossível) é causa de si mesmo e razão suficiente para a existência de todas
as mônadas, não há lugar para o nada… e o assombro se dissolve. O Homem de
Leibniz é o universo. Prefiro este ao homem insuficiente de Pascal.
O homem de Leibniz é conhecedor das verdades necessárias e capaz
de fazer abstrações, sendo levado a atos de reflexão, que nos fazem pensar no
que se chama o Eu. “E assim, ao pensar em
nós mesmos, pensamos no Ser, na Substância, no simples e no composto, no
imaterial e mesmo em Deus, concebendo como aquilo que em nós é limitado, n'Ele
é sem limites. E tais atos de reflexão nos dão os objetos principais de nossos
raciocínios” (T. prefácio 27 4
a).
Eu sei que você vai chamar tudo isso de platonismo ou
aristotelismo, e decerto há algo de Aristóteles ou Platão nisso tudo sim, já
que Leibniz bebeu na fonte dos antigos, e criou uma filosofia que harmoniza o
pensamento antiga ao moderno.
Mas voltando a Pascal, noto a descrença dele no papel da
investigação da natureza como meio para conhecer o infinito. Ora, o homem sendo
uma mônada que possui em si todo o universo, e sendo capaz de conhecer as
verdades necessárias, descobre, investigando a natureza, todo o conhecimento
que já possuía dentro de si. Veja a matemática, a geometria, que nos permite
conhecer a soma dos ângulos de um triângulo como verdades irrefutáveis.
É pela harmonia preestabelecida que lidamos com a natureza, sendo
o conhecimento algo ínsito à alma, que se desvela pela investigação do que nos
rodeia. Citando Leibniz, “esta harmonia faz com que as coisas sejam conduzidas à graça pelos
próprios caminhos da natureza e que este globo, por exemplo, deva ser destruído
e reparado pelas vias naturais nos momentos requeridos pelo governo dos
Espíritos, para o castigo de uns e a recompensa de outros” (T. §§ 18 ss; 110; 244-245; 340).
O que eu quero dizer, caro amigo, é que foi observando e estudando
a natureza que Leibniz chegou ao infinito, este mesmo que existe dentro de nós.
E foi exatamente a noção de infinito que o levou a elaborar o conceito de
mônadas. Lembre-se que foi Leibniz quem primeiro descobriu o cálculo
infinitesimal (newtonianos, aceitem), e esta descoberta fez com que ele
observasse que a natureza “não dá saltos”.
Segundo Leibniz, o problema filosófico da contingência e o
problema matemático do contínuo têm origem no infinito. As substâncias se
aproximam umas das outras devido a este infinito presente em cada uma delas.
Chegamos do “0,99999...” ao 1 por aproximação. Não é fantástico, isto? Saber
que o infinito está em tudo, inclusive em nós mesmos, e que isto pode ser
comprovado matematicamente, e não temido, simplesmente?
Leibniz não nega que, lidando com a natureza, por vezes erramos,
pois perfeito, só Deus. Nossas imperfeições nos permitem conhecimentos obscuros
e confusos também, principalmente quando não conseguimos expressar nossas
ideias da melhor maneira possível, sendo esta uma das grandes razões para que
ele valorizasse a tal ponto o uso preciso da linguagem, da semiologia, como
premissa ao avanço do conhecimento.
A razão, como disse linhas atrás, é atributo concedido às almas,
atributo este que nos permite conhecer estas verdades, numa espécie de
despertar para algo que sempre esteve dentro de nós. Não é curioso, depois de
ler Leibniz, que Pascal ache “estranho” querer compreender
o princípio das coisas pela observação da natureza?
Mas o certo é que, para Leibniz, este é o melhor dos mundos
possíveis, e sei que você considera tudo isso muito ingênuo. Mas se pensarmos
na possibilidade de um Deus perfeito, poderemos compreender o que Leibniz quer
dizer. Se pensarmos, ainda, que o que chamamos de “mal” é resultado da nossa
imperfeição, aí então toda a metafísica de Leibniz fará sentido. Entretanto,
acima de tudo, se concordarmos como ele na imortalidade da alma, veremos que os
nadas e abismos de Pascal perdem completamente a razão de ser.
A filosofia de Leibniz, portanto, meu caro, demonstra através da
lógica, que vivemos numa harmonia preestabelecida, ainda que, por nossa
sensível imperfeição, não gostemos desta
ideia. O tão buscado bem comum, por acaso, significa a extinção de todo e
qualquer inconveniente? Não seria mais platônico (no mau e vulgar sentido)
esperar que o bem comum seja um mundo perfeito? O mais racional não seria
imaginar que o bem comum pode ser simplesmente o melhor dos mundos possíveis?
Espero ter satisfeito à sua curiosidade, e aguardo sua réplica
para que desenvolvamos cada vez mais as ideias que, como diria Leibniz, já
encontram resposta no universo dentro de nós.
Saudações,
Amigo
“X”.
AUTORA
Isabela Mendes estuda Filosofia por prazer. Bacharel e
pós-graduada em Direito, é analista judiciária na Justiça Federal de Feira de
Santana.
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